APROPRIAÇÃO INDEVIDA DA LINGUAGEM BÍBLICA
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- Exceto onde indicado, a versão da Bíblia utilizada é a Tradução do Novo Mundo de 1986 (TNM).

- Os negritos e colchetes das citações feitas foram acrescentados.

SUMÁRIO

1. O disfarce “bíblico”

2. Sobre a alma e o Seol (Hades)

3. O Tártaro para onde anjos rebeldes foram lançados

4. O simbolismo como estratégia de um materialismo disfarçado

5. Recapitulando o que 2 Pedro 2:4-6 realmente diz

Legenda das versões bíblicas citadas

Créditos das imagens utilizadas

 

Fortaleza, 19 de abril de 2020.

 

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O disfarce “bíblico”

Deus não se refreou de punir os anjos que pecaram, mas, lançando-os no Tártaro, entregou-os a covas de profunda escuridão, reservando-os para o julgamento; e ele não se refreou de punir um mundo antigo, mas preservou a Noé, pregador da justiça, junto com mais sete, quando trouxe um dilúvio sobre um mundo de pessoas ímpias; e, reduzindo a cinzas as cidades de Sodoma e Gomorra, ele as condenou, estabelecendo para as pessoas ímpias um modelo das coisas que hão de vir.

2 Pedro 2:4-6.

Como se nota, o apóstolo Pedro menciona três punições aplicadas em três lugares: (1) as covas de profunda escuridão, (2) o mundo pré-diluviano e (3) as cidades de Sodoma e Gomorra. Apenas nos dois últimos os castigados foram seres humanos. No primeiro, foram anjos rebeldes. Ou seja, ocorreu no mundo espiritual. Mesmo não tendo sido no domínio terrestre, o episódio foi usado como exemplo para os cristãos, pois foi um castigo tão real quanto os demais. Entretanto, há pessoas que alegam acreditar na Bíblia, mas que não creem que tais anjos tenham passado por isso. Como algo assim pode ser possível? Para entender como se dá esse fenômeno cognitivo, considere inicialmente as seguintes afirmações:

‘Depois da morte, Cristo e o malfeitor foram para o Hades’.

‘Só Deus pode enviar uma pessoa morta para a Geena’.

‘O que Jesus falou não contradiz em nada o que as Escrituras sempre disseram sobre a condição dos que estão no Hades’.

‘Tudo o que as Escrituras dizem sobre o Seol é que todas as almas dos mortos estão neste domínio’.

Perceba que a linguagem utilizada é a bíblica. É dito que os mortos “estão no Seol” ou “foram para o Hades”, e que as almas dos que morreram “estão neste domínio”. Qualquer um que esteja familiarizado com a Bíblia e o Cristianismo histórico não vê nenhum problema nessas paráfrases, com exceção da última, pois, de acordo com a ortodoxia cristã, nem todas as almas estão no Seol. No entanto, vem a grande surpresa... Quem disse essas coisas não acredita que os falecidos vão para um lugar chamado Hades ou Seol, nem tampouco que esse local exista! Ou seja, não haveria o tal “domínio” das almas.

O que o autor dessas afirmações acredita é que após a morte a pessoa desaparece completamente e não sobra nenhuma alma que possa ir para outro domínio. O Hades seria apena um símbolo para se referir à situação dos mortos. Ou seja, na forma as frases dizem uma coisa, mas na essência outra. Entretanto, conforme a historiografia judaico-cristã atesta seguramente, nunca a igreja cristã aplicou tal simbolismo à “alma” e ao “Hades”. Para todos os cristãos antigos havia mesmo um lugar invisível chamado Hades (nas profundezas da Terra), sendo ele o destino das almas dos mortos, que descem literalmente para lá.

Que mecanismo então torna possível essa camuflagem? Por que alguém se apropriaria da linguagem bíblica para exprimir conceitos que nunca existiram no Cristianismo primitivo? A resposta chama-se aniquilacionismo, no caso, um aniquilacionismo materialista, segundo o qual o ser humano não possui nada de natureza espiritual e a vida é resultado apenas da organização da matéria, que torna possível o funcionamento do corpo e a existência da consciência, cuja sede é apenas o cérebro. Em suma, basicamente o que cientistas ateus acreditam. Antes de comentar sobre a inviabilidade dessa intrigante postura, veja como as referidas citações estão na íntegra para entender melhor o disfarce aniquilacionista:

“Nem Cristo nem o malfeitor foram para o ‘paraíso’ naquela sexta-feira. Eles foram para o Hades...”.

“.... Só Deus, não os homens, pode eliminar uma pessoa de maneira irreversível, enviando essa pessoa (alma) morta para a Geena”.

“Nada – absolutamente nada – do que Jesus falou aqui contradisse o que as Escrituras Hebraicas sempre disseram sobre a condição dos que estão mortos no Hades”.

“À alma (pessoa) de Cristo se aplicou, não só o que diz esse texto, como tudo o que as Escrituras Hebraicas dizem sobre os mortos no Seol. Como todas as almas (pessoas) que estão neste domínio, ele ficou inativo e inconsciente”.

 

Sobre a alma e o Seol (Hades)

Observe a maneira que a Bíblia retrata o Seol (chamado de Hades* no Novo Testamento) e a conexão dele com a alma do ser humano depois que ele morre:

“E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18.

“Porque não deixarás a minha alma no Seol”. – Salmos 16:10.

“Que varão vigoroso vive que não verá a morte? Pode ele pôr a sua alma a salvo da mão do Seol?”. – Salmos 89:48.

“[Deus disse:] Eu te farei descer com os que estão na cova, ao povo de outrora, e te farei habitar a terra das profundezas”. – Ezequiel 26:20.

“E Jeová prosseguiu falando mais a Acaz, dizendo: ‘Pede para ti um sinal da parte de Jeová, teu Deus, fazendo-o tão profundo como o Seol ou fazendo-o tão alto como as regiões superiores [ou “os céus”, conforme outras versões]’.”. – Isaías 7:10, 11.

“Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço”. – Isaías 14:15.

“[Deus disse:] Se cavarem até o Seol, de lá os tirará a minha própria mão; e se subirem aos céus, de lá os farei descer”. – Amós 9:2.

* O termo grego Hades é “aparentado” da palavra inglesa hidden, que significa “escondido”. Isto denota que o Hades é um lugar fora da vista dos homens, e só Deus tem acesso a ele. Por isso a Bíblia diz: “O SENHOR sabe o que acontece até mesmo no mundo dos mortos [Seol, em hebraico]”. – Provérbios 15:11, NTLH.

Percebe-se que o Seol é descrito como um lugar nas profundezas da Terra, onde a alma fica depois da morte. Indicando assim que ele não é uma mera cova. É outro mundo tão real quanto o céu. Por isso que em Isaías se faz um contraste entre a grande altura dos céus acima com a grande profundidade do Seol abaixo. Se este fosse uma mera sepultura de “sete palmos” essa comparação não faria sentido. É tanto que o mesmo Seol foi novamente utilizado junto com o céu para descrever a extensão da sabedoria de Deus:

“Acaso podes descobrir as coisas profundas de Deus, ou podes descobrir o próprio limite do Todo-poderoso? [A sabedoria dele] é mais alta do que o céu. Que podes tu conseguir? É mais profunda do que o Seol”. – Jó 11:7, 8.

A alma fica então preservada no Seol depois da morte do corpo físico. Por isso Jesus disse que os homens só podem matar o corpo, mas não a alma. Falou também que quando ele próprio morresse iria para o coração da Terra (ou seja, o Seol), e lá ficaria até ser ressuscitado. Como se sabe, Jesus não foi enterrado, mas teve o corpo depositado em um sepulcro, acima do nível do chão. Mesmo assim a alma dele foi para o centro* da Terra, o que significa nas profundezas dela. – Mateus 10:28; 12:40.

* Centro ou Meio de Algo. Visto que o coração literal é um órgão central do organismo, o termo ‘coração’ é às vezes aplicado ao centro ou meio de alguma coisa, como o ‘coração da terra’ (Mt 12:40), o ‘coração do mar’ (Êx 15:8; Jon 2:3), e o ‘coração da grande árvore’ (2Sa 18:14). Em Deuteronômio 4:11, a expressão ‘o meio do céu’ significa literalmente ‘o coração dos céus’.”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, enciclopédia bíblica das “Testemunhas de Jeová”, vol. 1, p. 556.

A prova é tanta que os textos bíblicos acima dizem exatamente o que eles estão dizendo, que se for feita uma investigação em manuscritos extrabíblicos entre os séculos II a.C. e II d.C., descobre-se que os judeus e cristãos antigos realmente acreditavam na existência literal de almas no Hades. Não há vestígios de entendimentos simbólicos de tais passagens bíblicas. Essa maneira errônea de ler tais textos é uma inovação do aniquilacionismo moderno, o qual difere muito de um que havia na Antiguidade.

Na verdade, conceitos que hoje causam repulsa nos aniquilacionistas, a exemplo de visões, espíritos, fantasmas, tormento dos ímpios no Hades etc. eram muito comuns na nação judaica durante o século I, e os escritores do Novo Testamento usaram a mesmíssima linguagem utilizada em tais crenças. No entanto, eles NUNCA fizeram alguma ressalva para explicar à comunidade cristã que estavam usando termos “espiritualistas” com outro sentido, nem escreveram nada para combatê-los. Se tais escritores cristãos realmente discordassem do conceito predominante que os judeus tinham sobre o Hades, dificilmente se furtariam à obrigação de alertar os irmãos daquele tempo. É por isso que Jesus se sentiu muito à vontade para incluir em seu ensino o que ele disse a seguir:

“Havia certo homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e seguia vivendo suntuosamente todos os dias. Mas havia um pedinte de nome Lázaro, cheio de feridas, que se recostava ao seu portão... Então aconteceu que o mendigo morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. O homem rico também morreu e foi enterrado. E, estando em tormentos, no Hades, ele levantou os olhos e viu Abraão de longe, e Lázaro junto a ele”. – Lucas 16:19-23, NKJV; compare com o Salmo 116:3.

Logo, o único modo de rejeitar o cenário visto na Bíblia, e confirmado pelos registros históricos, é supor que os versículos bíblicos sobre alma no Seol / Hades possuem apenas significados figurativos. É justamente isto o que fazem os aniquilacionistas. Apropriam-se da linguagem bíblica atribuindo a ela sentidos nunca antes concebidos pelos que criaram tal vocabulário, pois não há obras judaicas ou cristãs da Antiguidade que façam essa “desespiritualização” de conceitos inerentemente espirituais. Para visualizar melhor a ousadia de tais pessoas, note o que elas dizem sobre a alma de Mateus 10:28 e o Seol:

“No entanto, ele [Jesus] admoestou: ‘Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo.’ Jesus deu o exemplo neste respeito. Suportou destemidamente a morte, em vez de transigir na sua lealdade Àquele que tem todo o poder, Jeová Deus. Sim, é Jeová quem não só pode destruir a ‘alma’ da pessoa (neste caso significando as perspectivas futuras dela como alma vivente), mas que pode até mesmo ressuscitar a pessoa para usufruir a vida eterna”. – A Sentinela, 01/08/87, p. 9.

“Embora o Seol seja muitas vezes descrito como se fosse um local, seu uso no Antigo Testamento leva à conclusão de que ele se refere mais especificamente à condição humana após a morte. A localização dos mortos (pelo menos daqueles que foram enterrados) é a sepultura. Sua condição é o Seol”. – Artigo publicado no site Mentes Bereanas, de onde foram extraídas as citações do início.

Sendo assim, alma não seria mais alma, mas apenas “a perspectiva de uma vida futura”, e Seol não seria mais Seol, e sim a “condição humana após a morte”. Ou seja, a inexistência, chamada eufemisticamente de “inatividade” ou de “sono da alma”. Essa simbolização se torna necessária porque se os termos apresentados na Bíblia forem aceitos literalmente eles não se ajustam ao ponto de vista dos aniquilacionistas. O mesmo acontece com os demais versículos cujo vocabulário é usado por eles de maneira descontextualizada e anacrônica. Veja a seguir mais dois exemplos.

 

O Tártaro para onde anjos rebeldes foram lançados

– Salvo outra indicação, a Bíblia utilizada neste tópico é a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB).

“Pois Deus não poupou os anjos culpados, mas os precipitou, entregou-os aos antros tenebrosos do Tártaro, guardando-os para o julgamento”. – 2 Pedro 2:4.

Explicação dos aniquilacionistas para essa passagem bíblica:

“O uso que Pedro faz do verbo tartao, ‘lançar no Tártaro’, não significa que ‘os anjos que pecaram’ tenham sido lançados no mitológico Tártaro pagão, mas que eles foram rebaixados pelo Deus Altíssimo... a uma condição de mais profunda escuridão mental quanto aos luminosos propósitos de Deus... Portanto, o Tártaro denota a condição mais inferior de rebaixamento desses anjos rebeldes”. – Apêndice 4D da Tradução do Novo Mundo com Referências e Notas (1986), p. 1515.

“Enfatizamos, porém, que a palavra tartaroo é um verbo, e na verdade não denota um lugar, e sim uma ação, a saber, o processo de ser preso, contido, rebaixado, etc. A ideia de se ‘precipitar’ ou lançar alguém ‘para baixo’ (ao Seol [Hades], ou à Geena, por exemplo), tem de ser acrescentada ao grego original; ela não se encontra no texto bíblico.... Não há obrigatoriedade em entendermos que Deus prendeu literalmente tais anjos em algum lugar, seja nas ‘profundezas da Terra’ (como na mitologia antiga) ou em outro lugar específico. A queda dos anjos que pecaram foi duma condição de honra e dignidade (que eles usufruíam antes, como parte da família universal de Deus) para uma condição de desonra e condenação”. – Artigo “Os Anjos ‘Lançados no Tártaro’ ”, publicado no site Mentes Bereanas.

Ou seja, para os aniquilacionistas não existe nenhum Tártaro para o qual Deus poderia lançar anjos rebeldes. A menção do “Tártaro pagão” no apêndice da TNM serve para desestimular o leitor a considerar a possibilidade de um entendimento literal do versículo. Mesmo assim, não deixa de ser também um lembrete que os antigos leitores cristãos já sabiam que havia um conceito popular sobre um lugar espiritual chamado Tártaro, da mesma maneira que havia sobre o Hades. Embora os cristãos rejeitassem a mitologia grega relacionada a esses locais, certamente eles encararam de maneira literal o que Pedro falou. E como sempre acontecia, não houve qualquer ressalva da parte do escritor bíblico alertando que ele estaria usando a expressão com um sentido diferente daquele que qualquer leitor do mundo greco-romano entenderia, ou seja, que o Tártaro é um lugar subterrâneo, próximo ao Hades.

Além disso, a Bíblia apresenta sim o cenário de que pessoas espirituais podem ser precipitadas para uma região inferior. Afinal, se o Seol fica nas profundezas da Terra, quando alguém tira a vida de uma pessoa em certo sentido sua alma é “lançada” no Seol (ou Hades). Além de Isaías 14:15, essa noção é apresentada também nos versículos abaixo, que mencionam o poder de Deus sobre a vida e a morte:

“O Senhor faz morrer e faz viver, faz descer ao Sheol e de lá voltar”. – 1 Samuel 2:6.

“Fiz tremer as nações com o estrondo de sua queda [a do Faraó], quando o fiz descer ao Sheol com os que descem à cova”. – Ezequiel 31:16.

E, de acordo com a Bíblia, espíritos impuros também podem ser mandados para um lugar inferior, mediante o poder de Deus, conforme se vê abaixo:

“Ao [Jesus] descer do barco, veio ao seu encontro, saindo dos túmulos, um homem possuído por um espírito impuro. Ele morava nos túmulos e ninguém podia prendê-lo, nem sequer com uma corrente.... Ele [Jesus] o interrogava: ‘Qual é o teu nome?’ Ele lhe respondeu: ‘Meu nome é Legião, pois somos numerosos’. E ele [o espírito impuro] lhe suplicava com insistência que não o expulsasse da região. Ora, havia ali, a passar pela montanha, uma grande vara de porcos. Os espíritos impuros suplicaram a Jesus, dizendo: ‘Manda-nos para os porcos, a fim de que entremos neles’. Ele permitiu e os espíritos impuros saíram, entraram nos porcos, e a vara precipitou-se do alto da escarpa, no mar; eram cerca de dois mil e se afogavam no mar”. – Marcos 5:2, 3, 9-13. 

Ao pedir que não fosse ‘expulso da região’, o espírito impuro tinha outra preocupação. Ao relatar o mesmo episódio, o evangelista Lucas narrou de outra maneira a súplica dessa legião de espíritos. Segundo Lucas, eles imploraram a Jesus “que não lhes ordenasse ir para o abismo”. Uma nota ao pé de página da New American Bible, referente a esse versículo, diz: “Abismo: o lugar dos mortos (Rom 10:7) ou a prisão de Satanás (Rev 20:3) ou a subterrânea ‘água de profundeza’ que simboliza o caos antes da ordem imposta pela criação (Gn 1:2)”. Isso está de acordo com o livro de Jó, onde se lê: “Os impotentes na morte continuam a tremer. Debaixo das águas, e os que residem nelas”. – Jó 26:5, TNM; Lucas 8:27-33. 

O mesmo cenário também é apresentado sobre os anjos que forem infiéis a Deus:

“Houve então um combate no céu: Miguel e seus anjos combateram contra o dragão. Também o dragão combateu, junto com seus anjos, mas não conseguiu vencer: e não se encontrou mais lugar para eles no céu. Foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, aquele a quem chamam Diabo e Satanás, o sedutor do mundo inteiro. Ele foi precipitado à terra, seus anjos com ele”. – Apocalipse 12:7-9.

“Vi então um anjo que descia do céu. Tinha na mão a chave do abismo e uma pesada corrente. Apoderou-se do dragão, da antiga serpente, que é o Diabo e Satanás, e o acorrentou por mil anos. Precipitou-o no abismo, fechando-o e lacrando-o com um selo, para que não seduzisse mais as nações... É necessário, depois disto, que ele seja solto por um pouco de tempo”. – Apocalipse 20:1-3.

Naturalmente, os aniquilacionistas buscarão de todas as formas “desdizer” o que os textos acima dizem.

Na verdade, conforme visto na citação do cabeçalho deste artigo, Pedro não mencionou apenas a punição daqueles anjos. Os castigos divinos que ele citou foram três: (1) anjos lançados no Tártaro, (2) o dilúvio da época de Noé e (3) a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra. Nada na Bíblia leva a crer que a primeira dessas três penas é simbólica, e que somente as outras duas são literais. – 2 Pedro 2:4-6.

Outro fator que tem relativa semelhança com o relato de Pedro é que, de acordo com uma conhecida obra grega, o Tártaro era o destino reservado para “deuses” e não para as almas de homens que morreram:

“Na Ilíada, do antigo poeta Homero, a palavra tártaros denota uma prisão subterrânea tanto abaixo do Hades, como a terra está abaixo do céu. Os detidos nele não eram almas humanas, mas os deuses inferiores, espíritos, a saber, Cronos e os outros titãs que se haviam rebelado contra Zeus (Júpiter). Era a prisão estabelecida pelos deuses míticos para os espíritos que haviam expulsado das regiões celestiais, e encontrava-se abaixo do Hades, no qual se pensava que as almas humanas eram confinadas na morte”. – Apêndice 4 D da Tradução do Novo Mundo com Notas (1986), p. 1515.

Então, quando um cristão conhecedor das Escrituras Hebraicas e da obra de Homero lia na carta de Pedro que espíritos de natureza superior (anjos) foram lançados no Tártaro imediatamente um paralelo devia emergir em sua mente, fazendo-o lembrar da Ilíada grega. Isto sugere que a escolha do apóstolo por essa palavra foi proposital. Ele sabia que eram situações de certa forma equivalentes.

Por fim, a localização “geográfica” do Tártaro não é o ponto em questão. Mesmo que ele não fique nas vizinhanças do Hades, o fato é que Pedro o apresenta como sendo um lugar. No caso, um local que fica muito abaixo das regiões celestiais. Se não fosse assim Pedro não teria dito que aqueles anjos infiéis foram “tartarizados”.* Semelhantemente, quando se diz que um corpo foi sepultado significa que ele foi posto literalmente em uma sepultura.

* Conforme visto, na tentativa de descaracterizar o que Pedro disse, o argumento aniquilacionista é que Pedro não usou a palavra “Tártaro”, e sim um verbo de mesma raiz. Mas isto não representa nenhum problema, pois, neste caso, o sentido que está no grego seria “tartarizar”. Este neologismo demonstra que tal detalhe nada atrapalha a visualização do conceito correto.

Qual é a saída encontrada pelos aniquilacionistas para ignorar tantos indicativos da Bíblia sobre esses assuntos de natureza espiritual? A “solução” de sempre: “desespiritualizar” e simbolizar os relatos bíblicos. E para deixar transparecer que essa releitura materialista é o caminho recomendado para quem quer acreditar “somente no que a Bíblia diz” também é útil desqualificar as motivações dos “imortalistas”, aqueles que desde os primeiros séculos são os verdadeiros depositários do Novo Testamento. Fazendo a habitual confusão de sempre sobre conceitos, que não serão comentados aqui, o autor aniquilacionista do Mentes Bereanas disse:

“Há até quem vá ao ponto de afirmar que Tártaro é uma ‘transliteração’ de tartaroo. Isto simplesmente não é verdadeiro. Na realidade, é um exemplo de como os eruditos bíblicos podem se tornar tão zelosos das mitologias pagãs ao ponto de introduzirem forçadamente os conceitos dessas mitologias dentro da Bíblia!... o ‘lançamento’ de Satanás do céu para baixo, à terra (Apocalipse 12:712) não precisa ser entendido como uma queda literal (como afirmam alguns).... Muitos dos que creem na ‘imortalidade inerente da alma’ negarão veementemente que acreditam em ‘filosofia grega’, e ainda assim eles frequentemente expressam sua crença basicamente nos mesmos termos dessa filosofia. Assim, quando falam sobre Seol (Hades), Geena ou Tártaro, eles sempre dão ênfase à ideia de um local específico para o qual as almas ‘se deslocam’ depois da morte. Para muitos defensores dessas ideias, o Tártaro nada mais é que outra palavra para descrever um lugar de ‘tormento eterno’, segundo o conceito deles”.

Leia então a seguir sobre alguns conceitos gregos que havia no primeiro século:

“Os antigos gregos criam na sobrevivência de uma... Chamavam de Hades o domínio dos mortos... Em seu livro Orpheus — A General History of Religions (Orfeu — Uma História Geral das Religiões), o erudito francês Salomon Reinach escreveu a respeito dos gregos: ‘Uma crença amplamente difundida era a de que [a alma] entrava nas regiões infernais após cruzar o rio Estige no barco do velho barqueiro Caronte, que cobrava um óbolo [moeda] pela passagem, que era colocado na boca da pessoa morta. Nas regiões infernais ela comparecia perante os três juízes do lugar. . . ; se fosse condenada pelos seus crimes, teria de sofrer no Tártaro’.”. – A Sentinela, 01/10/89, p. 5.

“Segundo Platão, para onde iam estas almas quando o corpo morria? ‘E os que parecem não ter vivido nem bem nem perversamente, vão para o rio Aqueronte, . . . e ali habitam e são purificados de suas más ações, e, tendo sofrido a penalidade pelos erros que cometeram contra outros, são absolvidos’.”. – Despertai!, 22/04/85, p. 9.

Praticamente a única coisa em comum entre o entendimento dos primeiros cristãos e a crença dos antigos gregos é que ambos diziam que após a morte do homem sua alma desce para um lugar no interior profundo da Terra. E também que Hades e Tártaro eram literalmente lugares, e não símbolos que representam alguma coisa. Então, achar que os cristãos aprenderam esses conceitos na mitologia e filosofia gregas é uma total distorção da então realidade. Mas é sob essa perspectiva que o autor do site Mentes Bereanas trata o assunto, e de maneira recorrente:

“O mesmo se aplica a outras palavras gregas que foram usadas para traduzir termos hebraicos, e que constam em muitas versões bíblicas da atualidade. Uma coisa é dizer que os apóstolos de Cristo e outros escritores do Novo Testamento se serviram de várias palavras que já eram de uso comum no mundo greco-romano do primeiro século, palavras tais como “Hades” e “Tártaro”. Outra coisa – totalmente diferente – é sugerir que eles entendiam estas palavras com o mesmo 'sentido que as pessoas davam' a elas. Por exemplo, será que quando os apóstolos ensinaram que Cristo ‘esteve no Hades’, achavam eles que a alma de Cristo atravessou um rio, pagando uma moeda a um barqueiro (Caronte) e chegou a um lugar dominado por um deus com esse mesmo nome (Hades), que tinha a porta vigiada por um cão (Cérbero), e que era dividido em “regiões” de castigos e de bem-aventuranças?”

Não! É óbvio que os cristãos não achavam que a alma de Cristo pagou pedágio a Caronte para entrar no Hades, mas acreditavam sim que a alma de Jesus esteve literalmente em um lugar chamado Hades, que fica no coração da Terra.* – Mateus 12:40; Atos 2:27.

* Sobre a ideia que os gregos tinham do Hades, um erudito bíblico explicou o seguinte: “As descrições do lugar naturalmente variam. Ele aparece logo atrás da porção escura chamada de Érebo. Em algumas passagens parece situar-se no distante Ocidente, por detrás da corrente que circunda a terra. Mas a representação usual o situa no coração da terra ou embaixo da terra (π κεύθεσι γαίης)”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), de S. D. F. Salmond, p. 125.


“Deus puniu os anjos que pecaram lançando-os no Tártaro” 


“Também puniu o mundo antigo quando trouxe um dilúvio”


“E condenou as cidades de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinzas”

 

O simbolismo como estratégia de um materialismo disfarçado

– Salvo outra indicação, a Bíblia utilizada neste tópico é a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB).

“Mas ele [Jesus], tomando-a pela mão, chamou-a: ‘Menina, acorda’. O seu espírito voltou e ela se levantou no mesmo instante. E ele ordenou que lhe dessem de comer”. – Lucas 8:54, 55.

Explicação dos aniquilacionistas sobre o espírito que abandona o ser humano após a morte:

“Significa isso que [depois da morte] o espírito literalmente percorre o espaço até a presença de Deus? Nada disso está envolvido. . . ele ‘retorna ao verdadeiro Deus’ no sentido de que qualquer esperança de uma vida futura dessa pessoa depende então inteiramente de Deus”. – A Sentinela 01/04/99, pp. 16, 17.

“Na morte, o espírito do homem, sua força de vida, que é sustentada pela respiração ‘sai’. Deixa de existir”. – Poderá Viver para Sempre no Paraíso na Terra, publicado pela Torre de Vigia, p. 77.

“A personalidade do morto não é perpetuada na força de vida, ou espírito, que pára de funcionar nas células do falecido”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, publicado pela Torre de Vigia, vol. 2, p. 39.

Em outras palavras, para os aniquilacionistas depois da morte não sai espírito algum do homem, e ele retorna a Deus apenas em sentido simbólico (Eclesiastes 12:7). Tal “espírito” seriam apenas as propriedades biológicas que mantêm o corpo vivo. Quando o corpo morre, o espírito “sai” porque esses mecanismos param de funcionar. Este é um entendimento típico do materialismo ateu, que não considera a existência de algo espiritual dentro do corpo humano, pois este seria apenas uma máquina biológica que deixa de funcionar no momento da morte.

Mas essa explicação não serve para todas as circunstâncias mencionadas na Bíblia, especialmente onde a palavra “espírito” tem exatamente o sentido compreendido pela maioria dos cristãos de hoje, conforme demonstram os textos a seguir:

“Enquanto assim falavam, Jesus [já ressuscitado] se fez presente no meio deles e lhes disse: ‘A paz esteja convosco’. Espantados e cheios de medo, eles pensaram estar vendo um espírito”. – Lucas 24:37.

“Tivemos como educadores nossos pais terrenos e lucramos disso um bom proveito, com mais razão não havemos de nos sujeitar ao pai dos espíritos e receber dele a vida?.... Mas vós vos aproximastes da montanha de Sião e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e das miríades de anjos em reunião festiva, e da assembleia dos primogênitos, cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus, o juiz de todos e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:9, 22, 23.

“Então é que ele [Jesus] foi pregar até aos espíritos que se encontravam na prisão, aos rebeldes de outrora, quando se prolongava a paciência de Deus nos dias em que Noé construía a arca, na qual poucos, isto é, oito pessoas, foram salvos pela água”. – 1 Pedro 3:19, 20.

“Caríssimos, não deis crédito a qualquer espírito, mas examinai os espíritos para ver se são de Deus”. – 1 João 4:1.

“Disse-me então: Estas palavras são certas e verídicas; o Senhor, o Deus dos espíritos dos profetas, enviou seu anjo, para mostrar a seus servos o que deve acontecer em breve”. – Apocalipse 22:6.

Em suma, o simbolismo defendido pelos aniquilacionistas é o seguinte:

1. Alma (de Mateus 10:28) = perspectiva de vida futura da pessoa.

2. Espírito que há no corpo = força de vida biológica que desaparece por ocasião da morte.

3. Seol / Hades = representação da inexistência completa da pessoa após a morte.

4. Tártaro = rebaixamento mental (ou de privilégios) de alguns anjos rebeldes.

Certa vez o aniquilacionista do site Mentes Bereanas disse o seguinte:

“Como em todas as outras situações, o procedimento sábio – e humilde – é, em vez de usar toda sorte de artifícios para obrigar a Bíblia a dizer o que nós queremos, deixar que ela própria defina seus contornos”.

O que você acha? Depois de tudo o que foi aqui apresentado, os aniquilacionistas estão seguindo esse conselho? A resposta é óbvia. Claro que não! Ao lerem a Bíblia, eles se comportam como se estivessem de olhos vendados apalpando um dado e, quando alguém pergunta qual o formato do objeto, dizem: “É redondo”...

A seguir, mais alguns “contornos” bíblicos, para concluir:

“Naquele tempo o Senhor, lá no alto, examinará a milícia celeste, e os reis do mundo, sobre a terra. Serão amontoados como prisioneiros num calabouço, e, depois de muitos dias, serão castigados”. – Isaías 24:21, 22, CBC.

“Pois ele pôs abaixo os que habitavam na altura, na vila elevada. Ele a rebaixa, ele a rebaixa até a terra; ele a traz em contato com o pó”. – Isaías 26:5, TNM.

“E os anjos que não conservaram a sua posição original, mas abandonaram a sua própria moradia correta, ele reservou com laços sempiternos, em profunda escuridão, para o julgamento do grande dia. Assim também Sodoma e Gomorra, e as cidades em volta delas, as quais, da mesma maneira como os precedentes [ou seja, os anjos rebeldes], tendo cometido fornicação de modo excessivo e tendo ido após a carne para uso desnatural, são postas diante de nós como exemplo de aviso por sofrerem a punição judicial do fogo eterno”. – Judas 6, 7, TNM.

“E os discípulos, vendo-o [Jesus] andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: É um fantasma. E gritaram com medo”. – Mateus 14:26, ACF.

“Em meio a sonhos perturbadores da noite, quando cai sono profundo sobre os homens, temor e tremor se apoderaram de mim e fizeram estremecer todos os meus ossos. Um espírito roçou o meu rosto, e os pêlos do meu corpo se arrepiaram. Ele parou, mas não pude identificá-lo. Um vulto se pôs diante dos meus olhos, e ouvi uma voz suave, que dizia: ‘Poderá algum mortal ser mais justo que Deus? Poderá algum homem ser mais puro que o seu Criador?’.”. – Jó 4:13-17, NTLH.

“Mas, que os mortos são levantados, até mesmo Moisés expôs, no relato sobre o espinheiro, quando ele chama Jeová ‘o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó’. Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem”. – Lucas 20:37, 38, TNM.

“Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro e aos irmãos Tiago e João e os levou, em particular, a um alto monte. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. Então, disse Pedro a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três tendas; uma será tua, outra para Moisés, outra para Elias”. – Mateus 17:1-4, ARA.

Se os apóstolos acreditassem que quem morre deixa de existir ou fica figurativamente “dormindo” e inativo, será que Pedro teria feito essa proposta a Jesus?


“Dois homens conversavam com ele [Jesus], sendo eles Moisés e Elias

 

Recapitulando o que 2 Pedro 2:4-6 realmente diz

(1) Deus não se refreou de punir os anjos que pecaram, mas, lançando-os no Tártaro, entregou-os a covas de profunda escuridão, reservando-os para o julgamento; e (2) ele não se refreou de punir um mundo antigo, mas preservou a Noé, pregador da justiça, junto com mais sete, quando trouxe um dilúvio sobre um mundo de pessoas ímpias; e, (3) reduzindo a cinzas as cidades de Sodoma e Gomorra, ele as condenou, estabelecendo para as pessoas ímpias um modelo das coisas que hão de vir”. – 2 Pedro 2:4-6.

Sobre essa passagem bíblica, diz uma nota de rodapé da Bíblia do Peregrino:

“[Pedro] Apresenta três exemplos de castigo…. O primeiro afeta os seres celestes de Gn 6,2; o abismo escuro pode vir de Is 24,22. O segundo castigo faz uma exceção: um Noé visto como ‘pregador’ (1 Pd 3, 20). Também o terceiro castigo faz uma exceção: um Ló melhorado em relação à tradição bíblica (Gn 19)”.

 

LEGENDA DAS VERSÕES BÍBLICAS CITADAS

ACF: Almeida Corrigida Fiel.

ARA: Almeida Revista e Atualizada

CBC: Centro Bíblico Católico

NKJV: New King James Version (tradução própria)

NTLH: Nova Tradução na Linguagem de Hoje

TEB: Tradução Ecumênica da Bíblia

TNM: Tradução do Novo Mundo (de 1986)

 

CRÉDITOS DAS IMAGENS UTILIZADAS

1. Anjos presos no Tártaro

Tate.org (link)

2. Dilúvio nos dias de Noé

Catholicinbrooklyn.blogspot.com (link)

3. Destruição de Sodoma e Gomorra

Americaslastdays (link)

4. Moisés e Elias conversando com Jesus

Patheos.com (link)

 

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