AS ARMADILHAS DA IMORTALIDADE DA ALMA E DA LITERATURA DOS PROBLEMAS
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Pois sempre somos mais ou menos influenciados pelo conceito grego, platônico, de que o corpo morre, mas a alma é imortal. Tal ideia é totalmente contrária à consciência israelita, e não se encontra em parte alguma no Antigo Testamento. . . Os mortos estão inconscientes, não realizam mais trabalho, não cuidam de nada, não possuem qualquer conhecimento ou sabedoria, nem têm mais parte em nada que se faz debaixo do sol (Eclesiastes 9:5, 6, 10).

Enciclopédia Bíblica Padrão Internacional (em inglês)

 

De acordo com a crença chamada de “imortalidade condicional” ou “aniquilacionismo”, os que são completamente maus e impenitentes serão erradicados da existência, quer seja na morte ou depois do Juízo Final. E mais recentemente alguns religiosos influenciados por ideias do materialismo científico e do conceito filosófico chamado “monismo” passaram a dizer que o homem é um ser integrado e indivisível formado por corpo e alma, e a morte resulta no fim de ambos. Quando o corpo morre, a alma também morre. Este seria um dos motivos da pessoa ser chamada de “alma vivente” no Antigo Testamento. Para muitos que defendem esse ponto de vista, isso significa a inexistência completa da pessoa que morreu e a única esperança que resta é Deus recriá-la no futuro. É o que poderíamos chamar de aniquilacionismo materialista.

Em apoio a tais ensinos, é comum seus defensores citarem trechos de obras teológicas que supostamente corroboram o que eles acreditam. Religiões a exemplo das “Testemunhas de Jeová” têm esse costume. Os dois trechos acima da International Standard Bible Encyclopedia (ISBE) são exemplos desse uso. Para quem não está familiarizado com essa obra há realmente a nítida impressão que seus autores estão sustentando os referidos conceitos. Mas será que essa foi de fato a intenção deles? Além disso, textos como os de Eclesiastes, que também são lembrados com frequência pelos “mortalistas”, servem ao mesmo propósito? As respostas a estas questões serão dadas a partir de agora.

(Negritos, sublinhados e colchetes foram acrescentados toda vez que aparecem em citações).

A IMORTALIDADE DA ALMA

Obviamente, não está em discussão aqui a realidade da morte física, pois o homem é indubitavelmente mortal. No entanto, há uma relativização natural dessa realidade porque os cristãos desde o primeiro século sustentam que o homem possui uma alma imaterial que sobrevive à morte do corpo (Mateus 10:28; Apocalipse 20:4). Mas será que essa sobrevivência pode ser chamada de “imortalidade da alma”? É sobre isso que a ISBE deu algumas explicações (vol. 3, pp. 1459, 1460), a começar por essa abaixo:

“Em quase nenhum assunto é mais necessário ter cuidado na definição de termos e clara distinção de ideias, especialmente onde a doutrina bíblica está em discussão, do que neste da ‘imortalidade’. Por ‘imortalidade’ é frequentemente entendido simplesmente a sobrevivência da alma, ou da parte espiritual do homem, após a morte do corpo. É a afirmação do fato de que a morte não acaba com tudo. A alma sobrevive. Isso é comumente o que se quer dizer quando falamos de ‘uma vida futura’, ‘um estado futuro’, ‘a outra vida’ ”.

Então, pelo que foi explicado, descarta-se a ideia de que ao se referir à vida do cristão depois da morte a enciclopédia esteja defendendo um período de inexistência ou inatividade entre a morte e o julgamento que ocorrerá em um futuro indeterminado. A enciclopédia prossegue:

“No entanto, sem esquecer o fato de que muitos povos não têm uma concepção clara de uma ‘alma’ imaterial no sentido moderno (os egípcios, por exemplo, distinguiam várias partes, o Ka, o Ba, etc. que sobreviviam à morte; e frequentemente a sobrevivência do ‘eu’ era simplesmente uma semelhança fantasmagórica do eu terreno, nutrido com comida, oferendas, etc.), há a consideração mais séria de que o estado no qual a parte sobrevivente deve entrar na morte é tudo menos um estado que pode ser descrito como ‘vida’, ou digno o suficiente para ser merecedor do nome ‘imortalidade’. É um estado peculiar à ‘morte’ (veja Morte), na maioria dos casos, sombrio, inerte, débil, dependente, sem alegria; um estado a ser temido e indesejado, não um para ser esperado”.

Conforme será visto melhor depois, até mesmo os hebreus, que foram os primeiros escritores da Bíblia, acreditavam em um mundo invisível e inacessível (chamado Seol) habitado pelos que morreram, porém em formas fantasmagóricas chamadas de “sombras”, que são o que chamaríamos hoje de “almas” ou “espíritos”. A obra continua:

“Se, por outro lado, como ocorria na esperança da imortalidade entre os pagãos mais nobres, alguns consideram que é um estado de felicidade – com a interferência do corpo sendo afastada – isso produz a ideia que influenciou em grande medida nosso pensamento moderno, que é a de uma ‘imortalidade da alma’, de uma imperecibilidade da parte espiritual, às vezes entendida como algo que se estende tanto para frente quanto para trás [no tempo]; uma indestrutibilidade inerente”.

A “interferência do corpo” mencionada na enciclopédia refere-se a um conceito que os antigos filósofos gregos da escola de Platão tinham, segundo o qual o corpo é algo completamente mau e a alma deseja ardentemente livrar-se dele para ascender às esferas superiores. Além disso, ela seria eterna no pleno sentido da palavra. Não teve começo, nem terá fim. Para mais detalhes sobre isso, recomenda-se a leitura do artigo “A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?”. Sobre essa visão grega e outras daquele tempo, a ISBE afirma o seguinte:

“Mas, como será visto adiante, a visão da Bíblia é diferente de tudo isso. A alma, de fato, sobrevive ao corpo; mas esse estado desencarnado nunca é visto como uma ‘vida’ completa. Para a Bíblia, ‘imortalidade’ não é meramente a sobrevivência da alma, a passagem para o ‘Seol’ ou ‘Hades’. Isto não é, em si mesmo, considerado ‘vida’ ou felicidade. A ‘imortalidade’ que a Bíblia contempla é uma imortalidade da pessoa inteira - corpo e alma juntos. Implica, portanto, libertação do estado de morte. Não é simplesmente uma condição de existência futura [imediatamente depois da morte], por mais prolongada que ela seja, mas um estado de bem-aventurança, devido à redenção e à posse da ‘vida eterna’ na alma; inclui a ressurreição e a vida aperfeiçoada em ambos, na alma e no corpo. O assunto deve agora ser considerado mais particularmente em seus diferentes aspectos. De algum modo, a crença na sobrevivência do espírito ou do ‘eu’ depois da morte é um fenômeno praticamente universal. . . [Daí, o autor do verbete explica as possíveis razões para a universalidade dessa crença]

”No entanto, mesmo isto, enquanto presunção instintiva, dificilmente pode ser classificado como prova da sobrevivência após a morte, e não produz uma ideia de ‘imortalidade’ digna em qualquer sentido. É no máximo, como já foi dito, uma duplicação fantasmagórica da vida terrena até então alcançada. Os argumentos mais filosóficos que são apresentados para a imortalidade da alma (ou sobrevivência) não são todos de semelhante peso [imortalidade da “alma espiritual”, conforme subtítulo do verbete onde esta afirmação está]”.

Sendo assim, a obra nos informa que a alma permanecer viva depois da morte do corpo (Mateus 10:28) não significa que ela é imortal e já usufrui aquilo que Deus tem reservado para as pessoas fiéis. Além do mais, ela não é indestrutível e só permanece viva porque assim Deus determina, conforme a ISBE esclarece na sequência:

“Foi sugerido que um dos usos que os gregos faziam do argumento metafísico era provar a indestrutibilidade da alma - sua imortalidade no sentido de não ter tido começo nem fim. Esta não é a doutrina cristã. A alma não tem tal indestrutibilidade inerente. Depende de Deus para sua existência continuada, como tudo o mais que existe. Se Ele retirasse Seu poder de sustentação, ela deixaria de existir. Não há dúvida de que ela continua existindo, mas isso deve ser argumentado com outros termos. . . A esperança de imortalidade deles [dos patriarcas do Antigo Testamento], portanto, era, em princípio, a esperança não apenas de uma ‘imortalidade da alma’, mas também da ressurreição - da completa libertação do Seol”.

É claro que essa realidade de que a alma tem uma dependência permanente do poder de Deus para continuar viva é um tipo de condicionalismo, mas não é o ensino da imortalidade condicional conforme explicado pela enciclopédia, também conhecido como aniquilacionismo (ISBE, Vol. 4, p. 2503, verbete “Punição”). É preciso fazer essa distinção para não misturar os dois pontos de vista. O mesmo ocorre com o uso do termo “imortal”. Por a alma continuar viva após a morte do corpo não haveria problema em dizer que ela é imortal em relação ao corpo. Mas é necessário ter em mente que ainda não é o tipo de imortalidade que ela aguarda para o futuro. Por isso poder-se-ia dizer que atualmente é uma imortalidade relativa e restrita a uma condição temporária. Nem mesmo os anjos, que nunca experimentaram a morte, são imortais. Eles não têm a espécie de imortalidade usufruída por Deus, que poderíamos chamar de completa ou absoluta, pois Ele existe desde a eternidade, nunca teve princípio, e é a Fonte de toda a vida que há:

“Antes de nascerem os montes ou de teres formado a terra e o solo produtivo, de eternidade a eternidade, tu és Deus”. – Salmos 90:2, TNM.

“Ordeno-te diante de Deus, que vivifica todas as coisas, e de Jesus Cristo, que deu um tão belo testemunho, diante de Pôncios Pilatos, que guardes este mandamento sem mácula e sem repreensão até à aparição de nosso Senhor Jesus Cristo, a qual a seu tempo, manifestará o bem aventurado e o único poderoso Senhor, Rei dos reis e Senhor dos senhores, Aquele que é o único que possui imortalidade e que habita na luz inacessível, a Quem nenhum homem viu, nem pode ver. A Ele seja dada honra e poder eterno”. – 1 Timóteo 6:13-16, MC.

Diante dos argumentos acima transcritos não resta nenhuma dúvida que quando a ISBE disse que “sempre somos mais ou menos influenciados pelo conceito grego, platônico”, ela não estava querendo dizer que uma alma imaterial não permanece viva depois da morte do corpo, conforme Jesus disse claramente em Mateus 10:28. No entanto, tal sobrevivência não pode ser chamada apropriadamente de “imortalidade” ou “vida eterna”, pois o estado desencarnado (sem corpo humano que respira oxigênio) necessita da ressurreição física para usufruir plenamente o tipo de vida eterna intencionado pelo Criador. Desde a época da igreja primitiva isso é ensinado, como disse o escritor patrístico do segundo século Atenágoras de Atenas, em duas de suas obras:

“Estamos convencidos de que quando formos removidos da vida atual viveremos outra vida melhor do que a presente, e celestial, não terrena. . . Deus não nos fez como ovelhas ou animais de carga, uma mera força de trabalho, e para que sejamos perecíveis e aniquilados”. – Um apelo em favor dos cristãos, capítulos 16 e 25.

“Não é porque sabemos que a separação da alma dos membros do corpo e a dissolução das suas partes não interrompem a continuidade da vida que devemos desanimar da ressurreição . . . E, como isso se segue necessariamente, deve haver uma ressurreição dos corpos mortos, mesmo que inteiramente dissolvidos, e os mesmos homens devem ser formados de novo, uma vez que a lei da natureza ordena o fim não de modo absoluto, nem como o fim de algum homem qualquer, mas dos mesmos homens que passaram pela vida anterior. Mas é impossível que os mesmos homens sejam reconstituídos a menos que os mesmos corpos sejam restaurados às mesmas almas”. – Sobre a ressurreição dos mortos, cap. 31.

Essa expectativa de sobrevivência imediata depois da morte, sem prejuízo da futura ressurreição física dos mortos, está esboçada no próprio Novo Testamento, como se nota nas seguintes declarações dos apóstolos Pedro e Paulo:

“Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9, TNM.

“É justo despertar-vos com as minhas admoestações, enquanto estou nesta tenda terrena [o corpo], sabendo que em breve hei de despojar-me dela. . . Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, BJ.

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, BJ.

Se ir para o céu fosse apenas na futura ressurreição, na qual os seguidores de Cristo são todos beneficiados ao mesmo tempo, o apóstolo Paulo não teria demonstrado a preocupação de que o estar com Cristo resultaria em uma separação dos irmãos na fé, deixando-os sozinhos e sem o pastoreio do apóstolo. Ou seja, ele estaria com Jesus, mas os demais ficariam na Terra, passando pelas provações típicas dos cristãos daquela época. Situação semelhante à da ilustração do rico e Lázaro, que conta a história da sobrevivência de dois personagens depois da morte e mostra que seus parentes continuavam vivos na cidade onde viviam (Lucas 16:19-31). A prova é tanta que é assim, que alguns anos depois que Pedro e Paulo morreram um cristão que os conheceu pessoalmente, e foi discípulo deles, disse o seguinte:

“Mas para não nos determos em exemplos antigos, vamos aos mais recentes heróis espirituais. Tomemos os exemplos nobres fornecidos em nossa própria geração... Pedro, por causa de inveja injusta, não suportou nem um nem dois, mas muitos labores, e quando, por fim, sofreu o martírio, partiu para o lugar de glória que lhe era devido. Por causa da inveja, Paulo também obteve a recompensa da perseverança... Depois de pregar tanto no Oriente como no Ocidente... foi removido do mundo, e entrou no lugar santo, tendo provado ser um exemplo impressionante de paciência”. – Carta aos Coríntios, Clemente de Roma, cap. 5, século I d.C.

É justamente por isso que a International Standard Bible Encyclopedia menciona versículos bíblicos como os acima citados para provar que o Novo Testamento realmente ensina que a alma sobrevive à morte de maneira consciente e imediata, e aguarda no céu a ressurreição que ocorrerá na Terra, quando o corpo físico será dado de volta à alma, e a pessoa poderá se transmutar para a forma espiritual quando bem quiser, e vice-versa, da mesma maneira que ocorreu na ressurreição do Senhor. Diz a enciclopédia:

“O estado da morte é freqüentemente representado como um ‘sono’, assim como o ato de morrer como ‘adormecer’ (Mt 9:24…). . . A representação se aplica não à ‘alma’ ou ‘espírito’, como se um estado de inconsciência até a ressurreição estivesse implícito… o ponto de comparação é que, como quem dorme não está vivo para o seu redor, os mortos não estão mais em contato com essa vida terrena. . . Só porque os mortos estão adormecidos para a nossa vida terrena, que é mediada pelo corpo [físico], não se conclui com isso que eles estão adormecidos em todas as outras relações, adormecidos para a vida do outro mundo, que seus espíritos estão inconscientes. Contra a [ideia de] inconsciência dos mortos veja Luc. 16:23; 23:43; João 11:25,26; Atos 7:59; 1 Cor. 5:8; Fil. 1:23; Apoc. 6:9-11; 7:9… Quanto aos próprios santos que partiram, supõe-se que eles têm conhecimento mútuo uns dos outros no estado intermediário, juntamente com a memória dos fatos e condições da vida terrestre (Luc. 16:9, 19-31)”. – ISBE, vol. 2, pp. 991, 992.

A alma sobrevive ao corpo… A morte para os remidos, embora seja resultado do pecado, não destrói a relação da alma com Deus e com Cristo. . . A alma está, de fato, em um estado incompleto até a ressurreição. ‘Espera. . . a redenção do nosso corpo’ (Rom. 8:23). Mesmo assim é feliz em seu estado, ainda que incompleto. . . Ela mora em uma câmara da casa do Pai (Jo 14:2ss; 17:24). Mesmo no estado despido (‘ausente do corpo’), ela deve estar ‘no lar com o Senhor’ (2 Cor. 6:8). É para ela um objeto de desejo estar ‘com Cristo’ naquele estado após a morte (Fil. 1:21)… [Já os ímpios são] excluídos da bem-aventurança dos justos, . . . [o estado deles] é descrito por Jesus e Seus apóstolos como uma das mais duras tribulações e angústias. . . Isto não é ‘imortalidade’ ou ‘vida’, embora a existência continuada da alma esteja implícita”. – ISBE, vol. 3, p. 1461.

Seja qual for o ponto de vista assumido a respeito do desenvolvimento da doutrina da imortalidade da alma no A[ntigo] T[estamento] (veja Escatologia do AT), dificilmente haverá dúvida que é completamente assumido no Novo Testamento que as almas dos homens, bons e maus, sobrevivem à morte (veja Imortalidade). Só há necessidade de se referir a duas passagens para provar isso: uma, os dizeres de Cristo em Mat. 10:28: ‘Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes disso, temam aquele que pode destruir tanto a alma quanto o corpo no inferno’ (Geena); a outra, a parábola do Homem Rico e Lázaro em Luc. 16:19-31: Lázaro é carregado pelos anjos ao seio de Abraão; o rico levanta os seus olhos no Hades, estando em tormentos. Toda a doutrina do futuro julgamento no Novo Testamento pressupõe a sobrevivência após a morte.

“A retribuição pelo pecado é um ponto fundamental no ensino tanto do Antigo Testamento quanto do Novo Testamento. A doutrina do juízo, novamente, no Novo Testamento, com Cristo qual juiz, relaciona-se com esse ponto. As seguintes passagens são decisivas: Isa. 3:10,11; Mat. 11:22,24; 12:41,42; Rom. 2 5,12; 2 Cor 5:10; Gal 6:7, 8, etc (veja Retribuição). A consciência durante a punição pelo pecado no estado futuro já está implícita nos textos precedentes. A parábola do Homem Rico fala disso como se seguindo imediatamente à morte no Hades; todas as descrições do julgamento implicam dor e angústia como resultado da condenação (cf. Rom 2:5,12). Isso não determina a natureza ou a duração da punição; mas exclui a ideia de que a morte física é a extinção do ser, ou que a aniquilação se segue imediatamente depois da morte ou do julgamento”. – ISBE, vol. 4, p. 2502.

Embora tais ensinamentos estejam muito claros na International Standard Bible Encylopedia, e também em outras obras teológicas, há defensores da imortalidade condicional que citam trechos isolados de tais referências bibliográficas, como aqueles citados no início, na intenção de provar o aniquilacionismo, como se os autores desses livros estivessem pensando nisso quando escreveram os seus respectivos verbetes. Alguns aniquilacionistas ainda expõem suas opiniões de maneira arrogante, fazendo falsas acusações contra os “imortalistas”. Abaixo um exemplo:

“Mas, a questão é: Que tipo de ‘sobrevivência após a morte’ é essa? Afirmou a obra [International Standard Bible Encylopedia] em algum momento que ela é ‘consciente’? – como certos imortalistas tanto insistem em afirmar teimosamente (apesar de toda a evidência bíblica e erudita contrária que eles têm diante de si), com o claro objetivo de validar de qualquer maneira as teorias criadas na imaginação deles? De modo algum!” – Esforços Para Anular o Que Disseram os Eruditos Bíblicos, site Mentes Bereanas.

Além de tal conclusão ser uma ampla deturpação do que disse a ISBE, pois o trecho da enciclopédia que estava em discussão nesse artigo aniquilacionista foi tirado completamente de contexto, revela ainda uma pesquisa altamente deficiente por parte do autor do site Mentes Bereanas, pois em vários verbetes a enciclopédia diz sim que a sobrevivência é consciente e imediatamente depois da morte, como vimos nas citações precedentes.

Outro fator que não será examinado aqui, que também é alimentado por determinadas explicações das enciclopédias bíblicas, é que a Bíblia costuma chamar os seres terrestres de “almas”, inclusive o homem, cuja vida é mantida pela respiração e o sistema circulatório. As “sombras” que vão para o Seol, por se tratarem apenas do que chamaríamos hoje de “fantasmas” ou “espíritos dos mortos” não recebem a denominação de “almas”. Porém há exceções. No final deste artigo será indicado um texto onde esse outro ponto está mais bem esclarecido. O importante aqui é saber que se trata apenas de mais um mal entendido dos aniquilacionistas. Guardadas as devidas proporções, seria como se deparar com as declarações abaixo da literatura grega e achar que os gregos não acreditavam na sobrevivência da alma:

“As almas que morreram em combate são mais puras do que as que morrem de doenças”. – Fragmento 96b = B 136, de Heráclito.

“Tais foram os males pelos quais passei, conduzidos pelos deuses, que penso: a alma de meu pai, se ela voltasse a viver, não iria me contradizer”. – Édipo em Colono, v. 995, de Sófocles.

Quando lemos na Bíblia: “A alma que pecar morrerá” (Ezequiel 18:4), significa tão somente o “ser humano que pecar morrerá”, sem prejuízo do que ela diz em outra parte: “Não deixarás a minha alma no Hades” (Atos 2:27), que é o mundo invisível e inacessível dos mortos. Sentido semelhante ao texto de Ezequiel possuem as “almas” supracitadas dos textos de Sófocles e Heráclito, ainda que tal acepção seja bem menos frequente nos escritos gregos.

DESDOBRAMENTO DO EQUÍVOCO

Outro fator importante que tem servido de combustível para o erro dos aniquilacionistas, e nesse ponto a culpa não é principalmente deles, é que nas primeiras décadas do século 20 surgiu um grupo de teólogos que passou a negar ou menosprezar o entendimento teológico sobre a alma imaterial, que vem desde o tempo da igreja primitiva. Ao que parece isso ocorreu também por influência do materialismo científico e do monismo, que passaram a implantar na mente do homem moderno uma aversão a determinados conceitos religiosos de ordem metafísica, sendo a existência de uma alma espiritual no corpo humano um deles. Sobre esse problema, um comentarista disse:

“Uma nova geração de teólogos surgiu, uma geração que não mostra respeito pelo passado: ‘As visões tradicionais do Céu e do Inferno são cerca de 95% da mitologia’, declara o estudioso jesuíta John MacKenzie da Universidade de Notre Dame. Outros teólogos cristãos, protestantes e católicos, expressam opiniões semelhantes. A própria vida após a morte tornou-se sombria, mesmo duvidosa, e o centro de gravidade está sendo transferido para este mundo. A teologia está se tornando existencialista!

“No entanto, que não haja mal-entendidos: Se alguns teólogos progressistas agora consideram a ideia de Céu e Inferno como sendo um mito, eles chegaram bastante atrasados. Os escritores clássicos ridicularizaram tais crenças há mais de dois mil anos. ‘Onde podemos encontrar uma velha tão tola que acredite nas antigas histórias dos horrores do Mundo Inferior?’, pergunta Cícero; em outros lugares ele diz: ‘A ignorância da filosofia é responsável pela crença do Inferno e seus terrores.’ Do mesmo modo, Seneca argumenta: ‘Aqueles contos que tornam o mundo abaixo terrível para nós são ficções poéticas. Não há nenhuma negra escuridão à espera dos mortos, nem prisão, nem lago de fogo, nem rio de esquecimento, nem cadeira de juíz...’

“Outro filósofo que tentou limpar a mente do medo da morte e os terrores de um estado futuro é Lucrécio – ‘o primeiro Jean-Paul Sartre’, como bem podemos chamá-lo. Resolvendo o pavor da morte no medo do castigo eterno após a morte, nega a doutrina de uma vida futura e sustenta que todos os tormentos do inferno estão nesta vida e são auto-infligidos. Compare com a brincadeira do inferno de Sartre!” – Gossip about Heaven and Hell, de Prince John Loewenstein, Dalhousie Review, Vol. 54, Nº 3, 1974, pp. 634-647.

É fato indiscutível que se fizermos um rastreamento de toda história judaico-cristã desde o primeiro século, não existia nos tempos antigos essa visão contemporânea que se baseia apenas naquilo que pode ser visto e comprovado fisicamente (compare com 2 Coríntios 4:18). Crenças que hoje alguns classificariam como superstições eram tratadas com muita seriedade por escritores proeminentes do Cristianismo e do Judaísmo. E nisto se incluem os próprios escritores bíblicos, que isto fique bem claro. É por esse motivo que vários desses teólogos “progressistas” dizem abertamente que a Bíblia está repleta de mitos e que nem tudo nela é digno de confiança. A aversão que eles têm à linguagem grega que foi incorporada ao Cristianismo é apenas um dos elementos dessa nova tendência praticamente inédita na historiografia cristã.

Por outro lado, uma reclamação desses teólogos da inovação que até certo ponto é justificada é que desde a época de Constantino a teologia cristã começou a perder de vista o ensino da ressurreição e passou a se focar apenas na ida imediata do crente para a presença de Cristo. O que para alguns significou a “transferência” do Reino de Deus da Terra para o céu, inclusive porque as expectativas do Apocalipse para o “fim do mundo” não foram cumpridas, ou pelo menos adiadas. Mas o fato é que tal Reino sempre foi celeste e o ensino da ressurreição física nunca saiu do escopo teológico da Igreja, daí o motivo da declaração presente na oração do credo católico: “Creio. . . na Santa Igreja Católica*, na comunhão dos santos, na remissão dos pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Amém”.

* A denominação “católica” significa “holística” ou “universal”, e vem do grego katholikos (καθολικός). Ela começou a ser utilizada no início do século II para se referir à igreja primitiva. O primeiro que fez isso foi um discípulo direto dos apóstolos, Inácio de Antioquia, ao escrever uma carta para a congregação de Esmirna. Com o tempo essa designação se consolidou e passou a distinguir a igreja de movimentos heréticos que se apresentavam como cristãos.

De qualquer maneira, mesmo que se considere que os teólogos progressistas foram longe demais em sua aversão à linguagem grega e à teologia tradicional da Igreja, consolidada em dois mil anos de história, o fato mais importante desse rompimento que deve ser destacado aqui é que apesar de tudo tais autores não estão ensinando o aniquilacionismo, pelo menos na maioria das vezes. Eles continuam acreditando na vida imediata depois da morte, sem, contudo, se valer de nomenclaturas gregas relacionadas ao dualismo corpo-alma. Para eles o homem inteiro vai imediatamente para a presença de Cristo depois da morte.

Naturalmente, para sustentar esse entendimento alternativo os teólogos da inovação precisam ser muito criativos em suas explicações, pois é preciso contornar a informação bíblica de que a ressurreição do corpo físico-espiritual ainda não aconteceu, é futura. Por exemplo, alguns dizem que o tempo de Deus (kairós) se sobrepõe ao tempo dos homens (chrónos), por isso os dois não correm em paralelo e o que é futuro para nós na realidade divina já aconteceu. Um dos que usam esse tipo de argumento é o teólogo Robert Farrar Capon. Segundo ele, é um “truque” de Deus para possibilitar essa transferência imediata sem que uma alma espiritual saia do corpo no momento da morte. Mesmo assim, ele ressalta o seguinte sobre o conceito de existência separada da alma:

“É claro que não há necessariamente nada de errado nisso. Pode existir mesmo uma coisa real, invisível e imaterial, que atenda pelo nome de Alma. Mas você não sabe disso [porque não é empiricamente observado, segundo um argumento dito anteriormente]. Talvez você diga que sim. Talvez você pense que Deus, nas Escrituras, nos assegura. Bem, não tenha tanta certeza. Certamente alguma linguagem bíblica aponta nessa direção. Mas, no geral, a maior parte do discurso da Bíblia sobre a natureza humana parece dispensar tal visão”. – The Parables of Grace, Robert Farrar Capon, Eerdmans Publishing Company, 1988, p. 155.

Como se nota, não há uma convicção absoluta de que tal explicação inovadora da teologia “progressista” está mesmo correta. E apenas para ratificar que, não obstante tudo isso, o entendimento de Capon realmente não pode ser usado a favor do aniquilacionismo, leia a seguir mais algumas coisas do que ele disse:

“A velha balela sobre o céu ser para os bons e o inferno para os caras maus está completamente errada. O céu é povoado inteiramente por pecadores perdoados. . . e o inferno é povoado inteiramente por pecadores perdoados. A única diferença entre os dois grupos é que aqueles que estão no céu aceitam o perdão e aqueles que estão no inferno o rejeitam”. – The Mystery of Christ… And Why We Don’t Get It, Eerdmans, 1993, p. 10.

(Alguém que não existe ou está “dormindo” pode nutrir sentimentos como o de aceitar ou rejeitar alguma coisa?)

“Sem dúvida, a aniquilação deixaria uma eternidade mais agradável [para os pecadores impenitentes]. Mas, aparentemente, a aniquilação não é uma das opções de Deus”. – Between Noon and Three: Romance, Law, and the Outrage of Grace, Eerdmans, 1997, p. 276.

“Uma vez eu fui acusado de ser um universalista e não acreditar nas doutrinas das Escrituras sobre o inferno e a punição eterna... Mas eu não sou um universalista... Encaro com toda a seriedade tudo o que Jesus tinha a dizer sobre o inferno, incluindo o tormento eterno de modo que uma insensibilidade tola de não aceitá-lo implicaria em sua aceitação”. – The Romance of the Word: One Man's Love Affair with Theology: Three Books, Eerdmans, 1995, pp. 9, 10.

E para concluir esta parte, seguem abaixo alguns trechos de uma crítica interessante sobre as explicações dadas pelos teólogos “progressistas” e como eles se infiltraram na Igreja:

“Enquanto o Sucessor de Pedro [Paulo VI] enfrentava o erro fundamental desfigurador da Ressurreição, agregavam-se outros debates de diversos segmentos teológicosInclusive aquele dos teólogos da ressurreição na morte... A resposta que dão à questão assim formulada é a de que a ressurreição acontece no momento mesmo da morte. Na morte morre o homem todo. Morre inteiramente. Nada de alma imortal separada do corpo na morte e sujeita a juízo particular. Na morte acontecem o juízo final e a ressurreição. Na morte de cada um. E o que ressuscita não é o corpo é a ‘corporeidade’...

“A onda canceladora da imortalidade da alma avançou rápida e cresceu. Nós do povo nem percebemos o avanço. Fui despertado, comecei a dar-me conta, com atraso, quando há duas décadas percebi que a palavra alma estava sendo banida das traduções da Escritura, em diversos versículos nos quais sempre havia figurado. . . Só avaliei a dimensão da tentativa de cancelamento do conceito cristão de alma, quando deparei com o texto litúrgico de uma Santa Missa por um amigo falecido (de corpo presente). . .

“Os teólogos da ressurreição na morte entendem que não seria científico nem bíblico o esquema ‘corpo-alma’. O homem seria um ser uno. Uma unidade indivisível. Nada de alma imortal, separada do corpo na morte. Com a morte do corpo, morre inteiramente o homem. O esquema ‘corpo-alma’, integrante da doutrina da Igreja, teria sido infiltração de filosofia grega. Dualismo platônico. Platonismo. Dualismo. Que platonismo? Que dualismo?... Primeiro, pela fé da Igreja, o estado de sobrevivência da alma humana separada do corpo na morte não é definitivo. É intermédio, transitório, ordenado ao termo final da ressurreição. Por esse dado fundamental a antropologia cristã aparta-se abissalmente da antropologia platônica. Por sobre este aspecto decisivo, há também o dado de que o dualismo platônico considerava a alma como o verdadeiro homem, enquanto o corpo seria uma prisão detestável. Para o platonismo a ressurreição seria um retorno abominável ao cárcere. Confundiam, inclusive, ressuscitar com reviver...

“A realidade está aí. Negam muitos, com desenvoltura, um dado da fé recebida na origem. Não sei bem desde quando começou a instalar-se o fato. Mas, penso que foi na segunda metade deste século XX. Agora, nas últimas décadas, a questão assume espessura impressionante, em versões mais sofisticadas. Dizem os entendidos que essa atual pretensão tem predecessores salientes em Adolf Schlater (+1938) e Karl Stange, (+1959), teólogos protestantes. Apontam também Paul Althaus, outro teólogo protestante, que tratara a matéria anteriormente...

“Falei em assalto à fé. Para mim, pela rapidez e eficiência, com que essa tese permeou algumas estruturas da Igreja, desenha-se um assalto. Um assalto feito assim, por dentro, sem ruído, por tomadas de posições estratégicas, capilarizando as consciências, é mais eficiente do que qualquer agressão aberta. Grande parte do povo vai assimilando e, quando se der conta, já não se espantará nem oporá resistência. Não se falará mais em ‘alma’ e, obviamente, com o tempo, a fé na sua sobrevivência se extinguirá. Esse parece o plano. Mas, se esse é o plano, enganam-se. Há uma promessa do Senhor com a qual não contam. As portas do erro não prevalecerão. Restará sempre um pequeno resto, reduto do ‘sensus fidelium’, firme na fé apostólica.

“Sem mordência, verifico, em algumas obras, que teólogos da nova leitura começam a falar como vitoriosos e purificadores da féConsideram-se senhores da situação. Alcançaram posições relevantes. Conseguiram tomar alguns postos decisivos para sua estratégia. Deram certo cunho de cidadania à teoria da morte total (Ganztod). É o velho tanatopsiquismo voltando. Exemplo? O ‘Missale Romanum’, de 1970. Excluíram dele a palavra alma, no texto relativo às exéquias. Isso facilitou a impressão do folheto mencionado ao início. Mais. Imprimiram nele aquele prefácio ambíguo: ‘Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível’.

“A ambigüidade do texto é patente. Está em que sugere ser-nos dado um outro corpo imperecível, tão logo desfeito o corpo mortal. O texto foi reproduzido no Catecismo da Igreja Católica, mas num contexto em que se afirma a salvação da alma no estado de espera da futura ressurreição. Ali, naquele contexto, embora criticável sua inserção, não causa equívoco. Pelo contrário. Retira-lhe a ambigüidade. Entretanto, fora daquele contexto, funciona como uma cunha da nova escatologia. Confirma-se, aí, a estratégia do assalto por dentro. . . ” – Uma questão atual de escatologia, Revista Cultura e Fé, n. 84/1999, versão on line.

A LITERATURA DOS PROBLEMAS

Outra falha recorrente dos autores aniquilacionistas é que quando eles se deparam com explicações dos eruditos sobre algumas partes da Bíblia, parece que eles não percebem que tais autores se colocam na posição do escritor bíblico conforme o estilo adotado e a época da escrita. Escrevem como se estivessem fazendo a resenha de um livro. Mas a ideia é apenas descrever objetivamente o conteúdo analisado e as possíveis motivações do escritor. No entanto, o que é descrito nem sempre é o correto entendimento do tema apresentado, pois a maneira exposta na superfície do texto bíblico (forma) às vezes não corresponde à sua realidade intrínseca (essência).

O caso mais notório dessas exceções são as lamúrias de Eclesiastes, que fazem parte de uma prática literária que surgiu em Babilônia, chamada “literatura dos problemas”, que enfatiza a brevidade da vida humana e o pessimismo sobre a morte. Mas este enfoque não anula a crença de seus escritores de que algo do homem sobrevive à morte de maneira consciente. Tal estilo está representado, por exemplo, nas obras “Epopeia de Gilgamesh” e no “Poema do Justo Sofredor” (Ludlul bel nemeqi), conhecido como o “Eclesiastes babilônico”. Um trecho da Epopeia diz:

“Gilgamesh, aonde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois este também é o destino do homem”. – Tabuleta X, Coluna III, linha 90.

Da mesma maneira que foi dito no livro de Jó, os babilônios também diziam que o Sualu (=Seol) era a “terra da qual não há retorno” na qual habitam as “sombras” entristecidas. Os hebreus são do mesmo ramo genealógico dos babilônios, o semita. Isto explica em parte o motivo de tal similaridade entre as duas literaturas.

Embora vários eruditos deem explicações semelhantes ao que foi dito acima, que faz parte do que eles chamam de “exegese bíblica”, os condicionalistas não aceitam essas informações. No caso do autor do site Mentes Bereanas, citado anteriormente, ele sustenta que a Bíblia é um livro hermético que praticamente nada tem a ver com a antiga cultura religiosa com a qual os escritores bíblicos tinham contato. Ele prefere se apegar à literalidade de Eclesiastes que menciona a “inconsciência” dos mortos e sua “inatividade” no Seol, embora dentro dessa analogia com o “sono” saibamos que quem está dormindo continua vivo, sonha, acorda do meio da noite e vai dormir novamente. Paradoxalmente, porém, ele não aceita a descrição bíblica de que existe um Seol nas profundezas da Terra onde habitam as “sombras”, que podem inclusive recepcionar os mortos que vão para lá. Ou seja, é um literalismo de conveniência, apenas para sustentar velhos preconceitos. No entanto, a Standard Bible Encyclopedia dá uma dica de como devemos encarar as descrições negativas sobre a morte e o mundo dos mortos, registradas no Antigo Testamento:

“Seol (she'ol) está em contraste com a terra dos vivos em todos os aspectos. . . é uma morada de escuridão e sombra da morte. . . um lugar de destruição. . . sem qualquer ordem, uma terra de descanso, de silêncio, de esquecimento. . . os mortos estão inconscientes, não realizam mais trabalho, não cuidam de nada, não possuem qualquer conhecimento ou sabedoria, nem têm mais parte em nada que se faz debaixo do sol (Ecle. 9:5, 6, 10). . . Ele [Deus] vive no céu, mas por Seu espírito se faz presente também no Seol (Sal. 139:7, 8)… Esta revelação gradativa rejeita o velho contraste entre a vida na terra e a existência desconsolada depois da morte no lugar chamado Seol, e coloca outra coisa em seu lugar”. – ISBE, vol. 2, pp. 811, 812.

Apenas quem está vivo, ou com algum grau de consciência, ainda que sonolenta, pode se sentir desconsolado. Embora o autor do verbete repita quase que literalmente palavras e descrições de Eclesiastes, mais adiante ele reconhece que o Seol é outro mundo, ao dizer que Deus tem o poder de se fazer presente lá. O que significa que não se trata de um lugar acessível aos seres humanos, como é o caso dos cemitérios. Só Deus consegue olhar o interior do Seol:

“O SENHOR sabe o que acontece até mesmo no mundo dos mortos”. – Provérbios 15:11, NTLH.

Neste caso, o que o autor de Eclesiastes tinha em mente ao falar de “inatividade” e “inconsciência” dos mortos era em relação à vida humana, o que significa que do ponto de vista dela os que morreram não executam mais atividade alguma. Por isso, as afirmações pessimistas desse autor bíblico não devem ser interpretadas literalmente, conforme explicou a enciclopédia em outro verbete:

“[Seol] é freqüentemente traduzido erroneamente por ‘sepultura’ ou ‘inferno’ na Revised Version. Conforme já foi dito, porém, denota o lugar ou morada dos mortos, e é concebido como situado nas profundezas da terra. . . Os mortos estão reunidos em companhias; daí a recorrente expressão ‘foi ajuntado ao seu povo’ (Gên. 25: 8; 35:29; 49:33; Núm. 20:24, etc), frase que denota, como mostra o contexto, algo bem distinto de sepultamento. Jacó, por exemplo, foi ‘ajuntado ao seu povo’; depois que seu corpo foi embalsamado e, muito mais tarde, enterrado (Gen. 60:2ss). . . Na concepção geral, o Seol é um lugar de escuridão… de silêncio… de esquecimento… Mesmo essa linguagem não deve ser tomada muito literalmente. São expressões que fazem parte de um estilo deprimido ou desesperado (cf. Is 38:10 em diante) ou temporariamente cético (como em Eclesiastes; cf. 12:7,13,14); tudo isso é relativo, e enfatiza o contraste com o brilho, a alegria e a atividade da vida terrena (cf. Jó 10:22, ‘onde a luz é como a meia-noite’ - comparativo). Em outros lugares é reconhecido que a consciência permanence [no Seol]; em Isa. 14:9 as sombras (rephā’īm), que uma vez eram poderosos reis, são levantadas para recepcionar o rei de Babilônia que descia [para lá, depois que morreu] (cf. Eze. 32:21)... no entanto, como acontece com outros povos, a existência no Seol é representada como fraca, inerte, sombria, desprovida de interesses e objetivos dos vivos”. – ISBE, vol. 2, p. 974.

Os dois textos aludidos na enciclopédia são esses daqui, referentes às mortes dos reis de Babilônia e do Egito:

“Debaixo da terra se agita a morada dos mortos, para receber-te à tua chegada; despertam em tua honra as sombras dos grandes, e todos os senhores da terra, e levantam-se de seus tronos todos os reis das nações. Todos tomam a palavra para dizer-te: Finalmente, eis-te fraco como nós, eis-te semelhante a nós. Tua majestade desceu à morada dos mortos, acompanhada do som de tuas harpas. . . foste precipitado à morada dos mortos, ao mais profundo abismo”. – Isaías 14:9-15, AM.

“Os principais homens dos poderosos falarão do meio do Seol até mesmo a ele [ao rei do Egito], com os seus ajudantes”. – Ezequiel 32:21, 22, TNM.

Sendo assim, ao reconhecer a existência do Seol, o autor de Eclesiastes deixa implícito o entendimento de que para lá vão os mortos na forma de seres imateriais e entristecidos chamados “sombras”, mesmo ele não tendo mencionado esses detalhes. De modo que o entendimento correto de Eclesiastes é o que está sugerido abaixo entre colchetes:

“Tudo o que a tua mão possa fazer, faze-o com todas as tuas faculdades, porque não região dos mortos para onde vais, não há nem trabalho [humano], nem ciência [humana], nem inteligência [humana], nem sabedoria [humana]”. – Eclesiastes 9:10, MC.

O exame feito até aqui das passagens pessimistas de Eclesiastes demonstra bem a maneira correta de entender esse assunto na Bíblia Sagrada. Conforme os eruditos bíblicos credenciados explicam em suas enciclopédias, tais textos são apenas um estilo literário que enfatizam o sofrimento da vida humana e não anulam a expectativa que os cristãos sempre tiveram de sobrevivência imediata depois da morte. Os que não enxergam isso entendem a Bíblia muito mal. Em uma rápida analogia, até mesmo a literatura grega possui exemplares que parecem indicar a morte como sendo ausência completa de vida, embora saibamos que os gregos eram imortalistas por excelência. A seguir dois exemplos:

“A morte e a vida não são a mesma coisa, minha filha... [A morte] é a aniquilação, a outra mantém um lugar para a esperança”. – As Mulheres Troianas, de Eurípedes.

“Ele demandou do primeiro: ‘Quais se mostraram mais numerosos, os que estão vivos ou os que estão mortos?’ Ele respondeu: ‘Os vivos, porque os mortos não existem mais’.”. – Vidas, de Plutarco.

Do ponto de vista humano, tais palavras de Eurípedes e Plutarco podem ser tomadas literalmente, pois o homem, esse ser de carne que respira, de fato morre e deixa de existir, porém sua alma permanece, conforme os gregos já sabiam há muito tempo, antes mesmo de haver o platonismo:

“Cante, deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles, a ira destrutiva que trouxe incontáveis desgraças sobre os aqueus, e que enviou para o Hades muitas almas valentes de heróis, e fez de todos eles chão para cães e todo tipo de pássaro. . . Ora, a certeza que adquiri é que no Hades realmente se encontram as almas e imagens dos vivos, privados, porém, de seu alento”. – Ilíada 1:1, 23:103, de Homero.

“Alcançaram o prado coberto de asfódelos, onde se achavam reunidas as almas, imagens dos mortos. . . Enquanto estavam reunidas à volta da sombra de Aquiles, aproximou-se-lhes a alma do filho de Atreu, Agamémnone, cheia de dor, pelas almas cercadas de quantos haviam no alto palácio do Egisto morrido e cumprido o destino”. – Odisseia, de Homero, cap. 23, tradução de Carlos Alberto Nunes.

Descrição bem semelhante ao que a ISBE mencionou sobre o Seol bíblico e seus habitantes, as “sombras”. Uma existência triste que não é digna dos nomes “vida” e “imortalidade”, ainda que nelas permaneça algum nível de consciência e movimento. Mas são apenas fantasmas que perambulam sem propósito. Obras gregas posteriores apresentam a mesma visão:

“E isto me deixou com muito medo; por cima de sua tumba apareceu o fantasma de Aquiles. . . Não é sua morte, minha senhora, que o fantasma de Aquiles exigiu dos aqueus, mas a dela”. – Hécuba 94, 390, de Eurípedes.

“Outro, passando por um túmulo à noite, e imaginando que viu um fantasma, correu para ele com lança erguida, e, quando ele a empurrou nele, exclamou: ‘Para onde você está fugindo de mim, você alma que deve morrer duas vezes?’.”. – Apophthegmata Laconica (Citações de Lacônia), Provérbios Espartanos, v. 69, de Plutarco.

Para fins de comparação, note abaixo dois textos bíblicos do Antigo Testamento que apresentam o mesmo ponto de vista deprimente e sem esperança em relação à morte (o que nunca ocorre no Novo Testamento):

“Quem louvará o Altíssimo na moradia dos mortos, e em lugar dos vivos que lhe rendem graças? Quando um homem morre e cessa de existir, termina a ação de graças: é quando vive e está com saúde, que pode louvar o Senhor”. – Eclesiástico 17:27, 28, 30, TEB.

“Por que não perdoas as minhas ofensas e não apagas os meus pecados? Pois logo me deitarei no pó; tu me procurarás, mas eu já não existirei”. – Jó 7:21, NVI.

Mas será que os personagens que disseram o que está acima transcrito acreditavam mesmo que a morte resulta na inexistência total de quem morreu? Claro que não! São apenas lamentos motivados por sentimentos negativos. Esta é a razão porque o mesmo autor de Eclesiástico disse o seguinte sobre o relato da visita que o falecido profeta Samuel fez ao mundo dos vivos:

“Samuel foi amado pelo seu Senhor; profeta do Senhor, ele estabeleceu a realeza e ungiu os chefes estabelecidos sobre seu povo. . . Até depois de morrer profetizou, anunciou ao rei seu fim; do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo”. – Eclesiástico 46:13-20, BJ.

E quanto a Jó? Será que ele achava que o homem é apenas uma máquina orgânica que não possui uma alma invisível que sobrevive à morte e vai para outro lugar? O texto a seguir responde:

“O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra.... Quem dera que me escondesses no Seol, que me mantivesses secreto até que a tua ira recuasse, que me fixasses um limite de tempo e te lembrasses de mim! Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, até vir a minha substituição. Tu chamarás e eu mesmo te responderei. . . Apenas a sua própria carne [a do varão vigoroso], enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele [no varão vigoroso], continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 13-15, 20-22, TNM.

Só quem existe de maneira consciente (ainda que limitada) pode nutrir expectativas e atender o chamado de alguém para sair do Seol. E ao mencionar este lugar, se infere que Jó sabia que se tratava de outro mundo para o qual vão os mortos, e não de um cemitério coletivo. Em outra ocasião ele se referiu à partida para tal local da seguinte maneira, contradizendo até a esperança esboçada no texto anterior:

“Quão poucos são os meus dias! Que Deus termine e se afaste de mim, e terei um instante de alegria, antes de partir, sem retorno, para o país de trevas e sombras, para a terra escura e opaca, de confusão e negrume, onde a própria claridade é sombra”. – Jó 10:20-22, PER.

Conforme já comentado, descrição bem semelhante à que os babilônios faziam do mundo inferior, quando diziam que é uma terra escura e indesejável da qual não há retorno, onde o pó é a única coisa que terão aqueles que são enviados para lá, os moradores privados de luz.

Portanto, tal como o conceito de imortalidade da alma, o enfoque negativo sobre a morte em alguns textos do Antigo Testamento tem sido uma armadilha para os defensores do aniquilacionismo, em especial a variação dessa crença que foi influenciada pelo materialismo científico, segundo o qual o ser humano é apenas uma máquina biológica que bombeia sangue e recolhe oxigênio da atmosfera para se manter funcionando, não havendo, portanto, nada de verdadeiramente espiritual nela. Nítido contraste da vida dos espíritos, que não precisam de tais suportes materiais para continuarem vivos e conscientes:

“Tivemos como educadores nossos pais terrenos e lucramos disso um bom proveito, com mais razão não havemos de nos sujeitar ao pai dos espíritos e receber dele a vida?.... Mas vós vos aproximastes da montanha de Sião e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e das miríades de anjos em reunião festiva, e da assembleia dos primogênitos, cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus, o juiz de todos e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:9, 22, 23, TEB.

Mesmo assim, os defensores do aniquilacionismo se mantêm determinados em sua saga para combater o ensino cristão sobre a alma, que existe desde o tempo dos apóstolos, e continuam a citar de maneira inadequada obras teológicas com o intuito de apoiar uma compreensão absolutamente errônea sobre esse assunto, seja porque não percebem que se trata de um grande equívoco ou por simples desonestidade mesmo. Para quem quiser analisar esse problema com mais detalhes, os dois textos abaixo são muito recomendados:

Obras Teológicas e de Referência Apoiam o Aniquilacionismo?

Teólogos mal utilizados no site Mentes Bereanas e o aniquilacionismo

 

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Autor: Adelmo Medeiros

Texto revisto e ampliado

Fortaleza, 18 de julho de 2018.

 

 

TRADUÇÕES DA BÍBLIA UTILIZADAS:

AM: Ave-Maria

BJ: Bíblia de Jerusalém

MC: Missionários Capuchinhos

NTLH: Nova Tradução na Linguagem de Hoje

NVI: Nova Versão Internacional

PER: Bíblia do Peregrino

TEB: Tradução Ecumênica da Bíblia

TNM: Tradução do Novo Mundo (de 1986)

 

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