ASPECTOS DE GÊNESIS NORMALMENTE IGNORADOS
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Há alguns aspectos da história de Gênesis sobre a criação que provavelmente não são percebidos pela maioria das pessoas e um deles foi ignorado até pelos antigos judeus e cristãos, os quais são os que compreenderam melhor o texto sagrado, porque estavam mais próximos da época dos escritores bíblicos. A visão do homem contemporâneo tende a embaçar o entendimento de determinadas passagens bíblicas, pois na Antiguidade havia uma mentalidade mais voltada para o mundo espiritual, ao passo que hoje se concentra no mundo material. Isto contribui para o materialismo e o ceticismo generalizados, pois em geral coisas espirituais não podem ser medidas nem comprovadas cientificamente.

A CRIAÇÃO DO SOL, DA LUA E DAS ESTRELAS

O primeiro fator que deve ser considerado é que quando Gênesis diz que Deus fez isso ou aquilo, essa narrativa é de acordo com o ponto de vista de um hipotético observador terrestre. Por isso que o relato informa que a luz foi feita no primeiro dia, ao passo que o sol, a lua e as estrelas “foram feitos” no quarto, depois que toda vegetação terrestre já tinha surgido no terceiro dia. Conforme ensinado pela ciência, sabe-se que não existe possibilidade de haver plantas e árvores sem a luz do sol, pois a clorofila dos vegetais depende de sua luz. Então como entender essa aparente contradição?

É óbvio que os astros já tinham sido criados no primeiro dia, pois o relato bíblico informa que já havia os dias e as noites. No entanto, o sol e a lua não seriam visíveis para uma pessoa que estivesse aqui. A razão disso é que a atmosfera da Terra primitiva era muito densa. O céu estava sempre coberto de nuvens e isso impediria qualquer um enxergar o sol e a lua. Havia apenas uma luz difusa que cobria todo o globo. Inclusive, a palavra hebraica para se referir à luz que havia antes do quarto dia significa precisamente isso: “luz difusa”, embora os tradutores não costumem verter dessa forma.

Sendo assim, quando o escritor bíblico disse que Deus “fez os dois grandes luminares” no quarto dia, isso significa apenas que a partir daquele momento eles poderiam ser vistos por um observador na superfície terrestre. Este entendimento é fundamental para compreender o que está nos tópicos a seguir.

O DIA DA CRIAÇÃO DO HOMEM

Há em Gênesis duas versões sobre a criação. A do capítulo 1 e a que começa no versículo 4 do capítulo 2. Como se nota na imagem mais adiante, os dois relatos se complementam quando os atos criativos são postos lado a lado, como se a narrativa do capítulo 2 fosse uma continuação da narrativa do capítulo 1.

Um detalhe que chama atenção na gravura é que o homem Adão é criado no terceiro dia, e não no sexto como se costuma entender. E isso acontece quando sequer existia vegetação na Terra! A única coisa que havia era o solo seco. Nessas condições o homem não poderia sobreviver, pois não tinha como se alimentar sem as plantas. A solução para esse problema está comentada no terceiro tópico, mais à frente.

Mas e a mulher? Quando ela foi criada? Recorrendo-se à gravura novamente, nota-se que isso aconteceu no sexto dia. Deste modo, quando Gênesis 1:26 informa que Deus disse “façamos o homem à nossa imagem”, a palavra “homem” aqui significa a humanidade, que não existiria sem a participação da mulher. Ele “fez” o homem nesse sexto dia da mesma maneira que “fez” o sol e a lua no quarto dia. Ou seja, é apenas uma maneira de dizer, cujo significado é que a partir daquele dia a humanidade poderia ser vista na Terra, como o sol e a lua só poderiam ser vistos no quarto dia. A prova é tanta que foi assim que se for analisado apenas o que está no capítulo 2 a sequência de eventos é a seguinte:

1) Deus cria o homem do pó do solo

2) Em seguida, cria toda a vegetação

3) Cria os animais e pede ao homem para dar nomes a eles.

4) Só depois disso é que cria a mulher, a partir do próprio homem (e não do pó do solo)

Ou seja, realmente há um lapso temporal entre a criação do homem e da mulher. E quando esta surgiu, os animais já existiam há muito tempo. O que não está de acordo com fatos científicos. Não só esse ponto, mas também a informação do capítulo 2 de que o homem Adão foi criado antes mesmo dos animais. Mas, como aconteceu no caso de quando Deus “fez” o sol e a lua, isso também não é uma contradição real, mas apenas aparente, que se esclarece ao considerar o que está no próximo tópico.

A LOCALIZAÇÃO DO ÉDEN

Voltando à questão sobre como o homem Adão poderia sobreviver em uma Terra sem vegetais, a Bíblia informa que após criá-lo Deus o levou para uma região que ficava para “os lados do leste” chamada Éden. Visto que o relato bíblico é claro ao dizer que não havia ainda vegetação no mundo, a conclusão plausível é que esse “leste” é um simbolismo para se referir a um local que fica fora do planeta Terra. Logo, o paraíso é celeste e não terrestre, embora possua características físicas que a Terra também passou a ter depois. Este entendimento é corroborado pela seguinte passagem bíblica, que é atribuída simbolicamente ao anjo que se tornou o Diabo:

Vieste a estar no Éden, jardim de Deus. Toda pedra preciosa era a tua cobertura: rubi, topázio e jaspe; crisólito, ônix e jade; safira, turquesa e esmeralda; e era de ouro o artesanato dos teus engastes e dos teus encaixes em ti. Foram aprontados no dia em que foste criado. Tu és o querubim ungido que cobre, e eu te constituí. Vieste a estar no monte santo de Deus. No meio de pedras afogueadas andavas. Eras sem defeito nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou injustiça em ti”. – Ezequiel 28:13-15.

Percebe-se no texto que o jardim é de Deus e não do homem. E o Éden é equiparado ao “monte santo de Deus” (expressão bíblica que se refere ao céu), indicando assim que se tratam do mesmo lugar onde o tal anjo rebelde esteve e desencaminhou o homem que também estava lá, local repleto de ouro e de pedras preciosas, exatamente como Gênesis descreveu a região do Éden:

“Ora, havia um rio saindo do Éden para regar o jardim, e dali começava a dividir-se, e tornou-se como que quatro cabeceiras. O nome do primeiro rio é Píson; é aquele que circunda toda a terra de Havilá, onde há ouro. E o ouro daquela terra é bom. Ali há também obdélio e a pedra de ônix”. – Gênesis 2:10-12.

A Bíblia reforça essa compreensão de que o Éden é outro mundo no livro de Apocalipse, ao dizer:

“Àquele que vencer concederei comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus”. – Apocalipse 2:7.

Note que o verbo é utilizado no presente e não no passado, o que denota uma realidade ainda existente. Então fica evidente que na imagética bíblica o jardim do Éden ainda existe, bem como a árvore da vida da qual Adão foi proibido de se aproximar após o pecado original. Isso é tão notório que um livro da religião “Testemunhas de Jeová” disse o seguinte sobre esse trecho de Apocalipse:

“O que se diz aqui [sobre o paraíso] deve referir-se ao domínio celestial, semelhante a um jardim, herdado por esses vencedores”. – Clímax de Revelação (1989), p. 37, § 14, colchetes acrescentados.

Por causa de todas essas evidências, um comentarista bíblico afirmou acertadamente:

“Deve-se notar, contudo, que o jardim não foi intencionado como um paraíso para a raça humana, mas como um parque prazenteiro para Deus; o homem o desfrutava para Deus. A história não é sobre um ‘paraíso perdido’.” – Nota de rodapé de Gênesis 2:8 da The New American Bible (2010).

Uma linha adicional de evidência que reforça a leitura de que o Éden fica no céu e que não era uma região terrestre é que muitos textos antigos judaicos e cristãos, entre os séculos III a.C. e VI d.C., afirmam exatamente isso, indicando assim que esse era o verdadeiro entendimento judaico-cristão sobre esse ponto. O Talmude chega a dizer que a Terra é 60 vezes menor do que o Jardim do Éden! Abaixo outro exemplo, desta feita extraído da literatura cristã (patrística):

“O que havia no jardim nasceu com extrema beleza e formosura, pois se diz que era uma plantação plantada pelo próprio Deus. Quanto ao resto das plantas, no mundo há semelhantes. Todavia, duas árvores, a da vida e a da ciência, que não existem em nenhuma terra, mas somente no jardim do Éden. . . . Como dissemos acima, Deus colocou o homem no jardim. . . . Deus o transportou da terra da qual fora criado para o jardim. . . . o jardim, se considerarmos a sua beleza, é lugar intermédio entre o mundo e o céu”. – Segundo Livro de Teófilo de Antioquia a Autólico, Cap. 24 (c. 166 d.C.).

E mais. Até obras egípcias, babilônicas e outras possuem mitos que situam no céu o paraíso com aspectos físicos almejado pelo homem. Para esses povos o paraíso ficava no domínio dos deuses. Alguns de tais escritos chegam a dizer que tal lugar de contentamento ficava “no leste”, exatamente como é dito em Gênesis. Lembre-se que Moisés, o escritor dessa parte inicial da Bíblia, também era egípcio e foi “instruído em toda a sabedoria dos egípcios” (Atos 7:21). Então é razoável supor que ele fez uso dessa linguagem simbólica sobre a localização do paraíso, já que certamente a viu em textos não bíblicos.

CONCLUSÕES TRANSCENDENTAIS

Disso tudo se conclui que o homem já existia muito tempo antes de haver qualquer outra vida na Terra e usufruiu da companhia de Deus no céu, na região chamada Éden. Só depois ele veio para cá, a fim de povoar o mundo juntamente com a mulher recém criada. Isto inclusive pode ser visualizado na expressão comumente usada para se referir à expulsão do paraíso: “A queda”. Só se cai de cima para baixo.

E certamente não seria nenhum problema para o poder de Deus levar uma criatura material para os seus domínios celestes, transmutando-a para uma forma espiritual. O que leva a crer que a ideia inicial do Criador era o homem ter livre acesso às duas realidades. Um fator que tornaria isso necessário é que as leis da física impedem que um ser humano chegue a outra parte do universo em pouco tempo. Só para atravessar nossa galáxia seria preciso 100 mil anos à velocidade da luz! E em se tratando de um mundo espiritual, do qual não se sabe quase nada a respeito (podendo até ser um universo paralelo), aí é que a forma física pode ser um empecilho mesmo.

A Bíblia tem um ótimo exemplo de alguém que podia se transformar do físico para o espiritual, e vice-versa, a fim de conseguir acesso aos dois mundos. Trata-se de Jesus Cristo, “o último Adão” (1 Coríntios 15:45). Isso ocorreu após sua ressurreição. Uma das vezes foi quando ele apareceu para os discípulos numa casa de portas fechadas e pediu que um deles tocasse em suas feridas causadas pela cruz. Após isso se desmaterializou de novo. Também há o caso de Enoque que foi “arrebatado [para o céu], a fim de escapar da morte”. Um detalhe interessante sobre isso é que o livro apócrifo de Enoque informa que ele foi levado ao Jardim do Éden indo sempre “para o leste”, a mesma localização “geográfica” do paraíso de acordo com Gênesis. – João 20:26-29; Hebreus 11:5; Gênesis 5:24.

Portanto, a história de Gênesis não pode ser tomada integralmente ao pé da letra e está repleta de alegorias e simbolismos, os quais não foram esgotados na presente análise. Isto torna a leitura desses três primeiros capítulos da Bíblia um tanto quanto difícil, cujas dificuldades de compreensão não são tão facilmente dirimidas. E se você está bem familiarizado com as Sagradas Escrituras, provavelmente notou que alguns pormenores não foram tratados aqui, os quais podem parecer empecilho para algum dos entendimentos sobre Gênesis acima apresentados. O texto abaixo, também disponível em www.adelmomedeiros.com, é uma análise mais aprofundada que pode ajudar a sanar essa eventual dificuldade. Recomenda-se a sua leitura.

Onde ficava o jardim do Éden?

 

Autor: Adelmo Medeiros

Fortaleza, 23 de fevereiro de 2020

Email para contato: fadelmo@gmail.com

 

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