ONDE FICAVA O JARDIM DO ÉDEN?
(PDF, 1.29 Mb)

- Texto revisado e corrigido. Republicado em 25 de fevereiro de 2020.

- Para ler um resumo sobre as informações principais deste artigo clique aqui.

Conteúdo

1. O senso comum sobre a localização do paraíso edênico

2. Evidências internas que apontam para outro entendimento

3. Como lidar com as implicações do que há no capítulo 2 de Gênesis

4. Evidências externas que refletem a cosmografia vista na Bíblia

5. A opinião de comentaristas bíblicos e de especialistas em textos antigos

Conclusão

Apêndice

A. O mundo segundo a concepção semítica

B. O Hades: a morada temporária antes do retorno ao paraíso

C. Comparando Gênesis com dois mitos babilônicos

D. Um pseudo-apócrifo moderno: a criação do Universo (o livro de Melquisedeque)

Créditos das imagens utilizadas

Exceto outra indicação, a tradução da Bíblia utilizada é a Tradução do Novo Mundo (1986).

Salvo onde está indicado, grifos, negritos e colchetes nas citações são meus e não das obras citadas.

 

voltar para página principal

 

1. O senso comum sobre a localização do paraíso edênico

O relato bíblico sobre a criação do homem e a posterior expulsão do paraíso edênico é bastante conhecido. Alguns encaram a história como verdadeira e outros acham que é apenas um mito, dentre vários outros que existiam na Antiguidade. Mas, independente da opinião que se tenha sobre a veracidade da narrativa, em que lugar ficava o Jardim do Éden de acordo com Moisés, o escritor de Gênesis conforme a tradição?

O conceito popular é que ficava em algum lugar da Terra, pois o texto menciona claramente informações geográficas do Oriente Próximo, e descreve elementos que certamente têm a ver com aspectos físicos do nosso planeta. Mas existem lacunas que não podem ser explicadas com segurança. Por exemplo, a Bíblia informa que da região do Éden saía um rio que se dividia em quatro, sendo eles o Píson, o Giom, o Tigre e o Eufrates. Ao passo que esses dois últimos são rios bastante conhecidos, os dois primeiros nunca foram localizados e são um mistério até hoje, bem como o rio originador deles. A explicação mais comum para esse problema é que o Dilúvio da época de Noé teria alterado o relevo e a bacia hidrográfica de toda área em apreço. Mas isso nem de longe resolve as dificuldades de conciliar sua geografia com o que é mencionado em Gênesis.

Não são poucos os trabalhos que já discorreram sobre esse assunto, tanto os de envergadura acadêmica quanto os escritos por leigos. Não é objetivo deste estudo entrar nessa discussão de caráter meramente topográfico. Para quem quiser se inteirar melhor sobre ela, sugiro os dois textos a seguir:

Os Rios Perdidos do Jardim do Éden (em inglês)

A Civilização Mais Antiga e a Bíblia

A intenção aqui é demonstrar que existe uma explicação melhor que soluciona a questão principal, sendo a Bíblia suficiente para encontrá-la. E, para reforçar o ponto de vista, é apresentado um exame adicional com base em obras antigas que esclarecem direta ou indiretamente os três primeiros capítulos de Gênesis.

2. Evidências internas que apontam para outro entendimento

Referindo-se ao livro de Gênesis, o historiador judeu Flávio Josefo, do século 1 d.C., fez a seguinte afirmação:

“Porque todas as coisas têm aqui uma referência à natureza do universo, à medida que nosso legislador [Moisés] diz sabiamente algumas coisas [em Gênesis], porém de maneira enigmática, e outras sob uma apropriada alegoria, mas mesmo assim explica tais coisas conforme é necessário numa explanação direta, clara e expressiva”. The Works of Josephus (1987), antiprefácio, traduzido para o inglês por William Whiston, Hendrickson Publishers, p. 28.

Sobre tal opinião de Josefo, o tradutor William Whiston disse em uma nota de rodapé:

“Mas quando ele [Josefo] chega aqui no ver. 4, etc. [de Gênesis cap. 2] ele diz que Moisés, depois que o sétimo dia terminou, começa a falar filosoficamente; não é muito improvável que ele entendeu o resto do segundo e terceiro capítulo [de Gênesis] de acordo com algum sentido filosófico, alegórico ou enigmático”. – Ibid., p. 29.

Se Josefo tinha algo tão amplo em mente ele não explicou, embora tenha dito que se houvesse condição falaria mais depois. No entanto, ao explicar os rios do Éden, ele apresentou claramente conceitos alegóricos:

“O jardim era regado por um [rio] e [ele] se dividia em quatro partes. E o Píson, que denota uma multidão, correndo para a Índia, faz sua saída para o mar, e é pelos gregos chamado Ganges. O Eufrates também, assim como o Tigre, desce para o Mar Vermelho. Já o nome Eufrates, ou Phrath, denota uma dispersão ou então uma flor. O Tigre, ou Diglath, significa o que é veloz e bem estreito; e o Giom atravessa o Egito, e significa o que surge a partir do leste, que os gregos chamam Nilo”. – Ibid., pp. 29, 30.

Como se nota é atribuído um significado para cada rio. Embora a explicação pareça ser geográfica, ao que parece a intenção era outra. É tanto que nenhum especialista no assunto haverá de concordar com essa possibilidade dos rios “desaparecidos” serem o Ganges e o Nilo. Além do mais, conforme observado por Whiston, Josefo sabia muito bem que o Nilo nasce no sul e não no leste.

Dentre essas prováveis alegorias filosóficas de Moisés, Josefo talvez também tivesse em mente o episódio da Queda, onde se mencionam a nudez do homem e da mulher, a serpente falante e o pecado de comer o fruto proibido. Sobre isso, um antigo cristão nascido no século 2 d.C. disse enfaticamente:

“E quem é tolo a ponto de supor que Deus, à maneira de um lavrador, plantou um paraíso no Éden, para o oriente, e colocou nele uma árvore da vida, visível e palpável, para que quem degustasse do seu fruto com dentes corporais obtivesse a vida? E, novamente, que alguém era participante do bem e do mal por ter mastigado o que foi retirado da árvore? E se é dito que Deus andava pelo paraíso à tardinha e Adão se escondeu debaixo de uma árvore, eu não acho que alguém duvide que estas coisas indicam figurativamente certos mistérios, a história tendo ocorrido na aparência e não literalmente”. Sobre os Princípios, Livro IV, Orígenes.

Se analisarmos bem os capítulos iniciais de Gênesis, é possível perceber que realmente existem informações escondidas abaixo da superfície desse texto atribuído a Moisés. Para começar, note o que Gênesis disse no segundo e terceiro capítulos sobre a criação do homem e sua habitação inicial:

“Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e também não havia homem para cultivar o solo. Todavia brotava água da terra e irrigava toda a superfície do solo. Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente. Ora, o Senhor tinha plantado* um jardim no Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara. Então o Senhor Deus fez nascer do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento. E no meio do jardim estavam a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. . . . Ouvindo o homem e sua mulher os passos do Senhor Deus que andava pelo jardim quando soprava a brisa do dia, esconderam-se da presença do Senhor Deus entre as árvores do jardim”. – Gênesis 2:4-9; 3:8, Nova Versão Internacional.

* Sobre a tradução “tinha plantado” há uma consideração mais adiante.

Mediante o que é dito acima, podemos estabelecer alguns pontos importantes que são os primeiros passos para compreender o que está sendo realmente informado pelo narrador:

1) Os céus (onde ficam as estrelas) e a Terra já existiam, entretanto as plantas ainda não tinham germinado no solo terrestre. Ou seja, o planeta ainda era um ambiente inóspito para abrigar a vida humana.

2) Mesmo em tais condições, Deus surpreendentemente cria o homem dos elementos do solo estéril.

3) Mas Ele não deixa o homem no local onde foi criado. O leva para um jardim que já existia nos “lados do leste”, antes mesmo da criação de Adão e do surgimento de vegetação no planeta, sendo que Deus tinha o hábito de caminhar em tal jardim.

4) Só depois da transferência de Adão para o Éden é que Deus faz o solo da Terra produzir plantas e árvores.

5) Por fim, é informado que há no meio do jardim duas árvores especiais: uma da vida e outra do conhecimento do bem e do mal. Pela linguagem apresentada, nota-se que elas já existiam antes de Deus ordenar que as árvores surgissem na Terra.

Se a Terra não produzia frutos, pois nenhuma planta existia, o homem não poderia sobreviver nela. Por isso foi necessário ele ser levado para outro lugar, embora Deus tendo ordenado depois o surgimento do reino vegetal. Árvores não crescem do dia para a noite. Seria necessário esperar bastante tempo até que elas crescessem e passassem a produzir frutos em nosso planeta.

Com tais informações devidamente identificadas, conclui-se, portanto, que a Terra e o Éden são dois lugares distintos, e que o Éden já existia antes da criação do homem e da própria Terra. São duas realidades e não apenas uma. Logo, o Jardim do Éden não foi varrido pelas águas diluvianas. É por isso que vários textos da Bíblia se referem a ele como sendo um lugar que ainda existe! E isso tanto no período pré-diluviano quanto depois. Veja:

“Com isso, Caim foi embora de diante da face de Jeová e foi morar na terra da Fuga, ao leste do Éden”. – Gênesis 4:16.

“Ló levantou assim os seus olhos e viu todo o Distrito do Jordão, que todo ele era uma região bem regada, antes de Jeová arruinar Sodoma e Gomorra, semelhante ao jardim de Jeová, semelhante à terra do Egito, até Zoar”. – Gênesis 13:10.

“Hei de fazer as nações tremer diante do ruído da sua queda, quando eu o fizer descer ao Seol com os que descem ao poço, e na terra lá embaixo serão consoladas todas as árvores do Éden, as mais seletas e as melhores do Líbano, todas as que bebem água”. – Ezequiel 31:16.

“Adiante dele [do povo] um fogo devora e atrás dele uma chama consome. Adiante dele a terra está como o jardim do Éden; mas atrás dele é um ermo desolado, e também se mostrou que dela nada escapa”. – Joel 2:3.

“Porque o Senhor consolará a Sião; consolará a todos os seus lugares assolados, e fará o seu deserto como o Éden, e a sua solidão como o jardim do Senhor; gozo e alegria se achará nela, ação de graças, e voz de melodia”. – Isaías 51:3, Almeida Fiel.

“E as pessoas hão de dizer: ‘Aquela terra lá, que fora desolada, tem-se tornado como o jardim do Éden, e as cidades que estavam devastadas e que tinham sido desoladas e derrubadas estão fortificadas; foram habitadas’.”. – Ezequiel 36:35.

“Vieste a estar no Éden, jardim de Deus. Toda pedra preciosa era a tua cobertura: rubi, topázio e jaspe; crisólito, ônix e jade; safira, turquesa e esmeralda; e era de ouro o artesanato dos teus engastes e dos teus encaixes em ti. Foram aprontados no dia em que foste criado. Tu és o querubim ungido que cobre, e eu te constituí. Vieste a estar no monte santo de Deus. No meio de pedras afogueadas andavas. Eras sem defeito nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou injustiça em ti”. – Ezequiel 28:13-15.

As palavras do último texto acima foram direcionadas ao rei de Tiro, porém se referem profeticamente ao anjo que se tornou o Diabo. Daí ele ser chamado de “querubim”. Lembre-se que quando o homem foi expulso do paraíso, foram justamente os querubins que guardaram o caminho para a árvore da vida:

“Depois de expulsar o homem, colocou a leste do jardim do Éden querubins e uma espada flamejante que se movia, guardando o caminho para a árvore da vida”. – Gênesis 3:24.

Assim, o homem e a mulher não teriam como sair correndo em busca da árvore regenerativa para se curarem dos efeitos do pecado. Obviamente, tomando-se o relato ao pé da letra, depois que eles deixaram definitivamente o local, não houve mais necessidade daqueles guardas angélicos ficarem de prontidão. Isto porque o Éden fica num lugar muito mais distante do que supunha o senso comum.

E que lugar seria esse? A própria Bíblia possui a resposta. Na passagem supracitada de Ezequiel, nota-se que o texto equipara o “monte santo de Deus” (em referência ao céu) ao “Éden, jardim de Deus”, onde esteve o querubim rebelde que enganou o primeiro casal. O texto diz que esse anjo se vestia de ouro e pedras preciosas e andava no meio de pedras afogueadas. O que faz lembrar as descrições “geológicas” sobre o Éden, segundo as quais tal região estava repleta de ouro e pedras preciosas (Gênesis 2:10-12). Sendo assim, as duas descrições – “monte santo de Deus” e “Éden” – se referem ao mesmo lugar. E isto é confirmado no livro de Apocalipse, ao mencionar os vencedores da luta diária do cristão:

“Àquele que vencer concederei comer da árvore da vida, que está no paraíso de Deus”. – Apocalipse 2:7.

Note que o verbo é utilizado no presente e não no passado, o que denota uma realidade ainda existente. Sobre esse paraíso mencionado em Apocalipse, disse um livro da religião “Testemunhas de Jeová”:

“O que se diz aqui deve referir-se ao domínio celestial, semelhante a um jardim, herdado por esses vencedores”. – Clímax de Revelação (1989), p. 37, § 14.

Nota-se, assim, que a árvore da vida continua onde sempre esteve, e as pessoas terão novamente acesso a ela para que possam viver eternamente. Recorde-se que a primeira providência que Deus tomou logo depois que o homem pecou foi deixá-lo longe da árvore da vida:

“Então disse o Senhor Deus: ‘Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre’.”. Gênesis 3:22, Nova Versão Internacional.

Sim, o paraíso é um lugar que transcende a realidade humana e fica fora da Terra. Está em um local que a Bíblia chama simplesmente de “céu”, sendo tal paraíso um grande e agradável jardim. Esta era a crença dos antigos judeus e primeiros cristãos, conforme está comprovado nas diversas obras citadas na seção 4, mais à frente.

Então isso significa que o homem, mesmo tendo sido feito da matéria da Terra, teve seu corpo adaptado para viver onde os anjos estão e muito provavelmente receberia autorização para transitar livremente entre os dois mundos – o físico e o espiritual – e talvez replicar na Terra, tanto quanto possível, as condições sublimes do Jardim de Deus.

Portanto, este é o motivo porque ninguém até hoje foi capaz de dizer com segurança em que região do globo ficava o Éden. Os “lados do leste” (ou Oriente) mencionados em Gênesis 2:8 é uma referência simbólica a um dos domínios celestiais do Criador, onde o homem esteve no início. Sim, há mais de um lugar desse tipo, pois Jesus disse que na Casa do Pai há muitas moradas, e não apenas uma (João 14:2). Daí se entende porque Gênesis nos diz que Deus passeava diariamente pelo Jardim e o homem ouvia os seus passos. Lá é a morada de Deus e não do homem! E ela sempre estará bem protegida, sem jamais ser afetada por qualquer cataclismo que venha a atingir o nosso planeta.

Detalhe semântico de Gênesis 2:8

De acordo com a tradução da Bíblia utilizada, pode não ficar tão explícito para o leitor que Deus já tinha feito o Jardim do Éden antes de criar o homem. Veja um exemplo abaixo:

“Então o Senhor Deus formou o corpo humano do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e ele tornou-se um ser vivo. Plantou também o Senhor Deus um jardim, no Éden, para os lados do Oriente; e nesse jardim colocou o homem que havia criado”. – Gênesis 2:7, 8, A Nova Bíblia Viva.

A expressão ‘plantou também um jardim’ pode levar ao entendimento errôneo que o jardim foi erguido depois da criação do homem. Algumas versões chegam ao ponto de acrescentar a palavra “depois” no início do versículo 8, tal como essa edição abaixo transcrita:

“O Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que havia formado”. – Gênesis 2:7, 8, Missionários Capuchinhos.

Conforme visto anteriormente, ainda não existia vegetação na Terra quando o homem foi criado e ela só desabrochou depois que ele já estava instalado no Éden. Além disso, árvores demoram muito tempo para germinar e crescer. Logo, esse advérbio posto no início do versículo 8 causa uma contradição lógica nos eventos descritos no capítulo 2 de Gênesis. De modo que a melhor estrutura semântica é a que está apresentada na versão abaixo:

“Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do oriente, e colocou nele o homem que havia criado”. – Centro Bíblico Católico.

Tenha sempre em mente que o Jardim não é do homem, mas de Deus. Ele o fez para si mesmo e outros habitantes celestiais. Por isso tal lugar já existia desde o início. Sobre isso, observou um comentarista bíblico:

“Deve-se notar, contudo, que o jardim não foi intencionado como um paraíso para a raça humana, mas como um parque prazenteiro para Deus; o homem o desfrutava para Deus. A história não é sobre um ‘paraíso perdido’.” – Nota de rodapé de Gênesis 2:8 da The New American Bible (2010).

Esta ideia fica ainda mais patente nas traduções a seguir:

“Javé Deus tinha plantado o jardim do paraíso no Éden de delícias desde o princípio, e colocou nele o homem que Ele tinha plasmado”. – Mensagem de Deus.

“Ora, o Senhor Deus tinha plantado, desde o princípio, um paraíso de delícias, no qual pôs o homem que tinha formado”. – Matos Soares.

“Ora, o Senhor Deus, tinha plantado ao princípio um paraíso, ou jardim delicioso, no qual pôs ao homem, que tinha formado”. – Figueiredo.

Essas três versões acima seguem uma variante menos usual da palavra hebraica קדם (qe·dem), no caso מקד (mi·qad·mi ou mi·qad·me), o “início” ou “princípio”, ao invés de מקדם (mi·qe·dem), o “leste” ou “oriente”.  Existe uma lógica que interliga as duas possibilidades de tradução: o fato de que o leste marca o início ou princípio do dia na corrente do tempo, pois é lá onde o sol nasce. A Vulgata Latina foi uma das precursoras em apresentar essa segunda alternativa de verter Gênesis 2:8, conforme se vê a seguir:

Plantaverat autem Dominus Deus paradisum voluptatis a principio in quo posuit hominem quem formaverat.

“O Senhor Deus plantou um paraíso de deleites desde o princípio, no qual pôs o homem que tinha formado”.

O comentarista John Gill mencionou esses pontos em seu An Exposition of the Old and New Testament (1746-63), ao explicar o sentido de Gênesis 2:8, conforme segue:

“Ou ‘tinha plantado’, porque isto não foi feito nesse momento, logo após a formação do homem, mas antes; e assim a palavra traduzida como ‘oriente’ pode ser vertida, como fazem alguns, por ‘antes’: pois o significado claro é que Deus tinha plantado um jardim antes de fazer o homem, [antes] mesmo do terceiro dia, quando todas as ervas, plantas e árvores foram produzidas amplamente na terra. . . . Este jardim era um emblema [1] tanto da igreja de Cristo na terra, que é um jardim fechado, cercado com poder divino, e distinguido com a graça divina; um pequeno ponto em comparação com o mundo; é da plantação de Jeová, e é sua propriedade; e é um Éden para o seu povo, onde eles usufruem muita satisfação e prazer espirituais: [2] ou então o lugar e estado da felicidade dos santos no outro mundo, muitas vezes chamado de paraíso em alusão a isso, (Lucas 23:43) (2 Coríntios 12: 4) (Apocalipse 2:7) e que é do plantio de Deus e, portanto, chamado de paraíso de Deus, e é um Éden, onde estão as delícias perpetuamente; e isto parece ser o entendimento dos judeus quando eles dizem que o jardim do Éden ou paraíso foi criado antes de o mundo existir; que não é outro senão o que Cristo diz sobre isso em outras palavras (Mateus 25:34)”.

3. Como lidar com as implicações do que há no capítulo 2 de Gênesis

O que a comparação dos capítulos 1 e 2 de Gênesis revela sobre o dia da criação do homem

O capítulo 2 de Gênesis menciona alguns dos atos criativos de Deus apresentados no capítulo 1. Mesmo sem mencionar todos eles, segue a mesma ordem de aparecimentos vista no capítulo 1, com apenas uma exceção. Antes de comentar sobre essa diferença, recapitulemos primeiro o que é descrito nos dois capítulos, a fim de facilitar a conciliação entre eles.

Ressalte-se que a descrição do capítulo 1 é de acordo com o ponto de vista de um hipotético observador terrestre. Por isso é dito que as estrelas foram “feitas” depois do surgimento da vegetação na terra, embora saibamos que elas já existiam antes no espaço. A razão dessa declaração aparentemente não científica de Gênesis é que densas nuvens na atmosfera primitiva da Terra impediriam um observador terrestre de ver o sol, a lua e as estrelas. Havia apenas uma claridade difusa cuja origem não poderia ser identificada simplesmente olhando para o céu. Mas, à medida que ele foi limpando, gradualmente o sol e todos os astros tornaram-se visíveis.

A edição da Bíblia da qual se extraíram os trechos do resumo a seguir é a Nova Versão Internacional.

GÊNESIS CAPÍTULO 1

Preâmbulo

“No princípio Deus criou o céu e a terra. Era a terra sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo...”. – Gên. 1:1a.

Dia 1 – Surgimento de uma luz difusa sobre a superfície da Terra

“Deus disse: ‘Haja luz’. . . . e separou a luz das trevas”. – Gên. 1:3, 4.

Dia 2 – Surgimento do firmamento (ou expansão) onde ficam as nuvens

“Então Deus fez o firmamento e separou as águas que ficaram abaixo do firmamento das que ficaram por cima. . . . Ao firmamento Deus chamou céu”. – Gên. 1:6-8.

Dia 3 – Surgimento da terra seca e da vegetação

“Então disse Deus: ‘Ajuntem-se em um só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça a parte seca’. . . . à parte seca Deus chamou terra. . . . Então disse Deus: ‘Cubra-se a terra de vegetação: plantas que deem sementes e árvores cujos frutos produzem sementes de acordo com suas espécies’.”. – Gên. 1:9-11.

Dia 4 – Surgimento do sol, da lua e das estrelas

“Deus fez os dois grandes luminares: o maior para governar o dia e o menor para governar a noite; fez também as estrelas”. – Gên. 1:14.

Dia 5 – Surgimento dos animais aquáticos e das aves

“Deus criou os grandes animais aquáticos e os demais seres vivos que povoam as águas, de acordo com as suas espécies; e todas as aves, de acordo com as suas espécies”. – Gên. 1:21.

Dia 6 – Surgimento dos animais terrestres e do primeiro casal humano

“E disse Deus: ‘Produza a terra seres vivos de acordo com as suas espécies: rebanhos domésticos, animais selvagens e os demais seres vivos da terra...”. – Gên. 1:24.

“Então disse Deus: ‘Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. . . . Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou [ou: “macho e fêmea”, conforme outras versões]”. – Gên. 1:26, 27.

GÊNESIS CAPÍTULO 2

Dia ? – A terra seca já existe, porém sem vegetação, mesmo assim Deus cria o homem

“Quando o Senhor Deus fez a terra e os céus, ainda não tinha brotado nenhum arbusto no campo, e nenhuma planta havia germinado, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra. . . . Então o Senhor Deus formou o homem do pó do solo da terra e soprou nele em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente”. – Gên. 2:4-7.

“Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, para os lados do leste, e ali colocou o homem que formara”. – Gên. 2:8.

Dia ? – Surge a vegetação na Terra

“Então o Senhor Deus fez nascer do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento. E no meio do jardim estavam a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal”. – Gên. 2:9.

Note que não foi dito que Deus fez crescer as árvores da vida e do conhecimento do bem e do mal. Elas já estavam no Éden antes do surgimento da vegetação na Terra.

Dia ? – Deus cria os animais e os apresenta ao homem para nomeá-los

“Depois que formou da terra todos os animais do campo e todas as aves do céu, o Senhor Deus os trouxe ao homem para ver como este lhes chamaria; e o nome que o homem desse a cada ser vivo, esse seria o seu nome. Assim o homem deu nomes a todos os rebanhos domésticos, às aves do céu e a todos os animais selvagens...”. – Gên. 2:18-20a.

Dia ? – Deus cria a mulher e surge assim o primeiro casal humano

“Então o Senhor Deus fez o homem cair em profundo sono e, enquanto este dormia, tirou-lhe uma das costelas, fechando o lugar com carne. Com a costela que havia tirado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher e a levou até ele. Disse então o homem: ‘Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada’. Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne”. – Gên. 2:21-24.

Como se percebe, ao compararmos os capítulos 1 e 2 de Gênesis, existe uma aparente contradição no que diz respeito à criação do homem. De acordo com o capítulo 1, depois que surge a terra seca, Deus primeiro cria a vegetação e todos os animais. Só depois Ele cria homem. No capítulo 2, porém, há uma inversão. Deus primeiro faz o homem e depois disso é que cria a vegetação e os animais.

Deste modo, se considerarmos o capítulo 1 como sendo o diário padrão da Criação, o que está descrito no capítulo 2 aconteceu nos seguintes dias criativos:

Dia 3:

– A terra seca já existe, porém sem vegetação, mesmo assim Deus cria o homem.

– Deus leva o homem para um jardim que já existia para os “lados do leste”.

– Em seguida, Deus faz que a vegetação cresça na terra que Adão deixou para trás.

Dia 5:

– Deus cria as aves do céu.

Dia 6:

– Deus cria os animais terrestres e, juntamente com as aves, os apresenta ao homem para nomeá-los.

– Deus cria a mulher e a leva ao homem, que também determina como ela será chamada. Surge então o primeiro casal humano.

Sendo assim, quando o capítulo 1 diz que o homem foi criado no sexto dia é do ponto de vista do surgimento do primeiro casal. Logo, Gênesis 1:26, 27 é uma referência ao aparecimento da humanidade em nosso planeta e não do homem Adão qual indivíduo.* Não se esqueça que, de acordo com o capítulo 2, o homem foi criado sozinho. Não havia mulher. E sozinho ele foi transferido para o Jardim do Éden. E somente ele nomeou todos os animais que Deus criou em seguida. A mulher só veio à existência depois de Deus ter criado todos os outros seres vivos. Portanto, a palavra “homem” no capítulo 1 significa “humanidade”, que só teve início efetivo no sexto dia, quando a mulher foi criada. É por isso que o capítulo 1 de Gênesis enfatiza a criação do “homem” nestes termos: “E Deus passou a criar o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou”. – Gênesis 1:27, Tradução do Novo Mundo (1986).

* Existem diversas obras eruditas que mencionam este ponto de vista, de que em Gênesis a palavra “homem” (ha adam, em hebraico) se refere à humanidade, e não necessariamente a um ser masculino individual. Mas, em geral, esses mesmos comentários bíblicos sustentam que esse sentido genérico se mantém no relato do capítulo 2 de Gênesis. No entanto, tal conclusão pode não estar correta, pois o contexto demonstra que o homem mencionado ali é realmente uma pessoa do sexo masculino, a partir da qual a mulher foi criada. É tanto que ha adam é utilizado nesse mesmo capítulo 2 ao mencionar o homem e a mulher juntos: “O homem [ha adam] e sua mulher [ishshah] viviam nus, e não sentiam vergonha” (Gênesis 2:25, NVI). Embora o hebraico possua o termo exclusivo para o sexo masculino (ish), da mesma maneira que tem para a mulher (ishshah), ao se referir ao homem em Gênesis 2:25 o autor usou a palavra comum adam. O que permite concluir que o homem mencionado desde o versículo 7 do capítulo 2 se refere mesmo ao primeiro representante da raça humana, que era do sexo masculino. Provavelmente o escritor bíblico não estava querendo dizer “a humanidade e sua mulher”... – Veja um exemplo em Biblical Affirmations of Woman (1979), de Leonard Swidler, The Westminster Press, pp. 77-79.

Em suma, na criação do homem conforme a versão apresentada no capítulo 2 de Gênesis não havia nenhuma fêmea. Ou seja, a mulher ainda não existia. Isso pode ser visualizado melhor na cártula mais adiante. Note que o capítulo 2 complementa o que foi dito no capítulo 1, como se fossem uma única narrativa.

Portanto, ao invés do que comumente se pensa, de acordo com a imagética de Gênesis o homem qual indivíduo masculino foi criado no terceiro dia e não no sexto. No sexto dia foi feito o primeiro casal que deu início à humanidade, depois que a mulher foi criada. A linguagem que permeia todo o capítulo 1 de Gênesis permite chegar a tal conclusão. Recorde-se que o relato também informa que Deus ‘fez as estrelas’ no quarto dia. Mas, na verdade, não foi nesse dia que as estrelas foram realmente feitas. Conforme a ciência tem explicado, elas já existiam no universo antes do surgimento do nosso planeta. Ou seja, elas já estavam do lado de fora da Terra nesse quarto dia criativo. Apenas não seriam vistas do solo terrestre. Só depois que o céu limpou é que elas se tornaram visíveis. Deste modo, é tudo uma questão de ponto de vista. É nesse sentido que Deus “fez” as estrelas somente no quarto dia.

O mesmo acontece no caso do homem. Já vimos na seção anterior que o Éden não fica na Terra, pois, de acordo com o capítulo 2, quando Adão foi criado não existia nenhuma árvore no mundo, porém o Jardim para onde Adão foi levado estava repleto delas. Sendo assim, Adão passou do terceiro ao quinto dia nos domínios edênicos sem nenhuma companheira, pois somente no sexto dia a mulher foi criada. Mas, diferentemente de Adão, ela foi modelada no próprio Jardim de Deus e não em um solo sem vida (o que tem alguma “lógica”, pois a mulher é mais formosa). Ou seja, o casal não poderia ser visto aqui na Terra até aquele momento, pois os dois estavam em outro lugar. Mas isso mudou no final do sexto dia.

Existe forte possibilidade que o “homem” mencionado no capítulo 1 se refira a quando a humanidade veio efetivamente para a Terra, logo depois da expulsão do Paraíso. O que seria coerente, pois todos os seres mencionados nos dias criativos do capítulo 1 são retratados no planeta Terra e não no Jardim de Deus. Semelhantemente, o homem foi feito qual macho e fêmea somente no sexto dia e não antes. Mas isso significa apenas que foi nesse dia que o homem e a mulher apareceram aqui com o intuito de povoá-la. Tal como é dito no caso das estrelas, eles foram “feitos” no sexto dia, mas, na verdade, já existiam antes em alguma região fora da Terra, num local que a Bíblia chama de “jardim do Senhor”.

Há outro pormenor que parece reforçar esse ponto de vista. Quando o primeiro capítulo de Gênesis informa que o homem foi criado à imagem de Deus, isso significa que ele foi dotado de alguma semelhança com o Criador. E, de fato, o capítulo 2 também menciona algo nesse sentido, depois que foi emitida a sentença contra o casal e ele foi expulso do paraíso celeste de Deus para o nosso mundo. Veja:

“Então disse o Senhor Deus: ‘Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal’...” – Gênesis 3:22a.

Antes da Queda o homem não compartilhava tal semelhança com Deus. Além disso, somente depois que Adão desceu para a Terra é que ele teve relações sexuais com Eva, iniciando assim a procriação humana, conforme diz o relato do capítulo 1:

“Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou. Deus os abençoou, e lhes disse: ‘Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra’.”. – Gênesis 1:27, 28.

E complementa o capítulo 3, no trecho sobre a sentença dada à mulher:

“À mulher, ele declarou: ‘Multiplicarei grandemente o seu sofrimento na gravidez; com sofrimento você dará à luz filhos. Seu desejo será para o seu marido, e ele a dominará’.”. – Gênesis 3:16.

A conclusão de que Adão foi criado no sexto dia está enraizada em nossa cultura religiosa desde longa data. Assim se entende desde os tempos bíblicos, pois realmente é isso o que o capítulo 1 de Gênesis aparentemente diz. Até onde sei, toda literatura judaico-cristã apresenta esse ponto de vista, incluindo os escritos apócrifos e pseudo-epígrafos. De modo que a interpretação que estou propondo aqui é realmente nova.* Mesmo não havendo pretensão dela ser definitiva e capaz de explicar todos os detalhes pertinentes ao assunto, me parece bastante satisfatória e está de acordo com todas as evidências aqui apresentadas.

* Depois que escrevi esta seção, fui à Internet para saber se alguém mais havia chegado à mesma conclusão. Achei somente um artigo. Mas seu autor se detém apenas em aspectos físicos, querendo se contrapor ao evolucionismo, e não lida apropriadamente com as consequências da conclusão de que Adão foi criado no terceiro dia, pois não se dá conta que o Éden faz parte de outro mundo fora da Terra. Além disso, não soluciona determinados problemas que ele mesmo apresenta. Gênesis 1 e 2 Comparados: Adão Criado no Terceiro Dia, não no Sexto (2008), em inglês, de Jonathan Walther.

O Livro dos Jubileus é uma das obras antigas que dizem que Adão foi criado no sexto dia. Mas ele apresenta uma contradição interna, aparentemente resultante de uma tentativa de conciliar o capítulo 2 com o capítulo 1 de Gênesis. Esse apócrifo diz que o homem foi criado qual “macho e fêmea” no sexto dia da semana criativa, porém a mulher só teria sido criada no sexto dia da semana seguinte. Se a mulher só apareceu numa suposta segunda semana, não mencionada na Bíblia, o aparecimento do homem na primeira semana não poderia ser descrito de tal maneira! (É mais razoável supor que até hoje ainda estamos no sétimo dia do descanso de Deus). A não ser que quem escreveu o Livro dos Jubileus achasse que Adão fosse homem e mulher ao mesmo tempo, conforme pensavam alguns adeptos do gnosticismo. Além disso, o Livro dos Jubileus diz que os anjos foram criados no primeiro dia da primeira semana, o que não pode ser inferido do relato bíblico. Provavelmente os anjos são mais antigos do que a própria Terra. – O Livro dos Jubileus; Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia (2004), Editora Cristã Novo Século, pp. 479-481.

O que estou querendo demonstrar ao mencionar o Livro dos Jubileus é que essa parte inicial da Bíblia é um tanto nebulosa. Tal como pensavam Josefo e Orígenes, apresenta mistérios e alegorias. Ao que parece, os primeiros capítulos de Gênesis jamais foram compreendidos em sua plenitude. No último século houve mais avanços nesse sentido do que em todos os séculos anteriores. Por exemplo, entender que os dias criativos foram descritos do ponto de vista de um hipotético observador terrestre foi um passo importante, a fim de ajustar o relato do surgimento do mundo com o que se sabe de acordo com a ciência. E no que tange à criação do homem, mais cedo ou mais tarde alguém chegaria à conclusão de que ela se deu em duas etapas (ou três, se considerarmos o episódio da Queda), sendo a primeira no terceiro dia e a última no sexto.

Para que lado ficava o acesso ao paraíso

Existe um entendimento alternativo que pode ser obtido de Gênesis 2:8 que tem a ver com o “referencial geográfico”. Quando a Bíblia informa que o Jardim fica no leste, ela quer dizer a leste do narrador da história? Ou da região chamada Éden?

Embora não seja uma conclusão comum, há quem pense que o referencial correto é o Éden e não o narrador. É o que achava, por exemplo, o famoso arqueólogo e linguísta William Foxwell Albright. Nesse caso, o paraíso ficaria, na verdade, a oeste da Palestina, mas no lado leste do Éden. Não é fácil extrair esse entendimento de Gênesis 2:8, devido à fraseologia normalmente apresentada nas diversas traduções. Apenas em algumas isso pode ser precariamente visualizado, a exemplo desta: “E o Senhor Deus tinha plantado um jardim a leste no Éden, e lá ele pôs o homem que tinha formado”. – Jubilee Bible 2000.

No entanto, há duas evidências mais fortes que parecem apoiar esse entendimento. Considere-as a seguir, observando o mapa apresentado. E veja, na seqüência, como esse pormenor geográfico também é útil para demonstrar que Gênesis possui aspectos alegóricos ou simbólicos.

1) Em Gênesis 3:24 é dito que, após a expulsão do primeiro casal, os querubins foram postados no lado leste do paraíso e foi por lá que o homem e a mulher saíram. Se o Éden ficava no lado leste em relação ao narrador (veja no mapa), significaria que saindo pelo leste eles não poderiam chegar facilmente à Mesopotâmia ou à Palestina, por exemplo. A não ser que eles dessem a volta no globo até saírem no oeste, ou encontrassem um caminho alternativo pelo norte ou sul. O que seria totalmente inviável devido às distâncias envolvidas, à difícil situação do casal e à falta de um transporte adequado.

2) E Gênesis 4:16 também nos informa que quando Caim fugiu, após assassinar seu irmão, o lugar onde se refugiou ficava a leste do Éden. Um problema semelhante aconteceria neste caso. Se o Éden realmente ficava do lado leste em relação ao narrador, significaria que Caim teria que percorrer a Terra inteira no sentido contrário, rumo ao oeste, até chegar ao leste da região edênica. Ou então ir primeiro para o norte ou para o sul, contornando algumas regiões, até chegar ao leste do Éden. Para um fugitivo que talvez estivesse apenas com a roupa do corpo seria uma tarefa bem árdua, por que não dizer impossível.

Considerando-se apenas aspectos topológicos, a melhor maneira de resolver esse problema, ainda que imperfeita, é supor que o Éden, na verdade, ficava no lado oeste em relação ao narrador. Por isso o primeiro casal poderia sair pelo leste do jardim e chegar, por exemplo, ao Egito, e Caim poderia fugir para o oeste e se refugiar à leste do Éden, evitando assim ter que percorrer milhares de quilômetros para alcançar o local onde se exilou. E isso está de acordo com a linguagem do relato, que dá a entender que todos esses personagens ainda estavam nas proximidades do ponto que dava acesso ao jardim do Éden.*

* Há um livro pseudo-epígrafo que apresenta exatamente tal cenário: “Mas Adão foi o primeiro cuja alma morreu na terra do Éden, na Caverna dos Tesouros; pois ninguém morrera antes dele, apenas seu filho Abel, assassinado”. – O Segundo Livro de Adão e Eva, 10:7; Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia (2004), Editora Cristã Novo Século, p. 95.

Embora a proposta de Albright tenha sentido, há três problemas. (1) Conforme a maioria das traduções, Gênesis localiza claramente o Éden no “Oriente” ou “Leste”. É bastante forçado entender que ficava na região oposta. (2) Além disso, há várias obras judaico-cristãs antigas que situam o Éden no “leste”. O que indica que era assim que se costumava entender Gênesis 2:8 naquele tempo. (3) Por fim, essa releitura entra em conflito com a informação de que o Éden tinha ligação com os rios Tigre e Eufrates, na Mesopotâmia. Isto forçosamente o faz ser localizado no leste e não no oeste. Albright tenta contornar essas dificuldades propondo que os antigos escritores, inclusive o editor final de Gênesis, cometeram equívocos de ordem geográfica. Também menciona alguns conceitos que existiam, tais como que o mundo dos deuses para o qual se esperava ir depois da morte era no oeste, e que o Tigre e o Eufrates corriam também no subterrâneo.

De qualquer maneira, mesmo que o ponto de vista de W. F. Albright fosse o correto, não atrapalharia em nada as conclusões a que chegamos até aqui. O importante é entender que o Éden fica fora da Terra e além do alcance dos seres humanos, os quais só poderão ir para lá com a anuência de Deus. O quadro apresentado na Bíblia é esse que foi descrito por outro erudito:

“Se, no entanto, um sentido topográfico for o preferido, mesmo assim Gên. 2:8 localiza o Éden em uma área limítrofe de fronteira – no caso, uma espacial. No hebraico bíblico, o único substantivo diretivo usado com מן em um sentido partitivo estático, e sem qualquer localizador topográfico, é מעל (‘acima’). As únicas entidades localizadas lá, ממעל (no ‘alto’), são os céus e Eloah. Estes nomes (ממעל) denotam locais fora do espaço normal. Um paralelo espacial ‘absoluto’ de מקדם, em Gên. 2:8, localizaria o Éden no mais remoto leste. Esta é uma localização não terrestre no universo bíblico (cf. Sal. 139:9)*, e claramente além do alcance humano: é o espaço mítico”. – Artigo “O Céu na Terra” (2000), de Terje Stordalen, p. 11, publicado pela Universidade de Aarhus, Dinamarca.

* A palavra em inglês que eu traduzi aqui por “não terrestre” é numinous, que poderia também ser traduzida por “espiritual”, “divino”, “sagrado”, “misterioso” ou “transcendental”.

Na verdade, essa discussão sobre qual é o ponto cardeal correto do Paraíso é outro exemplo que pode ser entendido de uma forma que não é a estritamente topográfica, que tem a ver com a cosmografia do mundo invisível concebida pelos antigos, e que será vista com mais detalhes na seção 4. Os egípcios, por exemplo, chegaram a ter uma crença segundo a qual após a morte a alma viajava primeiro para o “oeste” e só depois era encaminhada à morada dos deuses (em geral, retratada no “leste”), se fosse julgada favoravelmente.

Conforme já visto, a vida gloriosa oferecida ao homem depois de sua criação foi materializada em sua transferência para o “leste”. Pelo poder de Deus ele foi levado diretamente para o Éden no próprio corpo que tinha, deixando para trás esta Terra, até então desprovida de árvores e vegetais. Como também será considerado no tópico 4, o livro apócrifo de Enoque menciona que, semelhantemente a Adão, Enoque foi levado ao Jardim do Éden e sua viagem se deu indo sempre “para o leste”.

Se o “leste” mencionado em Gênesis 2:8 não pode ser tomado literalmente, uma vez que o Éden não fica na Terra, então é razoável concluir que o “oeste” pode ser compreendido de maneira igualmente simbólica. Assim entenderemos porque quando o homem foi criado ele foi levado para o “leste”, mas quando foi expulso do Éden ele veio do “oeste”.

Conforme ensinado no Novo Testamento, a única maneira de voltarmos para o Paraíso é através da morte e da subsequente ressurreição dos mortos. Adão não precisou morrer a fim de chegar ao Éden. Ele foi diretamente para lá, quando Deus o levou para o “leste”. Mas com os descendentes de Adão é diferente. Com raríssimas exceções, a exemplo de Enoque, que foi ‘transferido por Deus para não ver a morte’, a morte natural é o caminho que leva ao Jardim de Deus, mesmo a pessoa tendo que passar primeiro pelo Seol ou Hades (veja mais detalhes sobre isso nos apêndices A e B). – Hebreus 11:5; Gênesis 5:24.

Tal como o “leste” representa a vida que foi dada ao homem, o “oeste” representa a morte. E é pela morte que ele retornará ao Éden, indo para o ponto do qual Adão e Eva vieram (o “oeste”). Então, esta deve ser a razão porque mesmo o Jardim estando no “leste”, foi dito que o casal saiu pelo leste do Éden e surgiu no oeste do narrador. O fato de a Terra ser redonda explicaria bem isso, não fosse o detalhe de que seria uma jornada impossível para dois errantes banidos. Veja o mapa outra vez, para visualizar melhor.

Figurativamente falando, o paraíso está fechado para nós pelo lado “leste”.* A única possibilidade de voltar para ele é pelo “oeste”, e mesmo assim com a autorização de Deus, pois uma “lâmina de fogo” foi posta na entrada, e ninguém entrará no Éden só porque deseja estar lá. Serem as pessoas naquele tempo retratadas “geograficamente” próximas do Éden denota a maior proximidade delas com a perfeição e glória perdidas.

* Que a linguagem geográfica de Gênesis é figurativa, nota-se em outros textos que mencionam Sião e o Templo de Deus, os quais representam o próprio Paraíso. Por exemplo, sobre a visão dada a Ezequiel sobre o Templo é dito o seguinte: “E ele passou a levar-me de volta pelo caminho do portão do santuário, o externo que dá para o leste, e estava fechado. Jeová disse-me então: ‘Quanto a este portão, continuará fechado. Não será aberto, e nenhum mero homem entrará por ele; pois o próprio Jeová, o Deus de Israel, entrou por ele, e ele tem de continuar fechado’.”. Menciona-se também que do Templo sai um rio vivificante que regenera tudo por onde passa, fazendo crescer árvores frutíferas e dando vida aos seres (Ez. 44:1, 2; 47:1-23). Tais descrições são claras referências à imagética que Gênesis apresenta sobre o Éden. – Compare com Zacarias 14:8-11, Joel 3:18 e Apocalipse 22:1.

Os nomes dos rios, referências geográficas e outros pormenores

Continuando com a mesma linha de raciocínio, podemos também concluir que as descrições “geográficas” descritas no capítulo 1 de Gênesis se referem ao próprio Éden, e não necessariamente ao nosso planeta. É por isso que o rio único que se transformava nos rios Tigre, Eufrates, Píson e Giom nunca foi encontrado. A teoria de que o Dilúvio alterou o relevo da Mesopotâmia pode parecer satisfatória do ponto de vista físico. No entanto, conforme tudo o que foi considerado até aqui, é óbvio que Gênesis não retrata apenas coisas de ordem física e visível ao ser humano. Deste modo, é melhor supor que os rios mencionados ficam mesmo no Éden e não na Terra. Sendo assim, por que haveria na Mesopotâmia rios com os mesmos nomes?

O motivo de dois rios do Oriente Próximo terem sido nomeados “Tigre” e “Eufrates” deve ser porque os antigos apenas deram a eles os mesmos nomes dos rios que há no Éden, ou vice-versa. Se no Éden há plantas, rios e jardins, e lá foi a primeira moradia do homem, seria natural que as pessoas nomeassem as coisas aqui de acordo com a lembrança dos velhos tempos. Parece que essa era uma prática comum de alguns povos da Antiguidade, dentre eles os egípcios, sobre os quais comentou um especialista no assunto:

“Já vimos que [para os egípcios] os Campos Elísios [ou paraíso celeste] em muito se assemelhavam às terras planas e férteis cortadas por largos canais e riachos de água corrente tais como os que sempre existiram, e que podiam ser vistos em certas partes do Delta [do Nilo]. . . . Visto que o egípcio criou seu mundo futuro como uma contrapartida do Egito que ele conhecia e amava, então deu a ele correspondentes celestiais de todas as cidades sagradas. Ele teve que conceber a existência de um caminho de água como o Nilo, com tributários e cabeceiras, onde ele poderia navegar e executar sua jornada [depois da morte]”. – O Livro Egípcio dos Mortos (1898), em inglês, de E. A. Wallis Budge, p. 117 (133 do PDF).

Lembre-se que o escritor de Gênesis era egípcio, então é razoável concluir que ele escolheu um estilo de escrita que reflete esse procedimento mencionado por Budge. O que será visto na próxima seção reforça esse entendimento. Além disso, Deus também pode ter replicado na Terra algumas características do Éden.

Descrever o Éden como uma espécie de continuação da Terra estaria de acordo com tal concepção, que encontra amparo no fato da Bíblia mencionar a morada de Deus como sendo um jardim, aparentemente com aspectos terrestres melhorados. Toda a linguagem de Gênesis parece ser física, porém deve representar algo muito mais amplo, que inclui os domínios superiores do Criador. Algumas possibilidades de interpretação das alegorias de Gênesis estão no capítulo 23 do livro que escrevi chamado Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma (2015). Esse capítulo reproduz uma parte do que estou abordando neste artigo, porém traz informações que não estão apresentadas aqui.

Devido à mesma correspondência Terra-Éden se entende porque quando os animais eram criados na Terra, Deus os levava em seguida para Adão nomeá-los. Da mesma maneira que o próprio Adão tinha sido transferido para o Éden, nada impediria que Deus fizesse o mesmo com outras criaturas. Embora a Bíblia não explique tais detalhes, é possível até que essas levas de animais tenham ficado por lá mesmo, no Jardim de Deus. Não há porque supor que Deus tenha feito na Terra apenas um par de cada espécie. Ele pode ter criado muitos e levou apenas alguns ao Paraíso.

Outra questão que alguém poderá levantar é que supor que o Jardim do Éden é um domínio celestial entra em contradição com determinadas passagens do Novo Testamento, a exemplo dessa a seguir:

“Ninguém jamais subiu ao céu, a não ser aquele que veio do céu: o Filho do Homem”. – João 3:13, Nova Versão Internacional.

A primeira informação a ter em mente é que a Bíblia não menciona apenas um céu. Existem vários. Por isso o apóstolo Paulo disse que Jesus, depois de sua ressurreição, subiu “acima de todos os céus” (Efésios 4:10). E o próprio Paulo afirmou que foi arrebatado ao paraíso e chamou tal lugar de “terceiro céu”. Ele foi e voltou para contar a história (2 Coríntios 12:1-7). Esse quadro está de acordo com aquilo que Jesus disse, de que ‘na casa do Pai há muitas moradas’ (João 14:2). Sendo assim, certamente o céu mencionado em João 3:13 é o céu dos céus, a habitação excelsa de Deus, onde nenhum homem jamais esteve.

A conclusão anterior está relacionada a outro entendimento bastante aceito entre cristãos, o de que nenhum homem jamais viu a Deus, porque Ele está numa região até hoje inacessível. Isto poderia ser encarado como outra contradição com o relato de Gênesis, pois lá é dito que Deus até mesmo caminhava por entre as árvores do jardim onde Adão e Eva estavam. Há muitos textos bíblicos que podem ser usados para explicar essa situação. Mas, como não é objetivo deste trabalho tratar desse pormenor, basta que você saiba o seguinte, caso já não esteja inteirado do assunto: quem estava no Éden não era Deus, o Pai, mas o Filho, a quem a Bíblia chama em outras passagens de “a Palavra” e “a Sabedoria”, e que veio a ser o homem chamado Jesus Cristo, que desceu do céu e depois voltou para lá. Em referência ao Pai e ao Filho, o evangelista João resume esse conhecimento da seguinte maneira:

“Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito*, que está junto do Pai, o tornou conhecido”. – João 1:18, ibid.

* Ao invés de “Deus Unigênito”, algumas Bíblias trazem “Filho Unigênito”. O motivo dessa diferença é porque existe uma variação nesse versículo dependendo dos manuscritos antigos da Bíblia consultados.

Recorde-se que quando Deus se referia ao homem Ele às vezes se expressava como se estivesse com alguém, e, de fato, Ele estava. (“Façamos o homem à nossa imagem...”, “o homem se tornou como um de nós...”). Não apenas com seu Filho Unigênito, mas também com os anjos de Sua corte celeste.

Portanto, conceber o paraíso edênico como sendo uma região celestial não contradiz de nenhuma maneira outras partes da Bíblia. Pelo contrário, só reforça, pois a esperança realmente dada à humanidade, conforme aprendemos na Bíblia Sagrada, foi a de ir para o céu e viver entre anjos no paraíso de Deus. Neste caso, não seria simplesmente uma ida, mas o retorno para o lugar de onde o homem não deveria ter saído. – Mateus 8:11-13; Hebreus 11:16.

4. Evidências externas que refletem a cosmografia vista na Bíblia

O paraíso segundo os sumerianos, egípcios e outros povos

Sabe-se que o escritor de Gênesis, Moisés, era um egípcio de origem hebreia. Quando tinha apenas três meses foi adotado pela filha do Faraó, criado feito um príncipe e “instruído em toda a sabedoria dos egípcios” (Atos 7:21). Provavelmente Moisés teve acesso a muito do que se sabia naquele tempo sobre a expulsão dos humanos do paraíso, pois, tal como acontece com a história do Dilúvio, existiam versões extrabíblicas que faziam referência a tal lugar, fruto de uma lembrança antropológica dos tempos iniciais.

Além disso, os hebreus de onde Moisés saiu pertenciam ao grupo de povos semitas, que incluíam outras nações a exemplo de Babilônia. Então era bastante natural que houvesse pontos em comum nas crenças desses povos. Por isso vários comentaristas concluem que a história do Dilúvio, por exemplo, é uma versão hebraica da grande inundação relatada em tabuinhas cuneiformes babilônicas. No início tais histórias foram passadas de geração em geração através da tradição oral. Só depois do advento da escrita é que a versão babilônica foi gravada em argila, bem antes de Moisés compilar a sua versão. Todas elas têm em comum* que o mundo foi arrasado por uma chuva torrencial de grande duração e alguns seres humanos foram poupados. E a maioria diz que a causa dessa destruição foi divina.

* Curiosamente, a palavra chinesa para “navio” é o resultado da combinação de “embarcação” + “oito” + “bocas”. De acordo com a Bíblia, foram precisamente oito pessoas (“bocas”) que foram salvas das águas do Dilúvio dentro de uma gigantesca caixa feita de madeira, construída por Noé com a orientação de Deus. – Estudo Perspicaz das Escrituras (1990), Vol. 1, p. 232.

Tendo em vista esse pano de fundo histórico, é fácil concluir que quando Moisés se tornou o primeiro escritor da Bíblia ele não era uma tábula rasa no que diz respeito a conceitos históricos, alegóricos e geográficos sobre a fundação do mundo. É coerente supor que determinadas peculiaridades vistas na literatura de outras nações podem ser identificadas dentro da Bíblia Hebraica. E um exame minucioso dessas fontes externas confirma isso.

Os mais “ortodoxos” e fundamentalistas poderão protestar dizendo que isso é um sacrilégio e que a Bíblia nada tem a ver com a literatura pagã. Embora creiamos que o Espírito Santo tenha guiado a mão de Moisés para que mentiras e falsos ensinos das nações gentias não fossem reproduzidos nas Escrituras Sagradas, nada impede que Moisés tenha feito uso adequado de elementos presentes nessas fontes extrabíblicas. Este é o posicionamento verdadeiramente ortodoxo e que condiz com a realidade dos fatos. Por isso, vários estudiosos de renome da Bíblia têm feito amplo uso de um estudo comparado das Escrituras com outros livros religiosos antigos, para identificar intertextualidades e esclarecer melhor algumas questões.

Estarem as narrativas pagãs indubitavelmente repletas de lendas e de personagens míticos estranhos ao texto bíblico não depõe contra o método do estudo comparativo, nem retira os seus méritos. Pelo contrário, tais relatos externos às vezes são usados até mesmo para atestar a veracidade da Bíblia em alguns aspectos. Basta “filtrar” essas histórias e verificar quais são os pontos em comum com os relatos bíblicos.

Sendo assim, o que escrituras muito antigas podem revelar sobre o Jardim do Éden, sua localização e outros aspectos relacionados? Para começar, considere um artigo da revista Despertai! que menciona a lembrança antropológica do Éden que os egípcios e sumerianos tinham:

“Outro povo que tinha memórias do Éden eram os sumerianos. Sua literatura em tabuinhas de argila mostra que criam num paraíso que se localizava na terra de Dilmun, provavelmente no sudoeste da Pérsia. Utu, o deus-sol, diz-se, recebeu a ordem de regar Dilmun com água potável trazida da terra, água esta que o transformou num jardim luxuriante. Isto sugere o fato, expresso em Gênesis 2:6, de que o solo era regado por uma neblina que subia da terra. Quando Enki, o deus-água, comeu as preciosas plantas deste jardim, afirma a literatura sumeriana, a maldição de morte veio sobre ele. Isto parece remontar a Adão e Eva comerem o fruto proibido. — Gên. 3:6.

“Os antigos egípcios, também, possuíam lembranças edênicas, conforme se vê de seu modo de pensar religioso. Uma delas era a crença de que, depois de seu Faraó morrer, havia uma árvore da vida da qual tinha de comer para se sustentar no domínio de seu pai celeste, Ré. Esta é uma ideia muitíssimo incomum para os egípcios. Por quê? Porque seu país se apresenta relativamente sem árvores, as árvores não sendo uma característica proeminente dele. Todavia, apesar disto, a memória daquela árvore da vida no Éden, da qual o homem jamais comeu, parece persistir. — Gên. 2:9”. – Despertai!, 22/10/70, pp. 26-27, artigo “Memórias do Éden”.

Veja a seguir como um texto sumeriano descreve o paraíso de Dilmum:

“A terra de Dilmun é santa. . . A terra de Dilmun é pura. . . a Terra de Dilmun é brilhante. . . Em Dilmun o corvo não solta o seu piado. . . O leão não mata, o lobo não arrebata a ovelha, não se conhece cão feroz que faça uma criança se curvar”. – Enki and Ninhursag: A Sumerian Paradise Myth, citado e adaptado de Myths of Enki, The Crafty God (1989), editado por Samual Noah Kramer e John Maier.

Agora compare com uma profecia bíblica a respeito do restabelecimento do homem ao paraíso:

“Naquele dia o lobo e a ovelha viverão juntos; o leopardo e o cabrito descansarão em paz. O bezerro, o novilho gordo e o leão comerão juntos, guiados por uma criança. . . . A criancinha de colo brincará perto da cova da cobra, e a criança já desmamada colocará a mão na cova da víbora. Ninguém fará nenhum mal, nem haverá destruição alguma no meu reino santo”. – Isaías 11:6, 8a, A Nova Bíblia Viva.

Quanto à localização “geográfica” de Dilmum, note a seguir o que disse um artigo de uma revista especializada em arqueologia:

“Dilmun, a terra para a qual Ziusudra, o Noé sumeriano, foi transportado para viver como imortal entre os deuses, é ‘o lugar onde o sol nasce’, e estava então localizado em algum lugar a leste da Suméria. Em outro texto sumeriano, Dilmun é descrito como uma terra próspera e abençoada, dotada de grandes moradias”. – Expedition Magazine (1964), Vol. 6, maio, p. 45, “A Civilização do Indo e o Dilmun, o Paraíso Sumeriano”, em inglês, de Samuel Noah Kramer.

Conforme se nota, os sumerianos achavam que o paraíso se situava para os lados do leste, onde o sol nasce. Ou seja, exatamente o mesmo ponto cardeal mencionado em Gênesis 2:8 em referência ao Éden. E tal localização também foi mencionada nos escritos egípcios. Veja um exemplo, para começar:

“Eu, até mesmo eu conheço as Almas divinas do Leste, como se diz, Heru-khuti (Harmakhis) e o Bezerro da deusa Khera, e diariamente a Estrela da Manhã. Uma cidade divina foi construída para mim, eu sei disso, e eu sei o nome dela: Campo de Juncos é o seu nome”. – The Wisdom of the Egyptians (1923), de Brian Brown, p. 153, papiro de Nu.

Campo de Juncos é o nome que os egípcios davam ao paraíso celeste para o qual esperavam ir depois da morte. Um detalhe importante com respeito a tais histórias paralelas sobre o paraíso é que mesmo ele não sendo na Terra, muitas vezes era descrito como se dela fizesse parte. Alguns acham que a razão disso é porque os antigos apenas refletiam em suas crenças sobre o Além o que consideravam ser um paraíso, baseando-se naquilo de bom que experimentavam em suas vidas. Por isso para os egípcios o paraíso era um campo de juncos, pois esta era uma vegetação típica do seu país, com a qual estavam familiarizados. Conforme já citado na seção 3, foi essa a opinião de um conhecido egiptólogo:

“Já vimos que os Campos Elísios [dos egípcios] em muito se assemelhavam às terras planas e férteis cortadas por largos canais e riachos de água corrente tais como os que sempre existiram, e que podiam ser vistos em certas partes do Delta [do Nilo]; da distância a ser atravessada pelos mortos antes de alcançarem qualquer coisa do que é dito. Visto que o egípcio criou seu mundo futuro como uma contrapartida do Egito que ele conhecia e amava, então deu a ele correspondentes celestiais de todas as cidades sagradas. Ele teve que conceber a existência de um caminho de água como o Nilo, com tributários e cabeceiras, onde ele poderia navegar e executar sua jornada”. – O Livro Egípcio dos Mortos (1898), em inglês, de E. A. Wallis Budge, p. 117 (133 do PDF).

Mesmo sendo outro mundo, os egípcios e mesopotâmicos localizaram “geograficamente” o paraíso no lado leste, ou Oriente, conforme se viu no mito sumeriano de Dilmun. Até mesmo outros povos faziam isso, a exemplo dos romanos, que achavam que o paraíso, chamado por eles de “Campos Elísios”, ficava numa ilha paradísica localizada nas distantes correntes orientais (ou seja, no leste)* do rio Okeanos e que era governada pelo Rei-Titã Cronos ou [por] Radamanto. – “O Reino dos Elísios”, em inglês, Theoi Project, editado por Aaron J. Atsma.

* De acordo com a época e o referencial, os Elísios também foram retratados como estando no oeste. – Albright, pp. 16, 18, 24.

A seguir mais um exemplo sumeriano:

“Neti, o porteiro-chefe do mundo subterrâneo, perguntou a Inana: ‘Quem é você?’. ‘Eu sou Inana indo para o Oriente [ou seja, o leste]’. ‘Se você é Inana indo para o Oriente, por que viajou até a terra da qual não há retorno? Por que apontou o seu coração para a estrada onde os viajantes nunca voltam?’.”. – A Descida de Inana ao Mundo Inferior, 78-84.

Inana era a deusa sumeriana da fertilidade e moradora do “Leste”, a habitação celeste dos deuses, porém estava de passagem pelo mundo subterrâneo dos mortos.

A esta altura você talvez esteja percebendo que uma imagem está se formando, que esclarece o motivo de Moisés ter escolhido as palavras que utilizou ao escrever o capítulo 2 de Gênesis.* Quando ele se refere ao Éden e seu jardim com terminologias e referenciais terrestres, está apenas a usar um estilo de escrita próprio da literatura religiosa de sua época. Existem cenários correspondentes entre a Terra e o Éden que estão conectados entre si, de maneira semelhante ao apresentado em obras do Egito e da Mesopotâmia. E isto faz todo o sentido, afinal foi naquele mundo que Moisés nasceu, cresceu e se educou. Em geral, a Bíblia não pode ser compreendida sob a óptica de um cidadão do século 21. É preciso estar em sintonia com a mentalidade que havia nos tempos antigos.

* Alguns consideram que Moisés não foi o verdadeiro autor do capítulo 2 de Gênesis. Sobre isso, queira considerar a seção 5 (“A opinião de comentaristas bíblicos e de especialistas em textos antigos”).

Considere outros exemplos correlatos, extraídos do livro supracitado de Wallis Budge:

“Uma crença mais tardia concebeu a morada dos mortos como um longo, montanhoso e estreito vale com um rio correndo em paralelo, começando do leste, fazendo seu caminho pelo norte e então tomando uma direção circular de volta ao leste”. – pp. 118, 119 (134, 135).

O comentário acima de Budge deveu-se ao fato de que em dinastias anteriores os egípcios também conceberam o paraíso como estando no “norte”. Mesmo assim era claramente um lugar celestial com aspectos terrestres.

“Ra sai da parte oriente do céu em paz, em paz. . . Este Pepi vem da parte oriental do paraíso onde os deuses nascem”. – p. 141 (157), Textos da Pirâmide, rei Pepi.

“Tu estarás a fazer isso desde quando as tempestades se enfurecem nos lados orientais do céu quando Ra se apronta na terra da vida, para prevenir a chegada das nuvens ameaçadoras na quarta parte do oriente do céu”. – pp. 154, 155 (170, 171).

“Colocaram-me na parte oriental do paraíso onde Ra se levantou e é exaltado a cada dia; e me levanto ali e viajo adiante, e me torno um corpo espiritual (sap) semelhante a um deus, e eles me aprontam naquele caminho sagrado no qual Tot percorreu quando foi estabelecer a paz entre os dois deuses combatentes (i. e., Hórus e Set)”. – p. 131 (348), papiro de Nu.

Conforme se nota, é recorrente a menção ao “leste” (oriente), ora tendo como referencial o narrador, ora o próprio lugar dos deuses.* Mas, no Egito, o leste não era o único ponto cardeal que indicava algum lugar do domínio invisível dos deuses. Eles achavam que todas as regiões longínquas tinham alguma relação com eles, conforme indica o trecho a seguir:

“Os céus estão abertos, a terra está aberta, o Oeste está aberto, o Leste está aberto, a metade meridional [norte] do céu está aberta, a metade setentrional [sul] do céu está aberta, as portas estão abertas, e os portões estão amplamente abertos para Ra à medida que ele vem do horizonte”. – p. 208 (425), papiro de Nu.

* Note que os Textos da Pirâmide e o papiro de Nu disseram que deuses nascem vindo do “leste” do paraíso. E foi exatamente do “leste” do Éden que saíram Adão e Eva, aqueles que queriam ser “deuses”, conhecedores do bem e do mal. Coincidentemente, ao voltar do mundo dos mortos, o falecido profeta Samuel foi descrito assim: “Vejo um deus subir da terra”. – 1 Samuel 28:13.

Provavelmente essa concepção de localizar o paraíso no leste deve-se ao fato de que é ali que o sol nasce e o dia começa (o “princípio” da luz). Além de denotar que fica num lugar muito distante. Então, raciocinando-se ao contrário, o mundo inferior dos mortos para aqueles que não tinham sido julgados favoravelmente (“inferno”), ou ainda aguardavam a mudança para o paraíso, era às vezes apresentado como estando no Oeste (Ocidente), onde o sol se põe e começa a escuridão da noite para o observador. E, como se sabe, são muitos os textos antigos que descrevem a habitação dos mortos como sendo um lugar de escuridão. (Ex.: Jó 10:20-22). A seguir alguns exemplos:

“Como você está? Será que a Grande (a deusa do Ocidente [Oeste]) cuida de você de acordo com o seu desejo? Eis que eu sou a pessoa que você amava na terra. Esforce-se em meu nome e fale por meu nome. Eu não distorci qualquer pronunciamento diante de você, (mas) eu preservei o seu nome na terra. Mantenha a doença longe de meus membros. Oh, seja você glorioso (Ax) para mim (e) diante de mim para que eu possa ver no meu sonho como você está se saindo em meu nome”. – Carta aos Mortos (de Mer-irtief para Nebet-itief).

“Eis que eu estou na tua presença, ó Deus de Amentet (o Ocidente [Oeste]). Não há pecado em meu corpo. Eu não falei o que não é verdadeiro conhecimento de causa, nem fiz qualquer coisa com um coração falso. Que tu me concedas ser semelhante a esses favorecidos que estão contigo, e que eu possa ser um Osíris grandemente favorecido do bonito deus, e amado do Senhor das Duas Terras, eu que sou um verdadeiro escriba real que te ama, [eu,] Ani, cuja palavra é verdade diante do deus Osíris”. – Livro dos Mortos, papiro de Ani.

O Oeste é uma terra de sono e densas sombras, um lugar onde os habitantes uma vez instalados, cochilam em suas formas mumificadas, nunca mais acordarão para ver seus irmãos; nunca mais reconhecerão seus pais e suas mães, esqueceram em seus corações das suas esposas e filhos. A água da vida, que a terra dá a todos que nela moram, é para mim estagnada e morta; a água flui para todos os que moram na terra, enquanto que para mim é apenas um líquido putrefato, esta é a minha água. Desde quando eu vim para esse vale de mortos eu não sei onde estou nem quem eu sou. Dê-me água corrente para beber. . . Deixe-me ficar na beirada da água com meu rosto para o Norte, que a brisa me afague e meu coração seja revigorado [e afastado] de sua dor”. – History of Egypt, Chaldea, Syria, Babylonia and Assyria (1901-1906), pp. 158, 159, Vol. 1, de Angelo S. Rappoport, Gaston Maspero e outros, palavras da falecida esposa de Pasherenptah.*

* Esse texto pessimista é de um período tardio da história egípcia. Antes da época em que ele foi escrito os egípcios nutriam esperança que o tempo que passariam no lado sombrio da morada dos mortos seria temporário, apenas uma fase de transição antes de chegarem aos campos do paraíso. Os povos semitas também escreveram obras lamentando a morte em termos muito negativos e sem esperança, a exemplo do livro bíblico de Eclesiastes e do poema babilônico O Justo Sofredor (Ludlul bel nemeqi).

Para finalizar, note o que disse um exegeta cristão sobre o mundo sombrio dos mortos que não foram levados ao paraíso:

“As descrições do lugar naturalmente variam. Ele aparece logo atrás da porção escura chamada de Érebo. Em algumas passagens parece situar-se no distante Ocidente [oeste], por detrás da corrente que circunda a terra. Mas a representação usual o situa no coração da terra ou embaixo da terra (ὑπὸ κεύθεσι γαίης)”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), de S. D. F. Salmond, p. 125; compare com 1 Samuel 28:4-14.


Egípcio plantando e colhendo no Campo de Juncos, o paraíso celeste dos deuses

O testemunho de antigos textos judaicos

Se avançarmos alguns séculos, para a Palestina pré-cristã, notaremos que a concepção cosmográfica do Paraíso celestial como estando “para os lados do leste” continuava presente em obras religiosas. O Livro de Enoque, por exemplo, cuja porção mais antiga estima-se que foi escrita no século 2 a.C., porém baseada em textos ainda mais velhos, apresenta descrições que confirmam isso. Esse livro apócrifo tem como ponto de partida o relato bíblico de que Deus arrebatou Enoque para o céu, evitando assim a sua morte (Gênesis 5:24; Hebreus 11:5). O livro retrata a viagem de Enoque pelos mundos invisíveis, incluindo a morada das almas dos pecadores e também o Jardim do Éden, onde está a árvore do conhecimento do bem e do mal. Veja a seguir alguns trechos que mencionam a viagem de Enoque e o paraíso de Deus:

“Dali eu fui à direção do leste para o meio da montanha no deserto, do qual somente o nível da superfície eu percebi. . . . Então eu fui para outro lugar do deserto; em direção ao leste daquela montanha da qual eu havia me aproximado. . . . Igualmente vi outro lugar com vales de água que nunca param. . . . Em direção ao vale eu percebi o cinamomo de doce odor. Sobre eles avancei em direção ao leste. . . . E sobre esta montanha eu vi outra montanha, sobre a qual haviam árvores de Alva. . . . Depois destas coisas, inspecionando as entradas do norte acima das montanhas, vi montanhas e percebi sete montanhas repletas de puro nardo, árvores odoríferas e papiro. Dali eu passei acima dos picos daquelas montanhas a alguma distância para o leste, e fui sobre o mar da Eritréia. E quando eu havia avançado para longe, além dele, passei ao longo, acima do anjo Zateel, e cheguei ao jardim da justiça. Neste jardim eu vi outras árvores, as quais eram numerosas e grandes, e floresciam ali. Sua fragrância era agradável e poderosa e sua aparência era tanto agradável quanto elegante. A árvore do conhecimento também estava ali, da qual se alguém comesse, tornava-se dotado de grande sabedoria. Ela era semelhante às espécies da tamareira, dando frutos semelhantes à uva extremamente fina, e sua fragrância estendia-se a considerável distância. Eu exclamei: Que bela é esta árvore e quão deleitável é sua aparência! Então o santo Rafael, um anjo que estava comigo, respondeu e disse: Esta é a árvore do conhecimento, da qual vosso antigo pai e vossa mãe comeram, os quais foram antes de ti e que obtendo conhecimento, seus olhos sendo abertos, e descobrindo que estavam nus, foram expulsos do jardim”. – O Livro de Enoque 27:1; 28:1; 29:1,3; 30:1; 31:1-5 (ou 32:1-4, nesta versão em inglês).

Portanto, nota-se mais uma vez o mesmo cenário de que o paraíso do Éden não fica na Terra, embora esteja para os lados do “leste”. Tal conceito foi mantido em sua essência pelos judeus dos séculos seguintes.

O Talmude judaico também apresenta diversos textos com a mesma informação de que o Éden fica numa região celestial, talvez contígua à Terra. Essa obra é uma coletânea de debates promovidos por rabinos judeus com o intuito de esclarecer determinadas partes da Bíblia. A ideia dessa nova fonte de conhecimento começou a ser elaborada após a diáspora dos judeus causada pela destruição de Jerusalém no final século 1 d.C., porém o Talmude só começou a ser compilado a partir do início do século 3 d.C., indo até o século 6.

Há duas versões do Talmude: uma composta na Palestina e outra em Babilônia, sendo esta última a mais conhecida e a mais densa. A seguir algumas citações que foram extraídas do Talmude babilônico. O número entre parêntesis refere-se à página do PDF da edição que utilizei (Michael L. Rodkinson, 1918, Vols. 1–10):

Os colchetes que aparecem nas citações são da própria obra citada, e não meus, exceto onde eu indicar.

“A Shekiná [habitação de Deus] está no lado leste”. – Tratado Baba Batra (Último Portão), Cap. 2, p. 74 (1026), colchetes acrescentados.

“Adão foi elevado da terra para o céu, e depois de ter transgredido, o Santo, bendito seja, Ele colocou a mão sobre ele e o fez inferior”. – Tratado Hagigá (Holocausto), Cap. 2, p. 22 (1625).

“Ele criou o Jardim do Éden; Ele criou a Geena. Para todos os indivíduos pertencem duas partilhas, uma no Jardim do Éden e uma na Geena”. – Tratado Hagigá (Holocausto), Cap. 2, p. 33 (1632).

“Aconteceu que um empreiteiro, que era mau, ele morreu e foram enterrá-lo no mesmo dia de um grande homem de Israel. E todos os habitantes da cidade vieram para participar do funeral deste último, e os parentes do empreiteiro também foram encarregados de segurar o seu caixão, na mesma rua em que seguia o caixão do grande homem. De repente, porém, inimigos caíram sobre eles e todos soltaram os caixões e fugiram, com exceção de um discípulo, que se indignou em ter que deixar o caixão de seu mestre. Depois disso, quando eles retornaram, as pessoas trocaram o caixão do empreiteiro por aquele do grande homem, não obstante o discípulo gritasse dizendo que era um erro, e enterraram o empreiteiro com muita honra ao invés do grande homem; e os parentes do empreiteiro enterraram o sábio. E o discípulo ficou muito triste porque seu mestre foi enterrado em desgraça e o empreiteiro com tal honra. Finalmente seu mestre apareceu para ele em um sonho, e aconselhou-o a não chorar, dizendo: ‘Vem comigo, e eu te mostrarei a minha glória no jardim do Éden, e também o lugar daquele homem mau na Geena. E a razão pela qual fui punido [no cortejo fúnebre] foi porque eu estava presente quando um sábio caiu em desgraça e eu não protestei. E o empreiteiro preparou um banquete para o governador de seu país, e como o governador não apareceu ele doou o banquete aos pobres da cidade, e esta foi a sua recompensa’. E o discípulo perguntou: ‘Até quando este homem ficará na Geena’?” – Tratado Sanhedrin (Conselho Supremo), Cap. 6, p. 148 (1772-73), nota 135:1, colchetes acrescentados.

“Houve uma objeção ao que foi dito de que Adão, o Primeiro, não foi autorizado a comer carne, porque Judá b. Bathyra disse (Vol IX, p 7...): ‘Adão, o Primeiro, estava sentado no jardim do Éden, e os anjos o serviram com carne assada’, etc. Significa então que ele foi autorizado [a comer carne]? E a resposta foi que com carnes que vêm do céu é diferente”. – Tratado Sanhedrin (Conselho Supremo), Cap. 7, p. 175 (1792), colchetes acrescentados.

“O homem foi criado na véspera do sábado. E por quê? Os Minim [hereges] não poderão dizer que ele era um parceiro do Senhor na criação do mundo. Outra explicação é que, se um homem se torna arrogante, pode dizer-lhe: Na época da criação, mesmo uma mosca foi criada antes de vós. Ainda uma outra explicação é que seu primeiro ato deve ser meritório, em guardar o sábado, e ele também deve participar da refeição do Sábado imediatamente. Isso é semelhante a um rei humano que construiu um palácio, e uma vez concluído, preparou um banquete e após isso chamou os convidados, como se lê [em Prov. 9:1-4]:.. ‘A sabedoria já edificou a sua casa; já lavrou as suas sete colunas. Ela mandou abater seu gado, derramou o seu vinho, e também pôs em ordem a sua mesa. Já enviou as suas criadas, ela convidou (seus hóspedes) sobre o alto dos lugares mais elevados da cidade’. ‘A sabedoria já edificou a sua casa’ - é um dos assuntos divinos do Santo, bendito seja. Ele, que criou o mundo inteiro com sabedoria. ‘Sete pilares’ – ‘os sete dias da criação’. ‘Abateu seu gado’, etc. -. Isso significa os mares, os rios, e tudo o que era necessário para o mundo. ‘Ela enviou as suas criadas’ – Adão e Eva sobre o cume dos lugares mais elevados”. – Tratado Sanhedrin, Parte 2, Cap. 11, pp. 368, 369 (1928-29), Nota 1, primeiro par de colchetes acrescentado.

Pelo contexto do trecho citado, pode-se entender que a Sabedoria enviou suas criadas para convidarem Adão e Eva a estarem nos lugares mais elevados, quais hóspedes do lar divino. O texto motivador desse comentário talmúdico é o trecho abaixo de Provérbios:

“A verdadeira sabedoria construiu a sua casa; talhou as suas sete colunas. Ela organizou seu abate de carne; misturou seu vinho; ainda mais, pôs em ordem a sua mesa. Ela enviou as suas criadas, para que clamassem no cume das elevações da vila: ‘Quem for inexperiente, desvie-se para cá.’ Quem for falto de coração — ela lhe disse: ‘Vinde, alimentai-vos do meu pão e participai em beber do vinho que misturei. Deixai os inexperientes e continuai vivendo, e andai direito no caminho do entendimento’.”. – Provérbios 9:1-6.

Conforme uma tradição cristã bastante aceita, a sabedoria mencionada nessa porção do livro de Provérbios representa a pessoa de Cristo, pois o capítulo precedente associa a mesma aos eventos relacionados à própria criação do mundo, sendo que ela trabalhou ao lado de Deus qual arquiteto ou mestre-de-obras, criando tudo o que existe. Parece que os antigos judeus captaram essa ideia no texto de Provérbios, embora não chegassem a aceitar que Jesus é a Sabedoria mencionada. – Colossenses 1:15; 1 Coríntios 1:24.

“R. Jehoshua ben Levi, no entanto, disse que o mundo inteiro é regado com o resíduo remanescente resultante daquele que o jardim do Éden era regado, como está escrito [Gên. 2:10]: ‘E saía um rio do Éden para regar o jardim’; e em um Baraita aprendemos que com o resíduo de água que restou vem a quantidade necessária para regar 1 kur* de terra, então 1 tarqab de terra pode ser regado (1 tarqab = 1/6 de 1 kur). Os rabinos ensinaram: o Egito mede quatrocentos Parsah quadrados, e isso é apenas um sexto da Mesopotâmia; a Mesopotâmia é 1/60 de toda a terra; a terra é 1/60 do jardim do Éden; o jardim é 1/60 do Éden, e o Éden, por sua vez, é apenas 1/60 da Geena. Assim, conclui-se que o mundo inteiro é apenas uma tampa do pote. Outros dizem novamente que a Geena é imensurável, enquanto outros afirmam que o Éden é imensurável”. – Tratado Taanit, Cap. 1, p. 24 (2159-60).

* Kur é uma antiga medida hebraica de volume que equivale a 10 efas. Um efa era usado para medir materiais secos, a exemplo de farinha e equivale a 22 litros, o que corresponde a 432 ovos. Neste caso, 1 Kur corresponde a 4.320 ovos. Ao que parece, tais medidas não foram utilizadas aqui com o sentido usual e não devem ser entendidas pelos volumes que representam, pois o texto está tratando de terras e países, e não materiais agrícolas. Então, o sentido atribuído seria apenas o de proporção relativa entre os lugares comparados pelo rabino. De qualquer modo, essas medidas de volume também eram usadas em referência a áreas relativas a plantio. Por exemplo, 1 bet kur era a área necessária para semear 1 kur de grãos. Isso remete a uma noção espacial em termos de área dessas medidas, pois os grãos devem ser espalhados adequadamente no solo. – The Talmud: A Selection (2009), de Norman Solomon, Penguin Classics, “Volume”; Estudo Perspicaz das Escrituras (1992), Vol. 3, “Pesos e medidas”.

Conforme se nota nessa passagem do Talmude, os rabinos afirmaram que a Terra é 60 vezes menor do que o Jardim do Éden, que por sua vez é 60 vezes menor que a própria região do Éden em si. Desta maneira, não haveria a menor possibilidade do nosso planeta abrigar um lugar assim tão grande. O que demonstra a mesmíssima concepção de que o Éden não fica na Terra. Naturalmente, pela mesma explicação rabínica, nem o próprio Seol ficaria realmente aqui. E a descrição comumente feita sobre ele, de que fica “nas profundezas da terra”, seria uma mera alegoria, semelhante àquela de que o Éden fica “para os lados do leste” do nosso mundo. A seguir, mais exemplos do Talmude:

“No futuro, o Santo, bendito seja, fará uma aliança para os justos, e Ele vai sentar-se com eles no jardim do Éden, e todos eles vão apontar para Ele com seus dedos, como está escrito [em Isaías 25:9]: ‘E os homens dirão naquele dia: Eis que este é o nosso Deus, por quem temos esperado por ajuda: este é o Senhor, por quem temos esperado; teremos o maior prazer e exultaremos em sua salvação”. – Tratado Taanit (Jejum), Cap. 4, p. 93 (2213).

“Como foi Adão criado? Na primeira hora seu pó foi recolhido, na segunda sua forma foi moldada, na terceira tornou-se um corpo, na quarta seus membros se juntaram, na quinta as aberturas foram desenvolvidas, na sexta a alma foi posta nele, na sétima ele se ergueu com os pés, na oitava Eva foi unida a ele, na nona ele foi trazido para o Jardim do Éden*, na décima o mandamento foi dado a ele, na décima primeira ele pecou, na décima segunda ele foi expulso e foi embora; isto é o que está escrito [Sal. 49:21]”. – Tratado Abot, Cap. 1, p. 7 (2685).

* Percebe-se que houve um equívoco na seqüência descrita, pois, conforme já visto no capítulo 2 de Gênesis, Adão primeiro foi levado ao Jardim do Éden, só depois é que Eva foi criada. Essa confusão ocorre devido ao entendimento errado de Gênesis 1:27.

“A Geena será o lugar para os soberbos e o Jardim do Éden será para os modestos”. – Tratado Abot, Cap. V, p. 133 (2777).

“Isto é semelhante aos dizeres de R. Jehoshua ben Levi que disse: Está escrito [Salmos 84:7]: ‘Passando pelo vale de lágrimas, eles serão transformados em um manancial, e também a chuva temporã cobrirá de bênçãos’. ‘Passando’ refere-se ao homem que se rebelou contra a vontade do Santo, bendito seja Ele, ‘o vale’ refere-se ao inferno que foi feito nas profundezas, ‘choro’ significa que eles estão chorando e derramando lágrimas iguais à primavera de Sitin*, e ‘a chuva temporã cobrirá de bênçãos’ denota que os próprios pecadores bendizem ao Senhor, dizendo: ‘Criador do Universo, Tu tens julgado justamente, julgando o justo e o ímpio cheio da iniqüidade, (e bendita sejas Tu) que tens destinado o inferno para os ímpios e o paraíso para os justos’.

“Esta afirmação não contradiz os dizeres de Resh Lakish, de que o fogo do inferno não pode atingir os corpos dos pecadores em Israel, que resulta da conclusão, a fortiori, de que visto que o ouro que cobria a arca da aliança tinha apenas a espessura de um dinar de ouro, não foi tocado pela luz perpétua, embora um mandamento estivesse sendo cumprido, muito mais escapará do fogo do inferno o pecador em Israel que cumpre os mandamentos na mesma medida que a romã produz sementes (como está escrito [Cântico de Salomão 6:7]: ‘como a fatia da romã é a parte superior da tua face’, etc. E Resh Lakish disse: não leia ‘a parte superior da tua face’, mas leia ‘tuas vaidades, homens ímpios’). Não; Resh Lakish admite mesmo que os pecadores descem ao inferno; mas o nosso pai Abraão, vendo que eles são circuncidados, os resgata.

* A palavra “Sitin” se refere a “uma canal descendente que sai de Miz··ahh e vai até as profundezas do subterrâneo”. Miz··ahh é “altar” em hebraico, palavra que deriva do verbo za·váhh, que significa “abater” ou “sacrificar”. Ou seja, tem a ver com a morte. – Eruvin 19, “A entrada da Geena”, em inglês; Estudo Perspicaz das Escrituras (1990), Vol. 1, verbete “altar”, p. 95.

“R. Jeremias ben Eleazar disse novamente. ‘O inferno tem três portas: uma no deserto, uma no mar, e uma em Jerusalém’. ‘No deserto’, como está escrito [Números 16:33]: ‘E eles desceram, eles, e todos os que pertenciam a eles, vivos ao abismo (Sheol-Geena)’. ‘No mar’, como está escrito [Jonas 2:3]: ‘Na profundidade da sepultura que eu chorei, e tu ouviste a minha voz’. ‘E um em Jerusalém’, como está escrito [Isaías 21:9]: ‘Que tem um fogo em Sião, e uma fornalha em Jerusalém’. E os discípulos de R. Ishmael ensinaram que por um fogo em Sião significa a Geena, e pela fornalha em Jerusalém se entende como sendo o portão da Geena. R. Jehoshua ben Levi disse que o inferno tem sete nomes, a saber: Sheol, Abadon, Baar Shahat, Bor Sheol, Tit Hayavon, Tsalmavet e Eretz Hathahtit.

“Onde fica o portão do Paraíso? Disse Resh Lakish: ‘Se o portão do paraíso está na terra de Israel, é na cidade de Bete-Seon. Se ele estiver na Arábia é na cidade de Bete-Gerem, e se for entre os rios [ou seja, na Mesopotâmia] ele está em Damasco”. – Tratado Erubin, Cap. 2, pp. 42-44 (696-97), último par de colchetes acrescentado; a respeito do “vale de lágrimas” mencionado pelo rabino compare com o Salmo 23:2-4.

Atente que quando os rabinos discutiram a localização do paraíso, eles estavam se referindo ao Jardim do Éden, conforme observa o seguinte autor, ao comentar o trecho supracitado do Talmude:

“Com um grau notável de equanimidade, então, a literatura apocalíptica e rabínica dá atenção tanto à questão de um paraíso terrestre como também onde ele poderia estar. Então, foi atribuída a Resh Lakish, um famoso rabino do século III que trabalhou em Séforis, a visão de que o Jardim do Éden deve estar tanto na Terra Santa quanto na Transjordânia ou na Mesopotâmia. Se estiver na primeira, diz ele, sua entrada deve estar perto da área subtropical exuberante em torno de Bete-Shean (curiosamente, não em Jerusalém!); se estiver na segunda, está próximo de Jerash; e se estiver na terceira, está perto de Damasco”. – Paradise in Antiquity: Jewish and Christian Views (2010), de Markus Bockmuehl e Guy G. Stroumsa, Cambridge University Press, pp. 198, 199.

Note também que a discussão, na verdade, era sobre onde ficava a entrada para o paraíso, e não propriamente o Éden, pois, conforme apresentado antes, no entendimento rabínico o paraíso para o qual Adão foi levado está numa região maior que a Terra, onde vivem anjos, embora estivesse em outros tempos perfeitamente conectada à realidade terrena. A questão era saber onde ficava o portal místico que levaria a tal mundo superior e invisível para os humanos. Esse lugar ora era apresentado como um setor intermediário entre o céu e a Terra, ora como uma região separada no profundo Seol, que veio a ser conhecida como “seio de Abraão” e, por extensão, “seio dos justos”, conforme indica o trecho a seguir do Talmude:

“Quando isso ocorreu, e R. Simeon b. Gamaliel e R. Ismael foram condenados à morte, R. Ismael começou a chorar, mas R. Simeon disse: ‘Eu louvo a Deus por estar apenas a dois passos de ser recebido no seio dos justos no outro mundo, e você está chorando?’.”. – Ebel Rabbat (Grande Pranto) ou Semahot (Alegrias), Cap. 8, p. 32 (2322).

O testemunho de antigos textos cristãos

Quando alguém se propõe a verificar o que os cristãos dos primeiros séculos pensavam sobre determinados assuntos, normalmente o que vem à mente de imediato são os escritos dos chamados Pais da Igreja, cristãos proeminentes que, de certa forma, assumiram o lugar dos apóstolos e escreveram diversos textos sobre os mais variados temas. A questão do paraíso edênico também foi mencionada por diversos desses escritores. Confira a seguir uma série de citações que confirmam isso. Embora não sejam os únicos a tocar nesse ponto, o que está aqui transcrito é suficiente para se ter uma ideia bastante clara sobre o que tais cristãos pensavam.

1) Papias de Hierápolis (c. 69 - 155 d.C.) [amigo de Policarpo de Esmirna, um discípulo do apóstolo João]

“Assim como os presbíteros dizem, então aqueles que são considerados dignos de uma morada no céu devem ir para lá, outros irão usufruir dos prazeres do Paraíso, e outros devem possuir o esplendor da cidade [provável referência à Nova Jerusalém, de Apocalipse 3:12]; porque em todos os lugares o Salvador será visto. . . . Mas que há esta distinção entre a habitação de quem produz cem vezes, e de quem produz sessenta vezes, e de quem produz trinta vezes; para os primeiros eles serão levados para os céus, a segunda classe irá habitar no Paraíso, e a última vai habitar a cidade; e que por esse motivo o Senhor disse: ‘Na casa de meu Pai há muitas moradas’, porque todas as coisas pertencem a Deus, que fornece a todos uma morada adequada. . . . Os presbíteros, os discípulos dos apóstolos, dizem que esta é a gradação e disposição para aqueles que estão salvos, e que eles avançam através de passos desta natureza; e que, além disso, eles ascendem, pelo Espírito ao Filho, e através do Filho para o Pai”. – Fragmentos de Papias, V.

2) Teófilo de Antioquia (? - c.188 d.C.)

“O que havia no jardim nasceu com extrema beleza e formosura, pois se diz que era uma plantação plantada pelo próprio Deus. Quanto ao resto das plantas, no mundo há semelhantes. Todavia, há duas árvores, a da vida e a da ciência, que não existem em nenhuma terra, mas somente no jardim do Éden. . . . Como dissemos acima, Deus colocou o homem no jardim, para que o cultivasse e o guardasse, e mandou que ele comesse de todos os frutos, portanto também da árvore da vida, e mandou que só não experimentasse da árvore da ciência. E Deus o transportou da terra da qual fora criado para o jardim, dando-lhe ocasião de progresso, para que crescendo e chegando a ser perfeito e até declarado deus, subisse então até o céu, possuindo a imortalidade, pois o homem foi criado como ser intermédio, nem completamente mortal nem absolutamente imortal, mas capaz de uma e outra coisa, assim como seu lugar, o jardim, se considerarmos a sua beleza, é lugar intermédio entre o mundo e o céu”. – Segundo Livro de Teófilo de Antioquia a Autólico, Cap. 24.

3) Tertuliano de Cartago (c. 150 - 220 d.C.)

 “Então, novamente em Isaías, ‘comereis o bem desta terra’ [Isaías 1:19]; a expressão significa as bênçãos que aguardam a carne quando ela estiver no reino de Deus e for renovada e feita tal como os anjos, e à espera de obter as coisas que nenhum olho viu, e nenhum ouvido ouviu, e que não têm entrado no coração do homem”. – A Ressurreição da Carne.

“Pois, como nós, os poetas e filósofos armaram uma cadeira de juiz nos domínios inferiores. E se somos ameaçados com a Geena, que é um reservatório de fogo secreto debaixo da terra para fins de punição, temos da mesma maneira o escárnio amontoado sobre nós. Por isso, também, eles têm o seu Flegetonte, um rio de fogo nas regiões dos mortos. E se falamos de Paraíso, o lugar de felicidade celestial designado para receber os espíritos dos santos, separados a partir do conhecimento deste mundo por essa zona de fogo semelhante a um tipo de contenção, eles tem fé de serem empossados nas planícies dos Elísios”.*Apologia, Cap. 47.

* De acordo com a mitologia grega, Flegetonte era um dos rios que atravessavam as regiões infernais do Hades, e Campos Elísios era o nome dado ao paraíso que os gregos e romanos esperavam alcançar depois da morte.

“Quando o mundo, de fato, vier a passar, então o reino dos céus serão abertos. Será, então, que iremos dormir no alto éter, com as notoriedades do menino-amante de Platão? Ou estaremos no ar com Ário? Ou ao redor da lua com o Endimião dos estóicos? Não, mas no Paraíso, você me dirá, onde já estão os patriarcas e profetas que foram removidos do Hades na comitiva da ressurreição do Senhor. Como é, então, que a região do Paraíso, conforme revelada a João no Espírito, estava sob o altar mostrando ao lado não mais que as almas dos mártires? Como é que Perpétua, a mais heróica mártir, no dia de sua paixão viu apenas seus companheiros mártires lá, na revelação que recebeu do Paraíso, se não fosse devido à espada que guardava a entrada* e não permite a ninguém passar por ela, com exceção daqueles que morreram em Cristo e não em Adão?” – Tratado sobre a alma, Cap. 35.

 

* Conforme já visto em Gênesis, depois da expulsão de Adão e Eva, Deus guardou a entrada do paraíso com uma espada flamejante para impedi-los de retornarem para lá. Tertuliano se refere a tal cena como sendo no paraíso celeste e não em algum lugar da Terra, sendo a espada apenas um símbolo da impossibilidade das almas entrarem no céu sem a permissão de Deus.

 

“Estes céus, entretanto, eles [os valentinianos] consideram como sendo inteligentes, e às vezes o transformam em anjos, como também fazem com o próprio Demiurgo; eles também chamam o Paraíso de quarto arcanjo, porque eles o fixam acima do terceiro céu, do poder do qual Adão participou*, quando peregrinava ali no meio de suas nuvens macias e de arbustos. Ptolomeu lembrou perfeitamente as histórias de sua infância, de que as maçãs cresceram no mar e peixes na árvore; depois da mesma forma, ele assumiu que as árvores floresceram nos céus. O Demiurgo faz o seu trabalho na ignorância, e, portanto, talvez ele não tenha o conhecimento de que as árvores devem ser plantadas apenas no chão”. – Contra os Valentianos, Cap. 20.

 

* O texto não deixa claro se a referência a Adão nesse cenário era a opinião de Tertuliano, ou se ele estava apenas citando algum escrito da seita gnóstica dos Valentinianos. É mais provável que seja um aposto onde Tertuliano menciona uma informação na qual acreditava. De qualquer modo, o que vimos Tertuliano afirmar nas obras anteriores demonstra que ele concebia sim o paraíso como sendo uma região celeste. E mesmo que a menção desse Adão celestial seja uma citação do que disseram os Valentinianos a referência é igualmente útil, pois os gnósticos também se consideravam cristãos. Ou seja, o cenário de que Adão foi levado para regiões superiores após sua criação permanece, mesmo em outra vertente de pensamento.

 

“Pois mesmo que Cristo fosse o único celeste de verdade, ou melhor, um Ser supercelestial, ainda assim ele é homem, composto de corpo e alma; e em nenhum respeito Ele está separado da qualidade do que é terrestre, e é essa Sua condição que o faz participante de ambas as substâncias [a física e a celestial]. De maneira semelhante, também aqueles depois dele que forem celestiais, compreendem que ter essa qualidade celestial não advém deles, de sua natureza presente, mas de sua futura glória. . . . Assim como trouxemos a imagem do terreno, teremos também a imagem do celestial. Em verdade, trouxemos a imagem do terreno, pela nossa participação na sua transgressão, pela nossa participação em sua morte, por nossa expulsão do Paraíso.” – Sobre a Ressurreição da Carne, Cap. 49.

4) Orígenes (c. 185 - 254 d.C.)

“Penso, portanto, que todos os santos que partem desta vida permanecerão em algum lugar situado na terra que a Sagrada Escritura chama de paraíso, tal como um lugar de instrução, e, por assim dizer, uma sala de aula ou escola das almas, nas quais sejam instruídos sobre todas as coisas que tinham visto na terra, e também receberem algumas informações a respeito das coisas que se seguirão no futuro, como até mesmo aconteceu nesta vida quando obtiveram algumas indicações em graus variados sobre eventos futuros, embora através de um vidro escuro, todos os quais são revelados mais claramente e distintamente aos santos em seu devido tempo e lugar”. – Sobre os Princípios, Livro II.

5) Lactâncio (c. 240 - 320 d.C.)

 

“Ele formou o homem do barro, e o modelou conforme à Sua própria semelhança, e soprou-lhe o poder da vida, e colocou-o em um jardim que ele tinha plantado com cada tipo de árvore frutífera, e ordenou-lhe para não comer de uma árvore na qual ele havia colocado o conhecimento do bem e do mal, avisando-o o que iria acontecer, que ele então perderia a própria vida, mas que se ele observasse a ordem de Deus, ele permaneceria imortal. Então a serpente, que era um dos servos de Deus, invejando homem porque ele [o homem] foi feito imortal, seduziu-o por meio de estratagemas para transgredir o comando e a lei de Deus. E desta forma ele realmente recebeu o conhecimento do bem e do mal, mas ele perdeu a vida que Deus lhe dera que deveria durar para sempre. Portanto Ele expulsou o pecador do lugar sagrado, e o baniu para este mundo, para que procurasse o sustento pelo trabalho, para que pudesse de acordo com seus desamparos sofrer dificuldades e problemas; e Ele cercou o próprio jardim com uma cerca de fogo, para que nenhum dos homens pudesse até o dia do juízo tentar entrar secretamente naquele lugar de bem-aventurança eterna*”. – Epítome dos Institutos Divinos, Cap. 27.

 

* Se o referido lugar sagrado mencionado – o Éden – não fica em nosso mundo, é óbvio que Lactâncio fez uso de um recurso alegórico, pois nenhum homem é capaz de tentar transpor essa barreira de fogo para chegar fisicamente ao paraíso celeste. Apenas pessoas de natureza exclusivamente espiritual poderiam, em tese, fazer tal tentativa. O que demonstra o de sempre: alcançar ou não o paraíso é para os que morrem, e não para os que estão vivos na Terra. Os Pais da Igreja mantiveram esse entendimento.

6) Cipriano de Cartago (? - 258 d.C.)

“O inverno passou pelas vicissitudes dos meses; mas você, trancado na prisão, foi submetido, ao invés das inclemências do inverno, ao inverno da perseguição. Ao inverno sucedeu a suavidade da primavera, regozijando-se com rosas e coroado com flores; mas para você eram rosas de presente e flores das delícias do paraíso, e guirlandas celestes cobrindo suas sobrancelhas”. – Epístola 15.

“Finalmente, [são] todas as igrejas do mundo inteiro que estão associadas conosco no vínculo da unidade? A menos que todas estas, que estão em comunhão comigo, como você escreveu, estejam poluídas com a poluição dos meus lábios, e perderam a esperança da vida eterna pelo contágio da minha comunhão. Pupieno* sozinho, sonoro, inviolado, santo, modesto, que não iria se associar a nós, é quem morará sozinho no paraíso e no reino dos céus”. – Epístola 68.

* O destinatário dessa carta era um homem chamado Pupieno a quem Cipriano condenou e dirigiu essas palavras de ironia.

“Ele nos abre o caminho da vida; Ele nos traz de volta ao paraíso; Ele nos leva para o reino dos céus. Feitos por ele os filhos de Deus, com Ele estaremos para sempre vivos; com ele estaremos sempre a regozijar-nos, restaurados pelo seu próprio sangue. Nós, cristãos, seremos gloriosos juntamente com Cristo, abençoados de Deus, o Pai, sempre nos alegrando com os prazeres perpétuos à vista de Deus, e sempre dando graças a Deus. Pois ninguém pode ser outra coisa senão contente e agradecido, a quem, que uma vez sujeitou-se à morte, tem feito segura a possessão da imortalidade”. – Tratado nº 5 (v. 25).

“O reino de Deus, amados irmãos, está começando se apresentar; a recompensa da vida, e a alegria da salvação eterna e a felicidade perpétua e as últimas possessões perdidas do paraíso, estão agora vindo, com a passagem do mundo; as coisas celestes já estão tomando o lugar das coisas terrenas, e grandes coisas de coisas pequenas, e eternas coisas de coisas que desaparecem”. – Tratado nº 7 (v. 2).

Outra coletânea de textos antigos que podem ser úteis nesse estudo comparativo são as narrativas sobre alguns eventos bíblicos que foram escritas por cristãos entre os séculos 1 e 6 d.C. Esses escritores se valeram de informações de manuscritos mais antigos datados entre os séculos 3 e 1 a.C. Dentre tais obras estão as seguintes:

1) O Primeiro Livro de Adão e Eva

2) O Segundo Livro de Adão e Eva

3) Caverna dos Tesouros

4) Ascensão de Isaías

5) A Vida de Adão e Eva

6) O Testamento de Adão

7) Apocalipse de Moisés

Nota-se que embora sejam livros que foram escritos e copiados por cristãos ao longo dos séculos iniciais do Cristianismo, o conteúdo deles trata de assuntos relacionados ao Antigo Testamento. A razão disso foi explicada por Wallis Budge:

“De tempos em tempos durante os primeiros séculos da Era Cristã obras apócrifas tratando sobre o nosso Senhor e Seus apóstolos e discípulos apareceram, e, embora elas tenha sido escritas por cristãos, elas continham muitas lendas e tradições que seus autores tomaram emprestado de obras judaicas e cristãs mais antigas. . . . Assim, as circunstâncias do tempo fizeram que fosse necessário que os Padres da Igreja, ou alguns dos escribas instruídos, tivessem que compilar obras completas sobre a história do relacionamento de Deus com o homem, tal como descrito no Antigo Testamento, e mostrar a verdadeira relação da Religião Cristã com a Religião dos Patriarcas hebreus e dos reis de Israel e Judá. Há pouca dúvida de que muitas dessas obras foram escritas, e que os seus autores basearam suas histórias em escritos de seus predecessores, e que os escritores cristãos se serviram em grande parte do hebraico ‘Livro de Enoque’ e do ‘Livro dos Jubileus’, bem como de histórias e crônicas que existiam então em grego”. – E. A. Wallis Budge, na introdução de sua tradução do livro “A Caverna dos Tesouros”, pp. 6, 7.

Portanto, mesmo tendo sido escritos com motivação cristã, eles possuem temática judaica, pois seus autores se serviram de fontes judaicas escritas em hebraico ou grego, a fim de compor as histórias narradas. Logo, seria um erro supor que os eventos mencionados sejam fruto apenas da imaginação daqueles cristãos antigos. Os relatos podem até conter algumas lendas ou informações que não foram chanceladas pela Igreja, mas certamente tais livros eram acreditados por muitos cristãos daquele tempo. 

De uma forma ou de outra, o motivo deles estarem sendo citados aqui é apenas para demonstrar que os primeiros cristãos continuaram a ter a mesma linha de pensamento que havia em épocas mais primitivas, no que diz respeito à verdadeira natureza do Paraíso de Deus e sua localização. Leia a seguir o que as sete obras supramencionadas disseram, relacionado ao assunto aqui em pauta:

“Ao TERCEIRO DIA, Deus plantou o jardim a leste da terra, no extremo leste do mundo, além do qual, em direção ao nascente, não se acha nada além de água, que circunda o mundo inteiro, e alcança os limites do céu. . . . E Adão disse a Eva: ‘Olha para teus olhos e para os meus que dantes viam anjos no céu louvando; e eles, também, sem cessar. Mas agora nós não vemos como víamos: nossos olhos são de carne; não podem ver da mesma maneira como viam antes.’ Adão disse novamente a Eva: ‘Que é nosso corpo hoje comparado ao que era em dia passados, quando habitávamos no jardim?’. . . . Então Adão, ao ouvir a Palavra de Deus e o esvoaçar dos anjos, aos quais não via, mas apenas ouvia com seus ouvidos o seu som, ele e Eva choraram e disseram aos anjos: ‘ah Espíritos que servem a Deus, olhai para mim, e para a minha incapacidade, então eu vos via. Eu entoava louvores como vós o fazeis; e meu coração estava bem acima de vós. Mas agora, que eu desobedeci, aquela natureza luminosa abandonou-me, e eu cheguei a este miserável estado. E agora, neste estado, não posso ver-vos e vós não me servis como costumáveis. Pois eu me tomei carne animal.” – O Primeiro Livro de Adão e Eva, 1:1, 4:8-10, 55:2-4; Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia (2004), tradução de Cláudio J. A. Rodrigues, Editora Cristã Novo Século, p. 955.

“Enquanto Satã era expulso do céu, Adão era exaltado, sendo levado ao Paraíso num carro de fogo. Aos louvores dos Anjos, às glorificações dos Querubins, aos benditos dos Serafins, Adão deu entrada no Paraíso, sob júbilo e cânticos honoríficos. Quando ele chegou lá no alto, foi-lhe determinado de qual árvore não poderia comer os frutos. A sua ascensão ao Paraíso ocorreu na terceira hora de sexta-feira. Deus então infundiu-lhe um sono, e ele adormeceu. Em seguida, Deus tomou uma das suas costelas do lado do fígado, e com ela formou Eva. Quando, ao acordar, Adão viu Eva, alegrou-se grandemente com ela. Adão e Eva permaneceram por três horas no Paraíso, revestidos de glória e de esplendor. O Paraíso porém situava-se lá no alto, três pés acima das mais altas montanhas, segundo a medida do Espírito. E o profeta Moisés disse: ‘Deus plantou o Paraíso no meio do Éden, e nele colocou Adão, que Ele havia plasmado’. Mas o Éden é a santa Igreja, e a Igreja é a misericórdia de Deus, que Ele guardava preparada para estendê-la a todos os homens”. – Caverna dos Tesouros 3:3-6; Ibid., pp. 224, 225; compare com Apocalipse 2:7.

“Mas Seth e seus filhos não gostavam do trabalho terreno, mas davam-se a coisas celestes*; pois não tinham outros pensamentos a não ser louvores, doxologias e salmos a Deus. Por isso eles sempre ouviam as vozes dos anjos, louvando e glorificando a Deus, vindas de dentro do jardim ou quando eram enviados por Deus numa missão ou quando subiam ao céu. [Compare com 2 Coríntios 12:2] Pois Seth e seus filhos, em razão de sua pureza, ouviam e viam aqueles anjos. Pois o jardim não estava muito acima deles, mas apenas a cerca de quinze cúbitos espirituais. Agora, um cúbito espiritual equivale a três cúbitos humanos, ao todo quarenta e cinco cúbitos. Seth e seus filhos habitavam na montanha abaixo do jardim; não semeavam nem colhiam; não manufaturavam nenhum alimento para o corpo, nem mesmo trigo, mas tão-somente oferendas. Comiam os frutos das árvores carregadas que cresciam na montanha onde moravam”. – Segundo Livro de Adão e Eva 11:6-10; Ibid., p. 96.

* O que foi dito combina com o que Paulo disse certa vez: “Prossegui buscando as coisas de cima, onde o Cristo está sentado à direita de Deus. Mantende as vossas mentes fixas nas coisas de cima, não nas coisas sobre a terra”. – Colossenses 3:1, 2.

“E subimos [numa visão], o anjo e eu, ao firmamento, e vi Samael e seus poderes; lá estava o reino da carnificina e das obras de Satanás, da disputa e das discórdias. E lá ocorria o que ocorre na terra, pois há uma semelhança perfeita entre o mundo superior e o mundo inferior.* E eu disse ao anjo: ‘Quais são estas disputas?’ E ele me respondeu: ‘Estas disputas existem desde o início do mundo até o dia de hoje; e quanto a esta carnificina, ela só cessará no dia em que vier aquele que tu verás; a sua presença trará a calma a este mundo de dores’.”. – Ascensão de Isaías 7:9-12; Ibid., p. 153.

* Isto faz lembrar as disputas protagonizadas pelos príncipes angelicais mencionadas no livro de Daniel, e também o que Paulo disse em uma de suas cartas: “Revesti-vos da armadura completa de Deus, para que vos possais manter firmes contra as maquinações do Diabo; porque temos uma pugna, não contra sangue e carne, mas contra os governos, contra as autoridades, contra os governantes mundiais desta escuridão, contra as forças espirituais iníquas nos lugares celestiais”. – Efésios 6:11, 12.

“Assim como Miguel tinha previsto, após seis dias veio a morte de Adão. Quando Adão soube que a hora de sua morte havia chegado, ele disse a todos os seus filhos: ‘Agora eu tenho 930 anos de idade, e se eu morrer, me enterrem ao lado do grande jardim de Deus, perto de sua habitação’. E aconteceu que, quando ele terminou todas suas palavras, entregou o seu espírito. O sol, a lua e as estrelas escureceram durante sete dias. E Sete abraçou o corpo de seu pai e lamentou sobre ele. Eva pôs os olhos sobre o chão com as mãos acima da cabeça e sua cabeça colocada sobre os joelhos. Todos os seus filhos choraram lágrimas muito amargas. Então o anjo Miguel apareceu, em pé diante da cabeça de Adão, e disse a Sete: ‘Levanta-te do corpo de teu pai, e vinde comigo e vê o que o Senhor Deus preparou para ele. Ele é a sua criatura e se apieda dele’. Em seguida, todos os anjos tocando trombetas disseram: ‘Bendito és tu, Senhor, por que tiveste piedade de tua criatura’. Em seguida, Sete viu a mão do Senhor estendida, segurando Adão. Ele o entregou a Miguel, dizendo: ‘Que ele seja cuidado por ti até o dia da retribuição, em súplica até os últimos anos, quando eu transformar o pranto dele em alegria. Então ele se sentará no trono daquele que o enganou’.” – A Vida de Adão e Eva, 45-47.

Quem foi que enganou a Adão (através da mulher) e onde aconteceu isso? A resposta está no texto a seguir, já considerado na segunda seção:

“Vieste a estar no Éden, jardim de Deus. Toda pedra preciosa era a tua cobertura: rubi, topázio e jaspe; crisólito, ônix e jade; safira, turquesa e esmeralda; e era de ouro o artesanato dos teus engastes e dos teus encaixes em ti. Foram aprontados no dia em que foste criado. Tu és o querubim ungido que cobre, e eu te constituí. Vieste a estar no monte santo de Deus. No meio de pedras afogueadas andavas. Eras sem defeito nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou injustiça em ti”. – Ezequiel 28:13-15.

Que encontra reforço em outra passagem que também apresenta uma profecia reversa:

“Como caíste do céu, ó tu brilhante, filho da alva! Como foste cortado rente à terra, tu que prostravas as nações! No que se refere a ti, disseste no teu coração: ‘Subirei aos céus. Enaltecerei o meu trono acima das estrelas de Deus e assentar-me-ei no monte de reunião, nas partes mais remotas do norte. Subirei acima dos altos das nuvens; assemelhar-me-ei ao Altíssimo’.” – Isaías 14:12-14.

Sim, o enganador foi o anjo rebelde, a antiga serpente e a história toda se passou no “monte santo de Deus”, ou seja, no céu. Pela combinação dos textos supracitados, nota-se que o homem alcançará uma posição superior à dos anjos e o próprio Paulo vislumbrou essa realidade em suas cartas. – 1 Coríntios 6:3; Romanos 16:20.

Prosseguindo, leia o que disseram os demais livros apócrifos da lista sugerida:

“[E Adão, no leito de morte, disse a seu filho Sete:] Pois ele, o messias, disse para mim no paraíso, quando colhi a fruta que ocultava a morte: ‘Adão, não temas, Deus quer fazer isto, pois tu desejaste ser Deus. Eu faço você Deus. Mas não agora. Mas após um tempo de muitos anos. Eu entregarei [primeiro] o teu corpo aos vermes e à podridão, para que o comam e aos teus ossos podres’.” – O Testamento de Adão.

Conforme todo cristão sabe, Jesus Cristo vivia no céu antes de nascer qual ser humano. Portanto, o palco do evento mencionado (fictício ou não) é o céu, e não a Terra. – João 8:23, 16:28; Colossenses 3:1.

Por fim, um trecho extraído do Apocalipse de Moisés:

“Depois que abandonaram o Paraíso, Adão tomou a sua mulher Eva e dirigiu-se para o Oriente [leste]. . . . Então falou Adão [ao seus filhos, quando ficou doente]: Quando Deus nos criou, a mim e vossa mãe, por causa de quem devo sofrer a morte, Ele nos ofereceu todas as árvores do Paraíso; de uma só delas proibiu-nos comer; se dela comêssemos, haveríamos de morrer. Na hora, porém, em que os Anjos, custódios de vossa mãe, subiram ao alto para adorar o Senhor, o inimigo encontrou-a sozinha e deu-lhe de comer daquela árvore. Ele sabia que nem eu nem os santos Anjos estavam por perto. Ela deu-me de comer também a mim. Deus veio a nós, cheio de ira. O Soberano chegou ao Paraíso, colocou o seu trono no meio dele’... E Eva passou a dizer:] ‘após essas palavras, o Senhor ordenou-nos sair do Paraíso. E o vosso Pai chorou diante dos Anjos, nos limites do Paraíso. Os Anjos perguntaram-lhe: 'Que podemos fazer por ti, Adão?' Então o vosso Pai disse-lhes: 'Vede, vós me expulsais. Peço-vos apenas uma coisa: deixai-me levar comigo algumas ervas aromáticas do Paraíso, para que depois da minha saída eu possa oferecer sacrifícios a Deus, e assim ser atendido por Ele!' Então os Anjos se aproximaram de Deus e disseram: 'Jael, Rei Eterno! Dá ordem para que deixemos Adão levar consigo do Paraíso algumas espécies dolorosas!' Deus permitiu e Adão pôde levar do Paraíso especiarias odoríferas e sementes, para seu entretenimento. Os dois Anjos deixaram Adão recolher algumas espécies: açafrão, nardo, cálamo-aromático, canela e outras sementes, para sua ocupação. De posse delas, saiu do Paraíso. E nós chegamos à terra’.” – Apocalipse de Moisés, 1, 7-8, 12; Apócrifos e Pseudo-epígrafos da Bíblia (2004), tradução de Cláudio J. A. Rodrigues, Editora Cristã Novo Século, pp. 953-955, 960, 961.

5. A opinião de comentaristas bíblicos e de especialistas em textos antigos

Institute for Biblical & Scientific Studies

“Existem três formas diferentes da palavra hebraica adam ser usada em Gênesis. Adam pode significar apenas o termo genérico para a humanidade em geral, ou masculino, em particular. Em Gênesis 1:27 o termo Adam inclui ambos os sexos masculino e feminino, referindo-se a toda a humanidade. Em Gênesis capítulo dois Adam refere-se a um macho em contraste com uma fêmea. O segundo uso é um personagem histórico chamado Adão. Hess afirma que é tão somente no capítulo 4:25 que aparece significando uma pessoa histórica (Hess 1997, 31). O terceiro uso de Adam como um título é visto em antigos paralelos do Oriente Próximo, onde o sinal de lu para governante significa ‘homem’ (Hess 1990, 7). O hebraico Adam e o sumeriano Adam são semelhantes em uso. Ambos podem significar seres humanos ou a humanidade (Hess 1993, 18). A. W. Sjoberg sugere que Adão, a significando braço ou lateral, e dam significando cônjuge, deve ser um estrangeirismo cananeu na Suméria (Ibid.). A palavra hebraica [traduzida por] ‘Eva’ significa viver. O logograma sumeriano TI, significando ‘tornar vivo’, é também um homônimo para a palavra costela (Ibid., 20). Como regra geral, no hebraico, quando Adam tem um artigo definido significa homem ou humano; enquanto Adam sem artigo é um nome pessoal (Hamilton 1990, 159)”. – Genesis: Was There An Historic Adam? (2016), Institute for Biblical & Scientific Studies, Presidente: Dr. Stephen C. Meyers.

Stephen C. Meyers adquiriu o grau de doutor pelo Trinity Evangelical Seminary da Flórida, Estados Unidos, com a tese “A Data do Êxodo nos Escritos Primitivos”. Também participou dos cursos especiais chamados “Estudos Egípcios e Arqueologia Bíblica”, da Universidade da Pensilvânia.

Terje Stordalen

“Uma série de estudiosos bíblicos têm comentado sobre noções da localização do paraíso, enquanto simultaneamente desqualificam tal visão como primitiva, mítica, etc. Na verdade, alguns estudiosos duvidaram das implicações geográficas no texto bíblico. Ainda assim, a persistência da visão de que o antigo público concebia o Éden como um jardim comum no tempo e no espaço tem sido, de fato, notável. Entretanto, a tradução ‘leste’ para o hebraico דֶםקֶּמִ em Gên. 2:8 está longe de ser óbvia: a frase poderia muito bem significar ‘começo, antes, em primeiro lugar,’ conforme vertido na Vulgata (ver mais abaixo). Nesse caso, Gên. 2:9 colocaria o Éden no tempo remoto ao invés de no espaço. As fontes judaicas mais antigas que mencionam explicitamente um local para o Jardim do Éden, o relacionam, de fato, a algum outro mundo. Então, por que estudos acadêmicos europeus deveriam tão persistentemente retratar o paraíso de Gênesis como sendo um lugar terrestre e ‘realista’? Esta propensão é mais um enigma do que a interpretação do texto em si, e a presente contribuição tem como objetivo abordar a ambos. . . . e irá argumentar que esta noção moderna da ideia bíblica faz perder o ponto central da concepção bíblica. Além disso, argumenta que o público antigo identificaria qualidades utópicas nos conceitos bíblicos do Éden, e, sendo assim, não esperariam encontrar o parque original na geografia real”. – Beyond Eden - The biblical Story of Paradise (Genesis 2-3) and Its Reception History (2008), editado por Konrad Schmid e Christoph Riedweg, artigo “Céu na Terra – ou não?”, de Terje Stordalen, pp. 28, 29.

“A maioria das Bíblias diz a você que ‘O Senhor Deus plantou um jardim no Leste’ (Gên. 2:8). No entanto, a frase hebraica מִקֶּדֶם tem tanto um sentido espacial quanto de tempo. A frase םדֶ.קֶּמִ ןדֶ עֵ בְּ ן־גַּ poderia significar no primeiro / primordial Éden. A história das primeiras traduções em relação às características semânticas e sintáticas do hebraico bíblico demonstra que é mais provável uma tradução temporal do que uma geográfica. A LXX [Septuaginta Grega] verteu por κατὰ ἀνατολὰς, e assim fundou a leitura geográfica deste verso. A Vulgata, por outro lado, verteu por paradisum voluptatis a principio. Quaestiones in Genesim de Jerônimo demonstra que ele deliberadamente ficou do lado das versões gregas de Áquila, Símaco [o Ebionita] e Teodócio, ao verter por um sentido temporal neste ponto. Também é possível que ele talvez tenha sido influenciado, através de seus colegas rabínicos em Belém, pela maneira temporal vertida nos Targums Onkelos, Pseudo-Jonatã e Neofiti, bem como no Bereshit Rabá e no Talmude Pesachim. A propósito, também pode ser notado que o [manuscrito de Qumran] 4Q504, que é uma paráfrase de Gênesis e Êxodo, refere-se aos acontecimentos no Jardim do Éden como ‘maravilhas da antiguidade’ (נפלאות מקדם).” – Ibid., pp. 41, 42.

Terje Stordalen é doutor em Teologia e professor da Universidade de Oslo, Noruega. Adquiriu o grau de doutor com a tese “Ecos do Éden: Gênesis 2-3 e o Simbolismo do Jardim do Éden no Hebraico Bíblico”.

O professor Stordalen apresenta no final de seu artigo supracitado algumas imagens iconográficas de antigos cilindros produzidos na Mesopotâmia, os quais indicam que era bastante comum a crença de que os deuses eram a verdadeira origem dos rios que faziam a terra prosperar e sustentar a vida.


Cilindro Cassita, século 14 a.C., ibid. p. 55

Na ilustração acima, dois rios são representados pelo rei sumeriano Gudea segurando dois vasos que despejam na terra as águas provenientes da divindade. Um outro cilindro do período neosumeriano apresenta essa intermediação mais claramente, ao mostrar rios nas mãos do deus Enki para serem entregues a Gudea em dois vasos, depois que ele é trazido à presença de Enki pelo deus Ningišzida:


Cilindro de Gudea, c. 2100 a.C., ibid. p. 55

De acordo com Stordalen, na imagem acima o segundo conjunto de vasos entregue ao rei “parece representar a distribuição da água cósmica para o mundo dos humanos” (Ibid., p. 40; veja também Albright, pp. 29, 30). Nesse mesmo sentido, abaixo vemos um exemplo acadiano que apresenta algo similar, ao mostrar Shamash, o deus-sol, sentado no horizonte (o que lembra o nascimento do sol no lado leste do mundo). Note os peixes nos rios e as criaturas que deles dependem.


Cilindro de Adda, acadiano, 2350 - 2100 a.C., British Museum

Joseph Titus Perianayagam

“No último século e meio, um uso considerável tem sido feito da emergente antiga literatura do Oriente Próximo qual pano de fundo do AT [Antigo Testamento]. O quanto a história do Éden em Gênesis 2-3 é afetada, seus paralelos fora da Bíblia e suas fontes indiretas de inspiração, pensa-se que tudo isso pode ser encontrado em textos Sumero-acadianos, como o texto de Dilmun, o Épico de Gilgamesh e o mito de Adapa.* No entanto, continua a ser uma questão de debate se a evidência comparativa realmente empresta alguma credibilidade às narrativas, ou diz alguma coisa sobre a datação delas. Continua a haver resistência a estudos comparativos em alguns círculos críticos, normalmente entre os puristas, que insistem em dizer que o estudo comparativo é dependente de generalizações simplistas. Afirma-se que cada cultura é autônoma e única, e não devemos ousar borrar as linhas de distinção através de correlações superficiais”. – The Second Story of Creation (Gen 2:4-3:24), A Prologue to the Concept of Enneateuch? (2009), de Joseph Titus Perianayagam, p. 7.

* A similaridade desse mito com o relato de Gênesis resume-se a dois pontos: (1) Adapa foi submetido pela divindade a um teste que consistia em comer algo, (2) mas falhou na prova e perdeu a oportunidade de ser imortal. Além disso, substituindo-se a letra “p” de Adapa por “m”, resulta na palavra hebraica Adama, que significa o solo da terra, que gerou a palavra Adam para designar o homem, denotando que ele foi formado a partir dos elementos do chão terrestre. De modo que existe possibilidade do nome Adama estar ligado etimologicamente ao ugarítico Adapa, conforme sugeriu o erudito William Shea. Para saber mais sobre a lenda de Adapa, consulte o apêndice C. – Adam in Ancient Mesopotamian Traditions (1977), de William Shea, pp. 28, 38, 39.

Joseph Titus Perianayagam é autor de vários estudos bíblicos pelo Instituto Católico de Paris e obteve o grau de doutor em Teologia na Universidade de Annamalai (Índia) e na Universidade Católica de Lovaina (Bélgica). – Biografia publicada no site da Livraria Amazon.

Existe uma teoria bastante difundida de que o autor do capítulo 1 de Gênesis não é o mesmo dos capítulos 2 e 3, pois cada bloco apresenta uma história distinta da Criação. O capítulo 1 seria um texto eloísta (E), já que se refere ao Criador pelo nome “Deus”, e o capítulo seguinte um texto javista (J), pois chama a Deus de “Javé” ou “Jeová”. Além disso, acredita-se que a redação final de tais capítulos ocorreu séculos depois, sob influência de uma tradição chamada sacerdotal (P), especialmente depois da deportação dos judeus para Babilônia. Devido a isso, o professor Titus defende a tese de que os capítulos 2 e 3 de Gênesis seriam uma referência indireta a quando os judeus foram expulsos de seus país, conforme descrito no capítulo 25 do Segundo Livro dos Reis. O relato do Éden seria então um prólogo de uma composição literária chamada Eneateuco.* A terra da qual os judeus foram expulsos seria assim o “paraíso” perdido deles.

* Segundo os que defendem essa ideia, a intenção dos redatores finais da Bíblia não era formar um Pentateuco com os cinco primeiros livros bíblicos, mas sim um Eneateuco, formado por estes nove livros: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Samuel e Reis. (No cânon hebraico, Samuel e Reis não estão divididos em dois livros cada um, conforme se vê nas Bíblias modernas. E o livro de Rute não faria parte desse conjunto). – A Torah e a Obra Historiográfica Deuteronomista: As Revisões Sob a Influência Persa no Contexto Sócio-Histórico do Pós-Exílio (2010), de Daniel Martins Sotelo, p. 21, Pontifícia Universidade Católica de Goiás.

Pessoalmente eu não vejo muito fundamento nessa hipótese proposta pelo professor Titus, caso ele pretenda com ela supor que os capítulo 2 e 3 de Gênesis não se referem realmente a eventos relacionados à criação do homem. No entanto, eu não ficaria surpreso se os judeus do pós-exílio realmente tentaram recontar a história da Queda tendo como motivação a própria sorte que experimentavam em Babilônia. Isto certamente moveria a posição “geográfica” do “paraíso” para o lado oeste, rumo à Palestina.

De qualquer maneira, o motivo do excerto supracitado foi apenas para exemplificar o que estudiosos bíblicos pensam a respeito do estudo comparativo do relato de Gênesis com outras obras do Oriente Próximo. Mesmo que a tese do professor Titus estivesse correta, o importante é que o tal prólogo “escondido” teria se integrado ao relato bíblico sobre o início da humanidade com a anuência do Espírito Santo. De uma forma ou de outra, Gênesis possui uma qualidade textual bastante superior em relação às produções pagãs de seu tempo sobre a criação do mundo, conforme está demonstrado no apêndice C.

William Foxwell Albright

“Desde os triunfos românticos de Alexandre presos à imaginação dos homens, sobre os tesouros e mistérios da Ásia Central e Oriental, o Paraíso foi buscado no Oriente. O amálgama da jornada de Gilgamesh ad fontes fluminum [às nascentes de rios] com o romance de Alexandre, dando origem ao iter ad paradisum [viagem ao paraíso] de Alexandre, trouxe consigo a transferência dos Elísios para o Oriente, e as concepções geográficas foram rapidamente ajustadas para esta nova situação. Judeus, cristãos e muçulmanos, todos adotaram a teoria do Oriente como sendo um artigo não escrito do seu credo. O Nilo, que os gregos, seguindo o precedente estabelecido por Artaxerxes Oco, combinados de diversas maneiras fantasiosas com os Indus – para ambos contidos os crocodilos – se convenceram então a subir para o Extremo Oriente, e sendo identificado com o Giom, rio da Etiópia, contribuiu para estabelecer a concepção dominante do local do Éden. Esta ideia, acalentada durante a Idade Média, foi relutantemente abandonada quando viagens e explorações provaram que não havia nenhum lugar para o Éden no mapa moderno, e com o século XVI começou uma onda de especulação sobre a localização do Éden perdido que tem se mantido até o nosso próprio tempo. Alguns desses pontos de vista eram sóbrios”. – A Localização do Jardim do Éden, em inglês, de W. F. Albright, The American Journal of Semitic Languages and Literatures, Vol. 39, No. 1 (Out., 1922), The University of Chicago Press, pp. 15, 16.

“Como trataremos o nosso problema? Uma vez que a história do Éden é, evidentemente, uma lenda de composição, talvez folclórica, mas certamente embelezada pela erudição de algum escriba ou escola com concepções geográficas um tanto nebulosas, devemos seguir claramente os métodos usuais de comparação mitológica e de folclore. . . . Mesmo a aprendizagem e o método de Gunkel não têm se mostrado apto para resolver o problema, o que requer uma penetração mais profunda na cosmografia e geografia do antigo Oriente. No entanto, um passo na direção correta foi feito por Weinheimer, com a sua sugestão engenhosa que o conto bíblico é realmente a fusão de ideias egípcias com mesopotâmicas. Do ponto de vista folclorístico ele está certamente correto, como será mostrado adiante, mas ele não tentou investigar a situação geográfica, que sua teoria realmente clarifica, se ele só tinha percebido isso”. – Ibid., p. 17.

“Isso nos leva à consideração das concepções geográficas e cosmográficas egípcias subjacentes, mediante as quais, como Weinheimer percebeu, a visão bíblica é parcialmente baseada. . . . Conforme Weinheimer notou, os bíblicos rios Píson e Giom são traduções quase literais das palavras egípcias, sendo ambas designações comuns para a palavra ‘nascente’ [ou ‘fonte’] (dois Gions em Jerusalém etc.), ou seja, respectivamente, ‘impetuoso’ e ‘jorrador’.” – Ibid., p. 23.

“Nos Textos da Pirâmide descobrimos que o Faraó se refugia primeiro, depois da morte, no qbhw, ou lago de catarata, onde é purificado por Hnum e Satis, deuses de Elefantina, que também mantêm os vasos a partir do qual o Nilo jorra. Este paraíso era, naturalmente, situado no mundo subterrâneo, na parte sul, atribuída aos deuses, tal como a parte norte era na Mesopotâmia. Mais tarde essas concepções se aglutinam, e encontramos o qbhw, ou morada dos bem-aventurados, nas nascentes do Nilo, identificadas com a terra de Ementi*, os Elísios, no extremo oeste, concebido por vezes como situado no mundo subterrâneo, às vezes, ao que parece, como no lugar onde os dois mundos se encontram, o que, de acordo com as noções gregas, também ficava no ocidente remoto. Diz-se da morte de Seti I, apenas para ilustrar o sincretismo que estamos aqui a discutir, qbhnf, htpnf, hnmnf Rc imy pt: ‘Ele atingiu o refrigerium, seu pôr do sol, ele se juntou Rêc no céu’.” – Ibid., p. 24 (aqui é uma referência à jornada da alma rumo ao oeste, depois da morte).

* “Ementi”, tradução de imnty (oeste), palavra que vem do copta emnte ou amnte. – Albright, p. 24.

“Assim como no Egito a terra dos deuses (tB ntrw) era nas nascentes do Nilo, assim também em Babilônia a montanha dos deuses (Aralu ou Hursan) estava nas nascentes dos Dois Rios. Nesta mesma região, também estava localizado um maravilhoso paraíso vinícola, sobre o qual a deusa da vida e da sabedoria dominava. Com o progresso do conhecimento geográfico, como resultado das campanhas de Sargão e Naram-Sin na Armênia e na Anatólia, e a notável extensão do comércio babilônio e Assírio na Ásia Menor, durante o terceiro milênio, as velhas ideias ficaram insustentáveis. Homens inteligentes e viajados sabiam que os rios surgiam separadamente, embora a velha noção tenha persistido durante os tempos romanos, e que não havia nenhum paraíso situado nas referidas nascentes. Daí a verdadeira origem dos rios foi transferida para o oeste distante, onde se supunha que os rios corriam no subsolo, como realmente acontece no caso do rio Tigre, cujo túnel parece ser o protótipo do túnel escuro além do Monte Masius através do qual Gilgamesh marchou para chegar ao jardim de Siduri e Alexandre se esforçou para encontrar a fonte da vida”. – Ibid., p. 25.

W. F. Albright foi um arqueólogo e erudito americano, especializado em escavações nas terras bíblicas. Filho de missionários metodistas estadunidenses que viviam no estrangeiro, nasceu no Chile em 1891 e só foi para os Estados Unidos em 1903. Obteve o grau de doutor em idiomas semíticos pela Universidade Johns Hopkins, vindo a ser posteriormente professor de línguas semíticas nessa mesma universidade. Faleceu em 1971, em Baltimore, Estados Unidos. – Biografia publicada no site da Enciclopédia Britannica.

Na obra supracitada, Albright propôs que o popular conceito de vários povos de que o paraíso ficava para o leste era na verdade uma deturpação da ideia que teria havido em tempos mais primitivos, segundo a qual o paraíso ficava para o lado oposto, no oeste. Conforme já vimos, os egípcios realmente não padronizaram o paraíso como estando somente no leste. Dependendo da dinastia ou do texto escolhido, a morada dos deuses era localizada em outros pontos cardeais. Por isso não admira que algo semelhante possa ser detectado em outras fontes, inclusive em alguns apócrifos, que apresentam o paraíso em outras direções, a exemplo do sul e noroeste (ver Albright, p. 30). De qualquer modo, não importa realmente a geografia terrena apresentada para se referir à localização do paraíso. O importante é saber que em qualquer das versões propostas ele é claramente outro mundo, e o homem não pode alcançá-lo fisicamente, exceto pelo poder de Deus.

Conclusão

O estudo aqui apresentado demonstra que nem sempre a Bíblia apresenta um tema de forma linear e facilmente perceptível ao leitor. Parafraseando aquele famoso dizer de Hamlet, ‘há mais coisas no céu e na terra do que sonhamos em nossa filosofia’ e as Escrituras Sagradas refletem belamente esse pensamento. Pode-se chegar facilmente a tal conclusão quando nos damos conta da verdadeira localização do Éden.

Como consequência, determinadas crenças que achávamos estar acima de qualquer suspeita de repente precisam ser revistas. Embora já estivesse tudo lá, foi preciso retirar a venda dos olhos para entender o texto bíblico da maneira que ele realmente é, longe das conclusões simplistas do senso comum, que acometem especialmente os leitores de nosso tempo. Naturalmente, as surpresas que o Texto Divino nos reserva não estão limitadas somente a esse assunto. De maneira que, quaisquer que sejam as novidades que se nos apresentam, somos remetidos ao que o apóstolo Paulo disse certa vez:

“Ó profundidade das riquezas, e da sabedoria, e do conhecimento de Deus! Quão inescrutáveis são os seus julgamentos e além de pesquisa são os seus caminhos!” – Romanos 11:33.

Vimos que a Bíblia e a história judaico-cristã demonstram além de qualquer dúvida que o Jardim do Éden continua onde sempre esteve. De modo que, para ficar de acordo com a verdadeira realidade, a pergunta que dá título a este texto deveria ser: “Onde FICA o Jardim do Éden?”. Presente, não passado. O paraíso de Deus é Dele e não do homem, por isso não faria sentido achar que uma chuva, ainda que torrencial e de vários dias, fosse capaz de alcançá-lo e destruí-lo. As evidências bíblicas e históricas aqui apresentadas para esse “novo” entendimento são muito fortes, incontestáveis até.

É importante mencionar que as alegorias e simbolismos presentes nos capítulos iniciais de Gênesis certamente não se limitam apenas ao que foi mostrado aqui. Até mesmo pelo fator limitante da Bíblia não apresentar todas as explicações que gostaríamos. Porém ela está repleta de pistas que podem nos auxiliar. Por exemplo, a menção de uma árvore especial no meio do jardim pode ser apenas uma referência à condição de perfeição do homem em relação ao seu Criador. Essa ideia pode ser vislumbrada nos Salmos:

“E ele [o justo] há de tornar-se qual árvore plantada junto a correntes de água, que dá seu fruto na sua estação e cuja folhagem não murcha, e tudo o que ele fizer será bem sucedido”. – Salmo 1:3.

“O próprio justo brotará como a palmeira; como o cedro do Líbano, assim crescerá ele”. – Salmo 92:12.

Sendo assim, embora a visão dos antigos judeus e cristãos sobre o Paraíso certamente esteja mais próxima da verdade do aquilo que um leitor moderno geralmente supõe, pode ser que ela não seja ainda o que a realidade verdadeiramente é. Embora o Éden tenha sido concebido como uma região invisível nas proximidades da Terra, ele pode estar muito mais distante de nós. E os eventos que culminaram para a vinda da humanidade para cá devem ser mais complexos do que é possível inferir do relato bíblico.

Portanto, os que relutantemente se apegam apenas ao que é visível para entender as coisas de Deus são convidados à reflexão, a fim de se imbuírem do espírito de humildade necessário para compreender que aquilo que Deus tinha em mente para o homem desde o princípio é muito mais glorioso do que imaginavam.

Apêndice

A. O mundo segundo a concepção semítica

Se bem notarmos, o preâmbulo do relato da criação não menciona apenas os Céus e a Terra. Também faz alusão ao Abismo e das águas sobre as quais o vento (ou espírito) de Deus pairava:

“No início, quando Deus criou os céus e a terra - e a terra era sem forma ou contorno, com escuridão sobre o abismo e um vento forte pairando sobre as águas - Então disse Deus: Haja luz, e houve luz”. – Gênesis 1:1-3, The New American Bible.

Perceba que não se trata de um abismo qualquer, mas de o abismo, que denota uma vasta região de grande profundidade. Se não fosse algo relevante, estreitamente relacionado com a criação divina, Moisés não o teria mencionado. E, conforme será visto adiante, a ideia desse abismo profundo e inacessível perpassa a Bíblia inteira, pois, vez ou outra, ele é mencionado em textos bíblicos. O motivo dessa recorrente menção ficará daqui a pouco evidente. Enquanto isso, considere algumas informações a começar pelo que disse uma nota da Bíblia supracitada sobre tal lugar:

O abismo: o oceano primordial de acordo com a antiga cosmogonia semita. Depois da atividade criadora de Deus, parte deste vasto corpo forma as águas salgadas dos mares (vv 9-10.) (Sl 33: 7; Ez 31: 4), cujos poços daí por diante na terra são como nascentes e mananciais (Gn 7:11; 8:2; Pr 3:20)”. – Nota de rodapé da The New American Bible (2010).

A palavra hebraica traduzida por “abismo” é tehom. Sobre ela disse um comentarista bíblico:

“Uma raiz semítica similar, porém diferente, é personificada como sendo Tiamat nos mitos da criação sumerianos e babilônicos, apresentada como monstro do caos e a mãe dos deuses, esposa de Apsu. Ela tentou matar todos os deuses menores que saíam dela. Marduk a matou. Do seu corpo Marduk formou o céu e a terra de acordo com o Gênesis babilônico chamado de Enuma Elish. Os hebreus acreditavam que a água era o elemento inicial da criação (cf. Sl. 24:1-2; 104:6; 2 Pedro 3:5). Nunca se diz que ela tenha sido criada. No entanto, o termo hebraico [para “abismo”] é masculino, e não feminino, e não está relacionado etimologicamente a Tiamat”. – Free Bible Commentary (2014), How It All Began, de Bob Utley.

Na realidade, conforme foi dito na nota da New American Bible, essa concepção que combina água, profundidade e escuridão, em conexão com a criação do mundo, não se limitava apenas aos hebreus. Os demais semitas apresentavam um quadro semelhante a respeito. Sobre isso lemos na Enciclopédia Judaica:

“Juntamente com os babilônios, os hebreus acreditavam que, no início, antes da terra e o céu estarem separados (‘criados’ ברא), havia um oceano primordial (‘tehom’, sempre sem o artigo) e a escuridão (חשך). A partir daí a ‘palavra de Deus’ chamou a luz que se seguiu (compare com passagens tais como Sal. xviii 16; ... cont. do 7, Deus ‘brame’ [‘brada’ ou ‘censura’] [גער]). Ele dividiu as águas: as águas superiores Ele selou no céu, e na parte inferior Ele estabeleceu a terra. Em descrições mais antigas o combate contra o tehom está relatado com mais detalhes. Tehom (também Raabe) tem ajudantes, o תנין* e o Leviatã, o beemote, o ‘Naḥash Bariaḥ’. . . . Os hebreus consideravam a Terra como plana ou uma colina semelhante a um hemisfério, flutuando na água. Sobre esta fica arqueada a abóbada sólida do céu. A esta abóbada estão fixadas as luzes, as estrelas. Tão leve é ​​tal elevação que as aves podem subir a ela e voar ao longo de sua extensão”. – Enciclopédia Judaica (1906), p. 281, primeiro par de colchetes acrescentado.

* Tenin: serpente, dragão ou monstro marinho (Strong's Concordance). No hebraico moderno tenin significa crocodilo.

Deste modo, a imagem que os antigos hebreus tinham do mundo era aproximadamente a de um globo partido ao meio, flutuando sobre as águas do abismo.* O desenho abaixo mostra tal concepção:


Deus plantou o jardim a leste da terra, no extremo leste do mundo, além do qual não se acha
nada além de água, que circunda o mundo inteiro, e alcança os limites do céu

Como foi visto na seção 4, o apócrifo “O Primeiro Livro de Adão e Eva” começa com as palavras acima, que estão em perfeito acordo com essa imagem e com o conceito de que o Éden não fica na Terra.

* Por outro lado, dois textos bíblicos combinados indicam que a Terra tem forma completamente arredondada e está suspensa sobre o nada. Dizem eles: (1) “Ele [Deus] estende os céus do norte sobre o espaço vazio; suspende a terra sobre o nada” (Jó 26:7, NVI). (2) “Quem suspendeu a terra inteira com três dedos, pesou as montanhas em sua grandeza, ou colocou as colinas em uma balança? Aquele que está sentado sobre o globo da terra, onde os seus habitantes parecem gafanhotos; Ele, que desenrola os céus como uma lâmina, e os estende como uma tenda para habitar” (Isaías 40:22, Pontifício Instituto Bíblico). A palavra “globo” desse segundo texto pode também ser traduzida por “círculo”, “redondeza”, “orbe” ou “abóboda”. Devido a isto, alguns céticos que não querem crer na inspiração divina da Bíblia dizem que globo não pode ser a versão correta, embora alguns deles saibam que a palavra hebraica utilizada no versículo também significa algo esferóide e não apenas circular. Além disso, eles não se deram conta de que somente um objeto esférico pode ser visualizado como um círculo sob qualquer ângulo de observação. E quanto ao apoio invisível da Terra, se for considerada apenas a cosmogonia semítica, é difícil concluir que as águas sobre as quais a Terra flutuava sejam sinônimo de “nada”. De qualquer maneira, mesmo que os escritores dos referidos textos não concebessem a Terra como sendo uma bola flutuando no espaço, o que é bastante provável, e tivessem em mente apenas a imagem apresentada na gravura anterior, por estarem sob inspiração acabaram escolhendo palavras que se ajustam perfeitamente ao que a ciência descobriu em nosso tempo. Conforme disse certa vez o apóstolo Paulo, a Palavra de Deus é uma espada de dois gumes. E os que não têm fé nela apenas reforçam o que ele também afirmou em outro momento, de que a fé não é propriedade de todos. É um dom que algumas pessoas possuem e outras não. – Hebreus 4:12; 2 Tessalonicenses 3:2.

A região chamada Seol será comentada no próximo apêndice. Basta que se diga agora que ela, segundo a Bíblia, é o lugar para onde vão as almas dos mortos. Da mesma maneira que o Abismo, o Seol fica nas profundezas da Terra. A proximidade entre ambos e a relação deles com a morte fica claro nestas perguntas feitas por Deus a Jó: “Você já foi até às nascentes do mar, ou já passeou pelas obscuras profundezas do abismo? As portas da morte lhe foram mostradas? Você viu as portas das densas trevas?” – Jó 38:16,17, Nova Versão Internacional.

Veja na gravura anterior que a fonte dos mares é o Abismo, conforme aludido no texto. E é coerente esse abismo ser também associado com a morte, pois quando ele é mencionado pela primeira vez na Bíblia não existia nenhum ser vivo na Terra. E a imagem que os hebreus tinham do mundo dos mortos era precisamente a que é descrita a respeito do abismo, ou seja, um mundo de grande escuridão e de caos, tal como foi dito por Jó:

“Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu [morra e] vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão”. – Jó 10:20-22, ibid.

Do mesmo modo, o apóstolo Paulo associa o Abismo com a morte, ao relembrar a descida de Cristo ao mundo dos mortos e o seu subsequente retorno de lá mediante a ressurreição. Leia a seguir:

Não digas em teu coração: Quem subirá ao céu? Isto é, para fazer descer Cristo, ou: Quem descerá ao abismo? Isto é, para fazer Cristo levantar-se dentre os mortos”. – Romanos 10:6,7, Bíblia de Jerusalém.

Veja que o levantar-se de Cristo dentre os mortos foi equiparado com a saída dele das regiões abismais. O que está de acordo com aquilo que Jesus disse, de que passaria três dias e três noites no coração da Terra (Mateus 12:40). O que significa estar nas profundezas dela. Além disso, quando menciona o Abismo, Paulo não faz nenhuma observação sobre ele. Disso podemos deduzir que já era um conceito corriqueiro para seus interlocutores, que é este que está sendo aqui explicado.

Quando Jesus estava prestes a expulsar os demônios que atormentavam uma determinada pessoa, ele travou um diálogo com eles. Na conversa, os demônios temeram que Jesus os mandasse para o Abismo. Veja:

“Jesus lhe perguntou: ‘Qual é o seu nome?’ ‘Legião’, respondeu ele; porque muitos demônios haviam entrado nele. E imploravam-lhe que não os mandasse para o abismo. Uma grande manada de porcos estava pastando naquela colina. Os demônios imploraram a Jesus que lhes permitisse entrar neles, e Jesus lhes deu permissão. Saindo do homem, os demônios entraram nos porcos, e toda a manada atirou-se precipício abaixo em direção ao lago e se afogou”. – Lucas 8:30-33, Nova Versão Internacional.

Visão semelhante é apresentada nos textos bíblicos a seguir:

“Certamente, se Deus não se refreou de punir os anjos que pecaram, mas, lançando-os no Tártaro, entregou-os a covas de profunda escuridão, reservando-os para o julgamento”. – 2 Pedro 2:4.

“Vi descer do céu um anjo que trazia na mão a chave do abismo e uma grande corrente. Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o Diabo, Satanás, e o acorrentou por mil anos; lançou-o no abismo, fechou-o e pôs um selo sobre ele, para assim impedi-lo de enganar as nações até que terminassem os mil anos. Depois disso, é necessário que ele seja solto por um pouco de tempo”. – Apocalipse 20:1-3, NVI.

Por fim, há de se considerar o seguinte: é fato notório que, fisicamente falando, esse abismo concebido pelos antigos não existe, pois a Terra é uma massa esférica que flutua no espaço de acordo com as leis da gravitação universal. De maneira semelhante, o mundo dos mortos, que em hebraico é chamado de She’óhl e em grego de Haí·des, era concebido como estando nas profundezas da Terra, bem no centro dela. Mas se fosse possível ir até essa profundidade, obviamente ninguém seria encontrado lá, pois, em termos físicos, o que há no interior do planeta são basicamente materiais incandescentes com altíssima temperatura.

Portanto, os conceitos de Seol e Abismo, mencionados nos versículos supracitados, têm outro significado. Estão, na verdade, relacionados ao invisível mundo espiritual. É a outra face da mesma moeda. Tal como vimos na análise do livro de Gênesis, chega um momento que é preciso se desconectar dos aspectos físicos e enxergar a outra realidade apresentada em determinados textos da Bíblia (Hebreus 11:1). Isto nos fará vê-la com outros olhos. Com isso em mente, leia os dois textos a seguir:

1. “Para onde me irei do teu espírito? Ou para onde fugirei da tua presença? Se eu subir aos céus, lá tu estás; se eu fizer a minha cama no Cheol, eis que estás ali; se eu tomar as asas da alva, e habitar nas extremidades do mar; ainda lá me guiará a tua mão, e me susterá a tua destra. Se eu disser: Certamente as trevas me encobrirão, e a luz ao redor de mim se tornará noite; até as trevas não são demasiado escuras para ti, mas a noite resplandece como o dia....”. – Salmos 139:7-12, Sociedade Bíblica Britânica.

2. “Não foste tu que secaste o mar, as águas do grande abismo, que fizeste uma estrada nas profundezas do mar para que os redimidos pudessem atravessar?” – Isaías 51:10, Nova Versão Internacional.

Levando em consideração as informações analisadas até agora, vemos claramente no primeiro texto alguns elementos da cosmografia semítica exposta naquele desenho: (1) o céu, (2) o Seol, (3) o oceano na extremidade da Terra e (4) o abismo, representado pelas “trevas”. Sendo todos eles lugares inalcançáveis. O que reforça o que foi visto sobre o jardim do Éden, que fica no “extremo oriente”, além dos mares distantes e do próprio abismo. Esta é a visão que se tinha do paraíso ao fitar o sol que nasce no distante leste.

Já no segundo texto, o evento que pode vir imediatamente à lembrança é a travessia do Mar Vermelho pelos israelitas. Embora possa parecer a leitura correta, já vimos que os hebreus concebiam o Abismo como sendo uma região muito profunda abaixo da Terra. E tal cenário não se ajusta topologicamente ao Mar Vermelho, mesmo sendo ele uma grande porção de água salgada entre o Egito e a Arábia, pois sua profundidade média é de apenas 600 metros. Ou seja, “raso” demais para se ajustar ao que os antigos imaginavam sobre o Abismo. – Estudo Perspicaz das Escrituras (1991), Vol. 2, verbete “Mar Vermelho”, p. 781.

Mesmo que o autor de Isaías tenha pensado apenas na experiência israelita ao escolher suas palavras, muito provavelmente elas possuem também o sentido espiritual mencionado por Paulo, quando relacionou a ressurreição de Jesus com a ida ao Abismo. Como será visto no próximo apêndice, os judeus achavam que os justos que morrem são poupados das provações do Hades, pois quando chegam lá são levados para outro lugar, como se as águas do Abismo fossem abertas para eles passarem em segurança. Os que não fossem assim beneficiados teriam o mesmo destino dos habitantes da antiga cidade de Tiro, sobre os quais foi dito o seguinte:

“Assim diz o Soberano, o Senhor: Quando eu fizer de você uma cidade abandonada, como uma cidade inabitável, e quando eu a cobrir com as vastas águas do abismo, então farei você descer com os que descem à cova, para fazer companhia aos antigos. Eu a farei habitar embaixo da terra, como em ruínas antigas, com aqueles que descem à cova, e você não voltará e não retomará o seu lugar na terra dos viventes”. – Ezequiel 26:19,20, Nova Versão Internacional.

A cidade de Tiro jamais foi lançada para dentro do Abismo, ou de qualquer mar deste mundo. Ela ainda existe no atual Líbano, inclusive com as ruínas de suas antigas construções. Logo, o texto se refere aos seus primeiros habitantes que foram para o lugar destinado a todos os que morrem: o Seol ou Hades. – Compare com Mateus 11:20-24.


Cidade de Tiro (a nova e as ruínas da antiga), Líbano

B. O Hades: a morada temporária antes do retorno ao paraíso

Citando a Septuaginta Grega, que foi a primeira tradução do Velho Testamento, um escritor cristão aplicou o Salmo 16:10 à ressurreição de Jesus Cristo. O texto diz:

“Não deixarás a minha alma no Hades, nem permitirás que aquele que te é leal veja a corrupção”. – Atos 2:27.

O texto hebraico diz “não deixarás a minha alma no Seol”. Quando o autor de Atos escolheu a palavra “Hades” para traduzir a palavra hebraica “Seol”, ele sabia perfeitamente que Hades já era uma palavra utilizada na cultura greco-romana para se referir ao local subterrâneo destinado às almas dos mortos. Embora o Cristianismo tenha rejeitado completamente a mitologia grega, a crença cristã sobre a localização do mundo dos mortos era essencialmente a mesma dos gregos e de outros povos. Ou seja, todos eles achavam que o Hades ficava no profundo interior da Terra. Não sendo, portanto, uma simples sepultura.

Isso fica bastante notório em vários textos bíblicos, a exemplo daquele em que Jesus disse que quando morresse iria para o coração da Terra (Mateus 12:40), o que significa o centro ou profundezas dela. Veja a seguir outro versículo bíblico que menciona tal lugar longínquo:

“Tu, que me fizeste passar muitas e duras tribulações, restaurarás a minha vida, e das profundezas da terra* de novo me farás subir”. – Salmos 71:20, Nova Versão Internacional.

* Literalmente: “dos abismos da terra” (um·themuth earetz). – Hebrew Interlinear Bible.

Visto que o corpo de Jesus foi depositado em um sepulcro provavelmente acima do nível do solo, é óbvio que não seria o corpo dele que iria até as profundezas do Hades, mas sim sua alma, exatamente como dito na profecia (e a situação não mudaria se ele tivesse sido enterrado). Sim, embora o ser humano seja chamado em algumas passagens da Bíblia de “alma vivente” que morre, essa mesma “alma vivente” possui dentro dela uma alma invisível que continua existindo depois da morte, conforme está descrito no texto abaixo:

“O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra.... Apenas a sua própria carne, enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele, continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 22.

Em conformidade com o texto acima, algumas vezes a Bíblia chama as almas dos mortos de “sombras”:

“As sombras agitam-se embaixo (da terra), as águas e seus habitantes (estão temerosos). A região dos mortos está aberta diante dele [i.e., de Deus], os infernos não têm véu”. – Jó 26:5, 6, Centro Bíblico Católico.

A seguir, o mesmo texto em duas edições da Bíblia que trocaram a palavra “sombras” por outros termos:

Os mortos estremecem debaixo do mar e de seus habitantes; o Abismo está nu a seus olhos e sem véus o reino da Morte”. – Bíblia do Peregrino.

As almas dos mortos tremem debaixo das águas, e também as criaturas que vivem lá. O Seol está nu na presença de Deus, e o Abadon não tem nenhuma cobertura”. – God’s Word Translation.

O cenário descrito acima é aquele mesmo explicado no apêndice anterior, de que o Abismo e o Seol ficam nas profundas camadas inferiores da Terra, abaixo dos próprios oceanos. Confirmado isto, veja agora uma explicação sobre esse mundo subterrâneo que foi dada aos gregos pelo historiador judeu Flávio Josefo, que viveu no primeiro século:

“Quanto ao Hades, onde as almas dos justos e injustos ficam detidas, é necessário falar dele. Hades é um lugar no mundo não regularmente concluído: uma região subterrânea, onde a luz deste mundo não brilha. . . . Esta região considera-se como um local de custódia para as almas; em que os anjos são nomeados como guardiões para elas: que lhes distribuem castigos temporários, de acordo com o comportamento e atitudes de cada um. . . . [Os justos] também se encontram confinados no Hades agora, mas não no mesmo lugar em que os injustos estão confinados. Porque há uma só descida para esta região, em cujo portão acreditamos estar postado um arcanjo, com uma hoste: quando aqueles passam por tal portão são conduzidos para baixo pelos anjos nomeados sobre as almas, mas não seguem o mesmo caminho, pois os justos são guiados para a direita, e são conduzidos com hinos, cantados pelos anjos nomeados sobre esse lugar; até uma região de luz, em que o justo tem habitado desde o início do mundo. . . . Este é o lugar que chamamos o seio de Abraão. Mas, já para os injustos, eles são arrastados à força para a esquerda pelos anjos atribuídos para a punição: não vão por boa vontade, mas como prisioneiros guiados pela violência. A quem são enviados, os anjos nomeados sobre eles os censuram e os ameaçam com seus olhares terríveis; e os lançam ainda mais para baixo”. – Discurso de Flávio Josefo aos gregos a respeito do Hades, seções 1 a 5.

 

Um texto judaico anterior ao Talmude diz o seguinte sobre a morada de Abraão mencionada por Josefo, para onde os justos são levados depois da morte:

 

“[E o anjo disse a Abraão:] A paz esteja contigo, ó justa alma, amigo do Altíssimo, aquele que recebeu os santos anjos quais convidados, sob seu teto hospitaleiro!. . . . [E Deus disse aos anjos:] Levem o meu amigo Abraão ao Paraíso, à morada dos meus justos, as residências dos meus santos, onde não há nem trabalho, nem luto, nem pesar, mas sim paz, e alegria, e vida sem fim”. – “A Hagadá Pré-Talmúdica”, em inglês, The Jewish Quarterly Review, Vol. 7, nº 4 (Jul., 1895), pp. 589, 591.

 

Josefo também explica que a permanência no Hades é temporária, pois um dia todos sairão de lá, durante a ressurreição dos mortos:

 

“[No Hades] as almas de todos os homens estão confinadas, até uma época apropriada que Deus já determinou: quando ele fará uma ressurreição de todos os homens do mundo dos mortos. Não por promover uma transmigração das almas de um corpo para outro; mas levantando novamente aqueles mesmos corpos que vocês gregos acham que foram dissolvidos, já que não acreditam na ressurreição deles, mas aprendem a não crer nisso. . . . De modo que nós não temos acreditado precipitadamente na ressurreição do corpo. Porque embora seja dissolvido por um tempo, devido à transgressão original, ele continua a existir; e é lançado na terra, como no forno de oleiro, a fim de ser formado novamente. Não a fim de subir novamente como era antes, mas em um estado de pureza, e de uma maneira como se nunca tivesse sido destruído. E a cada corpo será restaurada sua própria alma. E quando ela tiver se vestido de seu próprio corpo,* ela não estará sujeita à miséria, mas, sendo em si pura, continuará com o seu corpo puro, e se regozijará com ele, com o qual tem andado corretamente já neste mundo, e nunca tendo sido presa em armadilhas, vai recebê-lo novamente com grande alegria. Mas já os injustos receberão seus corpos sem nenhuma mudança, não estando livres de doenças ou destemperanças, nem feitos gloriosos, mas com as mesmas doenças que tinham antes de morreram, e tal como estavam em sua incredulidade, o mesmo deve ser quando eles tiverem que ser fielmente julgados”. – Discurso de Flávio Josefo aos gregos a respeito do Hades, seção 5.

 

* Essa metáfora de comparar o corpo físico com uma roupa que a alma veste foi utilizada pelo apóstolo Paulo, quando comparou o corpo a uma tenda ou tabernáculo: “Sabemos, com efeito, que ao se desfazer a tenda que habitamos neste mundo, recebemos uma casa preparada por Deus e não por mãos humanas, uma habitação eterna no céu. E por isto suspiramos e anelamos ser sobrevestidos da nossa habitação celeste, contanto que sejamos achados vestidos e não despidos. Pois, enquanto permanecemos nesta tenda, gememos oprimidos: desejamos ser não despojados, mas revestidos com uma veste nova por cima da outra, de modo que o que há de mortal em nós seja absorvido pela vida. . . . Por isso, estamos sempre cheios de confiança. Sabemos que todo o tempo que passamos no corpo é um exílio longe do Senhor. . . . Estamos, repito, cheios de confiança, preferindo ausentar-nos deste corpo para ir habitar junto do Senhor” (2 Coríntios 5:1-4, 6, 8, CBC). O que está de acordo com o que Paulo disse em outra carta: “Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa” (Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém). Um cristão do século 2 d.C. resumiu a situação da seguinte maneira: “A alma imortal habita em uma tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus”. – Carta de Matetes a Diogneto, capítulo 6.

 

Nota-se na explicação dada que o corpo que a alma vestirá novamente é um corpo melhorado, pois isto será necessário no lugar para onde o ressuscitado irá. E que local será esse? O Jardim de Deus, o paraíso celeste do qual nossos primeiros pais foram expulsos. Diz Josefo na sequência:

 

“A terra não será então difícil de ser deixada para trás; nem será difícil descobrir o tribunal do paraíso, nem haverá qualquer medo do rugido do mar, proibindo os passageiros de caminhar sobre ele. Mesmo que venha a ser feito facilmente transitável para o justo, mesmo assim não evitarão a umidade. O céu não será então inabitável para os homens; e não será impossível descobrir a maneira de ascender para lá. A terra [para onde vão] não estará sem cultivo, nem se exigirá muito trabalho dos homens; mas trará os seus frutos de seu próprio acordo, e será assim adornada com eles. Não haverá mais gerações de animais selvagens; nem a substância do resto dos animais contribuirá mais para produzir homens: mas o número dos justos vai continuar, e nunca falhará, juntamente com anjos justos, e espíritos de Deus, e com a sua palavra: como um coro de homens e mulheres justos que jamais ficarão velhos, e continuarão em um estado incorruptível, cantando hinos a Deus, que os levará adiante para essa felicidade, por meio de uma instituição regular da vida, com quem toda a criação também irá levantar um perpétuo cântico da corrupção para a incorruptibilidade, como glorificados por um espírito maravilhoso e puro. Não irão, então, ser restringidos por um vínculo de necessidade, mas com uma liberdade viva oferecerão um hino voluntário, e louvarão a ele que os fez, juntamente com os anjos e espíritos e homens, agora libertos de toda prisão”. – Ibid., seção 6.

 

O desfecho da explicação de Josefo combina perfeitamente com algo que Jesus Cristo disse certa vez:

 

“Mas, eu vos digo que muitos virão das regiões orientais e das regiões ocidentais e se recostarão à mesa junto com Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos céus”. – Mateus 8:11.

 

Mais detalhes sobre esse assunto poderão ser vistos no artigo “O Que a Bíblia Realmente Ensina Sobre a Morte” (2016), também de minha autoria e disponível em www.adelmomedeiros.com.

C. Comparando Gênesis com dois mitos babilônicos

Que existem pontos em comum entre o relato inicial de Gênesis e algumas obras religiosas do Oriente Próximo nenhum estudioso do assunto duvida. O que foi apresentado ao longo deste trabalho atesta isso. No entanto, alguns céticos se precipitam em concluir que o relato de Gênesis é uma mera paródia de mitos pagãos. Tal conclusão está bem longe da realidade. Sobre isso, Kenneth Kitchen, um erudito britânico e professor de Egiptologia, depois que comparou o relato bíblico da criação com o livro de “Gênesis” babilônico, chamado Enuma Elish, fez o seguinte comentário:

“Os objetivos de Gênesis 1 e 2 e do assim chamado [relato da] ‘Criação Babilônico’ (Enuma Elish) são bastante distintos. Gênesis visa retratar o único Deus como criador soberano, ao passo que o objetivo principal do Enuma Elish é exaltar o deus principal do panteão de Babilônia, narrando como ele e sua cidade alcançaram a supremacia, em termos cosmológicos; ao final, os atos de criação atribuídos à divindade servem a esse propósito principal de glorificá-lo e também definir o papel do homem em relação aos deuses (quais serviçais). Além disso, nesta chamada ‘narrativa da criação’ somente por volta da sexta tratativa surgem atos criativos – todo o resto se ocupa no tema principal sobre como Marduk de Babilônia tornou-se supremo, além da lista de seus cinquenta nomes. O contraste entre o monoteísmo e a simplicidade do relato hebraico e o politeísmo e elaboração do épico mesopotâmico é óbvio para qualquer leitor. A suposição comum de que a narrativa hebraica é simplesmente uma versão extraída e simplificada da lenda babilônica (aplicada também para as histórias do dilúvio) é falaciosa por razões metodológicas. No antigo Oriente Próximo, a regra é que simples narrativas ou tradições podem dar origem (por acréscimo e embelezamento) aos relatos de lendas, mas não o contrário. No Antigo Oriente, as lendas não foram simplificadas ou transformadas em pseudo-história (historicizadas) como tem sido suposto para a parte inicial de Gênesis”. – Ancient Orient and Old Testament (1966), de K. A. Kitchen, p. 88, 89.

Sim, é exatamente esse o caso. O que gerou as lendas de Babilônia, Assíria e outras nações do Oriente Próximo foi uma memória antropológica de eventos primitivos, que foram recontados de maneiras diferentes ao longo do tempo. A história é que gera a lenda e não o contrário. O exemplo mais marcante neste respeito é o grande dilúvio que atingiu a Mesopotâmia, e deixou uma marca permanente na lembrança coletiva de vários povos, descendentes dos que sobreviveram àquele cataclismo aquático.

O que já de início chama a atenção quando comparamos Gênesis com as lendas babilônicas é que as diferenças são muito mais fortes do que as semelhanças. No entanto, os críticos que não creem na Bíblia qual Palavra de Deus focam sua atenção apenas nas similaridades e alardeiam aos quatro ventos como Gênesis seria um plágio de outros mitos. No entanto, há material suficiente para demonstrar o quão irreal e injusta é tal conclusão, informações que encheriam um livro. Não é o objetivo aqui demonstrar esse fato com profundidade, mas é conveniente apresentar com mais detalhes o que realmente os mitos mesopotâmicos contavam para os que neles criam. O que vem a seguir dará uma ideia bastante clara sobre isso. De modo que aquelas diferenças mencionadas pelo professor Kitchen são ainda mais gritantes.

Não existe uma edição padrão do Enuma Elish, pois as tabuinhas cuneiformes que já foram desenterradas apresentam algumas diferenças entre si. Tais discrepâncias se refletem nas traduções hoje disponíveis. Mas o enredo básico é mantido em todas elas. Utilizei no resumo apresentado adiante duas edições. A primeira está disponível no site The Voice, do Christian Resource Institute, que apresenta a versão traduzida por E. A. Speiser e publicada no Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament (Princeton, 1969), combinada com outras edições que podem melhorar a exatidão do texto. A segunda edição que usei é a de L. W. King, que está parcialmente traduzida para o português.

O primeiro fato notório é que o relato babilônico está dividido em 7 tabuletas, o que poderia ser encarado como uma semelhança com o capítulo 1 de Gênesis, que divide a história da criação em 7 dias. Mas, neste ponto, a coincidência se limita apenas à quantidade, pois o que cada tabuleta apresenta é muito diferente do que a Bíblia diz que ocorreu em cada dia criativo, com poucas exceções (que serão depois comentadas).

A seguir uma tradução do resumo feito pelo site The Voice para cada tábua, e logo após a menção de alguns eventos específicos narrados, que selecionei desse texto mesopotâmico:

Tabuleta 1

O palco está montado para a história. Os vários deuses representam aspectos do mundo físico. Apsu é o deus da água doce e da fertilidade, e também do sexo masculino. Tiamat, esposa de Apsu, é a deusa do caos do mar e, portanto, é ameaça. Tiamat dá a luz a Ansar e Kisar, deuses que representavam o limite entre a terra e o céu (o horizonte). Para Ansar e Kisar nasce Anu, o deus do céu, e em seguida nasce Ea. Esses ‘filhos dos deuses’ fazem tanta comoção e são tão mal-comportados que Apsu decide destruí-los. Quando Ea descobre o plano, ele mata Apsu e com sua esposa Damkina estabelece sua habitação acima de seu corpo. Damkina em seguida dá à luz a Marduk, o deus da primavera simbolizado tanto pela luz do sol quanto pelo relâmpago na tempestade e a chuva. Ele também era o deus padroeiro da cidade de Babilônia. Enquanto isso Tiamat fica furiosa com o assassinato de seu marido Apsu, e jura vingança. Ela cria onze monstros para ajudá-la a levar a cabo sua vingança. Tiamat toma um novo marido, Kingu, no lugar do falecido Apsu e o coloca no comando de seu exército recém-montado.

(1) No início, as águas foram misturadas umas com as outras. (2) Nenhum campo tinha ainda se formado (3) Nenhum dos deuses tinha sido chamado à existência, até a criação de Lahmu e Lahanu. Em seguida outros deuses foram criados: Ansar, Kisar, Anu e Nudimmud. (4) Deuses se juntam a Tiamat para a batalha, e Tiamat cria monstros terríveis para atacar seus inimigos. Em seguida exalta e leva seu esposo Kingu ao poder, para que lidere sua batalha. (5) Tiamat dá a Kingu as Tábuas do Destino, e ele recebe o poder de Anu.

Tabuleta 2

Tiamat representa as forças da desordem e do caos no mundo. No ciclo das estações, Tiamat é inverno e esterilidade. Na segunda tábua, para vingar o assassinato de seu marido, Tiamat se prepara para lançar sobre os outros deuses as forças destrutivas que ela montou. Ea descobre seu plano e tenta confrontar Tiamat. Embora a tábua esteja danificada neste ponto, está evidente que a Ea não consegue deter Tiamat. Então Anu tenta desafiá-la, mas também falha. Os deuses ficam com medo de que ninguém será capaz de parar a fúria vingativa de Tiamat.

(1) Ea procura aflito seu pai Ansar e conta sobre a ira de Tiamat contra os deuses, e sobre os deuses que se juntaram a ela, inclusive alguns dos filhos do próprio Ansar. Este lamenta o ocorrido e treme. (2) É dito que um dos deuses pisará a cabeça de Tiamat, porém há o conselho que se tente fazer primeiro a paz com ela. (3) Marduk, o deus a quem os conselhos são dirigidos pede para o “Senhor dos deuses” convocar uma assembleia, caso Tiamat seja derrotada.

Tabuleta 3 

O ministro de Ansar chamado Gaga é enviado para os outros deuses a fim de relatar as atividades de Tiamat e para lhes dizer da disposição de Marduk para enfrentá-la. Grande parte desta tábua é uma repetição poética de conversas anteriores.

(1) Marduk diz a Gaga: “Se eu, teu vingador, conquistar Tiamat e te der a vida, convoca uma assembleia, torna o meu destino proeminente e proclama-o”. (2) Gaga chega à presença dos deuses Lahmu e Lahamu e prostra-se diante deles, e relata as ações de Tiamat e menciona as armas e monstros criados por ela. (3) Lahmu e Lahamu gritam e todos os Igigi (deuses mais velhos) lamentam. Então, todos os grandes deuses vão à assembleia festiva de Ansar e decretam o destino de Marduk.

Tabuleta 4

O conselho dos deuses testa os poderes de Marduk por tê-lo que fazer uma peça de vestuário desaparecer e reaparecer. Depois de passar no teste, o conselho entroniza Marduk qual alto rei e o comissiona para lutar contra Tiamat. Com a autoridade e o poder do conselho, Marduk reúne suas armas, os quatro ventos, bem como os sete ventos da destruição. Ele cavalga em seu carro de nuvens, com as armas da tempestade para enfrentar Tiamat. Depois de aprisioná-la em uma rede, Marduk lança o vento mal para fazer Tiamat inchar. Quando ela está incapacitada pelo vento, Marduk a mata com uma flecha no coração e leva em cativeiro os outros deuses e monstros que eram seus aliados. Ele também venceu Kingu, o marido de Tiamat. Depois de esmagar a cabeça de Tiamat com uma clava, Marduk dividiu seu cadáver, usando metade para criar a Terra e a outra metade para criar o céu com cobertura para impedir que as águas caóticas escapem. A tábua termina com Marduk estabelecendo os locais de habitação dos seus aliados.

(1) Os deuses preparam para Marduk um quarto principesco e ele ouve: “Tu és principal entre os grandes deuses, o teu destino é inigualável, a tua palavra é Anu! [o pai de Marduk]. . . . Ó Marduk, tu és o nosso vingador! Damos-te a soberania sobre todo o mundo”. (2) Marduk é chamado de primogênito dos deuses, sobre os quais foi dito: “Quando os deuses, os pais dele, cumpriram a sua palavra, regozijaram-se, e prestaram-lhe homenagem, dizendo, ‘Marduk é rei!’. Entregaram-lhe o cetro, e o trono, e o anel” e uma arma invencível para matar Tiamat. (3) Quando Marduk chega para o combate, Tiamat não se rende e profere palavras contra ele. (4) Marduk diz a Tiamat: “Tu te estás tornando grande, te exaltaste a ti mesma nas alturas, e o teu coração te tem despertado chamando-te para a batalha. . . . e contra os deuses meus pais tu tens maquinado o teu plano maquiavélico”. (5) Quando Tiamat é finalmente derrotada por Marduk, o exército dela se dispersa e os deuses aliados batem em retirada, porém são capturados por Marduk. (6) Com o deus Dug-ga, Marduk derrota Kingu e toma dele as Tábuas do Destino que foram dadas a ele por Tiamat. (7) Marduk volta sua atenção para Tiamat e despedaça mais ainda o corpo dela e esmaga o seu crânio, mandando as partes para um lugar secreto. Os deuses se alegram com isso e Marduk descansa diante do corpo de Tiamat. (8) Sobre a separação das águas feita por Marduk, o relato diz: “E nas profundezas estabeleceu a morada de Nudmud, e o senhor [Marduk] mediu a estrutura do Abismo, fundou E-sara que ele criou como céu, ele fez que Anu, Bel, e Ea habitassem em seus distritos”.

Tabuleta 5

Marduk constrói lugares de habitação para os outros deuses. À medida que eles tomam o seu lugar, estabelecem os dias, meses e estações do ano. Visto que este é um mito sobre o mundo natural, as “estações” que Marduk estabelece para os deuses correspondem aos luminares celestes que figuraram na astrologia babilônica. As fases (chifres) da lua determinam os ciclos dos meses. A partir da saliva de Tiamat Marduk cria chuva para a terra. A cidade de Babilônia é estabelecida como a sala de audiências do rei Marduk.

(1) Marduk faz as estações para os grandes deuses, além das estrelas do Zodíaco. Divide o ano em doze seções. (2) Em seguida cria o deus-Lua e o deus-Sol, para dominarem, respectivamente, a noite e o dia. Determina também como será o desempenho e relacionamento entre os dois [aqui é uma referência às fases lunares, eclipses e outras situações celestes]. (3) Os deuses louvam o trabalho feito por Marduk.

Tabuleta 6

Marduk decide criar os seres humanos, mas precisa de sangue e ossos a partir dos quais possa formá-los. Ea informa que apenas um dos deuses deve morrer para fornecer os materiais para a criação, aquele que foi culpado de conspirar o mal contra os deuses. Marduk pergunta ao conjunto dos deuses sobre quem incitou a rebelião de Tiamat, e foi dito que tinha sido seu marido Kingu. Ea mata Kingu e usa seu sangue para formar a humanidade, para que eles possam executar tarefas domésticas para os deuses. Para homenagear Marduk, os deuses constroem uma casa para ele em Babilônia. Após a sua conclusão, Marduk dá uma grande festa para os deuses em sua nova casa, os quais todos eles elogiam Marduk pela sua grandeza em subjugar Tiamat. O primeiro grupo de cinqüenta nomes do trono de Marduk são recitados.

Marduk ouve a palavra dos deuses e o seu coração desperta para criar o homem, e Marduk diz a Ea: “Farei o homem. . . . que habitará a terra, para que o serviço dos deuses possa ser estabelecido e para que os seus santuários possam ser construídos. Mas eu alterarei o caminho dos deuses, e mudarei as suas veredas; juntos serão oprimidos e para o mal eles...”

Tabuleta 7

Continuação do louvor a Marduk como chefe de Babilônia e chefe do panteão babilônico por causa de seu papel na criação. O resto dos cinqüenta nomes do trono de Marduk, declarando seu domínio, são recitados. Bênçãos finais sobre Marduk e instruções para as pessoas se lembrarem e recitarem os atos de Marduk.

(fim do resumo)

Bem, se você já leu os três primeiros capítulos de Gênesis, deve ter percebido o quão diferente do relato bíblico é esse conto pagão. Mas se não leu, sugiro que pare esta leitura e faça isso agora. Assim ficará clara para você a grande diferença entre as duas narrativas, a bíblica e a babilônica.

Agora falemos das semelhanças. Ao considerar o que foi relatado no Enuma Elish, as similaridades mais evidentes são as seguintes:

1) Conforme já mencionado, são 7 tábuas, a mesma quantidade de dias criativos.

2) No princípio, antes do início da criação, as águas e o caos já existiam.

3) Quando o céu e a terra foram criados, houve uma separação entre as águas.

4) O sol, a lua e as estrelas recebem as suas funções, relacionadas às estações, à noite e ao dia.

5) Comportas seguravam as águas de cima para que não fossem despejadas sobre a terra.

6) A criação da humanidade é descrita na sexta tábua, e em Gênesis capítulo 1 acontece no sexto dia.

Como se nota, os pontos de contato com Gênesis são poucos e representam apenas uma fração de todas as informações mencionadas no Enuma Elish. E eles só existem devido ao que foi explicado anteriormente, de que houve uma história prévia e real que assumiu diversos contornos ao longo das eras, sob influência das religiões que surgiram.

Ainda há outros pontos em comum que não são tão evidentes e nem todos concordarão que eles existem:

1) Alguns etimologistas sustentam que a palavra hebraica tehon (“abismo”) e o termo ugarítico tiamat (a deusa) derivam de uma mesma raiz que significa “oceano” ou “profundezas”, características do Abismo mencionado em Gênesis 1:1, 2. Além disso, quando Marduk separou as águas, ele também criou um abismo e um mundo subterrâneo para o deus Nudmud morar.

2) No relato bíblico, a humanidade surge somente depois que o homem e a mulher são condenados à morte e expulsos do Éden para a Terra. No mito babilônico ocorre uma situação que apresenta alguma similaridade com Gênesis. Foram as mortes de um deus e uma deusa (Kingu e Tiamat) que resultaram nas condições favoráveis para a criação do homem mencionada na sexta tabuinha. Além disso, embora Kingu tenha sido responsabilizado pela revolta e do seu sangue o homem tenha sido criado, o relato deixa claro que quem realmente instigou todo o conflito foi a deusa Tiamat. Mesmo com alguma limitação, tal cenário lembra os eventos ocorridos no Éden protagonizados por Eva e Adão.

3) Da mesma maneira que Adão e Eva já existiam no Jardim de Deus antes do surgimento da humanidade na Terra, Tiamat e Kingu já existiam no mundo dos deuses. E a derrota deles fez que seus corpos fossem precipitados para baixo, gerando assim o mundo e a humanidade.

4) Por fim, embora o discurso de Gênesis não seja politeísta, nele vemos claramente a ideia de coletividade na Divindade. Além disso, a história da rebelião edênica apresenta claramente o desejo que Eva e Adão nutriram de serem iguais a Deus. Ou seja, “deuses” também fazem parte da narrativa de Gênesis.

Obviamente existem algumas imperfeições nessas similaridades. Primeiro, Tiamat foi criada antes de Kingu, e este claramente é apresentado como menor em poder e hierarquia. O inverso ocorre em Gênesis. E, diferentemente de Tiamat, Eva não teve nada a ver com a criação dos céus e da terra. Além disso, Adão e Eva foram expulsos da morada de Deus ainda vivos. Kingu e Tiamat não tiveram a mesma sorte.


As sete tábuas do mito babilônico sobre a criação (Enuma Elish), British Museum

Outro relato mesopotâmico bastante citado para fomentar o preconceito contra Gênesis é o mito de Adapa, um personagem que tem sido comparado a Adão. Conforme visto anteriormente, há possibilidade das palavras “Adão” e “Adapa” estarem ligadas etimologicamente. Leia a seguir uma tradução que apresenta a visão geral desse mito, com os trechos que lembram Gênesis destacados em negrito:

“[O deus] Ea fez a compreensão [de Adapa] maior e perfeita, para revelar os desígnios da terra. Para ele, Ea deu sabedoria, mas não a vida eterna. . . . Sem remos ou outro instrumento qualquer Adapa conduzia sua nau para o alto mar. Naquele dia, o Vento Sul soprou e mandou-o para viver na morada dos peixes. ‘Vento Sul, não importa quantos dos teus irmãos mandastes contra mim, irei quebrar tua asa!’ Adapa mal tinha acabado de proferir tais palavras, quando a asa do Vento Sul se quebrou. . . .

 

“Anu chamou seu conselheiro e vizir Ilabrat, e perguntou: ‘Por que o Vento Sul não tem soprado na terra por sete dias?’ Ilabrat, o conselheiro de Anu, respondeu: ‘Meu senhor, Adapa, o filho de Ea quebrou a asa do Vento Sul!’ Quando Anu ouviu estas palavras, ele bradou: ‘Que os céus se apiedem deste infeliz!’ O deus do Firmamento, o grande Anu, ergueu-se de seu trono: ‘Que Adapa seja convocado de imediato à minha presença!’. . . .

 

“[Ea] instruiu o jovem sacerdote: ‘Adapa, deves te apresentar ao nosso pai e rei, o grande Anu. Deves subir até os céus. . . . Quando estiveres na frente de Anu, a ti será oferecido o pão da morte, portanto nada deves comer. A ti serão oferecidas as águas da morte, portando nada deves beber; a ti serão trazidas novas roupas; estas, deves vestir. A ti, será trazido um óleo (precioso); com ele, deves te ungir. Não deves esquecer as instruções que te dou (neste momento); segue à risca todas as minhas palavras!. . . . Adapa pôs-se a caminho dos céus. . . .

 

“Quando Adapa estava se aproximando do grande Anu, mesmo à distância, Anu viu o jovem sacerdote, e ordenou em tom alto e claro: ‘Aproxime-se, Adapa! Por que quebraste a asa do Vento Sul?’ Adapa respondeu a Anu: ‘Meu senhor, eu estava pescando no meio do mar, para o templo do meu amo, o deus Ea. Mas o mar inflou-se numa tempestade e o Vento Sul soprou e me afundou! Fui forçado a fixar moradia com os peixes, e em minha fúria, amaldiçoei o Vento Sul. . . .

 

“[E Anu disse:] ‘Por que Ea revelou à triste humanidade os desígnios do céu e da terra, dando-lhes um coração atribulado? Foi ele quem fez tal ato! O que podemos fazer por ele (Adapa) agora? Tragam a Adapa o pão da vida eterna para ele comer!’ Eles trouxeram a Adapa o pão da vida eterna, mas Adapa nada comeu. Eles trouxeram a Adapa as águas da vida eterna, mas Adapa nada bebeu. Eles trouxeram a Adapa vestimentas novas; estas, ele as vestiu. Eles trouxeram óleo; com este, Adapa se ungiu. Anu tudo observou e rindo-se, voltou-se para Adapa: ‘Ora, Adapa, por que não comeste? Por que não bebeste?’ Não querias ser imortal? (Dizer adeus) aos infelizes? ‘Mas Ea, meu senhor, me disse: ‘Não deves comer! Não deves beber!’ (Anu então ordenou:) ‘Adapa, desça e volte para tua terra’.”

 

O relato completo está em Cuneiform Parallels to the Old Testament (1912), de R.W. Rogers.

Não é difícil identificar as semelhanças desse relato com Gênesis:

1) Logo de início, é dito que Ea deu sabedoria a Adapa, mas não deu a vida eterna.* Isto faz lembrar a situação do homem em Gênesis, que recebeu o conhecimento do bem e do mal, tornando-se semelhante a Deus, porém não recebeu a vida eterna junto.

* Os defensores do aniquilacionismo materialista costumam enxergar em declarações desse tipo uma evidência de que não existe nada mais do que a vida humana, e que a morte implica na inexistência da pessoa. No entanto, sabe-se que os povos semíticos, dentre eles os hebreus e babilônios, acreditavam que depois da morte as almas (“sombras”) descem para o mundo subterrâneo e lá continuam em existência, conscientes de si. Mas nem por isso eles deixavam de dizer coisas do tipo: “Adapa tinha sabedoria, mas não tinha vida eterna”. Declarações assim se referiam à vida humana na Terra, e não à existência espiritual da alma no Seol.

2) Vemos que Adapa saiu da terra para o céu e lá chegando se viu numa situação relacionada a comer algo provido pelo deus do céu, Anu. A decisão que Adapa tomou fez que ele perdesse a oportunidade de viver para sempre, o que resultou no seu retorno à Terra. Algo semelhante aconteceu com Adão, que foi levado da Terra para o Éden e quando resolveu comer o fruto proibido perdeu a vida eterna e foi enviado de volta para seu lugar de origem. Neste ponto há uma diferença em relação ao mito de Adapa, pois este perdeu a imortalidade por não comer o que lhe foi oferecido, já Adão porque comeu do que não devia ter comido, muito embora no Éden houvesse a árvore da vida cujo fruto quando consumido proporcionaria vida eterna.

3) No relato bíblico, Adão foi enganado pela serpente (através de Eva) e por isso comeu do fruto proibido. Adapa, por sua vez, também foi enganado, pois só não comeu o pão da vida eterna porque Ea havia dito que era o pão da morte que lhe seria oferecido. De modo que Ea foi responsável não somente por proporcionar um conhecimento diferenciado (sabedoria) a Adapa, mas também por privar-lhe da vida eterna, conforme informado já no início da narrativa. E, por extensão, deu à humanidade um “coração atribulado”.

Portanto, embora seja possível identificar correspondências entre algumas obras do Oriente Próximo e Gênesis, o teor delas demonstra que o livro bíblico não se baseou em tais lendas. As poucas similaridades indicam apenas eventos ancestrais em comum recontados à maneira de cada povo.

D. Um pseudo-apócrifo moderno: a criação do Universo (o livro de Melquisedeque)

Existe um texto divulgado por diversos sites brasileiros que supostamente seria um pseudo-epígrafo de Gênesis que foi encontrado nas cavernas do Mar Morto, chamado “O Livro de Melquisedeque”. Muitas pessoas ficaram entusiasmadas quando se depararam com esse texto, e passaram a divulgá-lo de maneira entusiástica, inclusive em vídeos, além de páginas apologéticas o apresentarem como sendo um dos apócrifos que já foram descobertos. Leia a seguir dois trechos desse livro:

Antes que existisse uma estrela a brilhar, antes que houvesse anjos a cantar, já havia um céu, o lar do Eterno, o único Deus. Perfeito em sabedoria, amor e glória, viveu o Eterno uma eternidade, antes de concretizar o Seu lindo sonho, na criação do Universo. Os incontáveis seres que compõem a criação foram, todos, idealizados com muito carinho. Desde o íntimo átomo às gigantescas galáxias, tudo mereceu Sua suprema atenção.

Movendo-Se com majestade, iniciou Sua obra de criação. Suas mãos moldaram primeiramente um mundo de luz, e sobre ele uma montanha fulgurante sobre a qual estaria para sempre firmado o trono do Universo. Ao monte sagrado Deus denominou: Sião. Da base do trono, o Eterno fez jorrar um rio cristalino, para representar a vida que d'Ele fluiria para todas as criaturas. Como sala do trono, criou um lindo paraíso que se estendia por centenas de quilômetros ao redor do monte Sião. Ao paraíso denominou: Éden.

Ao sul do paraíso, em ambas as margens do rio da vida, foram edificadas numerosas mansões adornadas de pedras preciosas, que se destinavam aos anjos, os ministros do reino da luz. Circundando o Éden e as mansões angelicais, construiu Deus uma muralha de jaspe luzente, ao longo da qual podiam ser vistos grandes portais de pérolas.

. . .

Junto à fonte do rio da vida, o Eterno curvou-Se solenemente e, com os elementos naturais da Terra, começou a moldar, com muito carinho, uma criatura especial. Depois de alguns instantes, estava estendido diante do Criador o corpo, ainda sem vida, do primeiro homem. O Eterno contemplou-o e, após acariciar-lhe a face fria e descorada, soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida e o homem começou a viver.

Como que despertando de um sono, o homem abriu os olhos e contemplou a face meiga de Seu Criador que, sorrindo, beijou-lhe a face agora corada e cheia de vida. Emocionou-se ao ouvir o Eterno dizer-lhe com voz suave e cheia de afeição: “Meu filho, meu querido filho!”

Por ter nascido do solo, o primeiro homem recebeu o nome de Adão.

O livro inteiro tem uma linguagem cativante e supre diversas lacunas de Gênesis, apresentando com detalhes quais foram os eventos celestiais que culminaram no pecado original e a consequente expulsão do primeiro casal do Éden. Seria realmente extraordinário um texto com tal conteúdo ter sido encontrado em Qumran e em perfeito estado. No entanto, as pessoas que deram crédito a esse “apócrifo” cometeram um grande engano, pois ele foi escrito nos anos 80 e de antigo não tem nada, exceto o enredo.

Nem é preciso muito esforço para perceber isso. O livro já se entrega logo no início, ao mencionar os átomos e galáxias, conceitos que não existiam na época de Cristo, exceto uma ideia embrionária sobre o átomo inventada pelos gregos. E, de acordo com outra versão que circula na Internet (sim, o livro já aparece com interpolações...), ao explicar o livre arbítrio, ele diz que Deus não quer criaturas que ‘o obedeçam como meros robôs’. Se as pessoas não falavam de átomos e galáxias na Antiguidade o que dirá de robôs!

Sendo assim, de onde afinal esse texto surgiu? Quem é o seu autor?

O nome dele é Diógenes de Oliveira Lopes, que também é músico. Segundo determinado escritor, Diógenes é formado em Teologia e o livro é um romance, estando registrado como tal na Biblioteca Nacional, sob o nº 199.553, do ano 2000 (mas o autor revelou que o texto já estava pronto uns 20 anos antes). De acordo com essa mesma fonte, Diógenes não pretendia com seu livro forjar um apócrifo. No entanto, visto que no seu romance o “livro de Melquisedeque” é apresentado como um dos achados do Mar Morto, as pessoas quando o viram na Internet saíram inadvertidamente alardeando a descoberta. E assim surgiu uma “antiga obra judaica” que nenhum especialista do mundo tomou conhecimento... – A História do Universo Comentada (2015), de Valdemir Mota de Menezes.

A propósito, nas cavernas do Mar Morto realmente foi encontrado, em estado fragmentado, um manuscrito chamado de “Mesquisedeque”, hoje catalogado como o 11Q13 ou 11QMelch, porém ele não apresenta os eventos criativos de Gênesis, embora mencione a revolta de Belial e seus espíritos contra os mandamentos de Deus, aspecto amplamente abordado por Diógenes em seu livro. Entretanto, na biblioteca gnóstica de Nag Hammadi existe um apócrifo escrito em copta chamado “Melquisedeque” que menciona personagens do Éden. Mas é um texto bem curto, que não possui nenhum ponto de contato aparente com o livro de Diógenes. Inclusive o manuscrito está bastante danificado (alguns supõem que ele tem mais de 1.500 anos). Por fim, existem também na coleção do Mar Morto alguns textos e fragmentos pseudo-epígrafos de Gênesis, catalogados como 1Q20, mas que não mencionam o relato da Criação. Eles abordam apenas histórias relacionadas a Lameque, Noé, Abraão e outros.

Para concluir, gostaria de ressaltar que, uma vez esclarecido o mal-entendido, ninguém perderá nada se decidir ler o livro “Melquisedeque”, escrito pelo referido escritor brasileiro. Pelo contrário, poderá ser uma leitura gratificante. O autor demonstrou habilidade ao deixar sua narrativa em consonância com o que se sabe dos acontecimentos no Éden, conforme narrados na Bíblia e mencionados em vários apócrifos. Ele conseguiu imaginar uma história que faz sentido e combina com o que já sabemos. Caso queira lê-la basta acessar o link que sugiro a seguir. Existem outros com versões um pouco diferentes, talvez editadas por leitores que quiseram dar uma “melhorada” no texto.

https://sites.google.com/site/tovshau/livros-apocrifos-e-patristicos/a-historia-do-universo

E se você conhece alguma pessoa que achou mesmo que esse livro era um apócrifo genuíno, incentivo que esclareça para ela o que realmente aconteceu. Aliás, quem fez o site acima também precisa saber disso.

 

Adelmo Medeiros

Fortaleza, 15 de agosto de 2016

Revisado e corrigido. Republicado em 25/02/20.

 

Créditos das imagens utilizadas

1. Folha de papiro na cártula com a comparação dos capítulos 1 e 2 de Gênesis

2. Mapa do Oriente Próximo

3. Rosa dos ventos que aparece no mapa

4. Jardim do Éden no retângulo que há no mapa

5. Egípcio plantando e colhendo no Campo de Juncos (papiro de Ani):

Museus Britânico Nº 10.470, folha 35, reproduzido em “O Livro dos Mortos” (1898), de E. A. Wallis Budge.

6. Cilindro cassita com o rei Gudea segurando dois vasos que representam rios

7. Cilindro de Gudea, onde Enki está prestes a entregar os dois vasos ao rei

8. Cilindro de Adda com o deus Shamash e dois rios vivificantes

9. Imagem da terra segundo a concepção semítica (adaptado)

10. Ruínas da cidade de Tiro, Líbano

11. As sete tábuas do mito babilônico Enuma Elish

 

voltar para página principal