OBRAS TEOLÓGICAS E DE REFERÊNCIA APOIAM O ANIQUILACIONISMO?

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Conteúdo

Prefácio

1. A crença cristã sobre a morte e os novos aniquilacionistas

2. O que as obras citadas pelos aniquilacionistas realmente ensinam

3. Visão geral das referências bibliográficas que foram analisadas

4. O que o autor “bereano" pensou que viu nos livros que citou

5. Textos bíblicos com a ideia implícita da alma invisível do homem

6. O reflexo do dualismo corpo-alma na comunidade cristã primitiva

7. Materialismo “cristão“, imortalidade condicional e “sono” da alma

8. As demais obras citadas e a recorrência dos erros cometidos

9. Recapitulação e considerações finais

Apêndice

A. O conceito grego sobre a imortalidade da alma

B. Linguagem materialista não é necessariamente aniquilacionismo

C. Sobre o encontro do rei Saul com o falecido profeta Samuel

D. Será que os pais apostólicos e seus sucessores eram promotores de heresias?

E. A sinonímia entre “corpo” e “carne” no Novo Testamento

F. O conceito cristão sobre a imortalidade da alma e o monismo

G. Exemplo adicional de uma pesquisa deficiente fruto de ideia preconcebida

H. Lista das obras comentadas e das que foram recentemente incluídas

Legenda das versões bíblicas utilizadas


(PDF, 3.60 Mb)

Desde a época da igreja primitiva os cristãos dizem que a alma continua viva após a morte do corpo e que a punição dos maus será o sofrimento na Geena ardente (“inferno”). Esta seria a “destruição” mencionada por Jesus Cristo (Mateus 8:11, 12; 10:28). No século III, porém, uma comunidade cristã árabe sustentou que na morte a alma também deixa de existir. No entanto, eles voltaram atrás e reassumiram o entendimento tradicional depois que Orígenes os convenceu que estavam errados. E no século IV, Arnóbio de Sica ensinou que a alma sobrevive à morte, mas os ímpios não serão atormentados e sim erradicados da existência. A ortodoxia cristã chama o posicionamento dele de aniquilacionismo. Já no século 19 algumas denominações que professam o cristianismo retomaram aquela ideia dos cristãos da Arábia. Ainda que seus adeptos sejam chamados de “aniquilacionistas”, o termo conceitual mais adequado à crença deles é materialismo. Escritores dessas religiões costumam citar obras teológicas que supostamente comprovariam que a opinião deles é a certa, mesmo que os autores de tais referências sejam “imortalistas”. Não seria isso um contrassenso? O objetivo deste livro é investigar se essa prática é correta ou não, além de apresentar uma análise bíblica e histórica da questão levantada pelos que advogam o aniquilacionismo materialista.

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Autor: Adelmo Medeiros.

Fortaleza, 11 de setembro de 2017.

 

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PREFÁCIO

Embora a escrita deste livro tenha demorado somente alguns meses, o que está nele, e em outros materiais recentes de minha autoria, é resultado de vários anos de muita reflexão, estudo e leitura, tanto da Bíblia quanto de obras relacionadas, que não se limitou apenas a dicionários especializados e enciclopédias, mas incluiu também as fontes antigas que dão origem a quase tudo o que se escreve até hoje sobre teologia ou exegese bíblica. Refiro-me a textos religiosos escritos há centenas ou milhares de anos por egípcios, hebreus, gregos, romanos e outros. Desse amplo arcabouço destaca-se a literatura patrística, que são textos cristãos produzidos pela igreja primitiva do final do século I em diante. Além disso, examinei também diversos livros apócrifos, obras de filosofia e as exposições rabínicas dos judeus. Em suma, as informações aqui apresentadas têm uma base de sustentação consistente, o que as torna bastante confiáveis. Este foi o objetivo de todo o esforço empreendido.

O que justificou a escrita deste trabalho foi algo que notei ao ler algumas “pesquisas” que citam livros teológicos e outros com o intuito de provar que os primeiros cristãos não acreditavam na vida imediata após a morte e que, ao invés disso, achavam que todos os que já viveram e morreram não existem mais, foram completamente aniquilados. Então, a única esperança que restaria para eles é um dia Deus “recriá-los” a partir do nada, sem nenhuma contraparte com suas reais identidades (almas) e as lembranças acumuladas na vida humana. Provavelmente um cristão mais ortodoxo ou tradicional achará essa teoria bem estranha, pois geralmente isso não é ensinado nas igrejas e quase todas as religiões dizem que a morte é apenas o início de uma nova vida.

No entanto, o que realmente causa espanto é que as referidas publicações de apoio geralmente ensinam o contrário do que os “mortalistas” dizem. Ou seja, elas afirmam que o ser humano possui uma alma e que esta sobrevive à morte do corpo (Mateus 10:28). Mesmo assim os defensores da aniquilação total acham que não estão fazendo nada de errado ao citá-las e ainda expõem o assunto com convicção e ares de autoridade. E, para completar, fazem críticas ácidas contra os que acreditam na imortalidade da alma e, às vezes, até os ofendem.

Pois bem, há um website mantido por um dissidente da religião “Testemunhas de Jeová” que publicou diversas coisas a favor do aniquilacionismo, dentre elas um extenso rol de citações extraídas das mencionadas obras de referência. Mais de 100, no total. Vi então uma excelente oportunidade para confirmar ou não a minha suspeita de uso inadequado dessa bibliografia. Inicialmente, a minha intenção era discorrer sobre isso em uma página da Internet. No entanto, à medida que eu fui verificando e comentando os livros e periódicos citados o meu texto foi aumentando até adquirir o tamanho de um livro, cujos detalhes de elaboração estão mais bem explicados nas primeiras seções. Por isso resolvi publicar minhas considerações de uma maneira mais adequada. Caso você não tenha tempo de lê-las integralmente, veja pelo menos a seção 9.

Por fim, informo que mesmo com a publicação do livro digital a versão on line foi mantida. De modo que achei interessante remeter o leitor para ela sempre que menciono algum ponto abordado em outra parte do livro. Assim, ao invés de buscar no PDF a informação que eu indicar você poderá vê-la no seu navegador, caso esteja conectado à Internet. O mesmo ocorrerá com os demais textos publicados em diversos sites que são aqui citados ou referenciados, contanto que os endereços permaneçam ativos em seus respectivos servidores.

 

1. A CRENÇA CRISTÃ SOBRE A MORTE E OS NOVOS ANIQUILACIONISTAS

Tal como todos os povos antigos, os hebreus primitivos acreditavam que os mortos descem para o mundo subterrâneo e vivem ali uma existência pálida... [Já] os autores dos Sal[mos] xlix e lxxiii . . . acreditavam que na morte apenas os ímpios iriam para o Seol e que as almas dos justos partiriam diretamente para Deus.

The Jewish Encyclopedia (Enciclopédia Judaica)

Seja qual for o ponto de vista que se tenha a respeito do desenvolvimento da doutrina da imortalidade da alma no A[ntigo] T[estamento] dificilmente haverá dúvida que é completamente assumido no N[ovo] T[estamento] que as almas dos homens, bons e maus, sobrevivem à morte.

The International Standard Bible Encyclopedia (Enciclopédia Bíblica Padrão Internacional)

Para quem estuda a Bíblia e recorre a obras teológicas de referência para ajudar no entendimento dela, frequentemente se depara com informações a exemplo dessas acima. Os autores de tais livros geralmente são profundos conhecedores daquilo que tratam e, mesmo que divirjam em um ou outro detalhe, suas pesquisas os fizeram todos chegar a uma mesmíssima conclusão que perpassa toda a história judaico-cristã: a morte não significa o término da existência, pois a alma de quem morre sobrevive ao fim do corpo físico. Alguns comentaristas evitam chamar de “alma” essa parte espiritual que se mantêm viva depois da morte, e a razão disso será depois explicada. Mesmo assim a ideia de continuidade consciente é mantida, contrapondo-se ao conceito de aniquilação.

Esse é o pensamento verdadeiramente bíblico que foi abraçado pelos judeus e cristãos ao longo das eras em que eles existem. Poucas vozes (religiosas) entre o povo de Deus foram ouvidas contra a crença de que as pessoas que morrem continuam vivas em outro lugar e algum tempo depois conscientes, aguardando a consumação dos séculos e o dia em que receberão novos corpos físicos para usufruir novamente uma vida na Terra. Em Israel apenas os saduceus não acreditaram assim, e faziam coro à descrença dos gregos epicureus, ainda que não fosse essa a intenção. Aliás, os gregos que acreditavam na vida após a morte riam da esperança de judeus e cristãos de haver uma ressurreição, pois para os gregos platonistas a alma não teve princípio e já existia antes do corpo, além de ser indestrutível. A expectativa que nutriam é que a morte liberta* a alma para os benefícios que sua imortalidade absoluta proporciona. Essa visão destoa daquilo que se vê na Bíblia. O historiador judeu Flávio Josefo, do século 1, descreveu o ponto de vista bíblico da seguinte maneira:

“[O mundo dos mortos é] uma região subterrânea, onde a luz deste mundo não brilha. . . . [É] um local de custódia para as almas; em que os anjos são nomeados como guardiões para elas: que lhes distribuem castigos temporários, de acordo com o comportamento e atitudes de cada um. . . . [Mas as almas] não seguem o mesmo caminho, pois os justos são guiados para a direita... até uma região de luz, em que o justo tem habitado desde o início do mundo. . . . esperam por aquele descanso e a nova vida eterna no céu... Este é o lugar que chamamos o seio de Abraão. . . . já para os injustos, eles são arrastados à força para a esquerda... [os anjos] os arrastam para a vizinhança do próprio inferno... não ficam livres do calor do próprio vapor... quando eles veem de perto esse espetáculo, a partir de uma grande perspectiva terrível e superior de fogo, eles são atingidos com uma expectativa terrível de um julgamento futuro. . . . as almas de todos os homens estão confinadas [no Hades], até uma época apropriada que Deus já determinou: quando ele fará uma ressurreição de todos os homens do mundo dos mortos. Não por promover uma transmigração das almas de um corpo para outro; mas levantando novamente aqueles mesmos corpos que vocês gregos acham que foram dissolvidos, já que não acreditam na ressurreição deles, mas aprendem a não crer nisso”. – Discurso de Flávio Josefo aos gregos a respeito do Hades, colchetes acrescentados.

* Entre os gregos havia duas crenças gerais, a homérica e a platônica. Na época de Homero era predominante a ideia de que depois da morte a alma descia para o Hades e experimentava uma existência triste e sombria. Já os platonistas posteriores achavam que ela voltava para as esferas celestes, a fim de usufruir uma vida sublime, mas não sem antes reencarnar em vários corpos na Terra. E em cada existência se a pessoa não tivesse tido um comportamento virtuoso reencarnaria na forma de animais, a fim de pagar os erros da vida passada. De qualquer maneira, independentemente de quais dos dois pontos de vista fosse o adotado, os gregos acreditavam que a alma continuava viva depois da morte e que ela existiria para sempre. As exceções eram apenas os epicureus e os que aderiram à concepção hilomórfica de Aristóteles, e mesmo assim não existe unanimidade sobre o que realmente significa a visão aristotélica. Para mais detalhes, consulte o texto A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?

A visão de Josefo está em essência de acordo com os ensinamentos de Jesus, que disse, por exemplo, o seguinte:

“Quando o Filho do homem chegar na sua glória, e com ele todos os anjos, então se assentará no seu trono glorioso. E diante dele serão ajuntadas todas as nações, e ele separará uns dos outros assim como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. E porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos à sua esquerda... O rei dirá então aos à sua direita: ‘Vinde, vós os que tendes sido abençoados por meu Pai, herdai o reino preparado para vós desde a fundação do mundo’... Então dirá, por sua vez, aos à sua esquerda: ‘Afastai-vos de mim, vós os que tendes sido amaldiçoados, para o fogo eterno'... E estes partirão para o decepamento eterno, mas os justos, para a vida eterna”. – Mateus 25:31-46, TNM.

“Havia certo homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e seguia vivendo suntuosamente todos os dias. Mas havia um pedinte de nome Lázaro, cheio de feridas, que se recostava ao seu portão, desejando se alimentar das sobras que caíam da mesa do rico... Então aconteceu que o mendigo morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. O homem rico também morreu e foi enterrado. E, estando em tormentos, no Hades, ele levantou os olhos e viu Abraão de longe, e Lázaro junto a ele. Então, ele gritou e disse: ‘Pai Abraão tenha piedade de mim, e manda que Lázaro mergulhe a ponta do seu dedo na água e refresque a minha língua, pois estou atormentado nessas chamas’. Mas Abraão disse: ‘Filho, lembre-se que durante a sua vida você recebeu suas boas coisas, e Lázaro, por sua vez, as coisas ruins; mas agora ele está confortado e você em tormentos. Além do mais, existe um grande precipício entre nós e vocês, de maneira que aqueles que querem passar daqui para aí não podem, nem podem os daí passar para cá’.”. – Lucas 16: 19-31, New King James Version, tradução própria.

Não obstante tais evidências bíblicas, chanceladas por obras sérias de referência, alguns que professavam o Cristianismo, especialmente a partir do século 19, passaram a acreditar que a morte do corpo é acompanhada também pela morte da alma, e a pessoa deixa de existir totalmente, como se nunca tivesse nascido (mais informações na seção 7). Esse pensamento tem sido chamado por comentaristas de “materialismo”, que é comumente crido por ateus. Sobre isso, disse a Enciclopédia Católica:

“Conforme o próprio significado da palavra, Materialismo é o sistema filosófico segundo o qual a matéria é a única realidade no mundo, responsável por explicar cada evento no universo como sendo resultado das condições e atividades da matéria, e que assim nega a existência de Deus e da alma. É diametralmente oposto ao Espiritualismo e o Idealismo, os quais, e no que tange a isso eles são unilaterais e exclusivos, declaram que cada coisa no mundo é espiritual, e que o mundo e até a matéria são em si concepções ou ideias no campo do pensamento”. – Enciclopédia Católica, versão on line, verbete “Materialismo”.

Se alguém está vivo e consciente apenas devido ao funcionamento da máquina biológica do corpo, é óbvio que quando esse mecanismo físico pára de funcionar a pessoa deixa de existir completamente. Importar essa ideia para dentro da Bíblia é algo inédito na história do Cristianismo, embora se saiba que dois grupos isolados tenham aparecido querendo ensinar algo parecido com isso, os saduceus da época de Cristo, conforme já mencionado, e uma comunidade cristã árabe do século 3, que depois abandonou essa opinião, pois, com a ajuda de Orígenes, chegaram à conclusão que não havia um fundamento sólido nas Escrituras que a justificasse.

De acordo com os que defendem esse novo ensinamento “cristão”, a ressurreição consistirá em algo que lembra uma superclonagem seguida de uma transferência gigantesca de informações, quando Deus criará uma réplica perfeita do corpo da pessoa falecida e depois de fazê-lo funcionar implantará em seu cérebro vazio as lembranças de quem outrora viveu. Deste modo, quando essa nova pessoa acordar, achará que é aquele que morreu tempos antes. Sim, os que acreditam nisso não se dão conta que esse “ressuscitado” será outra criatura, embora uma simples abstração possa revelar tal fato: E se Deus resolvesse fazer isso antes mesmo da pessoa original falecer? Um paradoxo seria gerado, pois duas pessoas distintas passariam a viver com as mesmas lembranças e características, embora a pessoa número 2, a partir de sua criação, certamente iria construir sua própria história no mundo, e ambas passariam a possuir lembranças que diriam respeito somente a cada uma delas, fruto de suas próprias experiências individuais desse momento em diante. Veja mais detalhes sobre isso na seção 7.

Os adeptos dessa crença religiosa recém-criada também têm sido chamados de “aniquilacionistas”, embora a ortodoxia cristã use esse termo para se referir apenas aos que acham que as almas não serão atormentadas na Geena depois do Juízo Final, mas sim destruídas ou aniquiladas. O primeiro cristão a ensinar isso foi o apologista Arnóbio de Sica, no século 4. Ele acreditava que o homem tem uma alma que continua viva depois da morte do corpo. Entretanto, negou a crença do tormento eterno dos pecadores impenitentes. Ou seja, Arnóbio não era materialista, apenas divergiu do ensino aceito pelas comunidades cristãs de que os injustos serão atormentados para sempre. Sobre o histórico dessa crença, diz uma obra de referência:

Imortalidade condicional (também conhecida como aniquilacionismo). Uma teoria segundo a qual a imortalidade não é um atributo necessário da alma imaterial, mas condicionada ao seu comportamento durante a vida do corpo. Embora essa opinião tenha um representante solitário no quarto século, o autor cristão africano Arnóbio, ela nunca foi aceita pela Cristandade até tempos recentes, exceto em casos isolados de especulação filosófica, e foi formalmente condenada no Quinto Concílio de Latrão em 1513. No século 19, entretanto, ela encontrou favor de muitos pensadores como sendo uma maneira possível de imputar tal destino aos iníquos impenitentes, não aceitando assim a doutrina ortodoxa da punição eterna ou a teoria do universalismo de Orígenes. Ela foi elaborada por Edward White, um ministro Congregacional, no seu Life in Christ (1846; expandido e todo reformulado em 1875), onde pretendeu provar pelas Escrituras que a ‘Imortalidade é um privilégio peculiar dos regenerados’, e a teoria encontrou alguns adeptos entre ingleses e americanos bem como pensadores estrangeiros. Foi novamente exposta de uma maneira mais suave por J. Martineau, segundo o qual os iníquos não seriam aniquilados, mas perderiam seu modo de ser pessoal, e esta crença foi admitida como tolerável por C. Gore. O ensinamento da mortalidade da alma é geralmente considerado como em oposição à doutrina cristã do homem e a dignidade e responsabilidade da alma humana. No entanto, ele tem sido recentemente revivido por alguns teólogos evangélicos, que sustentam que a aniquilação ocorre depois de um período de tormento no Inferno”. – The Oxford Dictionary of the Christian Church, 1997, verbete “Imortalidade Condicional”, p. 393.

Edward White “rejeitava o termo ‘aniquilacionismo’ e, diferentemente de outros condicionalistas, sugeria haver um estado intermediário da alma entre a morte física e a ‘segunda morte’ no Juízo Final, quando as almas dos ímpios cessariam de existir. Atraído pela teoria darwinista, ele descrevia o dom da imortalidade como um tipo de ‘seleção natural moral’: ‘O Novo Testamento não ensina a sobrevivência dos mais fortes, e sim a sobrevivência dos mais aptos’ – isto é, aqueles que possuem fé no amor redentivo de Deus” (A História do Inferno: 1800 d.C., Christian History, 2011, traduzido por Vinicius Musselman Pimentel, negritos acrescentados). Como se nota, o tipo de aniquilacionismo defendido por White era o mesmo de Arnóbio nos tempos antigos, que não vislumbrava a extinção total e imediata da pessoa depois da morte. E ao contrário do que muitos imaginam, Darwin não era ateu e incluía Deus em sua teoria. Só depois que o evolucionismo se misturou com ideias marxistas e outras é que ele se tornou um dos pilares do materialismo científico e ateísta contemporâneo.

Para mais informações, veja “Criacionismo versus evolucionismo: literalismo religioso e materialismo darwiniano em questão”, de Nélio Bizzo, publicado em Filosofia e História da Biologia, v. 8, n. 2, p. 301-339, 2013, e considere adicionalmente o que está apresentado na seção 7.

 

2. O QUE AS OBRAS CITADAS PELOS ANIQUILACIONISTAS REALMENTE ENSINAM

Se você acha que a incoerência dos que divulgam o aniquilacionismo materialista se limita apenas ao que foi mencionado até aqui se enganou. Eles conseguem ir muito mais além. Lembra daquelas duas obras citadas no início? Juntamente com o dicionário supracitado de Oxford, elas fazem parte de um rol de publicações teológicas que têm sido utilizadas pelos referidos aniquilacionistas para “provar” o ponto de vista deles. Em especial um deles, que escreveu um longuíssimo texto com o intuito de refutar aquilo que venho escrevendo sobre o aniquilacionismo e que está disponível em algumas páginas do meu site.

Na primeira parte de um livro que escrevi eu comento alguns trechos que esse meu crítico escreveu. Infelizmente eu não tenho o tempo necessário para abordar tudo, embora as falhas estejam presentes de ponta a ponta no que ele escreve, e poderiam receber a devida consideração. Detalhe: ele não me menciona nominalmente, pois diz que o tratamento ad hominem não combina com uma postura cristã (ainda que os primeiros apologistas cristãos tenham feito exatamente isso), e me chama apenas de “os imortalistas”.

Pois bem, esse escritor, a quem chamarei a partir de agora de “autor do MB” ou “bereano”, está sempre acrescentando informações em seu artigo crítico, dando a ele uma aparência de muita erudição. Um acréscimo recente que ele fez apareceu na forma de um apêndice com 51 obras de referência, inclusive as duas que citei no começo, que supostamente apoiariam as ideias materialistas que ele sustenta. Algum tempo depois ele transformou o referido apêndice em um artigo à parte, talvez para dar maior visibilidade ao mesmo, e acrescentou outras referências, totalizando 115 obras até à data em que a escrita deste livro foi concluída.

Note a seguir o que as 51 publicações inicialmente citadas de fato dizem sobre o assunto aqui em pauta. As demais estão comentadas na seção 8. Na maioria dos casos, os trechos escolhidos são apenas uma visão panorâmica do que os autores escreveram, e as partes transcritas podem ter sido extraídas de várias páginas e parágrafos distintos, mas sem desvirtuar o contexto e a intenção de cada autor. Em outros, porém, apresentei citações um pouco maiores e diversificadas. Quando necessário há um comentário após cada citação. Em uma eventual segunda edição deste livro poderei ampliar o que foi apresentado de cada obra, especialmente onde os excertos estão muito resumidos. De qualquer modo, as amostras abaixo expostas são mais do que suficientes para o propósito da presente pesquisa.

- Os negritos, sublinhados e destaques em azul ou vermelho são meus, exceto nos casos indicados.

- Se quiser ler apenas um breve resumo das citações de cada obra, vá para a seção 3. Mas sugiro que leia na íntegra ao menos a referência nº 99 e o comentário sobre ela, que estão na seção 8. Neste caso, para saber qual é o erro “1” que foi mencionado lá, consulte a explicação que está na seção 4.

- Caso esteja lendo diretamente no meu site, ao clicar no título de cada livro ou periódico você será encaminhado à lista completa de obras citadas pelo autor do MB que foram analisadas aqui.

1) Commentary Critical, Practical and Explanatory on the Old and New Testaments, de Robert Jamieson e outros (1871)

Note o que diz essa obra sobre os textos a seguir:

a) Gênesis 37:35

Levantaram-se todos os seus filhos e todas as suas filhas para o consolarem, mas ele não quis ser consolado; e disse: Pois com choro hei de descer para meu filho ao Sheol.

“Não na terra, pois foi suposto que José tinha sido despedaçado, mas o lugar desconhecido - o lugar das almas que se foram, onde Jacó esperava na morte se encontrar com seu filho amado”. Vol. 1, pp. 23, 24.

b) 1 Samuel 28:8, 11

Ele [Saul] disse a ela: ‘Invoque um espírito para mim, fazendo subir aquele cujo nome eu disser’... ‘Quem devo fazer subir?’, perguntou a mulher. Ele respondeu: ‘Samuel’.

“Muitos [foram levados] a pensar que isso era um mero engano. Por outro lado, muitos escritores eminentes são da opinião de que Samuel realmente apareceu (considerando que a aparição veio antes de suas artes serem postas em prática, que ela mesma ficou surpresa e alarmada, que a previsão da própria morte de Saul e da derrota de suas forças foi confiantemente feita)”. Vol. 1, p. 189, colchetes acrescentados.

c) Mateus 10:28, 29

Não tenham medo dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes, tenham medo daquele que pode destruir tanto a alma como o corpo no inferno.

“Mas sim temer... aquele que é capaz de destruir a alma e corpo no inferno - Uma prova decisiva de que existe um inferno para o corpo, assim como existe para a alma no mundo eterno; em outras palavras, que o tormento que aguarda os perdidos terá elementos de sofrimento adaptados ao aspecto material, bem como à parte espiritual de nossa natureza, os quais assegura-se que existirão para sempre. Na advertência correspondente contida em Lucas (Lucas 12: 4), Jesus chama seus discípulos ‘Meus amigos’, como se Ele tivesse sentido que tais sofrimentos constituíam um vínculo de peculiar ternura entre Ele e eles”. Vol. 2, p. 38.

d) Lucas 16:23

No Hades, onde estava sendo atormentado, ele olhou para cima e viu Abraão de longe, com Lázaro ao seu lado.

No inferno [Hades] - não o lugar final do perdido (para o qual uma outra palavra é usada), mas, como dizemos ‘o mundo invisível’. Mas como o objeto aqui é certamente retratar todo o tormento de um e a felicidade perfeita do outro, ele vem neste caso com muito do mesmo [sentido]. Vol. 2, p. 118, 119, colchetes acrescentados.

e) 1 Pedro 3:18-20

[Cristo] foi morto no corpo, mas vivificado pelo Espírito, no qual também foi e pregou aos espíritos em prisão que há muito tempo desobedeceram, quando Deus esperava pacientemente nos dias de Noé.

“Não que Seu Espírito tenha morrido e vivificado, ou vivificado novamente, mas depois que Ele viveu segundo a maneira dos homens mortais na carne, Ele começou a viver a vida da ‘ressurreição’ espiritual (1 Pedro 3:21), segundo a qual Ele tem o poder de nos levar a Deus. Duas maneiras de explicar 1 Pedro 3:19 estão abertas para nós: (1) ‘Vivificado no Espírito’, isto é, imediatamente em Seu despreendimento da ‘carne’, a energia de Sua vida eterna foi ‘vivificada’ por Deus, o Pai, em novos modos de ação, isto é, ‘no Espírito Ele desceu (como subseqüentemente Ele subiu ao céu, 1 Pedro 3:22, o mesmo verbo grego) e anunciou aos espíritos na prisão (do Hades ou Sheol...)... que Sua obra tinha terminado. . . . (Seu Espírito falando aos espíritos) ‘Os que foram desobedientes antigamente e aguardavam julgamento’, (2) O ponto mais forte em favor de a posição de o ‘há muito’ significar na Antiguidade, conectado com ‘desobedientes’; Também, não Seu Espírito, mas Sua alma, foi para o Hades. Seu Espírito foi encomendado por Ele na morte a Seu Pai, e foi então ‘ao Paraíso’. A teoria exigiria assim que Sua descida aos espíritos na prisão deveria ser após Sua ressurreição! Compare com Efésios 4: 9-10, que faz a descida preceder a ascensão. A Escritura também é silenciosa em outros lugares sobre esse tal anúncio, embora possivelmente a morte de Cristo tenha tido efeitos imediatos sobre a situação tanto dos piedosos quanto dos ímpios no Hades: as almas dos piedosos até então em confinamento comparativo, talvez então tenham sido, como alguns Pais [da Igreja] pensaram, levadas para à presença celestial e imediata de Deus. . . . Como ‘Ele veio e pregou a paz’ pelo Seu Espírito aos apóstolos e ministros após Sua morte e ascensão: assim antes de Sua encarnação Ele pregou em Espírito através de Noé para os antediluvianos. . . . e pregou aos espíritos na prisão, ou seja, os antediluvianos, cujos corpos pareciam livres, mas seus espíritos estavam na prisão. . . . Cristo, que em nossos tempos veio na carne, nos dias de Noé pregou em Espírito por Noé aos espíritos então na prisão. . . . [Cristo] foi vivificado em virtude de seu ‘Espírito’ (ou natureza divina, Romanos 1:3, 1 Coríntios 15:45), que agora atuou em toda a sua energia, cujo primeiro resultado foi a elevação do Seu corpo (1 Pedro 3:21...) da prisão do túmulo e Sua alma do Hades”. Vol. 2, pp. 541, 542, colchetes acrescentados.

Commentary Critical, Practical and Explanatory on the Old and New Testaments, Robert Jamieson, A.R. Fausset and David Brown, 1871, Volume 1 e Volume 2.

Comentário:

Como se vê, os autores dessa obra mostram que a Bíblia ensina que as almas dos que morreram estão conscientes no Hades, ou Seol, ainda que haja dúvidas com respeito a determinados detalhes e eventos relacionados ao mundo dos mortos. (Observa-se também que eles usam livremente a forma latinizada de Hades, que é “Inferno”). É o caso da pregação aos espíritos em prisão. (1) Uma corrente defende que depois de sua ressurreição Jesus foi até o Hades e pregou aos espíritos dos que tinham sido desobedientes na época de Noé, e (2) outra interpretação sustenta que Jesus pregou para tais pessoas através de Noé antes do Dilúvio, mas que na época da carta de Pedro elas não existiam mais e eram apenas espíritos no mundo dos mortos. (3) E ainda há quem pense que esses espíritos são os anjos que pecaram na época de Noé, apesar dessa ser a hipótese menos provável. De qualquer modo, seja qual for o entendimento que se tenha sobre essa passagem, os eruditos sempre concordam que o Hades, a habitação dos mortos, é, na verdade, a moradia das almas ou espíritos dos mortos. Embora quando se refira à morte o Antigo Testamento costume dizer que o Seol é o lugar da alma, e não do espírito, pouco antes da época de Jesus houve uma tendência generalizada de intercambiar esses dois termos (“almas” e “espíritos”), e isto se refletiu no Novo Testamento, estando presente até hoje no linguajar judaico-cristão.

Com tantas informações em prol do entendimento de que a alma do homem sobrevive à morte do corpo, é realmente inacreditável que alguém se sinta à vontade para usar essa enciclopédia bíblica para contradizer tal crença e insinuar que ela contém alguma coisa que favoreça ideias materialistas ou aniquilacionistas. A seção 4 tratará sobre o que levou o autor do MB a tal imprudência desmedida.

2) The Jewish Encyclopedia, de William Popper e outros (1901-1906)

Tal como todos os povos antigos, os hebreus primitivos acreditavam que os mortos descem para o mundo subterrâneo e vivem ali uma existência pálida (Isaías xiv, 15-19, Ezequiel, xxxii, 21-30) . . . . Uma visão diferente, que tornou uma ressurreição desnecessária, foi abraçada pelos autores dos Sal[mos]. xlix e lxxiii, que acreditavam que na morte apenas os ímpios iriam para o Seol e que as almas dos justos partiriam diretamente para Deus”.

The Jewish Encyclopedia, [Enciclopédia Judaica], Nova Iorque e Londres, Funk & Wagnalls Co., 1901-1906, Vol. 10, verbete “Ressurreição”, p. 382.

3) The International Standard Bible Encyclopedia, de James Orr e outros (1915)

“Seja qual for o ponto de vista assumido a respeito do desenvolvimento da doutrina da imortalidade da alma no A[ntigo] T[estamento] (veja Escatologia do AT), dificilmente haverá dúvida que é completamente assumido no N[ovo] T[estamento] que as almas dos homens, bons e maus, sobrevivem à morte (veja Imortalidade). Só há necessidade de se referir a duas passagens para provar isso: uma, os dizeres de Cristo em Mt 10 28: ‘Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes disso, temam aquele que pode destruir tanto a alma quanto o corpo no inferno’ (Geena); a outra, a parábola do Homem Rico e Lázaro em Lc 16 19-31: Lázaro é carregado pelos anjos ao seio de Abraão; o rico levanta os seus olhos no Hades, estando em tormentos. Toda a doutrina do futuro julgamento no Novo Testamento pressupõe a sobrevivência após a morte”.

The International Standard Bible Encyclopedia [Enciclopédia Bíblica Padrão Internacional], EUA, 1915, Vol. 4, verbete “Punição”, p. 2502.

4) Jewish Theology: Systematically and Historically Considered, de Kaufmann Kohler (1918)

“Até muito depois do Exílio, os judeus compartilhavam o ponto de vista do inteiro mundo antigo, – tanto das nações semíticas, tais como os babilônios e fenícios, quanto das arianas, a exemplo dos gregos e romanos, – de que os mortos continuavam a existir em uma morada sombria do mundo subterrâneo (Seol), a terra da qual não há retorno (Beliyaal), de eterno silêncio (Dumah), e esquecimento (Neshiyah), uma existência tediosa e fantasmagórica, sem uma consciência clara e sem nenhuma expectativa de uma vida melhor. . . . Tão tarde quanto o autor do livro de Jó e dos primeiros Salmos, o Seol era conhecido como o déspota do mundo inferior com suas formas demoníacas, como o 'rei dos terrores’ que estende seu cetro sobre os mortos. . . . No decurso do tempo, porém, a questão da existência depois da morte demandou mais e mais respostas satisfatórias”.

Jewish Theology: Systematically and Historically Considered, [A Teologia Judaica: Considerada Sistematica e Historicamente], Kaufmann Kohler, 1918 (republicado várias vezes), p. 279.

5) Die Letzten Dienge: Lehrbuch der Eschatologie, de Paul Althaus (1926)

“O corpo e a alma desaparecem. A morte é o colapso do homem em um poço sem fundo... É uma partida para o nada... A morte é mais do que uma saída da alma do corpo. A pessoa, corpo e alma, está envolvida na morte... A fé cristã nada sabe sobre uma imortalidade da pessoa. Isso significaria uma negação da morte, não reconhecê-la como julgamento de Deus. Ela conhece apenas um despertar da morte real por meio do poder de Deus. Só há existência após a morte por um despertar da ressurreição da pessoa inteira”.

Die Letzten Dienge: Lehrbuch der Eschatologie, de Paul Althaus, C. Bertelsmann Verlag, Gütersloh, Germany, 1957, pp. 83, 157.

Comentário:

Nota-se no trecho acima que Althaus diz que a pessoa é a alma com o corpo (pessoa = alma + corpo). Em seguida diz que a fé cristã não conhece a imortalidade de nenhuma pessoa. Isto é absolutamente verdadeiro! Aliás, é um fato evidente para qualquer sistema de crenças, pois não há ser humano que não morra. Depois da morte é a alma que permanece em existência, e sua imortalidade definitiva só será selada depois da ressurreição, quando estará novamente unida ao corpo físico. É nesse momento que o ser humano pleno voltará à existência. E a fórmula apresentada nessa explicação também difere de uma conclusão do autor do MB de que alma é sempre sinônimo de “pessoa” (humana). Se isto fosse verdade invalidaria a supracitada igualdade (pessoa = pessoa + corpo?).

E com respeito à partida para o poço sem fundo, o Seol, ele é um “nada” apenas no sentido de que é um lugar desolado e esquecido, sem atividades humanas. É como quando alguém se encontra em um lugar ermo e diz: “Vim parar no meio de lugar nenhum”.

Embora as palavras de Althaus possam ser entendidas da maneira acima descrita, caso se leve em consideração o verdadeiro cenário bíblico, é óbvio que esse trecho pode ser compreendido também à maneira aniquilacionista. E desta vez não é por causa de um eventual erro de leitura ou desconsideração de contexto autoral. Paul Althaus realmente é um teólogo que deixou a porta entreaberta para o aniquilacionismo. Mas em outro texto ele se explicou melhor, indicando que realmente existe um dualismo corpo-alma na Bíblia, e que não há conflito entre a ideia cristã de existência continuada e a ressurreição futura. Veja mais detalhes sobre essa “retratação” de Paul Althaus na seção 4.

6) Dictionnaire Encyclopedique de la Bible, de Alexandre Westphal e outros (1935)

“Em muitas passagens, a palavra alma refere-se à parte imaterial do homem (Sl 19,8; Salmo 33:20; Sl 63,2; Sl 74,19; Salmos 84.3; Salmos 86,4; Is 55,3; Mateus 10:28). . . . [Hades é a] palavra grega usada para se referir à morada dos mortos, e que o Novo Testamento usa para designar o hebraico Seol. . . . O Hades tem sido costumeiramente apresentado como um abismo debaixo da terra; e os que lá ficam estão reduzidos a meras sombras, os espíritos dos mortos . . . . No entanto, elas são sombras terríveis. São evocadas. Anunciam o futuro (Samuel disse a Saul: 1 Samuel 28,11-19). Perscrutam a própria morada. O olhar do profeta acompanha a queda do rei até lá embaixo (Isaías 14:[9-20]; e a seguir, Ezequiel 32:18)”.

Dictionnaire Encyclopedique de la Bible [Dicionário Enciclopédico da Bíblia], Valence, França; 1935, editado por Alexandre Westphal, verbetes “Alma”, “Hades” e “Descida ao Inferno”, pp. 204, 1393 e 2158, colchetes acrescentados.

7) The Distinctive Ideas of the Old Testament, de Norman H. Snaith (1944)

“[As ideias distintivas da religião do Antigo Testamento] são diferentes das ideias de qualquer outra religião. Em particular, elas são bem distintas das ideias da religião grega. Em particular, elas são bem distintas das ideias dos pensadores gregos. O alvo da religião hebraica era Da'ath Elohim (o Conhecimento de Deus); o alvo do pensamento grego era Gnothi seauton (Conheça a ti mesmo). Entre estes dois objetivos há um grande abismo. Não vemos como possa haver qualquer harmonia entre eles. Eles são fundamentalmente diferentes na premissa a priori, no método de abordagem e na conclusão final.

“O cristianismo tradicional tem procurado encontrar um meio termo, combinar Sião e a Grécia no que se defende ser uma síntese harmoniosa. O Novo Testamento tem sido interpretado de acordo com Platão e Aristóteles, e as ideias distintivas do Antigo Testamento foram deixadas de lado. Aqui está a causa da negligência moderna do Antigo Testamento. A ‘justiça’ de Aristóteles substituiu a ‘justiça’ do Antigo Testamento. O logos spermatikos dos estoicos suplantou amplamente o Espírito Santo. A doutrina inteiramente não bíblica da imortalidade da alma humana é amplamente aceita como uma doutrina cristã típica. Platão é de fato ‘divino’, e Aristóteles ‘o mestre daqueles que sabem’...

“Encontramos apenas dois trechos [bíblicos] que falam de uma ressurreição à vida além do túmulo, e absolutamente nenhum que fale sobre alguma imortalidade da alma, que não é uma ideia bíblica de maneira alguma. Um trecho é Isaías 26:19, onde os mortos israelitas deverão se levantar do pó e viver. Isso está no trecho de Isaías 24-26, provavelmente do início do terceiro século A.C., na época das rivalidades dos ptolemaicos com os selêucidas na Palestina. O outro é Daniel 12:2 (primeira metade do século II AC), onde lemos sobre uma ‘ressurreição geral’ parcial, ‘alguns para a vida eterna, e alguns para vergonha e desprezo eterno’. . .

Não encontramos essa abordagem dos gregos em nenhum lugar da Bíblia. Toda a Bíblia, o Novo Testamento, bem como o Antigo Testamento, baseia-se na atitude e abordagem hebraicas. Somos da firme opinião de que isso deveria ser mais reconhecido por todos. Está claro para nós, e esperamos ter deixado claro nestas páginas para outros, que existe muitas vezes uma grande diferença entre a teologia cristã e a teologia bíblica. Ao longo dos séculos, a Bíblia foi interpretada num contexto grego, e até mesmo o Novo Testamento foi interpretado com base em Platão e Aristóteles. Isto pode ser justificável, mas consideramos que aqueles que adotam esse método de interpretação deveriam perceber o que estão fazendo e deveriam deixar de sustentar que estão baseando sua teologia na Bíblia.”

The Distinctive Ideas of the Old Testament, de Norman Henry Snaith, Epworth Press, London, UK, 1944, pp. 9, 89, 185.

Comentário:

Certamente Norman Snaith, um catedrático de Oxford, foi um dos que rejeitaram qualquer possibilidade de comunicação entre o helenismo e a Bíblia, embora o mundo judaico-cristão desde a época de Jesus esteja repleto dessa mistura, conforme o próprio Snaith admite. Também é de admirar que nenhum escritor do Novo Testamento tenha combatido essas coisas, tal como fazem esses teólogos atuais de discurso preponderantemente monista, como se isto fosse uma questão de honra para o Cristianismo. De qualquer maneira, é correto dizer que o conceito grego sobre a alma não é bíblico, porém dentro do contexto correto. Consulte o apêndice A para mais informações.

Mesmo encarando o assunto sob a óptica completamente hebraica, segundo a qual o homem é chamado de “alma” e por isso a alma morre (isto é, o homem morre), não resulta de modo algum na ideia de completa aniquilação, conforme preconizado pelo materialismo, que é uma ideia bem posterior à criação da nação de Israel, conforme está comentado na seção 7. E Snaith, como bom conhecedor da cultura hebraica, sabia disso. Esta é a razão porque ele também afirmou o seguinte em outros dois textos:

“O Sheol é a terra dos fantasmas... fracos e desamparados, sem vida em si mesmos”. – “Vida após a Morte: A Doutrina Bíblica da Imortalidade”, Interpretação I, N. H. Snaith, 1947, pp. 309-24, citado em The Interpreters Bible, 1954, Volume III, de Norman Snaith, p. 24.

É verdade que os hebreus dos tempos primitivos falavam do Seol como sendo a morada dos espíritos dos mortos, mas o Seol era essencialmente um mundo morto, um mundo sem esperança e sem desejo”. – Have Faith in God (Tenha Fé em Deus), The Epworth Press, 1935, de Norman Snaith, p. 22.

Ou seja, para os hebreus primitivos alguma coisa do ser humano sobrevivia literalmente à morte, e experimentava uma existência sombria no mundo subterrâneo. Era devido a essa realidade lúgubre que os hebreus não consideravam tal experiência no Além uma verdadeira vida, já que achavam que se tornariam fantasmas num lugar estranho e deprimente. À medida que as obras aqui forem sendo citadas ficará claro ao leitor tal cenário que os israelitas concebiam sobre o mundo dos mortos, que não tinha nada de simbólico, mas era tido como algo realmente existente, fora do alcance dos seres humanos, exceto pela morte, e só Deus sabia ao certo o que acontecia em tal lugar (Sheol). Informações adicionais pertinentes ao Seol podem ser vistas também na seção 5.

E sobre o que Snaith afirmou sobre o tratamento que os antigos cristãos deram aos filósofos gregos em relação ao Novo Testamento, qualquer estudioso do assunto sabe que a teologia cristã resultante desse processo não surgiu imediatamente depois da era apostólica. Conforme o próprio Snaith mencionou, isso aconteceu ao longo dos séculos. No entanto, o método de interpretação da filosofia grega que foi gradualmente aproveitado por teólogos cristãos nada contribuiu para a crença que a igreja primitiva sempre teve na sobrevivência imediata depois da morte. Um exame da literatura cristã do século II revela esse fato, pois nessa época ainda não existia a teologia cristã a que Snaith se referiu, pois ela surgiu somente no tempo de Orígenes. Nos dois textos a seguir você terá acesso a um farto material antigo que comprova o que estou dizendo:

O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?

A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?

8) The Interpreter’s Dictionary of the Bible, de George Arthur Buttrick (1952)

“Na morte, a unidade do ser humano é destruída e ele perde vitalidade. A nephesh ou ‘alma’ (veja acima, pags. 367-68), portanto, não continua a existir. Ela se desintegra, ou como no caso do servo sofredor, diz-se que ela é ‘derramada’ como uma oferenda à morte (Isaías 53:12). Os mortos são como águas ‘derramadas na terra que já não se podem juntar.’ . . . . Isso não significa, porém, que a existência cessa. O homem continua a viver, embora em um estado muito fraco, no submundo do Seol, junto com os que passaram para este reino antes dele. Lá ele subsiste nas trevas (Jó 10:21-22), numa espécie de sono (Naum 3:18), na fraqueza (Isaías 14:10), no esquecimento (Salmo 88:12). Assim, a existência no Seol era concebida como o oposto da vida”.

The Interpreter’s Dictionary of the Bible [Dicionário Bíblico do Intérprete], George Arthur Buttrick, Abingdom Press, EUA, 1952, Vol. 1, pp. 370, 371.

Comentário:

Era costume do povo hebreu, e em certa medida de outros povos também, usar a palavra “alma” (nephesh) com o sentido de “ser humano” ou a pessoa em si (o “eu”). Por uma implicação lógica, a morte então significava o fim da nephesh. Ou seja, o fim de uma pessoa de carne e osso. No entanto, isso era apenas uma questão de enfoque, pois não existe a menor dúvida que eles acreditavam que permaneceriam vivos no mundo sombrio do Seol, porém não com o corpo humano que tinham, mas na forma que é própria de quem vive lá, os comumente chamados espíritos dos mortos. “Não deixarás a minha alma no Seol”, disse o salmista (Sal. 16:10). Visto que o Seol era entendido como estando nas regiões profundas da Terra, obviamente essa “alma” que seria retirada de lá não era o corpo que estava se decompondo, quilômetros acima, em uma sepultura. Até o final desta minha análise esse ponto será retomado e tratado com mais detalhes.

9) The Encyclopedia Americana (1959)

a) Verbete “Ressurreição”, Vol. 23, pp. 422-425:

“A raça humana, na sua criação, foi dotada com o dom sobrenatural da imortalidade. No alvorecer da vida humana, a separação da alma do corpo na morte foi impedida pela providência especial de Deus. A árvore da vida estava no meio do Éden (Gênesis 3); e comer do fruto dessa árvore estava de alguma forma associado à imortalidade do corpo animado de Adão. Javé pretendia perpetuar essa união preternatural e imortal da alma do homem com seu corpo, se Adão não tivesse pecado...

“Assim como o corpo e a alma são separados na morte, por causa do pecado do primeiro Adão; então o corpo e a alma ficam juntos depois da morte [através da ressurreição] por causa do mérito do segundo Adão (1 Cor. xv, 20-23)... tanto os justos quanto os injustos se levantarão para a imortalidade nos mesmos corpos que foram animados pela alma antes de morrerem. Não seria uma ressurreição se os mortos não se levantassem em seus próprios corpos. Estes corpos idênticos, em toda a sua totalidade, serão então transformados na ressurreição para serem imortais... Para o justo, esta imortalidade do corpo transformado será uma felicidade eterna; ao injusto, uma tortura que nunca acabará. Esta tortura está vividamente descrita em Mat. v. 29, 30; xxv, 41-46; Marcos, ix, 43-49 e Apoc. ix. Na última perícope é dito que as torturas impingidas aos maus ‘não os permitirão morrer.’ Os torturados ‘procurarão a morte, mas não a encontrarão; desejarão morrer, mas a morte fugirá deles’ (Apoc. ix, 5, 6)…

“[Conforme se depreende das explicações de Paulo em 1 Cor. 15:35-41 e 1 Tess. 4:16-18, o corpo do justo ressuscitado terá quatro qualidades] A primeira destas qualidades é a impassibilidade, através da qual o corpo glorificado não estará sujeito à dor e estará para sempre livre das mudanças orgânicas que resultam na morte... (verso 53). A segunda qualidade do corpo glorioso levantado é a glória, ou o brilho, através da qual os corpos dos santos serão refulgentes e deslumbrantes em beleza, e ‘brilharão como o sol’ (Mat. xiii, 43)... A terceira qualidade dos corpos dos justos ressuscitados é a agilidade, pela qual o corpo ressurrecto estará livre do impedimento da gravidade e se moverá como muita rapidez pelo espaço assim como fazem os espíritos... A quarta qualidade do corpo ressuscitado é a subtilidade, através da qual ele se torna espiritualizado ou como um espírito, passando através de objetos materiais tal como fez o corpo glorificado de Cristo, e estará sob o absoluto controle da alma. ‘Assim será com a ressurreição dos mortos. O corpo que é semeado é perecível e ressuscita imperecível; é semeado em desonra e ressuscita em glória; é semeado em fraqueza e ressuscita em poder; é semeado um corpo natural e ressuscita um corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual’ (I Cor. xv. 42-44)”.

b) Verbete “Imortalidade”, Vol. 14, pp. 716-718:

“O Sheol, ou o reino das sombras, aparece na história primitiva dos judeus como uma amplificação da ideia do túmulo, como a morada escura dos espíritos que partiram, onde as almas vivem sem corpo, inconscientes, sem sentimentos. As referências na primeira parte das Escrituras do Antigo Testamento a uma vida futura são raras e vagas, e a doutrina da imortalidade da alma não é explicitamente ensinada em parte alguma nos livros primitivos. Os ritos de necromancia eram desencorajados pelos profetas e legisladores do antigo Israel como antagônicos à crença no Deus da vida, cujo reino excluía o Sheol (ou o reino dos mortos), até os tempos pós-exílicos. A vida eterna pertence unicamente a Deus e aos seres celestiais que comeram da árvore da vida e viverão para sempre. Em conexão com a esperança messiânica e sob a influência de ideias gregas e persas, os judeus mais tarde adotaram uma doutrina da ressurreição do corpo que abriu espaço para a crença na vida contínua da alma . . . .

“Nos profetas tanto do período assírio como do babilônico, a redenção de Israel da servidão à Assíria e de Judá à servidão babilônica é um tipo de ressurreição da escravidão ao pecado para o mundo. A libertação sagrada do escravo ao pecado, por meio da mediação do Messias, é completada na gloriosa ressurreição do corpo. É por isso que Isaías de vez em quando é inspirado a mudar seu pensamento da salvação de Israel ou de Judá para a da alma do homem pela reunião com seu corpo em glória...

“.... A crença escatológica judaica corrente, no início da era cristã, é manifestada por Marta em relação ao seu irmão Lázaro: ‘Eu sei que ele se levantará na ressurreição no último dia’ (João 11:24)....

“Ele disse a Marta: ‘Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente.’ (João 11:25, 26). A caridade receberá sua ‘recompensa na ressurreição dos justos’ (Luc. 14:14). Os injustos também ressuscitarão dos mortos para serem punidos pelos seus pecados (Mat. 5:29, 30; Marcos, 9:43-49); Eles irão, alma e corpo, para o inferno (Mat. 10:28). Na Parousia, os justos ressuscitados ficarão à direita e os injustos ressuscitados à esquerda do Juiz. Ele pronunciará a sentença de condenação dos últimos ao fogo eterno, e de acolhida dos primeiros à felicidade eterna (Mat. 25:31-46)...”

c) Verbete “Morte”, Vol. 8, p. 540, 541:

“De acordo com Homero, o Sono e a Morte são gêmeos, e Hesíodo os chama de filhos da Noite. São muitas vezes retratados juntos em camafeus, etc. Durante o período mais próspero das artes a Morte foi representada nos túmulos como um gênio amigável com uma tocha invertida, e segurando uma coroa de flores na mão; ou como uma criança com asas dormindo, com uma tocha invertida descansando em sua coroa de flores. O sono foi representado da mesma maneira, exceto que a tocha e a coroa de flores foram omitidas. De acordo com uma ideia originária do Oriente, a morte na flor da juventude era atribuída ao apego de uma divindade particular, que arrebatava seu favorito a um mundo melhor... Eurípides, em sua ‘Alcestis’, até mesmo introduziu a Morte no palco, em uma túnica preta, com um instrumento de aço na mão, para cortar o cabelo de suas vítimas, e assim devotá-las aos deuses infernais”.

d) Verbete “Alma”, Vol. 25, p. 269:

“[Para o filósofo grego Platão] A alma é imortal e incriada e os universos de nossos conhecimentos são apenas a lembrança do que se aprendeu em uma vida anterior. A alma não pode ser destruída, pois ela participa da própria ideia da vida. [Para Platão] O corpo é a prisão da alma e impede que ela volte para sua casa no reino das Ideias. [Para Platão] Cada alma contém três partes - uma desiderativa, uma espirituosa e uma racional. A alma em que o racional prepondera retomará aquela vida de que todas as almas participaram originalmente - a vida abençoada de uma estrela”.

Trecho da edição de 1977, Vol. 25, p. 236:

“O conceito de homem no Antigo Testamento é o de uma unidade, não de uma união de alma e corpo. Embora a palavra hebraica nephesh seja frequentemente traduzida como ‘alma’, seria impreciso ler nela um significado grego... [Nephesh] jamais é concebida como operando separadamente do corpo. No Novo Testamento, a palavra grega psykhe é frequentemente traduzida como ‘alma’, mas, novamente, não deve ser prontamente entendida como tendo o significado que a palavra tinha para os filósofos gregos”.

e) Verbete “Necromancia”, Vol. 20, p. 55:

“[Necromancia é a] Arte de adivinhar o futuro por conjurar os espíritos dos mortos e os questioná-los. O Antigo Testamento faz menção desse ritual supersticioso antigo, por exemplo em Deuteronômio 18:10, 11, onde ele é expressamente proibido. O capítulo 28 de I Samuel relata a bem conhecida história da bruxa de Endor que levantou a alma de Samuel para satisfazer o desejo de Saul. O décimo primeiro livro da Odisseia de Homero descreve como Odisseu consulta a sombra de Tirésias”.

f) Verbete “Inferno”, vol.14, pp. 81-83:

“[Sobre o Inferno:] Esta região era geralmente considerada como estando debaixo da terra, na escuridão das vastas cavernas subterrâneas, ou na região onde se supunha haver fogo... A existência além da morte é quase universalmente pensada como sendo ‘algo entre ser e não ser.’ O hebraico Sheol e o grego Hades são boas ilustrações disso. Não se pensava em dividir o estado futuro em condições distintas de existência. Mesmo tardiamente um escritor como o autor de Eclesiastes declara que ‘todos (homens e animais) vão para um lugar’ (Ec. iii, 20) e ‘há um evento para o justo e o ímpio’ (Ec. ix, 2). Muita confusão e mal-entendido têm sido causados pelos primeiros tradutores da Bíblia que persistentemente verteram o hebraico Sheol e os gregos Hades e Geenna pela palavra inferno. A simples transliteração dessas palavras pelos tradutores das edições revisadas da Bíblia não foi suficiente para esclarecer sensivelmente esta confusão e equívoco...

“Uma das ideias ou motivos que levaram à divisão do estado futuro em céu e inferno, um lugar de recompensa e um lugar de punição, é sugerida em algumas passagens do Velho Testamento. Todos os mortos, sem distinção, assim se acreditava, desciam ao Sheol. Mas, segundo Isaías, o rei de Babilônia, que exilara e oprimia Israel, e por isso era considerado inimigo de Jeová e de seu povo, será ‘derrubado... até as partes mais extremas do Sheol.’ Ele deveria ser empurrado para as profundezas onde presumivelmente houve maior desconforto. Jeová enviaria seus inimigos a um lugar muito pior do que aqueles que o serviam. Essa ideia operou poderosamente na vida dessas pessoas como aconteceu na vida de muitas gerações. Estes exilados e perseguidos adoradores de Jeová reuniram consolo e uma nova resignação, visto que eles acreditaram que no pós-vida os seus inimigos seriam lançados para a parte mais profunda do Sheol ao passo que eles estariam na parte superior, mais brilhante e mais feliz . . . .

“... qualquer que seja o real sentido da palavra Sheol, conforme usada pelos escritores bíblicos, não parece ter sido a opinião entretida pelos clérigos cristãos primitivos - Clemente, Orígenes e outros. Embora tenha sempre existido com os homens da Igreja que o consideram, a eternidade dos tormentos do inferno foi geralmente mantida e mais ardentemente pregada. Mas, no momento presente, a ideia de punir uma alma eternamente encontra um número cada vez menor de crentes”.

The Encyclopedia Americana, 1953, 1959, 1961, 1963, 1968, 1977, colchetes acrescentados.

Comentário:

Observe que um mesmo verbete diz que o homem é formado por uma unidade inseparável composta por corpo e alma e ao mesmo tempo afirma que ambos são separados devido à morte, para depois serem reunidos novamente em uma unidade por ocasião da ressurreição do corpo. Diz-se ressurreição do corpo porque este é a única das duas partes que se dissolve depois da morte, ao passo que a outra fica sempre em existência, conforme ensinou Jesus:

“Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena”. – Mateus 10:28.

Logo, o raciocínio é dual. A morte é o fim e ao mesmo tempo não é. É o fim para o corpo, mas não para a alma. O homem é uma alma e ao mesmo tempo possui uma alma que sobrevive à morte, conforme demonstra o entendimento dos judeus antigos sobre o Seol. O texto mencionado de Isaías na última citação não apenas diz que o rei de Babilônia foi banido para as partes mais profundas do Seol, mas também que os habitantes sonolentos de lá despertaram para acompanhar tal chegada:

Debaixo da terra se agita a morada dos mortos, para receber-te à tua chegada; despertam em tua honra as sombras dos grandes, e todos os senhores da terra, e levantam-se de seus tronos todos os reis das nações. Todos tomam a palavra para dizer-te: Finalmente, eis-te fraco como nós, eis-te semelhante a nós. Tua majestade desceu à morada dos mortos, acompanhada do som de tuas harpas. Jazes sobre um leito de vermes e os vermes são a tua coberta. Então! Caíste dos céus, astro brilhante, filho da aurora! Então! Foste abatido por terra, tu que prostravas as nações! Tu dizias: Escalarei os céus e erigirei meu trono acima das estrelas. Assentar-me-ei no monte da assembléia, no extremo norte. Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo. E, entretanto, eis que foste precipitado à morada dos mortos, ao mais profundo abismo”. – Isaías 14:9-15.

Note que no Seol os mortos (1) se agitam, (2) tomam iniciativa, (3) dormem e acordam, (4) sentam-se em tronos, no caso dos reis que lá estão, (5) levantam-se desses mesmos tronos, (6) falam e (7) raciocinam. Além disso, percebemos no texto a mesma dualidade de entendimento sobre esse assunto. De um lado a alma do rei está viva e sendo recepcionada com ironias, e de outro seu corpo está inerte em uma sepultura sendo consumido por vermes. Os habitantes do Seol o enxergam assim, sob duas perspectivas.

De modo que a inconsciência dos mortos, que também foi mencionada pela enciclopédia Americana, não significa a ausência de pensamentos ou de percepções sensoriais. Refere-se apenas às faculdades cognitivas que, segundo os hebreus pensavam, ficavam comprometidas quando a alma entrava no mundo dos mortos e se transformava em uma “sombra” triste e debilitada. Mesmo assim, infere-se do conjunto de relatos bíblicos apresentados que essa situação debilitante possuía exceções relacionadas ao povo fiel. Quando Saul resolveu chamar o falecido profeta Samuel foi com a intenção de obter informações que só Samuel saberia. O que demonstra que, para os hebreus, nem todos que desciam ao Seol se tornavam seres entregues ao esquecimento e que não sabem mais nada das coisas terrenas. Além disso, judeus do pós-exílio achavam que ficariam numa situação mais confortável no Seol, e experimentariam certa medida de felicidade, enquanto aguardavam a ressurreição do corpo.

Tudo isso demonstra, acima de qualquer dúvida, que jamais as pessoas naquele tempo acreditaram que a morte significa o fim absoluto da vida e da consciência. A inconsciência no reino da morte é apenas em sentido relativo, devido à sonolência das almas que lá estão. É como quando dizemos que um recém-nascido ainda não tem consciência. Não é a ausência de pensamentos ou percepções, mas apenas a incapacidade de transformá-los em ações úteis para a manutenção da vida.

Por fim, a enciclopédia também menciona que embora os gregos acreditassem na imortalidade da alma, dentro de um sistema de ideias que difere do conceito bíblico de vida após a morte, eles também associavam a morte ao sono e inatividade. Certamente porque pensavam pelos dois lados envolvidos, o do corpo e o da alma, conforme atestam os camafeus que eram vistos em túmulos do mundo greco-romano. Leia também o meu comentário da citação nº 39, para ver a descrição que os egípcios fizeram do sono da morte. Este assunto será complementado na seção 4.

10) Studies In Dogmatics. Man: The Image of God, de G. C. Berkouwer (1962)

“No Antigo Testamento há, de fato, uma profunda consciência da generalidade e finalidade da morte, e as palavras da mulher de Tekoa - a mulher sábia - expressam bem esse sentimento: ‘Que teremos que morrer um dia, é tão certo como não se pode recolher a água que se espalhou pela terra. Mas Deus não tira a vida; pelo contrário, cria meios para que o banido não permaneça afastado dele’ (2 Sm 14.4). Mas isso não faz da morte um evento natural. Encontramos a morte em todo o Antigo Testamento apresentada como se opondo às riquezas dos vivos. A morte foi vista e experimentada como uma transição para a fraqueza e impotência, como privação de vitalidade, e há alegria quando a vida é salva da sepultura e os dias do homem são alongados. . . .

“Há alegria quando não se morre, como quando Ezequias viu seus anos serem prolongados e depois de todos os seus momentos de ansiedade pôde cantar sua canção da vida: ... ‘Os vivos, somente os vivos, te louvam, como hoje estou fazendo; os pais contam a tua fidelidade a seus filhos’ (Isa. 38:15, 19; conf. Num. 4:19) . . . . O fim da vida aparece vez após vez como sendo um roubo de todas as riquezas que existem na vida. [Tal como em Sal. 6:6, 30:10, 49:15-16, 88:11-13 e 115:17] Por isso tais palavras tem sido frequentemente usadas para mostrar que Israel não tinha expectativa escatológica, nenhuma perspectiva que incluísse uma ressurreição dos mortos ou uma vida genuína depois da morte; outros, por sua vez, rejeitaram enfaticamente essa conclusão; mas citamos estas passagens aqui para mostrar que o Antigo Testamento não deve ser lido em termos de uma distinção entre morte e morrer (como uma coisa natural e boa), mas apenas em termos do contraste constantemente recorrente entre a morte e a vida, em que morrer é ligado à terra da escuridão e do esquecimento.

“O fim da vida não está, de modo algum, integrado com a vida como um morrer natural, mas precisamente com o fim retratado como sendo a remoção, a privação da riqueza da vida, a perda de todos os ‘conhecidos’ (Sal. 88: 8) E é em relação a este perigo, que o salmista estende suas mãos para o Deus da vida. . . . Na crença cristã, morrer também nunca foi interpretado como o morrer natural, mas sempre e exclusivamente no contexto da conquista de Cristo sobre a morte. Nada pode nos separar, nem mesmo a morte, do amor de Cristo; e morrer pode de fato assumir um contexto completamente novo (morrer no Senhor), e o Catecismo de Heidelberg (L.D. 16) pode dizer que a morte é apenas uma passagem para a vida eterna - mas isso não faz da morte um evento natural.

“. . . . Kuyper já havia dito em 1870 que a expressão ‘imortalidade da alma’ não poderia existir na Bíblia, e apontou que nenhum credo das igrejas calvinistas usou o termo: ‘O que o racionalista chama de imortalidade é para os cristãos a vida eterna’. É claro que a questão decisiva aqui é o que se entende por imortalidade da alma e se a afirmação de uma imortalidade natural se baseia ou não numa ‘essência’ abstraída de sua relação com Deus, da qual podemos extrair (sem considerar esta relação) outras conclusões, tais como a ‘indestrutibilidade’ da alma. E também agora deve estar claro por que a crítica da imortalidade natural da alma é muitas vezes mais estreitamente relacionada com a crítica da dicotomia substancial da alma e do corpo. A questão não era a existência após a morte, nem um agnóstico [conceito] ‘morte é morte’, mas o problema de uma antropologia que define a ‘essência’ do homem e dela extrai novas conclusões. Assim, também é possível que uma crítica da ideia de imortalidade natural possa ir de mãos dadas com a plena aceitação da expressão do Catecismo (Dia do Senhor 22) de que a alma após a morte será imediatamente levada a Cristo. O fato de que nenhuma objeção foi feita contra este artigo de fé mostra que os problemas não são primariamente de natureza escatológica, mas sim antropológicos . . . .

“Agora está bastante claro que várias questões poderiam surgir em torno de tais críticas. E é perfeitamente compreensível que o status intermedius, o estado da alma após a morte e antes do julgamento, fosse uma questão especial em muitas das discussões . . . .

“[Nota:] Em 1855, contra Bonnetty, que relativizava o poder sabedor da razão natural, a Igreja sustentava que a existência de Deus, a liberdade da vontade e a espiritualidade da alma podiam ser provadas - mas a imortalidade da alma não estava incluída (Steur, op. cit., Página 106)”.

“. . . . Diz-se que tal ideia [da imortalidade da alma] está em conflito com a base da crença cristã, pois mostra vestígios do conceito de alma como algo divino, de uma deificação parcial do homem. E, junto com isso, há uma crítica da dicotomia de duas substâncias (corpo e alma) como resultando no escapar da alma do julgamento de Deus, Seu sagrado julgamento da morte por causa do pecado. A imortalidade da alma, diz-se, parece implicar que este julgamento não afeta o homem inteiro; afeta apenas o corpo, não a alma. A crítica é especialmente associada com Althaus; por exemplo, ‘a fé cristã não sabe nada de um imortalidade da alma’ – que, na verdade, chamam a morte de mentira e mal interpretam o julgamento de Deus - mas apenas de uma ressurreição de uma morte verdadeira através do poder de Deus. E, com essas palavras, encontramos um dilema influente que tem desempenhado um papel cada vez mais importante na recente discussão escatológica: a imortalidade ou a ressurreição.

“Não pode haver a ideia de que a morte afeta apenas o corpo, como parte do homem; a alma também é afetada pela morte, de modo que depois que o homem morre, resta apenas uma perspectiva escatológica: despertar da morte. Essa é uma perspectiva que nada tem a ver com a imortalidade ou indestrutibilidade ‘natural’ da alma, mas que vem exclusivamente do ato futuro de Deus em Jesus Cristo... Van der Leeuw continua, dizendo que só Deus é imortal; ‘Ele dá ao homem a promessa da ressurreição.’ Isso deve ser tomado com rigorosa seriedade; o homem, o homem inteiro, caiu na morte. Mas as promessas da ressurreição não implicariam necessariamente em uma certa continuação da existência após a morte, de modo que somos ‘nós’ que despertamos? Sim, parece que deve haver algo que permanece, que continua, através do qual Deus constrói a nova criatura . . . .

Não há nenhuma dúvida de que a Igreja, desde os tempos mais antigos, estava convencida da existência contínua após a morte. Não só a ressurreição do corpo foi afirmada contra a desvalorização espiritualista e gnóstica do corpo, mas porque nossa salvação em Cristo, nosso ‘estar com o Senhor’ foi da mesma maneira firmemente mantida. As antigas confissões da Igreja, como Kuyper já observou, falam de ‘vida eterna’ em vez de ‘imortalidade da alma’. Steur até mesmo diz que a Igreja nunca falou oficialmente da imortalidade da alma durante os séculos anteriores ao Renascimento; a explicação desse fato encontra-se no acordo universal sobre o assunto. Podemos concordar com esta explicação se ela se refere à continuação da existência após a morte; Desde que não haja nenhuma implicação de acordo geral de que a imortalidade ‘natural’ da alma era como tal uma tese na crença da Igreja. Evidentemente, a Igreja se contentou em limitar seus pronunciamentos sobre a vida eterna e a ressurreição do corpo à área da pneumatologia [que enfoca aspectos do espírito] . . . .

“[Nota:] Calvino fala da alma como ‘bona pars hominis’... É uma substância, que tem raciocínio e inteligência após a morte (p. 21). A alma (que é celestial) é tão diferente do corpo (que é terrestre) como os céus da terra (p. 55). Esta noção está relacionada, obviamente, com a ideia de Calvino de que a alma é a imagem de Deus. As palavras de Gn 1.26 não podem ser aplicadas ao corpo (p. 27); o corpo não é parte da imagem... [Para Calvino] uma vez que [o crente está] unido a Cristo na fé, ele nunca pode ser separado dele, e assim nunca pode afundar de volta ao sono [da morte]”.

Studies In Dogmatics. Man: The Image of God, Gerrit Cornelis Berkouwer. B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, MI, USA, 1962, pp. 239, 240, 249-251, 269, 272, colchetes acrescentados.

Comentário:

Conforme explicado acima, biblicamente falando, a morte não significa a inexistência de quem morreu. Quem morre continua existindo e consciente, ainda que essa realidade tenha enfoques diferenciados em cada uma das duas seções da Bíblia. No Antigo Testamento quem morre desce espiritualmente para o Seol, que fica nas profundezas da Terra, e lá permanece em uma existência enfraquecida, que nem uma “sombra”, afastado das atividades próprias dos vivos que se encontram na superfície do globo. Já no Novo Testamento cristão a morte significa a transferência imediata para a companhia de Cristo no céu, ainda que não receba ainda o corpo glorificado da ressurreição. Este detalhe tem sido objeto de discussão, pois o Novo Testamento não o esclarece totalmente. Isso resulta em interpretações que tentam explicar como se darão essas coisas. A ressurreição em duas etapas é uma das propostas apresentadas. O apóstolo Paulo toca um pouco nessa questão quando compara o corpo a uma roupa (o que, aliás, é uma analogia recorrente dos espiritualistas de hoje), o que implica, logicamente, que não é o corpo físico que vai para a presença de Cristo no momento da morte, mas a alma:

“Sabemos que, se for destruída a temporária habitação terrena em que vivemos [ou seja, o corpo], temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna no céu, não construída por mãos humanas. Enquanto isso, gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação celestial, porque, estando vestidos, não seremos encontrados nus. Pois, enquanto estamos nesta casa [ou seja, o corpo], gememos e nos angustiamos, porque não queremos ser despidos, mas revestidos da nossa habitação celestial, para que aquilo que é mortal seja absorvido pela vida. Foi Deus que nos preparou para esse propósito, dando-nos o Espírito como garantia do que está por vir. Portanto, temos sempre confiança e sabemos que, enquanto estamos no corpo, estamos longe do Senhor”. – 2 Coríntios 5:1-8, colchetes acrescentados.

E quando comentaristas falam em “imortalidade da alma” que conflita com o entendimento cristão, eles têm em mente dois aspectos principais: (1) Tal imortalidade refere-se à indestrutibilidade absoluta da alma, como se ela fosse uma fração de Deus que jamais poderia ser destruída, e (2) que ser a alma imortal no sentido grego implicaria no desprezo total de uma vida futura humana e corpórea, pois a alma por si só seria o estágio pleno da vida eterna, tornando o sacrifício de Cristo e a ressurreição física sem sentido. Ambos os pontos de vista não são fundamentados em base bíblica. Primeiro porque só Deus é verdadeiramente imortal, e qualquer criatura, ainda que não morra, não pode ser chamada de imortal em sentido absoluto, pois Deus poderia erradicá-la da existência se assim quisesse. E em segundo lugar, o ensinamento da ressurreição implica no restabelecimento da alma ao corpo físico para que ela venha a interagir novamente com o mundo material da maneira que fazia antes.

De qualquer maneira, está muito claro nos trechos acima destacados que existe uma “alma” que sobrevive à morte do corpo, ainda que não possua todas as características preconizadas pela filosofia grega. Portanto, em termos cristãos a expressão “imortalidade da alma” está correta apenas em sentido relativo, pois a alma continua viva depois da morte, especialmente se for a alma de um cristão, que já vai imediatamente para a presença de Cristo e não fica confinada no Seol / Hades, cumprindo-se assim a promessa de Jesus: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem exercer fé em mim, ainda que morra, viverá e todo aquele que vive e exerce fé em mim nunca jamais morrerá. Crês isso?” – João 11:25, 26.

Note também que seja qual for o entendimento que se tenha da palavra “alma” no contexto hebraico, a obra acima demonstra claramente que os cristãos sempre acreditaram que continuariam vivos depois da morte. Ou seja, uma alma invisível e inalcançável continua existindo depois da morte do corpo, conforme Jesus disse em Mateus 10:28. Alma que, na prática, é uma pessoal espiritual que vive em outro mundo. O que poderia ser trazido à discussão é o que acontece com a alma depois do Julgamento Final, preocupação que não havia entre os gregos. De fato, vários cristãos já debateram sobre isso ao longo dos séculos. No entanto, a existência permanente da alma jamais foi questionada nos tempos antigos, com uma única exceção, mencionada na introdução: aqueles cristãos árabes que acabaram voltando atrás na opinião materialista que esboçaram.

Portanto, o cenário apresentado por Berkouwer em seu “Estudos em Dogmática” difere radicalmente daquele que os materialistas cristãos(?) sustentam, segundo o qual depois da morte do corpo não existe alma alguma em lugar nenhum, uma vez que entendem que a alma é apenas o próprio corpo quando está vivo e com o cérebro funcionando. Neste caso, a afirmação bíblica de que a alma vai para o Seol depois da morte seria apenas uma figura de linguagem. O que implica em dizer que o próprio Seol não existiria realmente. Seria no máximo um símbolo da sepultura ou da inexistência. Não haver obras sérias de referência que apresentem esse ponto de vista materialista é uma evidência inconteste de que ele não corresponde à realidade bíblica.

11) The New Bible Dictionary, de J. D. Douglas (1962)

“Visto que no antigo Israel o problema da morte não encontra sua resposta nem na especulação filosófica sobre a imortalidade nem na subvida do Seol, mas sim na libertação do Seol, ser um filho de Deus é ser um filho da ressurreição (Luc. xx. 36). E é o Filho de Deus ressuscitado que transmite esta vitória à Sua Igreja; Em Adão todos morrem, então, em Cristo, todos serão vivificados (1 Cor. xv. 22)”. – Verbete “Vida”, p. 739.

“A segunda palavra foi dirigida ao salteador arrependido (Luc. Xxiii. 43), que viu, além da cruz, a coroa e a glória futura, e disse a Jesus: ‘Lembra-te de mim quando vieres em teu reino’ (verso 42, RV). Para ele Jesus disse efetivamente: ‘Não nas eras muito distantes, mas antes do sol se por, tu estarás comigo na alegria do Paraíso’. Não haveria purgatório, mesmo para um pecador assim”. – Verbete “As Sete Palavras”, p. 1167.

“O fato de que, por um lado, Deus é onipotente e Deus é amor, e por outro a retribuição eterna é nitidamente ensinada nas Escrituras, pode suscitar problemas para nossas mentes que, com toda a probabilidade, não podemos resolver completamente. É fácil, em tais casos, produzir uma resposta lógica ao custo de um lado da verdade bíblica, e isso muitas vezes foi feito. E. Brunner, por sua vez, invoca a concepção do paradoxo necessário na revelação de Deus, dizendo que a Palavra de Deus não se destina a nos ensinar fatos objetivos sobre a vida futura, mas apenas nos desafiar a agir (Eternal Hope, 1954, 177 ff.). Embora não adotemos esta doutrina, devemos admitir que os conselhos de Deus vão além de nossas mentes finitas. A realidade e a eternidade do sofrimento na Geenna é um elemento da verdade bíblica da qual uma exegese honesta não pode se evadir”. – Verbete “Inferno”, p. 519.

The New Bible Dictionary [O Novo Dicionário da Bíblia], J. D. Douglas, Inter-Varsity Fellowship, Londres, 1962.

Esse dicionário bíblico é a mesma obra nº 36, citada mais adiante. Isto ocorreu porque na lista do autor do MB esse dicionário aparece como se fossem duas publicações diferentes. A razão disso é que aqui se trata da primeira edição, de 1962, e no outro caso é a terceira edição de 1995. Além disso, o autor do MB citou nesta primeira menção trechos da versão em português dessa obra, publicada pela editora Vida Nova em 2006. Eu fiz o contrário. Aqui traduzi trechos da edição em inglês, e na edição mais recente citei trechos da versão em português.

12) A Theological Word Book of the Bible, de Alan Richardson, editor (1962)

a) Verbete “Ascender”, p. 22:

“Na Bíblia, o céu, a morada de Deus e seus anjos, é concebido como uma localização espacial situada acima da terra e do céu atmosférico, exatamente como o Seol ou o Hades, a morada dos espíritos dos mortos, é concebida como estando debaixo da terra”.

a) Verbete “Corpo”, p. 35:

O N[ovo] T[estamento] também fala de um corpo espiritual que os homens receberão na ressurreição (I Cor. 15.44, cf. II Cor. 5.1-6: ‘uma casa não feita por mãos, mas eterna nos céus’) em contraste com o corpo de carne e sangue que não pode herdar o Reino de Deus (I Cor. 15.50). O que Paulo quer dizer não é que haverá uma restauração das partículas carnais do falecido, mas que a cada indivíduo será conferido um corpo espiritual, conforme Deus ache apropriado (I Cor. 15.44), isto é, um corpo de outra ordem diferente daquele de carne e sangue. A visão grega da imortalidade como sendo a absorção no Infinito é repudiada e asseverada a doutrina cristã da ressurreição (q.v.), que, considerando seriamente o corpo, postula um órgão de personalidade, o expressando e definindo, e adaptado às condições da vida de ordem eterna, mesmo que o corpo de carne e sangue sirva aos mesmos fins na presente ordem. A relação entre o corpo mortal e o corpo ressurgido pode ser expressa como ‘identidade de essência, distinção da forma’ (Thornton, op. cit., pág. 299), ou mais brevemente, a identidade com uma distinção. Deve ser entendido neste ensino uma certa continuidade do corpo terrestre, bem como a ideia de um novo organismo espiritual”.

c) Verbete “Morte”, pp. 60, 61:

Os hebreus, da mesma maneira que outros povos primitivos, não consideravam a morte como sendo a inexistência total; a morte – ‘sendo juntar-se com os pais’ – significava reunir-se com as almas que partiram no mundo dos mortos (Sheol), uma existência triste e sem significado onde a pessoa era cortada ‘da terra dos vivos’ e da presença de Jeová (cf. Sal. 88.10-12 e muitas outras passagens). Fica claro em uma leitura cuidadosa do Saltério que a angústia que a aproximação da morte causava à consciência genuinamente religiosa dos homens do A[ntigo] T[estamento] resultava não do medo da extinção, mas da expectativa de que todo relacionamento com Deus acabaria... embora o N[ovo] T[estamento] fale da vida eterna, em nenhum lugar menciona a morte eterna; E não devemos ser pressionados a abraçar ideias sobre a extinção eterna, etc., sobre as quais não há nenhuma sanção bíblica clara... o verdadeiro terror da morte não consiste na destruição eterna; Citando o Dr. H. F. Lovell-Cocks (p. 57, veja a seguir): ‘Visto que o Deus da religião ampliou seu domínio sobre as terras escuras além do túmulo, a crença em uma vida no além, longe de mitigar o medo da morte, intensifica seu terror; O Seol é transformado na Geena. Epicuro, com mais perspicácia do que alguns de seus discípulos modernos, viu que o homem teme a morte não porque ela seja a aniquilação, mas o horror da morte, ao invés de ser a extinção, é “a ira do porvir”.’ ”.

d) Verbete “Inferno”, pp. 106, 107:

“Os hebreus (da mesma maneira que outros povos) não achavam que a morte fosse a total extinção, uma noção que não é encontrada em nenhum lugar do A[ntigo] T[estamento] ou do N[ovo] T[estamento]. Por quase todo o período do A[ntigo] T[estamento] abraçou-se a crença de que os mortos continuam a existir no mundo subterrâneo, uma região de sombras, miséria e futilidade; eles viviam como [seres] insubstanciais, sombras semi-materiais numa terra de silêncio e esquecimento. O nome dessa região era Seol... A parábola do rico e Lázaro (Lucas 16.19-31) mostra que Jesus aceitou a visão rabínica comum (pelo menos para fins de ensino), mas devemos lembrar que não é objetivo da parábola nos fornecer detalhes da vida no porvir, mas nos confrontar com nosso dever nesta vida... A morada de contentamento dos justos que morreram era chamada de PARAÍSO (Lucas 23.43, II Cor. 12.4, Rev. 2.7) – originalmente uma palavra persa para parque ou jardim dos nobres; o termo contém uma referência ao Jardim do Éden, onde ficava a árvore da vida... a expressão conforme usada por Jesus (apenas uma vez) é meramente a maneira convencional de dizer ‘depois da morte física’.”.

A Theological Word Book of the Bible (Vocabulário Teológico da Bíblia), de Alan Richardson (Ed.), The MacMillan Company, Nova Iorque, EUA, 1951.

Comentário:

A palavra “insubstancial”, em referência aos seres que estão no Seol, é a tradução do inglês unreal. Optei em não traduzir por “irreal” para não dar a impressão que se trata de algo fictício. Como está muito claro no trecho acima, os habitantes do Seol são reais e conscientes de si próprios, porém enfraquecidos em suas formas e invisíveis para nós. Por isso eles foram chamados de “irreais”, já que não podem ser vistos ou tocados.

Ao se deparar com declarações semelhantes a essa o autor do MB concluiu erroneamente que os eruditos querem dizer que a região dos mortos é fictícia, quando não é este o caso. Pelo menos estou deduzindo que foi isso, uma leitura errada da parte dele. Mas se não foi e ele entendeu, porém mesmo assim apresentou o sentido incorreto, então a situação passaria a ser de desonestidade intelectual, seja para enganar a si mesmo ou para ludibriar o leitor.

13) Theological Dictionary of the New Testament (TDNT), de Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich (1964-1976)

“a. [Hades no Judaísmo Tardio] usado para o hebraico Seol, a morada dos mortos, este termo veio a denotar o lugar de permanência temporária antes da ressurreição (cf. Is. 26:19). b. Neste lugar os bons foram vistos então separados do maus (Enoque Etíope 22; cf. Lc. 16:23, 26). c. Os bons foram finalmente compreendidos como estando em contentamento (Lc. 16:9, 23 em diante)... A visão do N[ovo] T[estamento] é próxima da do Judaísmo (cf. Lc 16). a. [No Hades] não é lugar de sono da alma. b. Desce-se para o Hades (Mt. 11:23; 12:40). c. A estada é limitada (Apoc. 20:13). Às vezes todos os mortos são vistos no Hades (Atos 2:27), mas em outros momentos os crentes são vistos no paraíso (Lc. 16:9, 23 em diante), ou com o Senhor (2 Cor. 5:8), ou sob o altar (Apoc. 7:9). E ainda o Hades é às vezes apenas a morada do iníquo (Lc. 16:23; Apoc. 20:13-14) . . . . A morte destrói a vida; a existência sombria dos mortos no Hades não é a verdadeira vida”.

Theological Dictionary of the New Testament (TDNT) [Dicionário Teológico do Novo Testamento], Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich, EUA, 1964-1976; a edição citada aqui é a condensada em um volume, de 1985, pp. 22, 312, colchetes acrescentados.

14) Dictionary of the Bible, de John L. McKenzie (1965)

a) Verbete “Anjos”, p. 31:

“Eles aparecem como a corte celestial, atendendo ao Senhor (Lc 12:8), a quem Deus pode ser esperado para manifestar seus desígnios (Mt 24:36). Eles provavelmente devem ser entendidos como guardiães dos pequeninos em Mt 18:10, e Jesus poderia chamá-los para salvá-Lo de Seus captores (Mt 26:43). Eles carregam Lázaro para o seio de Abraão (Lc 16:22). Os anjos são ministros do juízo de Deus na Parusia; eles ajuntam os pecadores para o julgamento (Mt 13:41, 49), eles acompanham o Filho do Homem na Sua vinda (Mt 16:27, Mc 8:38, Lc 9:26), eles recolhem os eleitos (Mt 24:31, Mc 13:27). Este resumo mostra que as concepções dos anjos nos Evangelhos não avançam além da concepção do AT, e em alguns aspectos é menos imaginativa...”.

b) Verbete “Paraíso”, p. 637:

“... Mas a concepção explícita do fim como sendo uma restauração do Paraíso por este nome se torna patente na literatura apócrifa do Judaísmo pré-cristão. O Paraíso foi criado antes da terra (4 Ez 3:6). Depois da queda de Adão está preservado no céu (2 Bar 4:6; 59:8), mais especificamente no terceiro céu (Segredos de Enoque 8). É o paraíso de deleite dos justos (4 Esdras 4:7; 7:36, 123; 8:52; Seg. de Enoque 42:3; 65:10). O paraíso dos justos está em algumas concepções representadas como em um estado intermediário entre a morte do justo e o julgamento final.

“A altamente imaginativa, porque não dizer fantástica, natureza dessas concepções deve ser levada em conta quando vemos que o NT adota a linguagem do Judaísmo apocalíptico em três passagens onde o Paraíso é mencionado. Paulo localiza sua visão extática no Paraíso do terceiro céu (2 Cor. 12:4; cf. Seg. de Enoque indicado acima). Lucas 23:43 faz do paraíso o lugar onde tanto Jesus quanto o ladrão arrependido vão depois da morte; este é o paraíso dos justos, possivelmente concebido como um estado intermediário. Apocalipse 2:7 representa o Paraíso de Deus com a árvore da vida e como sendo o lugar para onde os vitoriosos estão destinados a ir. Este é claramente um caso do Paraíso preservado no céu como recompensa para os justos. O paraíso é apenas um aspecto da concepção do N[ovo] T[estamento] da vida após a morte”.

c) Verbete “Xeol”, p. 801:

“O Xeol é um dos limites do universo, e ele é a marca do poder e conhecimento de Yahweh, pois eles alcançam até mesmo o Xeol. Sua ira arde até o Seol (Dt 32:22), e quem fugir para o Xeol não poderá escapar de Sua presença (Sal. 139:8) ou de Sua vingança (Am 9:2). O Xeol e o Abadom estão abertos e nus para Yahweh (Prov. 15:11; Jó 26:6). Isaías pede a Acaz para solicitar um sinal mesmo no céu acima ou do Xeol abaixo, i.e., dentro dos limites do universo inteiro (Is 7:11); porque o poder de Yahweh alcança o universo inteiro.

“No pensamento do Judaísmo intertestamentário o Xeol se torna um lugar apenas para os maus, mas a concepção não é consistente na literatura; ao passo que o Xeol é o lugar do ímpio depois da morte, o justo é levado ao Paraíso. O lugar de punição dos maus é a Geena, um desenvolvimento de Xeol que é distinto dele”.

d) Verbete “Corpo”, p. 100:

“Nos Evangelhos o corpo não é uma concepção teológica ou psicológica de importância primária. É iluminado pelo olho, o que significa a intenção (Mt 6:22; Lc 11:34); se o olho tem luz, ele comunica a luz para todo o corpo. Ele é mais importante que a comida (Mt 6:25; Lc 12:22 em diante); aqui o corpo é paralelo à vida e é tomado quase como sendo a própria pessoa. É distinguido da alma em Mt 10:28; Lc 12:4; a morte do corpo é para ser temida menos que a destruição da alma e do corpo pela punição divina. A vida do corpo não é a totalidade da vida humana, pois o homem sobrevive na ressurreição do corpo; mas se pelo pecado ele perde sua alma, a esperança e o princípio da ressurreição são perdidos...

“Em outros escritos do N[ovo] T[estamento] o corpo se torna um conceito teológico e psicológico importante apenas em Paulo. O primeiro significado de corpo é concretamente a existência do ser humano; em alguns contextos ele aparece novamente quase como sinônimo da própria pessoa (Rm 6:12 em diante; 8:10?; 1 Cor. 6:18 em diante), mas ‘corpo’ e ‘alma’, ambos são usados para o ‘ser em si [o ‘eu’],’ tendo diferentes ênfases. O corpo é a totalidade ao invés do eu consciente, e o constituinte corporal da vida humana nunca desaparece da vista. Pecados sexuais são uma particular desonra para o corpo (Rom. 1:24). O corpo é ‘o corpo da morte,’ o corpo mortal (Rom. 7:24), do qual o homem é libertado através de Jesus Cristo. A morte do corpo é o resultado do pecado (Rom. 8:10); mas o espírito sobrevive a esta morte através da justiça.

O corpo pode ser descrito como sinônimo de carne em Rom. 8:13 [Ver apêndice E]; os pecados são os atos do corpo, que devem ser mortos pelo espírito para assegurar a vida. Mas a carne normalmente se distingue mais como uma qualidade do corpo em sua existência concreta; pela união com Cristo, a carne é morta permanentemente, mas o corpo se elevará a uma nova vida... Aqui também, porém, o padrão de Paulo não é completamente consistente, pois a existência no corpo significa que a pessoa está ausente do Senhor, e é preciso abandonar o corpo para estar presente com o Senhor (2 Cor. 5:6, 8). O corpo, portanto, como existencialmente identificado com a carne deve ser surrado e subjugado (1 Coríntios 9:27).”

e) Verbete “Espírito”, p. 842:

“Os escritos do Judaísmo extrabíblico usam o termo espírito em sentidos que vão além do A[ntigo] T[estamento] e que afetaram o uso do termo pelo N[ovo] T[estamento]. Tanto os anjos quanto os demônios são chamados espíritos. O espírito do homem é um princípio de funções animais e psíquicas, e seu uso torna-se quase sinônimo de nepes (cf. alma). O judaísmo, talvez influenciado pelo pensamento grego, introduz um dualismo do espírito e do corpo no homem que não aparece no AT; O espírito é um elemento preexistente de origem celestial que sobrevive à morte e é preservado em uma espécie de câmara de armazenamento até a ressurreição. O espírito de Deus é predominantemente o espírito de profecia e revelação, e torna-se o agente inspirador da redação da lei. É um princípio de justiça no homem. Não está claro que o espírito adquire caráter pessoal nos escritos do judaísmo; a personificação do espírito vai além do AT, mas não claramente além da metáfora. O dualismo do bom e do mau espírito é básico na teologia de Qumran; A vida do homem é um conflito entre a influência desses dois espíritos. Os documentos de Qumran falam do espírito do homem em sentidos semelhantes aos de outras literaturas judaicas como sendo o ser em si, o entendimento ou o caráter do homem... [No Novo Testamento] A palavra grega que é traduzida por espírito é pneuma. O significado original e uso desta palavra é muito parecido com o significado e uso do hebraico ruah; é o movimento do ar, principalmente respiração ou vento. O NT, no entanto, traz para a palavra grega o pano de fundo do AT esboçado acima; E o significado primário da palavra é raro no NT. Nos parágrafos seguintes, o espírito representa o grego pneuma; Como acima, seu significado é buscado em seu uso. Os escritores do NT variam em ênfase e significado e a palavra é tratada de acordo com cada um dos escritores”.

f) Verbete “Vida”, pp. 507, 508:

“O AT não distingue entre ‘vida’ como princípio de vitalidade e vida como viver, a experiência concreta de vitalidade. Sua linguagem é a experiência concreta de vitalidade. Sua linguagem é mais concreta do que abstrata, e a vida é vista como a plenitude do poder, o prazer que acompanha o exercício das funções vitais, a integração com o mundo da sociedade....

A concepção de vida acima indicada mostra que os israelitas não conceberam o homem vivo como um espírito encarnado, como muitos estudiosos disseram, mas como um corpo animado. É o vigor e o poder do corpo e suas funções, sua capacidade de prazer, que é a plenitude da vida. ‘Água viva’ é água corrente (Gn 26:19, Lv 15:13, Nm 19:17, e 2:13, 17:13). A morte é total e Israel não sabia de nenhuma atividade vital que sobrevivia a ela. Os mortos não vivem (Is 26:14). São os vivos, e não os mortos, que louvam a Javé (Is 38, 19). O AT não conhece nenhuma vida após a morte até seus últimos livros (cf SHEOL); quando a ideia surge, ela poderia ser concebida apenas como restauração da vida que os hebreus conheciam, uma ressurreição do corpo ....

“Quando Elias levanta o filho da viúva, a nepeš do corpo retorna e ele vive (1 Rei 17:22); Na verdade, a frase descreve o fenômeno: ‘a consciência voltou para ele’. Uma comparação entre essa linha e Gn 45:27 mostra que ‘espírito’ e ‘alma’ são usados livremente...”

g) Verbete “Morte”, pp. 183, 184:

“O conceito prevalecente no A[ntigo] T[estamento] é de que a morte é terminal. O conceito de morte de uma pessoa é determinado, em última instância, pelo seu conceito de vida; daí o conceito hebraico da pessoa humana como um corpo animado, em vez de um espírito encarnado, fez com que o fim da animação parecesse ser a cessação de toda atividade vital. Quando uma pessoa morria, o ‘espírito’ partia; o falecido continuava a existir como um ‘eu’ (nepeš) no Seol, mas era incapaz de qualquer atividade ou passividade vital. Os mortos não participam no culto divino (Sal 6:6; 30:10; 88:11; 115:17, compare também com Isa 38:11, 18). É contra esse pano de fundo da crença do A[ntigo] T[estamento] que Jesus disse que Deus não é Deus dos mortos, mas de vivos (Mat. 22:32, Mar. 12:27, Luc. 20:38). A morte é aceita como o fim natural do homem (2 Sam. 14:14).... Há expressões ocasionais no AT de uma distensão da esperança de que a morte não é tão terminal como parece. Assim, em Sal. 16:9, o poeta se alegra de que Iavé não o abandonará ao Seol, nem lhe permitirá ver a cova. Em Sal. 49:16 o poeta está certo de que Deus o redimirá do Seol. Expressões semelhantes não são incomuns nos Salmos e geralmente não significam nada mais que a preservação da morte súbita ou prematura.... Ainda mais clara é a certeza do poeta em Sal. 73:23, de que ele não tem qualquer quinhão, a não ser Iavé no céu ou na terra. Se as promessas de Iavé e sua bondade são eternas, então deve haver alguma maneira pela qual o israelita fiel as experimente. Como ele deve fazer isso não é formulado nesta fase inicial da crença israelita. A concepção israelita da morte foi afetada pelo mito cósmico subjacente da criação em que tanto do pensamento israelita foi lançado.... Obviamente, porém, conforme eles desenvolveram uma crença na vitória final de Iavé sobre as forças da escuridão, do mal e do caos, da mesma maneira a lógica de sua fé exigiu que Ele vencesse a morte também. Este desenvolvimento parece bastante tardio na crença do AT; não encontramos qualquer traço certo de uma crença clara na ressurreição dos mortos antes do século II AC em Daniel. A imortalidade da alma, conforme proposta na S[abedoria] de S[alomão], um produto do judaísmo alexandrino, era realmente um elemento estranho à crença hebraica e à psicologia hebraica, que jamais foi assimilado dentro do AT ou do NT”.

h) Verbete “Geena”, pp. 299, 300:

“... O seu verme não morrerá nem o seu fogo será apagado – uma alusão às passagens de Jer[emias]. já citadas. Esta passagem é de importância para traçar a origem do conceito de Gehenna como um lugar de punição após a morte em escritos judaicos extrabíblicos. Ela aparece na Assunção de Moisés 10:19 e no Siríaco Apocalipse de Baruque 59:10; Livro de João 4; em 2 Esdras 7:36 é uma fornalha, um lugar de fogo e tormentos que está à vista do Paraíso. 1 Enoque freqüentemente menciona este lugar de tormento, embora o nome Gehena nem sempre seja usado. É para o maldito (27: 2); é um abismo ardente (90:26 e outros), onde o ímpio queimará como palha (48: 9). É um lugar de trevas, correntes e chamas ardentes (103:8), vale de fogo ardente (54:1). Gehena também é mencionada freqüentemente na literatura rabínica onde também aparece como um poço de fogo, um lugar de punição para os ímpios. Na literatura rabínica, no entanto, o fogo eterno seguramente não é punição eterna. Os rabinos, às vezes, veem a possibilidade de aniquilação dos ímpios ou mesmo de sua libertação após um período de punição. Gehenna no N[ovo] T[estamento] é mencionada sete vezes em Mt., três vezes em Mc., uma vez em Lc., uma vez em Tg. É um lugar de fogo (Mt 5:22; 18: 9; Tg 3: 6). O fogo é inextinguível (Mc 9:43). É um poço no qual as pessoas são lançadas (Mt 5:29, 18: 9, Mc 9:45, 47, Lc 12: 5). É um lugar onde dos ímpios são destruídos o corpo e a alma, o que talvez ecoe na ideia de aniquilação (Mt 10:28)....

“A comparação dessas passagens [sobre a Geena] no N[ovo] T[estamento] com os livros apócrifos citados anteriormente mostra que os Evangelhos Sinóticos, Judas, Tiago, 2 Pedro e Apocalipse empregam a linguagem e as imagens do Judaísmo [que lhe eram] contemporâneos. É de se destacar que essa linguagem e simbolismo não aparece em outros escritos do NT; Chaine sugeriu que não aparecem precisamente porque as imagens da escatologia apocalíptica popular do Judaísmo são inadequadas para os Cristãos Gentios”.

Dictionary of the Bible, John L. McKenzie, The Bruce Publishing Company, New York, USA and Collier MacMillan Ltd., Toronto, Canada, 1965, colchetes acrescentados.

Comentário:

Nota-se nas declarações acima que o jesuíta John McKenzie não afirma em sua obra que o homem deixa de existir depois da morte, ainda que ele pertença um grupo restrito de teólogos que “declarou guerra” ao conceito de imortalidade da alma importado da filosofia grega, conceito este que foi, de certa forma, “cristianizado” alguns séculos depois da época de Cristo. O que significa, na prática, que expurgaram tudo o que é incompatível com o ensino da Igreja e mantiveram apenas os pontos mais ou menos em comum, sendo o principal deles o fato de uma parte espiritual do homem sobreviver à morte. Além, é claro, de terem usado amplamente a linguagem dos filósofos gregos. Esse acontecimento na história do Cristianismo é uma das coisas que confundem a mente dos aniquilacionistas de hoje. Mais detalhes sobre isso na seção 4 e no apêndice A.

No entanto, ainda que McKenzie não fosse aniquilacionista, duas ressalvas se fazem necessárias em relação à sua obra. A primeira delas é que ele radicalizou bastante o discurso contra a ideia popular de vida após a morte, provavelmente por achar que ela diminui a importância da graça e do sacrifício de Cristo na cruz. Aliás, em geral este é o principal motivo de alguns teólogos assumirem essa postura de antagonismo a um tema que era relativamente pacífico em séculos anteriores. E quanto mais eles se distanciam do que era tradicionalmente aceito, mais os textos que escrevem se tornam convenientes para os aniquilacionistas citarem. O teólogo Robert Farrar Capon, que será visto na citação nº 26, também foi nessa mesma direção. A bem da verdade, eles não deixam de ter alguma razão, afinal, se a morte fosse o que os gregos ou egípcios pensavam, que importância teria a Paixão de Cristo para a vida eterna? Certamente nenhuma.

O problema desse zelo talvez excessivo em banir do Cristianismo a expressão “imortalidade da alma”, mesmo acreditando-se que a alma permanece viva depois da morte, é que isso tende a distorcer o próprio cenário apresentado na Bíblia como um todo, ainda que se leve em consideração cada estágio da fé ao longo do tempo. Por exemplo, quando McKenzie faz alusão ao antigo conceito hebreu de que o morto vira uma sombra indigente no subterrâneo da Terra, ele afirma que isso nem deve ser considerado para afirmar que havia um entendimento de continuidade da existência, e que a situação desses “espíritos dos mortos” no Seol era para todos os efeitos de inexistência. Consequentemente, quando Mckenzie se depara com declarações bíblicas sobre algum tipo de atividade no Seol, ele menospreza tais textos e diz que se tratam apenas de descrições “pitorescas”, minimizando assim o significado deles. – Dicionário Bíblico, de John L. Mackenzie, editora Paulus, verbete “Xeol”, 12ª edição, 2015, pp. 891-892.

Mas, como era de se esperar, quando Mckenzie iniciou seu esforço de desconstruir o cenário comumente aceito de vida após a morte, houve reação por parte de alguns estudiosos. Abaixo um exemplo:

“Uma nova geração de teólogos surgiu, uma geração que não mostra respeito pelo passado: ‘As visões tradicionais do Céu e do Inferno são cerca de 95% da mitologia’, declara o estudioso jesuíta John MacKenzie da Universidade de Notre Dame. Outros teólogos cristãos, protestantes e católicos, expressam opiniões semelhantes. A própria vida após a morte tornou-se sombria, mesmo duvidosa, e o centro de gravidade está sendo transferido para este mundo. A teologia está se tornando existencialista!

“No entanto, que não haja mal-entendidos: Se alguns teólogos progressistas agora consideram a ideia de Céu e Inferno como sendo um mito, eles chegaram bastante atrasados. Os escritores clássicos ridicularizaram tais crenças há mais de dois mil anos. ‘Onde podemos encontrar uma velha tão tola que acredite nas antigas histórias dos horrores do Mundo Inferior?’, pergunta Cícero; em outros lugares ele diz: ‘A ignorância da filosofia é responsável pela crença do Inferno e seus terrores.’ Do mesmo modo, Seneca argumenta: ‘Aqueles contos que tornam o mundo abaixo terrível para nós são ficções poéticas. Não há nenhuma negra escuridão à espera dos mortos, nem prisão, nem lago de fogo, nem rio de esquecimento, nem cadeira de juíz...’

“Outro filósofo que tentou limpar a mente do medo da morte e os terrores de um estado futuro é Lucrécio – ‘o primeiro Jean-Paul Sartre’, como bem podemos chamá-lo. Resolvendo o pavor da morte no medo do castigo eterno após a morte, nega a doutrina de uma vida futura e sustenta que todos os tormentos do inferno estão nesta vida e são auto-infligidos. Compare com a brincadeira do inferno de Sartre!” – “Gossip about Heaven and Hell”, de Prince John Loewenstein, Dalhousie Review, Vol. 54, Nº 3, 1974, pp. 634-647.

A reclamação acima toca também no segundo problema dessa “teologia progressista”. McKenzie não fez questão de esconder que era da opinião de que a Bíblia está repleta de mitos importados do Judaísmo rabínico e de livros apócrifos. Ele diz que todas as descrições da Bíblia sobre Geena, Hades, ir para o “coração da terra” depois da morte etc., são apenas cenários infantis imaginados por hebreus ignorantes do passado. É quase como se alguém dissesse que os escritores do Novo Testamento não podiam estar falando sério quando se apropriaram dessas informações supostamente míticas. Aliás, não somente eles, mas também todos os cristãos do século 2 em diante, conforme revela a literatura patrística que sobreviveu até os dias de hoje.

Sendo assim, é compreensível a indignação do arqueólogo e antropólogo John Loewenstein, quando disse que teólogos a exemplo de John McKenzie não respeitavam o passado cristão. Reflexão tão digna de consideração quanto aquela dos teólogos progressistas sobre a “reciclagem” da ideia grega de imortalidade da alma. Se todos os escritores cristãos dos séculos iniciais do Cristianismo acreditavam que a alma continua viva depois da morte e que as almas dos ímpios descem para o subterrâneo da Terra, o Hades, e lá passam por sofrimentos, como se sentir à vontade para supor que todas aquelas pessoas se basearam em fábulas? Justamente os homens que fizeram parte dos fundamentos do Cristianismo? No caso dos escritores bíblicos, McKenzie se esquiva desse inconveniente dando a entender que eles apenas usaram a linguagem do imaginário religioso sem que necessariamente acreditassem no que estavam dizendo! Imagine uma situação dessas hoje em dia. Será que haveria possibilidade, por exemplo, de um cristão evangélico usar histórias de Umbanda para ensinar o Cristianismo para as pessoas? Sem falar que no caso de Jesus não se tratava apenas de crença, pois por ser o Filho de Deus ele sabia a realidade do mundo espiritual. Se o Hades qual mundo invisível dos espíritos dos mortos realmente não existisse há de se supor que Jeses seria o primeiro a não mencioná-lo. A não ser que ele quisesse apenas assustar as pessoas.

Não que seja um pensamento absurdo achar que os antigos escreveram sobre escatologia por meio de representações figurativas. Mas se foi isso, elas representam eventos reais e não histórias fictícias. Não importa se o tal “inferno” está, na verdade, em outra “dimensão”, conforme muitos pensam hoje, ao invés de em compartimentos subterrâneos da Terra, contanto que ele realmente exista, a fim de dar sentido às advertências bíblicas. Mas também não haveria problema se esse mundo sombrio estivesse realmente lá perto do magma terrestre. Lembre-se que quem vai para lá não é uma pessoa de carne e osso, mas um ser invisível ou imaterial, um espírito (sobre o conceito de imaterialidade, veja o comentário à obra nº 71). Se fosse possível o homem cavar um túnel e chegar até o centro da Terra, ninguém seria encontrado nessa região, justamente por tratar-se de uma realidade paralela onde vivem pessoas invisíveis para nós. Isso acontece aqui mesmo na superfície, quando criaturas espirituais a exemplo de anjos transitam entre as pessoas carnais, porém ninguém os enxerga.

De qualquer maneira, não importa muito esses enfoques menos ortodoxos de McKenzie e outros. O importante é que a Bíblia é suficiente para demonstrar a realidade espiritual depois da morte e todos esses teólogos “progressistas” sabem disso. O próprio McKenzie foi um católico praticante até o último dia de sua vida aqui na Terra e não deu as costas à Igreja por conta de suas opiniões “bíblicas” peculiares sobre a morte. Então, pelo visto, elas não eram fortes o suficiente para demovê-lo da crença católica de que estaria imediatamente com Cristo depois que morresse, conforme o texto de 2 Coríntios 5:6-8, que ele comentou no seu dicionário:

“Portanto, temos sempre confiança e sabemos que, enquanto estamos no corpo, estamos longe do Senhor... Temos, pois, confiança e preferimos estar ausentes do corpo e habitar com o Senhor”. – Compare com 1 Coríntios 5:5.

O que está de acordo com outra afirmação de Paulo:

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-24, BJ.

O texto abaixo demonstra adicionalmente o que McKenzie realmente pensava sobre a natureza do homem:

“O triplo sentido da Bíblia que é derivado da tricotomia da natureza humana: corpo-alma-espírito, aparece tanto nas homilias como no Periarchon. De Lubac encontra as raízes desta tricotomia na Bíblia, especialmente em São Paulo, e não em Filo ou em qualquer escritor não-cristão (p. ISO em diante). De Lubac é mais reservado do que Danielou em admitir a influência de Filo nos princípios de Orígenes, embora admita a dependência em algumas características de suas alegorias”. – A Chapter in the History of Spiritual Exegesis: De Lubac's “Histoire et esprit”, 1951, p. 368, de John L. McKenzie.

Portanto, não é de admirar que ao comentar o episódio de Endor, ele não tenha dito que o espírito que apareceu para Saul fosse algum demônio, ou mesmo um embuste da necromante. No seu dicionário, McKenzie descreve o acontecimento da seguinte maneira:

“Assim, embora Saul tivesse expulsado todas as bruxas de Israel, ele próprio procurou alguém que evocou o espírito de Samuel (1 Sam. 28:13), aqui chamado elohim, um ser sobre-humano”. – p. 192.

Esse encontro é descrito na Bíblia de maneira nada duvidosa. Ela afirma claramente que era Samuel. Como era o costume da época, o escritor bíblico nem usa a expressão “espírito de” ou “alma de”. Informa que era o próprio profeta. McKenzie sabia disso e não poderia ter relembrado o episódio de outra maneira. Uma evidência de que sua opinião, afinal, não era assim tão “progressista”. O que aconteceu em Endor demonstra também que os israelitas não acreditavam que quem morria deixava de existir. Se Saul pensasse isso ele nem teria ido procurar a necromante. Veja mais sobre essa história na seção 5 e no apêndice C.

Por fim, sobre o conceito bíblico de Paraíso mencionado por McKenzie e sua relação com livros apócrifos, queira ler um texto que escrevi chamado “Onde ficava o Jardim do Éden?”. Lá você verá que os pontos de contato não se devem à importação de ideias erradas da literatura extrabíblica. Todos os livros religiosos do Judaísmo e do Cristianismo daquela época, inclusive os que vieram a formar a Bíblia, são produtos das crenças do mundo antigo e é absolutamente previsível que determinados conceitos sejam vistos dentro e fora da Bíblia.

15) The New Catholic Encyclopedia (1967)

“Nepeš vem de uma raiz original que provavelmente significa respirar. Assim, a forma substantiva significa pescoço ou garganta aberta para respirar, daí, sopro de vida. Uma vez que a respiração distingue os vivos dos mortos, nepeš veio a significar vida ou ser ou simplesmente vida individual. Nepeš é usada tanto para animais como para humanos. Se a vida é humana, nepeš é equivalente à pessoa, o ‘eu’. Após a morte, a nepeš vai para o Seol... O termo ψυχή [psyche] é a palavra do NT correspondente a nepeš... A psyche em Mat. 10:28, ‘E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma [psyche]; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo’, significa uma vida que existe separadamente do corpo. O significado de psyche na declaração de nosso Senhor: ‘...o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir, e para dar a sua vida [psyche] em resgate de muitos’, é obviamente sua existência mortal (Mat. 20:28; João 10:11). Como um ser vivo, sujeito a várias experiências, ela pode se referir a animais, ‘E toda coisa viva [psyche] no mar morreu.’ (Rev. 16:3), ou a seres humanos, ‘E em toda a alma [psyche] havia temor’ (Atos 2:43; Rom. 2:9; 13:1). Assim, a psyche sente, ama e deseja. Nesse sentido, ela pode ser usada para significar o pronome pessoal ou reflexivo, como em João 10:24, ‘Até quando nos deixará [nossas psyches] em suspense?’.”.

The New Catholic Encyclopedia [Nova Enciclopédia Católica], Catholic University of America e McGraw-Hill Book Company, 1967, Vol. 13, verbete "Alma", pp. 335, 336.

16) Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament, de Lothar Coenen e Klaus Haacker (1967)

“Ele [Jesus] tem as chaves do mundo dos mortos (Ap 1:18), de tal maneira que a morte perdeu seu terror final para o crente. Ele, possuindo as chaves do abismo (Ap 20:1), é o Senhor que governa os espíritos do hades (20:3) . . . . [A palavra poreuomai, tradução do hebraico hàlak na LXX] pode, também, significar a ‘partida’ desta vida (1 Rs 2:2; 2 Sm 12: 23) e, em tempos posteriores, a viagem ao Sheol ou ao Hades (Inferno), como em Jó 10:21; 16:22; Ec 9:10. . . . Hades é a habitação temporária dos mortos... O judaísmo é a origem literária dos dois termos abyssos e gehenna. abyssos significa um lugar específico de terror que se constitui em refúgio para os demônios; gehenna é o inferno escatológico de fogo para o qual serão eternamente condenados os ímpios no Juízo Final”.

Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament [Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento], Lothar Coenen e Klaus Haacker, 1967, Vol. 1, pp. 17, 137,138 e 1021, conforme aparece na 2ª edição em português do Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, colchetes acrescentados.

17) Christian Doctrine, de Shirley C. Guthrie, Jr. (1968)

“Cristãos biblicamente informados rejeitam a doutrina da imortalidade da alma por causa da divisão não bíblica que faz entre corpo e alma, a vida física-terrena e a espiritual-celestial. Se o conceito de imortalidade ‘divina’ inata da alma é não biblicamente otimista sobre o futuro que está à nossa frente, seu desprezo pelo corpo é, de forma não-bíblica, pessimista. A Bíblia não ensina que o corpo é uma concha ou prisão na qual estamos presos e da qual ansiamos escapar. Ensina que fomos criados e somos corpo (corpo masculino ou feminino!), bem como alma, e que a vida corporal e espiritual é desejada e abençoada por Deus. Também ensina que nossa esperança para o futuro não é a fuga da alma da vida físico-corporal para algum reino espiritual superior e melhor, mas para uma total renovação de nossa existência humana como almas encarnadas e corpos almados. Assim foi com Jesus: O Novo Testamento não nos diz que sua alma deixou seu corpo e ‘voltou para casa’ para estar com Deus; Ele nos diz que Deus o ressuscitou dos mortos e que o mesmo Jesus terreno que seus discípulos tinham conhecido antes (com certeza com um ‘novo’ corpo transformado) retornou ao Deus de quem tinha vindo. Assim será conosco... A esperança bíblico-cristã para o futuro é a esperança para os seres humanos que são corpo e alma em sua unidade inseparável. . . .

“Na maior parte dos escritos do Velho Testamento não há nenhuma esperança para uma vida além da vida neste mundo. As pessoas podem esperar que Deus irá abençoar os justos e punir os injustos nesta vida, mas depois desta vida não há nem céu nem inferno, nem qualquer vida real. Todos que morrem vão para o mesmo lugar, o Seol, ‘a terra triste e de escuridão profunda’ (Jó 10:21), a região onde todos os mortos têm o mesmo tipo de existência sombria, completamente apartados de Deus e esquecidos por Deus (Sl. 88:4-6, 10-12; 115:17). . . .

“Olhar para a frente, para a ‘vida após a morte’, não é vislumbrar a transformação em espíritos celestiais desencarnados, mas é para se tornar uma ‘nova criação’ (2 Cor. 5:17), parte de uma ‘nova humanidade’ (Ef. 2:15). É esperar a conclusão e a perfeição de nossa humanidade, e não escapar dela – é a existência humana que Deus quis para nós desde o início e estava trabalhando para restaurar a nós e em nós através de Jesus Cristo”.

Christian Doctrine, USA, 1968, de Guthrie, Shirley C., Jr. (Esta capa é da Revised Edition, Westminster John Knox Press, Louisville, KY, USA, 1994), pp. 380, 381, 384, 386.

Comentário:

Perceba que o conceito de imortalidade da alma apresentado e contradito é aquele tipicamente grego, onde não há nenhuma perspectiva futura para o corpo, e que o considera até mesmo indesejável para a vida eterna. Esse é um viés sobre a imortalidade da alma que jamais foi aceito pelos cristãos antigos. Esse ponto será analisado na seção 4 e no apêndice A, à luz do que é explicado pelos comentaristas aqui citados. De uma maneira ou de outra, Guthrie deixou claro que os israelitas não achavam que a morte resultava na inexistência de quem morreu, mas sim na transferência para um mundo sombrio afastado de Deus, onde os que estão lá experimentam grande melancolia. Realmente isso não pode ser chamado de vida, ainda que se esteja vivo lá! É como viver em um calabouço em condições extremamente degradantes. Naturalmente, conforme está explicado em várias obras aqui citadas, essa visão sobre a morte foi se modificando e ganhando novos contornos à medida que o tempo passou. Assim, quando chegou a época do Novo Testamento a expectativa em relação aos habitantes do Seol já não era a mesma de antes. Lembrando que na literatura judaico-cristã Seol passou a ser chamado de Hades, e depois de Inferno.

Para uma consideração adicional da obra acima, veja a seção 4.

18) The Religious Ideas of the Old Testament, de Henry Wheeler Robinson (1968)

“Obviamente, eles mantêm uma relação muito mais próxima com o desenvolvimento religioso subsequente de Israel do que com aquelas influências externas cananeias, babilônicas, persas e gregas que já foram observadas. A condição de sua sobrevivência era que eles poderiam ser assimilados ou reconciliados com a religião de Javé. Desta ordem são as ideias gerais da vida e da morte humana e da existência além da morte. Podemos facilmente fazer um paralelo com outros povos, semíticos e não semíticos, da ideia de respiração ou sangue como idêntica à alma e a atribuição de características psíquicas ao coração, fígado, olho, ossos; Os costumes funerários, como a refeição dos lamentadores e a mutilação pelos mortos, não são de modo algum estranhos aos hebreus; A concepção do Seol, a morada dos mortos, tem muitos pontos de semelhança com o Hades grego”. – pp. 46, 47.

“Em contraste com a ideia dualista de corpo e alma que é característica do pensamento grego como um todo, a ênfase hebraica recai na unidade da personalidade. A alma não continua uma vida imortal após a morte do corpo; Ela sai ou morre com o corpo, e tudo o que resta é a aparência sombria do eu anterior, do corpo e da alma, que está reunida no Seol [com outras “sombras”]. O resultado dessa limitação para o pensamento hebraico é uma notável concentração de atenção na vida presente”. – p. 48, colchetes acrescentados.

“Não há, portanto, nenhuma negação formal ou a priori da existência de outros deuses em seus reinos apropriados. O que realmente aconteceu foi a apropriação gradual desses reinos por parte de Javé e a extensão vitoriosa de Sua soberania sobre outros países, até que seus deuses se tornassem tão incolores como as sombras no Seol, e Isaías pudesse chamá-los por um termo zombador que denota sua inutilidade. Em primeiro lugar, a vitória de Javé sobre os deuses de outras nações dependia da vitória de Israel sobre as próprias nações”. – p. 59.

The Religious Ideas of the Old Testament [As Ideias Religiosas do Antigo Testamento], Henry Wheeler Robinson, T. and A. Constable, Ltda, Grã-Bretanha, 1921.

Comentário:

Vemos que o autor informa que as concepções religiosas dos hebreus guardavam algum grau de semelhança com as crenças de outros povos, e não apenas dos semitas (ramo do qual os hebreus faziam parte). Por isso o conceito deles de Seol era semelhante ao Hades dos gregos, ou seja, um lugar coletivo para onde as pessoas eram levadas depois da morte, porém não com sua plena aparência e vitalidade, mas na forma de seres enfraquecidos. Na visão homérica os mortos têm precisamente tais características decaídas. A única diferença substancial em relação à visão grega é que os hebreus não chamavam os mortos que moram no Seol de “almas”, mas sim de “sombras”. (Designação também presente na literatura grega).

Sendo assim, fica claro que a visão hebraica não é de modo algum de aniquilação completa. Conforme o autor da obra acima informa na nota 2 da página 54, o materialismo não fazia parte das crenças do antigos povos do Oriente Próximo. Todos eles acreditavam que a humanidade foi criada por alguma divindade e que algo do ser humano sobrevive à morte. O autor chega a comparar as vitórias de Javé sobre outros povos, mediante a nação de Israel, como a derrocada e rebaixamento dos deuses estrangeiros para o mundo pálido do Seol. Ainda que tais deuses fossem falsos, sabemos pela Bíblia que, na verdade, eles eram demônios invisíveis que influenciavam as nações em seus rituais religiosos. (1 Coríntios 10:18-22; Deuteronômio 32:17). O que torna a referida comparação pertinente, pois, do ponto de vista semítico, tais criaturas decaídas eram tão reais quanto as sombras no Seol.

Um último fator que convém destacar nessa obra é o discurso monista, e até certo ponto naturalista do seu autor. Conforme ficará claro ao longo deste trabalho, de meados do século 19 em diante surgiram vários teólogos, não necessariamente aniquilacionistas, que deram um novo enfoque à Teologia e, com o tempo, declararam “guerra” à linguagem platônica dentro do entendimento cristão sobre a natureza do homem. Não só à linguagem, mas também ao cenário de desapego às coisas terrestres tendo como objetivo o alcance do céu, expectativa que foi enfatizada por alguns teólogos católicos nos tempos antigos e contrasta com o sentimento dos hebreus primitivos, que não viam outra possibilidade de serem felizes que não fosse na Terra. Os referidos teólogos modernos assumiram uma postura segundo a qual essa visão cristã tradicional diminui o valor da pessoa enquanto ser humano, e o que ele pode fazer pela humanidade. Veja algumas coisas que Henry Robinson disse relacionadas com tais aspectos, tendo como referência a noção de mundo do povo hebreu:

“Pode-se afirmar que as tendências da filosofia moderna sustentam as ideias religiosas do Antigo Testamento. Aqui podemos parecer invocar um aliado perigoso e desnecessário. Resulta em menos pensamento e problemas declarar que a religião é independente da filosofia, e apontar que as escolas filosóficas estão em guerra é prova suficiente da futilidade da metafísica. Mas a filosofia é, afinal, comprometida com a verdade, como é a religião. Em última análise, elas devem ser aspectos diferentes da única verdade, e toda filosofia verdadeira deve ser considerada em uma religião, assim como toda religião envolve uma filosofia. Atualmente, o materialismo está em falência, no que diz respeito a pensadores competentes; O agnosticismo é um pouco melhor, que se salva como influência moderadora saudável contra o dogmatismo fácil; Apenas uma interpretação espiritualista do universo tem alguma chance de aceitação. Mas, dentro desse campo de pensamento, a inadequação de qualquer teoria intransigente da imanência tornou-se aparente para muitos. Os fatos da vida são muito complexos para serem rastreados tão facilmente à manifestação do Absoluto. A personalidade, em escolas de filosofia muito diferentes, afirma seu direito a um reconhecimento mais completo. O futuro da filosofia é visto depender da sua atitude com o grande mistério da personalidade, seja no homem ou em Deus. Mais atenção é dirigida aos valores morais e espirituais da personalidade do que, talvez, antes. Mas essa crescente ênfase na personalidade é em si mesma uma aproximação à ênfase religiosa do Antigo Testamento. O homem e Deus são trazidos face a face, sem barreira impenetrável entre eles. O homem é concebido como uma personalidade distinta de Deus, mas totalmente dependente dele. Deus transmitiu uma vida ao homem, que, pelo seu parentesco espiritual com a dele, torna possível a confissão religiosa entre eles. Deus controla a Natureza não menos diretamente, simplesmente e misteriosamente do que a vontade humana controla os movimentos do corpo humano, e o milagre pode ser interpretado como a operação da lei superior (onde há evidências adequadas para sua ocorrência), a lei mais elevada de Maior personalidade. Não há muito mais terreno comum entre as tendências do pensamento moderno e os pressupostos das ideias do Antigo Testamento do que muitas vezes é reconhecido? Não podemos afirmar com razão que a verdade e, portanto, a fonte divina, dessas ideias são confirmadas pelo testemunho extraído não apenas da experiência religiosa, mas também de muitos séculos de investigação filosófica?”. – pp. 226, 227.

Nota-se a ênfase na personalidade do homem e sua valoração, que vai ao encontro do conceito integralista do homem atribuída à crença hebraica, segundo a qual o homem só é real enquanto está completo em sua forma física, de modo que aquela versão distorcida que vai para o Seol pode ser desconsiderada, como se nem existisse de fato. O conceito grego sobre a alma ou mesmo a simples sobrevivência dela de uma maneira mais positiva e significativa do que a hebraica devem ficar de fora dessa visão do homem como um todo, pois sem a intervenção de Deus não pode haver uma vida desejável depois da morte, além do que seria contra a natureza dividir o homem, pois suas partes constitutivas devem estar sempre juntas (imanência). Ou seja, é preciso se opor às ideias espiritualistas e transcendentes. Tudo isso estaria de acordo com uma tendência filosófica moderna apreciada por Robinson, que prossegue em seu comentário:

“A convicção na verdade religiosa é condicionada religiosamente, assim como, inevitavelmente a convicção da beleza artística é condicionada esteticamente, ou uma convicção no domínio dos fenômenos naturais é cientificamente condicionada. Sem um determinado equipamento em cada um desses reinos, um homem não possui os dados para prova. Para dizer isso, a mais alta prova da revelação não deve render-se à mera subjetividade intencional; É antes elevar o discernimento espiritual ao nível da percepção artística e científica. Em cada caso, a verdade de fora é reconhecida através da capacidade espiritual pela verdade de dentro, e tudo o que é dito é realmente a explicação do reconhecimento, pelo apelo às doutrinas da religião, aos princípios da arte, às leis da natureza. Isso pode ser mais evidente se as quatro ideias fundamentais* do Antigo Testamento forem brevemente consideradas como uma interpretação da experiência religiosa universal”. – p. 228.

* De acordo com o autor, essas quatro ideias são: (1) a religião, (2) Deus, (3) o sofrimento do homem e (4) o reino de Deus.

Com respeito às leis da natureza, convém lembrar que as pessoas que acreditam que o corpo humano não possui nada de natureza espiritual, mesmo crendo que tudo foi criado por Deus, acreditam que o funcionamento do corpo é regido somente por propriedades físicas estabelecidas, que funcionam por si só, e que a mente é apenas o resultado cognitivo desses mecanismos. O homem seria, portanto, uma máquina biológica criada por Deus, e o pensamento os dados e informações processados dentro do cérebro. Essa realidade puramente material, quando vestida de sentimentos religiosos, permitiria ao homem o seguinte:

“A ideia de Deus que o Antigo Testamento apresenta é rica com a justa riqueza do atributo pessoal que a experiência religiosa exige. Tudo o que torna mais nobre a companhia entre os homens é representado aqui, enquanto os atributos divinos da perfeita sabedoria, poder e amor são aqueles que a experiência religiosa deve procurar para encontrar o descanso. A religião não pode se contentar com nada menos do que essa ideia, quando uma vez é alcançada, e nenhuma prova mais clara do seu valor pode ser dada. De maneira similar, desde o tempo de Schleiermacher, o elemento de dependência na experiência religiosa mais profunda foi geralmente reconhecido a qualquer custo. O homem encontra seus maiores poderes na entrega consciente de si mesmo a um mais elevado que ele. Existe uma lógica implícita no abandono da alma à misericórdia e ao amor de Deus, o direito do mais fraco sobre o mais forte, que é parte da estrutura moral do universo. Em relação ao grande problema de todas as religiões e de todas as filosofias, a existência do mal moral e físico, a interpretação do Antigo Testamento não deixa ainda margem de mistério insignificante, mas pode inspirar a coragem adequada para encarar o mistério. Se essa interpretação for verdadeira, vale a pena sofrer, seja por penalidade, disciplina ou serviço. Vale a pena, em um sentido em que a fuga budista pela negação da personalidade não vale a pena. Finalmente, a visão do Reino de Deus em justiça social dá justamente essa força e estímulo ao esforço humanitário e ao progresso social que eles precisam para um sucesso permanente e vital. Mais cedo ou mais tarde, a consciência religiosa levantará a questão da origem e do objetivo das tarefas sociais que a consciência moral exige. O Antigo Testamento estabelece os alicerces da única resposta satisfatória”. – pp. 228, 229.

Diante dessa combinação de pensamentos filosóficos, religiosos e naturalistas que Henry Robinson nos apresenta, pergunta-se: Tais conclusões resultaram apenas de suas reflexões e estudos da Bíblia Hebraica? Ou existiu alguma influência externa que contribuiu para o seu discurso? Ao invés de opinar sobre essas questões, sugiro a leitura da seção 7, para que você mesmo chegue a uma conclusão.

19) Anthropologie des Alten Testaments, de Hans Walter Wolff (1973)

“Como entre os povos vizinhos, por exemplo, na epopéia de Gilgamesh, aqui (v. 15) o mundo dos mortos (שְׁאוֹל [she’ol]) é concebido como um grande local subterrâneo de reunião no qual os mortos se levantam como espíritos das sombras e falam. Mas a [palavra] שְׁאוֹל também aparece como potentado que em expectativa agitada do rei da Babilônia, faz levantar-se os reis que jazem sem forças junto a ele (v. 9). Esse drama do mundo subterrâneo, porém, só é apresentado para expor drasticamente as conseqüências do juízo de Javé sobre o tirano que tinha escravizado Israel (14.3s.). O reino das sombras não tem qualquer poder nem dignidade própria. A fraqueza total é sua realidade (v. 10). Larvas e vermes são os verdadeiros regentes (v. 11)... O Antigo Testamento até relata um bem-sucedido esconjuro de mortos, o qual, porém, precisamente como ‘bem-sucedido’, mostra de modo óbvio o absurdo da empresa. Faz parte da insânia do rei Saul que, disfarçado, peca, contrariando sua própria proibição (1 Sm 28.3), à esconjuradora de mortos de En-Dor a evocação de Samuel morto, pois o silêncio de Deus em face da ameaça dos filisteus o deixou completamente desnorteado (1 Sm 28.4ss.). De fato, Samuel surge como um fantasma. Mas que diz? Repreende a perturbação de seu descanso e recorda aquilo que tinha anunciado antes a Saul: que Javé tinha se afastado dele e dado a realeza a Davi (vv, 15ss.). Assim, essa narrativa de uma evocação de mortos, singular no Antigo Testamento, mostra que dos espíritos dos mortos não se pode esperar nada que ultrapasse aquilo que os mensageiros vivos atestam. Exatamente nesta linha, na parábola de Jesus sobre o homem rico, o pedido de que Lázaro seja enviado do reino dos mortos aos irmãos vivos é recusado. ‘Eles têm Moisés e os profetas. Que os ouçam!’ (Lc 16.27ss.)... Quem a não ser Javé poderia oferecer refúgio mesmo em vista do mundo inferior, no qual sua mão não atua (v. 5!)? Afinal, é só ele quem dispõe sobre a entrada no reino dos mortos (v. 6): Tu me lanças no sepulcro profundo, nas trevas, em profundezas abismais”.

Anthropologie des Alten Testaments [A Antropologia do Antigo Testamento], Gütersloher Verlagshaus Mohn, Gütersloh, Germany, 1973, de Hans Walter Wolff. Citado aqui da versão em português: Antropologia do Antigo Testamento, Ed. Hagnos, São Paulo, Brasil, 2008, pp. 167-169, 174.

20) As Grandes Religiões, Abril Cultural (1973)

 

“[Fílon, de Alexandria foi] o primeiro sistematizador da alegoria bíblica... numa idade que estava madura para uma síntese do credo judaico e do pensamento grego... Fílon dedicou a maior parte de sua vida à interpretação do Pentateuco, no qual, a seu ver, se encontrava a fonte de todo conhecimento verdadeiro: a Escritura é a sabedoria revelada e toda a filosofia não passa de um reflexo dessa sabedoria. Para explicar a Bíblia, Fílon utiliza o método alegórico. Em suas exposições do texto bíblico, procura um duplo significado: o literal ou evidente e o alegórico ou oculto... Fílon não inventou o uso dos símbolos, através da alegoria, nem foi o primeiro a se valer deles. Esse método já havia sido aplicado à mitologia grega e a Homero por alguns filósofos. A obra de Fílon consistiu em lhe dar um novo alcance, partindo da alegoria como um método sistemático de conhecimento. Seu pensamento revela nítidas influências de diversas escolas gregas, especialmente a de Platão (428/7-348/7 a.C), com uma oposição entre o mundo sensível e o inteligível, entre a matéria e o espírito... O sábio deve ser ao mesmo tempo um asceta e um místico: libertar-se das paixões, dos sentidos, da matéria, elevar-se até a contemplação das realidades eternas e finalmente, pela contemplação mística, unir-se a Deus... Os seguidores do pensamento de Fílon não foram os rabinos, mas os teólogos do Cristianismo nascente”.

As Grandes Religiões, Victor Civita (Editor), Abril Cultural, São Paulo, Brasil, 1973, pp. 78-80 .

Comentário:

A referência ao método alegórico em conexão com os primeiros teólogos cristãos tem outro fator que também deve ser considerado, e que é ainda mais importante do que a influência de Fílon. A própria Bíblia apresenta esse tipo de interpretação. As cartas de Paulo aos gálatas e aos hebreus são as que mais se destacam nisso. Não há porque achar que o apóstolo esgotou todas as possibilidades de simbolismos e modelos proféticos do Antigo Testamento sobre realidades superiores. Uma maior amplitude desse tipo de aplicação combina com a grandeza da Palavra de Deus e sua excelsa sabedoria.

É claro que se Deus não inspirar alguém a entender tais coisas, as conclusões a respeito das possíveis alegorias ficarão à mercê da especulação. Porém é irracional achar que só por isso esse lado simbólico da Bíblia não deve ser procurado, ainda mais se determinadas referências bíblicas forem utilizadas nesse método de interpretação. O próprio texto bíblico indica a realidade da leitura alegórica. A história do paraíso no Éden é um bom exemplo que muito provavelmente se refere a algo que está além daquilo narrado na superfície do texto, e há sólidas evidências para se pensar assim. Caso queira considerá-las recomendo novamente o texto abaixo indicado:

Onde ficava o Jardim do Éden?

Na seção 4 há uma consideração adicional sobre as informações supracitadas, que foram extraídas dessa obra da Editora Abril.

21) The Zondervan Encyclopedia of the Bible, de Merrill C. Tenney & Moisés Silva, eds. (1975)

A morte para os ímpios não é aniquilação, mas a descida ao Seol ou ao Poço. É uma experiência consciente de separação de Deus, de destruição e, portanto, de retribuição (Salmos 49:11, 14, 19; 88: 10-12; Isa 14: 9-11)... O estado intermediário dos justos e dos ímpios é de experiência consciente ao invés de aniquilação. Os ímpios começam a suportar os tormentos da destruição (Lucas 16:23), mas somente no julgamento final na reunião do corpo e do espírito eles são lançados para o inferno para sempre (Ap 20: 13 em diante)”.

The Zondervan Encyclopedia of the Bible [Enciclopédia da Bíblia Zondervan], Merrill C. Tenney & Moisés Silva (eds.), 1975, Vol. 2, versão on line, verbete “Imortalidade”. Disponível em português na Enciclopédia da Bíblia, editora Cultura Cristã, 2009.

22) Calvinism and Scholasticism in Vermigli's Doctrine of Man and Grace, de John Patrick Donnelly (1976)

“A erudição bíblica do século vinte concorda amplamente que os judeus da antiguidade tinham pouca noção explícita de uma vida após a morte pessoal até bem tarde no período do Antigo Testamento. A imortalidade da alma era um conceito filosófico tipicamente grego, bem alheio ao pensamento dos antigos povos semitas. . . . [Pietro Martire Vermigli] também ataca aqueles que sustentam que a alma morre com o corpo e é recriada por Deus na ressurreição; esses primos primogênitos dos psicopaniquistas erram por causa de uma falsa interpretação de uma passagem de São Paulo; Martire tenta ajustar o registro correto em sua própria exegese da passagem”.

Calvinism and Scholasticism in Vermigli's Doctrine of Man and Grace [Calvinismo e Escolasticismo na Doutrina do Homem e da Graça de Vermigli], John Patrick Donnelly, Leiden, E. J. Brill, 1976, pp. 99, 100.

Comentário:

Veja que Donnelly não afirma que os hebreus não tinham absolutamente nenhuma noção de vida após a morte. Ele afirmou apenas que eles tinham pouca noção disso, pois, como era próprio dos povos semíticos, eles valorizavam apenas a vida na Terra e achavam que quando descessem para o mundo subterrâneo depois da morte experimentariam uma existência triste, perambulando enfraquecidos por um mundo sem nenhuma alegria ou atividade prazenteira para executar. Note o que diz a próxima citação.

23) Jewish Ideas & Concepts, de Steven T. Katz (1977)

“[A região dos mortos] está nas profundezas da terra; por isso é chamada de ‘as partes inferiores da terra’ (Ezequiel 31:14); ‘As profundezas da cova’ (Lam. 3:55); ‘A terra das trevas’ (Jó 10:21). Observe as expressões acadianas comuns para a região dos mortos: ‘casa das trevas’ e ‘país sem retorno’. Os mortos habitam este país, mesmo aqueles que não foram sepultados (Gênesis 37:35, Isaías 14:19, Ezequiel 32:17-32, A Epopeia de Gilgamesh xii: 153). Os mortos também são chamados ‘Rephaim’ [sombras] - em ugarítico também. . . . Nas confissões babilônicas os espíritos dos mortos são mencionados junto com os deuses. . . . Na Bíblia, eles foram chamados de espíritos (lit. ‘deuses’, i Sam. 28:13). A reticência da Torá em questões relativas aos mortos é facilmente compreensível. Não há nada em honrar os mortos; pelo contrário, há proibições sobre lamentar certas pessoas [que morreram], e é proibido dar-lhes oferendas (Dt 26:14) e consultá-las. Os sacrifícios aos mortos, proibidos em Deuteronômio 26:14, são ligados pelo Salmo 106:28 à idolatria. . . . O costume de trazer refeições aos mortos não desapareceu, entretanto, durante o período do Segundo Templo, pelo menos em certos círculos devotos foi considerado um trabalho piedoso: ‘Derrama o teu pão no túmulo dos justos e não o dê para os pecadores’ (Tobias 4:7). Ben-Sirac ataca essa crença (Eclesiástico 30:18). . . . Esse pessimismo sobre o destino do homem, expresso nos textos bíblicos e mesopotâmicos, pode ser mais claramente sentido nas palavras com as quais Siduri tenta convencer Gilgamesh de que não há sentido em buscar a vida eterna, pois ‘quando os deuses criaram a humanidade, eles reservaram a morte para ela, e a Vida eles retiveram em suas próprias mãos’; e ela continua aconselhando-o a desfrutar deste mundo (ver Pritchard, Textos, 90; ver também a passagem paralela em Ecles., 9:7-10). As duas exceções à crença bíblica de que o homem desce para o she'ol e permanece lá para sempre são Enoque (Gen. 5:24) e Elias (ii Reis 2:11; conforme o destino do herói da história do dilúvio Mesopotâmico Ziusudra / Utnapishtim)”.

Jewish Ideas & Concepts [Ideias e Conceitos Judaicos], Steven T. Katz, Schocken Books, Nova Iorque, EUA, 1977, pp. 113, 114, colchetes acrescentados.

24) The Concise Jewish Encyclopedia, de Cecil Roth (1980)

Seol: a morada dos mortos de acordo com a Bíblia. Está localizado em um longínquo lugar debaixo da terra e é especialmente a morada dos ímpios. Tornou-se sinônimo de inferno”.

The Concise Jewish Enciclopedia [Enciclopédia Judaica Concisa], Cecil Roth, New American Library, 1980, pp. 487,788.

Comentário:

Se o Seol fica nas profundezas da Terra e mesmo assim os mortos vão para lá, então significa que não são os corpos de quem morre que descem para esse lugar, mas suas almas ou espíritos (“sombras”). Os corpos ficam muitos quilômetros acima, nos cemitérios.

25) Genesis – Volume I, de John C. L. Gibson (1981)

“Na era antiga, os hebreus ansiavam por uma morte pacífica, quando seus corpos seriam enterrados ao lado daqueles de seus antepassados, enquanto suas ‘sombras’ se juntariam a todas as outras ‘sombras’ e ficariam presas por um tempo, em uma condição de extrema fraqueza, no mundo subterrâneo do Seol (veja Jó 3:13-19; Isa. 14:9-11). Quando o corpo tivesse se transformado em poeira, essa forma fantasmagórica também desaparecia. Até o fim do período do Antigo Testamento não havia qualquer concepção de uma vida significativa após a morte. A morte era para todos os efeitos e propósito o fim. . . .

“Para nós, que temos uma crença na vida além do túmulo e, devido a isso, costumamos fazer tanto barulho por morrermos, as descrições concisas e sóbrias da morte no Antigo Testamento não são muito bem-vindas. Talvez devêssemos nos sentir repreendidos por elas. Os hebreus não tinham a nossa esperança cristã, mas eles foram capazes de enfrentar a morte bravamente e aceitá-la com realismo e dignidade . . . .

“Visto que ele, Abraão, morreu como um bom hebreu, ele não teria tido nenhuma noção de sua própria sobrevivência após a morte. Mas com uma pequena licença cristã, podemos seguramente [atribuir a ele as seguintes palavras de John Bunyan:] . . . . ‘Ele se foi, e todas as trombetas soaram para ele no outro lado’.”.

Genesis - Volume I [Gênesis – Volume I], John C. L. Gibson, Westminster John Knox Press, Louisville, Kentucky, EUA, 1981, pp. 132-135, colchetes acrescentados.

Comentário:

Conforme será visto depois, este livro de John Gibson é um dos que têm as informações aparentemente mais fortes contra a ideia de uma vida imediata após a morte, caso determinados trechos sejam lidos fora do contexto da obra. Isso foi uma armadilha para o autor do MB, uma vez que Gibson demonstrou claramente que não teve a intenção de afirmar que a Bíblia ensina o materialismo referente à alma humana. Ele apenas contextualizou a verdadeira crença do povo de Deus conforme cada momento ao longo das eras, sendo que em nenhuma delas acreditou-se numa inexistência total e absoluta depois da morte. Os hebreus, da mesma maneira dos babilônios, achavam que os mortos se transformavam em espíritos fantasmagóricos no Seol, destinados a uma existência completamente inútil e sombria.

26) The Parables of the Kingdom, Grace and Judgment, de Robert Farrar Capon (1985-1989)

“Então, depois de mais do que um ‘santificado seja teu nome’ e um ‘venha o teu reino’, ele lhes pede que não orem por nada mais das aquisições humanas, mas apenas pela comida que eles precisam no dia a dia. Nenhuma realização espiritual, nenhuma perfeição ética. Apenas as necessidades básicas para manter o corpo e a alma juntos... A verdade do Evangelho é que o perdão vem a nós porque Deus em Jesus morreu para e pelos nossos pecados - porque, em outras palavras, o próprio Pastor tornou-se uma ovelha perdida por nossa causa... Uma pessoa que cancela uma dívida é uma pessoa que morre por seu próprio direito de possessão à vida... A morte e a ressurreição são a chave para todo o mistério da nossa redenção. Oramos na morte e ressurreição de Jesus, somos perdoados na morte e ressurreição de Jesus. Se tentarmos qualquer uma dessas coisas e ao mesmo tempo buscarmos preservar nossa vida, nunca saberemos lidar com elas. Elas são possíveis apenas porque estamos mortos e nossa vida está escondida com Cristo em Deus (Colossenses 3:3). E elas só podem ser celebradas por nós se aceitarmos a morte como o veículo de nossa vida nele”.

The Parables of Grace, Robert Farrar Capon, Eerdmans Publishing Company, 1988, pp. 70, 71.

Comentário:

Robert Farrar Capon foi um bispo da Igreja Episcopal (um ramo do Anglicanismo) e escreveu, dentre outras obras, uma série de três livros onde comenta as parábolas de Jesus, dividindo-as em três categorias: (1) do Reino, (2) da Graça e (3) do Julgamento. Uma para cada livro. A série também foi condensada em um único volume. Não obstante as palavras da citação acima, Capon fazia parte do atual movimento que se popularizou no século 20 que rejeita o conceito de vida eterna com linguagem da filosofia grega, a exemplo da expressão “imortalidade da alma”. Mas ele não era aniquilacionista, conforme fez questão de deixar claro em outros textos de sua autoria:

“Uma vez eu fui acusado de ser um universalista e não acreditar nas doutrinas das Escrituras sobre o inferno e a punição eterna... Mas eu não sou um universalista, se você estiver falando sobre o que as pessoas fazem ao aceitar esse feliz e sortudo presente da graça de Deus. Encaro com toda a seriedade tudo o que Jesus tinha a dizer sobre o inferno, incluindo o tormento eterno de modo que uma insensibilidade tola de não aceitá-lo implicaria em sua aceitação”. – The Romance of the Word: One Man's Love Affair with Theology: Three Books, Eerdmans, 1995, pp. 9, 10.

“A velha balela sobre o céu ser para os bons e o inferno para os caras maus está completamente errada. O céu é povoado inteiramente por pecadores perdoados... e o inferno é povoado inteiramente por pecadores perdoados. A única diferença entre os dois grupos é que aqueles que estão no céu aceitam o perdão e aqueles que estão no inferno o rejeitam”. – The Mystery of Christ… And Why We Don’t Get It, Eerdmans, 1993, p. 10.

“Sem dúvida, a aniquilação deixaria uma eternidade mais agradável. Mas, aparentemente, a aniquilação não é uma das opções de Deus. Portanto, relembrando aqui todas as imagens do gusano que não morrerá e o fogo que não será extinto, e dos choros e ranger de dentes, nenhuma dessas coisas é um pouco forte demais para qualquer briga de namorados, e o que dizer se elas forem eternas!”. – Between Noon and Three: Romance, Law, and the Outrage of Grace, Eerdmans, 1997, p. 276.

No entanto, defender tais pontos de vista sem crer que a Bíblia ensina que uma alma sobrevive imediatamente à morte gera as mesmas dificuldades com as quais tiverem de lidar outros autores que também seguem a linha do discurso monista. Nem vale a pena explorar muito todas as explicações de Capon a esse respeito, pois elas apresentam os mesmos rodeios enormes já vistos em outros escritores, a fim de justificar o paradoxo causado por suas crenças inovadoras, que servem apenas para agradar os que gostam de uma teologia existencialista e menosprezam o milenar legado cristão deixado pelos primitivos seguidores de Jesus.

Na visão de Capon, é um mistério como quem morreu pode estar morto e ao mesmo tempo vivo com Cristo. É um “truque” (sic.) que Deus faz de alguma maneira. O que demonstra que Capon não entra no campo da exegese bíblica, e se concentra apenas em lições teológicas e especulativas. Conforme visto no comentário à obra nº 17, que está na seção 4, outro aderente dessa novidade chamou o tal “truque” de “kairosfera”. Ao explicar a parábola do rico e Lázaro, veja o que Capon disse sobre esse universo paralelo e misterioso da kairosfera:

“No tempo de Deus - no kairós, naquele devido período, naquele tempo superior em que o Verbo Encarnado vem no reino em um mistério - todos os nossos tempos são realmente reconciliados e restaurados agora. Mas em nosso tempo - no chrónos, a ordem seqüencial dos eventos terrestres, o tempo inferior de dias, anos, séculos e milênios - o naufrágio da história passa inalterado e imutável agora. E a fé é a única ponte entre o agora no qual nossos tempos estão triunfantemente em sua mão e o agora no qual eles estão tão desastrosamente em nós mesmos. A reconciliação consumada só pode ser crida. Não pode ser conhecida, sentida ou vista - e não pode, por qualquer esforço nosso, por bem ou por êxito, tornar-se visível, tangível ou inteligível. Como os servos na parábola do trigo e do joio, só podemos permitir que a reconciliação e os destroços cresçam até a colheita - até o julgamento em que a ressurreição finalmente exibe o tempo de Deus como vitorioso sobre o nosso e permite que a história se torne a celebração sempre intencionada, mas que nunca conseguiu ser. De certa forma, sinto vontade de me desculpar por ter vindo para o rico e Lázaro desta maneira - por colocar o carro de significado da parábola à frente do próprio cavalo, mas deixe assim. Pelo menos você saberá para onde eu vou, enquanto eu considero os detalhes da história”. – The Parables of Grace, Robert Farrar Capon, Eerdmans Publishing Company, 1988, p. 155.

Para mais informações pertinentes ao kairoferismo proposto por Capon, consulte o referido comentário que eu fiz à obra nº 17.

Capon também sabia perfeitamente que o ensino bíblico não tem a linearidade preconizada pelos monistas não aniquilacionistas, conforme exemplificado nas seguintes afirmações feitas por ele:

“Uma coisa é dizer que a alma saiu de um corpo vivo e que, como conseqüência, o corpo agora não é mais um corpo verdadeiro, mas um cadáver. Mas outra coisa é materializar o fantasma que o abandonou e depois comprometer-se a responder perguntas sobre suas viagens subsequentes. Você está em um terreno bastante seguro no primeiro caso: você está falando sobre um fato observado, a morte. E você está imaginando pela imagem não inapropriada da respiração* ou alma. No segundo caso, porém, você não está falando sobre algo empiricamente observado, mas a imagem que você usou para entendê-lo. E você está atribuindo ao referente dessa imagem uma existência real que, com toda a honestidade, você conhece muito pouco. É claro que não há necessariamente nada de errado nisso. Pode existir mesmo uma coisa real, invisível e imaterial, que atenda pelo nome de Alma. Mas você não sabe disso. Talvez você diga que sim. Talvez você pense que Deus, nas Escrituras, nos assegura. Bem, não tenha tanta certeza. Certamente alguma linguagem bíblica aponta nessa direção. Mas, no geral, a maior parte do discurso da Bíblia sobre a natureza humana parece dispensar tal visão. A ‘imortalidade da alma’ não é uma noção bíblica. Quando a Bíblia quer apresentar uma ideia do nosso destino eterno fora dos confins do tempo, ela tem uma forte preferência por imagens como a Ressurreição do Corpo e a Vida Eterna”. Between Noon and Three: Romance, Law, and the Outrage of Grace, Eerdmans, 1997, pp. 305, 306.

Como se nota, para Capon, o sair da alma depois da morte é literal e não se refere apenas à perda da vida biológica, ainda que ele tenha imposto a si mesmo um limite sobre como entender o que acontece com essa alma. Pudor não demonstrado por nenhum escritor cristão dos tempos antigos (e Capon também reconheceu isto). Vemos também que ele admitiu que há textos bíblicos que realmente apontam para o entendimento que existe uma alma que permanece viva depois da morte, dos quais poderíamos citar o aviso de Jesus de que os inimigos matam apenas o corpo e não a alma, ou aquele em que Paulo disse que estaria com Cristo imediatamente depois que morresse. No entanto, Capon minimiza tais referências, alegando que elas são apenas uma fração do cenário geral da Bíblia, que seria preponderantemente monista. Em suma, ele preferiu se ater ao que pode ser visto e não às coisas invisíveis e não ‘comprováveis empiricamente’ (compare com 2 Coríntios 4:18). Ainda que esse “existencialismo cristão” esteja na moda, as informações apresentadas aqui, em todas as seções e apêndices, demonstram que ele tem problemas insanáveis do ponto de vista bíblico e da história do cristianismo primitivo. Mateus 10:28; Filipenses 1:21-23; 2 Coríntios 5:8, 9.

* A ideia de alma como sendo um fôlego que passa pela garganta e sai pela boca no momento da morte também estava presente no pensamento grego, a exemplo do que Homero escreveu: “Por conduzi-lo com esforço talvez o gado fique um bom rebanho para se lidar, mas ainda assim apoiado por cavalos castanhos corredores; mas para que a alma do homem voltasse depois que passou pela porteira de seus dentes, nem um grande esforço nem a velocidade adiantariam”. – Ilíada 9:406-409; leia também Gênesis 35:18, na SBB.

27) Harper’s Bible Dictionary, de Paul J. Achtemeier e outros (1985)

Seol (shee’ohl), um termo bíblico para o mundo inferior. Em algumas fontes, particularmente poéticas e proféticas (cf. Deut. 32:22; Amós 9: 2), a referência é simplesmente às profundezas da terra. Mais comumente, Seol é o mundo subterrâneo para onde os espíritos partiram (Provérbios 9:18). Alguns dos textos bíblicos preservam um sabor mitológico distinto, onde o Seol é um poder que pode destruir os vivos (cf. Isa. 5:14). . . . Como um mundo inferior sombrio para os espíritos que partiram o Seol é a contrapartida do Hades e do Tártaro....”.

“Para um hebreu, ‘alma’ indicava a unidade de uma pessoa humana; os hebreus eram corpos vivos, eles não tinham corpos. Este campo semântico hebraico é violado na Sabedoria de Salomão pela introdução explícita de ideias gregas sobre a alma. Um dualismo da alma e do corpo está presente: ‘o corpo corruptível torna pesada a alma’ (9:15). Este corpo corruptível é oposto por uma alma imortal (3:1-3). Tal dualismo poderia significar que a alma é superior ao corpo. No NT, ‘alma’ retém o seu campo semântico hebraico básico. Alma refere-se à vida de alguém: Herodes procurou a alma de Jesus (Mat. 2:20); pode-se salvar uma alma ou tirá-la (Marcos 3:4). A morte ocorre quando Deus ‘reclama a tua alma’ (Luc. 12:20). ‘Alma’ pode referir-se à pessoa inteira, o ser: ‘três mil almas’ se converteram em Atos 2:41 (veja Atos 3:23). Embora a ideia grega de uma alma imortal de espécie diferente do corpo mortal não seja evidente, ‘alma’ denota a existência de uma pessoa após a morte (veja Lucas 9:25; 12:4; 21:19); ainda assim a influência grega pode ser encontrada em uma observação de Pedro sobre ‘a salvação das almas’ (1:9). Um dualismo moderado existe no contraste do espírito com o corpo e até mesmo com a alma, onde ‘alma’ significa a vida que ainda não foi alcançada pela graça”.

HarperCollins Bible Dictionary [Dicionário Bíblico de Harper-Collins], de Paul J. Achtemeier e outros (Eds.), Editora HarperCollins Publishers, EUA, 1985, 1996, verbetes “Alma” e “Seol”, pp. 1011, 1055. A primeira edição desta obra, de 1985, utilizada pelo autor do MB, não tinha ainda o selo da Collins.

Comentário:

Como se nota, embora a concepção integralista dos hebreus sobre a alma apareça tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, percebe-se que a palavra “alma” tem várias acepções na Bíblia, dentre elas a existência da pessoa após a morte, conforme Jesus disse: “Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (Mateus 10:28a, TNM). Para mais detalhes sobre a explicação do Dicionário de Harper, veja a citação da obra nº 45 (Enciclopédia Britânica).

28) The Eerdmans Bible Dictionary, de Allen C. Myers e outros (1987)

a) Verbete “Seol”, p. 939:

“O Seol é descrito como estando nas profundezas da terra (ex., Gen. 37:35; Prov. 15:24; Eze. 31:15-18), de fato, o lugar mais profundo de todos (Deut. 32:22; Jó 11:8). É um lugar de escuridão (Jó 10:21, 22; conf. Ecl. 9:10) e decadência (Isa. 14:11), do qual não se escapa (Jó 7:9; cf. isa. 5:14); só Deus pode resgatar seu povo das garras do Seol (Sal. 49:15 [MT 16])”.

b) Verbete “Rephaim”, p. 881:

“[As “sombras” ou rephaim são] os mortos que habitam o Seol... refere-se aos que descem ao Seol e à fraqueza, uma existência sombria no mundo inferior... A discussão acerca da origem e relacionamento dos dois usos de rephaim tem se focado nos textos ugaríticos de Ram Shamra que apresentam as referências mais antigas e numerosas aos Rephaim (rphum, em ugarítico). Alguns eruditos consideram rphum como, primeiramente, os mortos que foram deificados e possuem poderes especiais de cura e recuperação. Pensa-se que Israel assumiu essa referência primária aos mortos, excluindo, entretanto, seus poderes especiais”.

c) Verbete “Imortalidade”, pp. 519, 520:

“No Velho Testamento não há nenhuma consideração sobre imortalidade inerente. Deus é o Senhor dos vivos, e não tem trato com os mortos (Isa. 38:18; conf. Sal. 88:10-12 [MT 11-13]). No entanto, a imagem dos habitantes do Seol sugere alguma existência contínua dos mortos (ex.: Jó 3:16-19), porém sombria e incompleta, ainda que não se possa dizer das ‘sombras’ no Seol (não almas) que elas estão vivendo... A verdadeira imortalidade não é como uma remoção da alma do corpo bruto que lhe impõe obstáculo. Em vez disso, a natureza espiritual e física da humanidade atual, como criaturas caídas, é comparativamente nua e vergonhosa. É como se os seres humanos ainda não estivessem incorporados; A humanidade deve ser vestida antes de ser plenamente santificada (2 Coríntios 5:4). A promessa da imortalidade é a promessa da renovada integridade da alma e do corpo em uma participação na glória de Cristo”.

d) Verbete “Alma”, p. 965:

“Alguns cristãos primitivos acreditavam na preexistência da alma [a exemplo de Orígenes]... Ampla evidência aponta que judeus do período intertestamental acreditavam na imortalidade das almas, que vivem em lugares intermediários de julgamento ou contentamento, aguardando o julgamento final e a ressurreição (ex.: 1 Enoque 22:1-14; ‘espíritos das almas dos mortos’; 39:3-14). Apocalipse 6:9 indica a presença no céu das almas dos mártires antes da ressurreição” (colchetes acrescentados).

e) Verbete “Ressurreição”, p. 882:

“O próprio Jesus acreditava que tanto os justos quanto os injustos estariam presentes no julgamento final (Mat. 10:15; 12:41-42). Ele também acreditava na ressurreição física no seu sentido mais literal, na qual as feridas infligidas nesta vida seriam eliminadas na vida eterna (18:8, 9)... Ele também aparentemente acreditava em um estado intermediário entre a morte e o juízo final, onde o justo pobre desfrutaria contentamento na presença de Abraão, ao passo que o rico mau sofreria nas chamas do Hades (Lucas 16:22-24)”.

f) Verbetes “Médium” e “Mago”, p. 705:

“A lei de Moisés proibia a necromancia (Lev. 19:31; 20:6), impondo a pena de morte (v. 27). As razões era devido à associação de tal divinação com as práticas das nações que estavam sendo expulsas por Israel da terra da promessa (Deut. 18:9-14; talvez também do Egito [conf. Isa. 19:3]) e a distinção entre a profecia e a necromancia (com outras formas de adivinhação; Deut. 18:9-22). Podia-se buscar saber o futuro tanto dos profetas quanto dos médiuns, mas as informações dos necromantes não eram confiáveis (Isa. 8:16-20). Quando Saul não conseguiu obter uma comunicação do Senhor através dos profetas e outros meios apropriados (1 Sam. 28:6), ele contatou o falecido Samuel através de uma médium (vv. 7-14). Mas Samuel recusou-se a dar um conselho neutro, ao invés disso falou como um profeta e confirmou o repúdio advindo do insucesso [de Saul] em obter uma informação dos profetas vivos (vv. 15-19; conf. 13:13-15; cap. 15)”.

g) Verbete “Inferno”, p. 478:

“No pensamento clássico o Tártaro era a parte mais profunda do mundo subterrâneo e um lugar de punição que se contrapõe aos Elíseos, o lugar dos abençoados. Deste modo foi diferenciado de Hades, a morada geral dos mortos, mesmo que no uso popular os dois termos fossem intercambiados. Em 2 Pedro o nome é usado em referência à região infernal para a qual os anjos rebeldes foram confinados, por isso neste caso significa um lugar de punição dos iníquos”.

The Eerdmans Bible Dictionary [Dicionário da Bíblia Eerdmans], Allan C. Myers, John W. Simpson, Jr., Philip A. Frank, Timothy P. Jenney e Ralph W. Vunderink (editores), Grand Rapids, MI, EUA, 1987.

Esse dicionário bíblico foi reescrito e transformado na obra nº 41, citada mais adiante. O Eerdmans Dictionary de 1987 é baseado no Bijbelse Encyclopedie (publicado na Holanda em 1975), em cujo corpo editorial estava Herman Ridderbos, autor da obra nº 58. Mas o outro dicionário Eerdmans, publicado em 2000, manteve alguns verbetes da primeira versão. Além disso, foram mantidos alguns dos mesmos editores. Quando isso acontece, normalmente a função de cada editor muda de uma edição para outra, ou então algum deles sai ou um novo entra.

29) New Dictionary of Theology, de Sinclair B. Ferguson e outros (1988)

a) Verbete “Desenvolvimento da Doutrina”, p. 287:

“Quando se fala de desenvolvimento da doutrina, pode-se geralmente se referir a uma relação do ensino posterior da Bíblia com o seu ensino anterior (e.g., o ensino da doutrina da ressurreição do corpo com o conceito de existência sombria no sheol)”.

b) Verbete “Descida ao Inferno”, pp. 285, 286:

“ ‘Inferno’, aqui, no entanto, não se refere ao inferno do castigo eterno (geena), mas, sim, ao ‘reino dos mortos’, o ‘mundo inferior’ (sheol, no AT, e hades, no NT)... Que Cristo se apartou na morte, em sua alma humana, para o lugar dos mortos até sua ressurreição é afirmado no NT (At 2.31; Rm 10.7; Ef 4.9), o que significa dizer que ele realmente morreu. De acordo com uma interpretação do que diz l Pedro 3.19; 4.6, Cristo pregou ali [no Hades] o evangelho àqueles que haviam morrido antes de sua chegada, a fim de tornar a salvação disponível também a eles. Observe-se, no entanto, que essa interpretação, dada pela primeira vez por Clemente de Alexandria, foi rejeitada por Agostinho e por muitos exegetas medievais e só nos tempos modernos passou a ser base exegética principal para a doutrina da descida ao inferno. Embora ainda fortemente defendida por alguns estudiosos..., muitos exegetas atualmente tomam o texto de 3.19 como que se referindo à ascensão de Cristo, durante a qual ele proclamou sua vitória aos anjos rebeldes aprisionados nos céus mais inferiores, enquanto 4.6 se referiria aos cristãos que morreram após o evangelho já haver sido pregado a eles em vida... Tem-se acreditado, como uma implicação de Mateus 27.52 e Hebreus 12.23, que a descida de Cristo efetuou a transferência dos crentes do AT, do hades, para o céu. Essa ideia pode ser encontrada nos mais antigos escritos pós-apostólicos (Inácio, Ascensão de Isaías), juntamente com a pregação do evangelho que Cristo teria feito aos mortos (Hermas, Evangelho de Pedro, Justino Mártir, Ireneu). Era esse, de modo geral, o entendimento comum no período patrístico sobre a descida de Cristo ao inferno”.

c) Verbete “Materialismo”, p. 656:

“[Materialismo é a] doutrina que prega que o que quer que exista é matéria física ou dela depende. Afirmada desse modo, a doutrina é suficientemente vaga para já ter tido numerosas expressões, desde o materialismo de Demócrito (c. 460-c. 370 a.C) e o epicurismo, em que tudo é reduzível aos movimentos dos átomos, até o materialismo mecânico de Thomas Hobbes (1588-1679) e o fisicalismo, tanto do positivismo lógico quanto do materialismo dialético de Karl Marx. Além de constituir uma posição filosófica com explicações ontológicas definidas (como a negação da existência da mente ou do espírito), o materialismo pode também ser considerado um programa de pesquisa e uma metodologia de pesquisa sem tais implicações. O materialismo é contestado tanto pelas formas de dualismo mente-corpo (e.g., Descartes) quanto por um antirreducionismo mais genérico, que adverte que, embora o universo tenha um aspecto materialista, não é válido concluir que ele nada seja senão matéria. A ênfase bíblica sobre a humanidade como parte de toda a criação pode parecer, à primeira vista, favorável a uma visão da criação totalmente material; mas a doutrina bíblica da continuidade pessoal após a morte do corpo (2Co 5.1-10) acaba prevalecendo (ver Imortalidade; Estado Intermediário)”.

d) Verbete “Estado Intermediário”, pp. 384, 385:

“Essa expressão [“estado intermediário”] não é encontrada na Bíblia, mas tradicionalmente se refere à condição da humanidade entre a morte e a ressurreição. Para os descrentes, é um estado de angústia e tormento no Hades (Lc 16.23-25,28; 2 Pe 2.9), enquanto esperam a ressurreição - e o juízo final (Jo 5.28,29)... Para o crente, é um período durante o qual sua alma descarnada, em comunhão consciente com Cristo, espera a recepção da ressurreição corporal. Uma ideia alternativa, porém, é a de que os crentes recebem seu corpo espiritual na morte, não havendo assim nenhum hiato de desencarnação entre a morte e o segundo advento, denotando o estado intermediário, de forma genérica, o intervalo entre a morte e a consumação de todas as coisas. Em qualquer dos casos, o estado é temporário e imperfeito (Ap 6.9-11). O foco do NT não está nesse penúltimo e interino estado do crente, mas, sim, em seu destino final, ou seja, seu estado ressurreto de imortalidade. Embora o corpo dos que partem não mais esteja ativo no mundo terreno de tempo e espaço, ou dele consciente (cf. Is 63.16), acha-se plenamente alerta quanto ao seu novo ambiente; pois não está somente ‘descansando’ de seus labores, em jubilosa satisfação (Hb 4.10; Ap 14.13), a salvo nas mãos de Deus (Lc 23.46; cf. At 7.59), mas (literalmente) na presença de Cristo (Fp 1.23; cf. 2 Co 5.8), ‘vivo’ na glória de Deus (Lc 20.38), vivendo ‘pelo Espírito segundo Deus’ (l Pe 4.6)”.

.   .   .    . 

“Através de toda a história da igreja, cristãos têm sustentado que, entre a morte e a ressurreição, o espírito ou ‘homem interior’ do crente, desencarnado, é mantido em um estado letárgico, ou de sono, na presença de Cristo. É o chamado psicopaniquismo, a doutrina do ‘sono da alma’... Há diversas objeções a essa visão: 1. O verbo koimasthai, usado por Paulo... geralmente significa ‘adormecer’. Somente quando se refere à necessidade de sono físico, o verbo significa ‘estar adormecido’. Os cristãos, ao morrer, ‘adormecem’, com isso, cessando a relação ativa com o presente mundo. Se esse eufemismo comum para o ato de morrer tem quaisquer outras implicações é somente a de que certamente haverá o ‘despertar’ de uma ressurreição, mas não que o estado intermediário seja de inconsciência ou de suspensão de animação. 2. Imediatamente após a morte, o cristão está ‘com’ o Senhor (meta, Lc 23.43; pros, 2Co 5.8; syn, Fp 1.23), o que se refere a uma comunhão ativa interpessoal, não a uma justaposição espacial impassível. 3. Paulo prefere (2Co 5.8) ou deseja (Fp 1.23) partir e estar na presença de Cristo. É bem provável que ele não estivesse se referindo a um descanso inconsciente com Cristo no céu como ‘muito melhor’ do que a comunhão consciente com Cristo na terra. 4. Lucas 16.19-31 sugere que no estado intermediário há (pelo menos) consciência da circunstância (v. 23,24), lembrança do passado (v. 27,28) e pensamento racional (v. 30; cf. Ap 6.9-11)”.

New Dictionary of Theology [Novo Dicionário de Teologia], Ferguson, Sinclair B., Wright, David F., Packer, J. I. (editores), 1988; trechos extraídos da versão em português “Novo Dicionário de Teologia”, Ed. Hagnos, 2011, colchetes acrescentados.

30) The True Image: The Origin and Destiny of Man in Christ, de Philip Edgcumbe Hughes (1989)

“A oposição de Calvino à opinião de que na morte física a alma morre junto com o corpo e no estado intermediário dorme um sono da morte estava em consonância com o fato exigido por sua crença na imortalidade da alma humana. Assim, ele sustentava que sua afirmação de que a alma, após a morte do corpo, ainda sobrevivia, dotada de senso e intelecto, era idêntica à afirmação da ‘imortalidade da alma’. Em apoio à doutrina da imortalidade da alma, ele citou uma série de textos bíblicos: em primeiro lugar, os dizeres de Cristo em Mateus 10:28: ‘Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma; Antes temei aquele que pode destruir o CORPO E A ALMA no inferno’, com base nos quais ele tinha boas razões para concluir que a alma sobrevive à morte do corpo. Mas é difícil ver como ele poderia derivar um argumento para a imortalidade da alma a partir destes dizeres, uma vez que parece bastante o contrário, e implica na mortalidade da alma: Deus poder destruir a alma e o corpo certamente deve significar que a Alma é destrutível. As passagens citadas por Calvino indicam que a alma humana sobrevive à morte física, não que ela seja em si mesma imortal. . . . . no âmbito bíblico, a natureza humana é sempre vista como integralmente composta tanto do espiritual quanto do corporal. . . .

“Concordemente, a imortalidade com a qual o cristão é assegurado, não é inerente nele mesmo ou em sua alma, mas é concedida por Deus e é a imortalidade da pessoa inteira na plenitude de sua humanidade, tanto corporal quanto espiritual. Essa imortalidade, que não adquirimos por nós mesmos, foi conquistada para nós pelo Filho encarnado que, participando de nossa natureza humana em sua plenitude, tanto corporal como espiritual, e morrendo nossa morte, anulou o poder do diabo e removeu de nós o temor e o aguilhão da morte (Hebreus 2:14 e 1 Cor 15:55). Nossa nova vida em Cristo, que inclui nossa ressurreição final à vida e à imortalidade, deve-se inteiramente a Deus e à sua graça. É DEUS O ÚNICO QUE TEM A IMORTALIDADE e, portanto, quem sozinho pode ser devidamente descrito como imortal. Veja em 1 Timóteo 6:15, 16: . . . .

“Há uma boa razão, acreditamos, para sugerir que a questão da imortalidade da alma, no sentido de que é uma concessão que em nenhuma circunstância será removida, exige alguma reconsideração à luz da verdade bíblica. Temos argumentado que a sobrevivência da pessoa, ou da alma, no estado intermediário entre a morte e a ressurreição, não implica necessariamente na sua sobrevivência eterna. O que Deus trouxe à existência, ele também pode destruir. O Novo Testamento prevê ‘a ressurreição dos justos e dos injustos’ (Atos 24:15, João 5:29), quando estes ‘irão para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna’ (Mateus 25: 46) Esta separação final ocorrerá ‘quando o Senhor Jesus for revelado do céu’; pois é aí então que ‘aqueles que não conhecem a Deus’ e ‘que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus’ sofrerão o castigo da eterna destruição e exclusão da presença do Senhor e da glória do seu poder’ (2 Tessalonicenses 1: 7-9). Este castigo também é descrito como sendo ‘lançado no fogo eterno’ (Mateus 18: 8) ou ‘no inferno, onde seu verme não morre e o fogo não se apaga’ (Marcos 9:44) e como fazendo chorar e ranger os dentes para aqueles a quem isso vem (Mt 13:36 em diante)”.

The True Image: The Origin and Destiny of Man in Christ [A Verdadeira Imagem: A Origem e o Destino do Homem em Cristo], de Philip Edgcumbe Hughes, Eerdmans, 1989, texto on line.

31) Word Biblical Commentary: Ecclesiastes, de Roland E. Murphy (1992)

a) O estilo literário de Eclesiastes (Qoheleth, em hebraico):

“Não há necessidade de recordar o endividamento geral de Israel à antiga Suméria e Babilônia. Quanto à sabedoria, as realizações da Mesopotâmia são consideráveis (ver W. G. Lambert, Literatura da Sabedoria Babilônica [Oxford: Clarendon, 1960]). Aqui também se desenvolveu a literatura dos ‘problemas’, na qual o enigma secular do sofrimento humano apareceu. No Ludlul bel nemeqi (‘vou louvar o Senhor da sabedoria’) há a queixa de que os ímpios e os justos recebem o mesmo tratamento e que os decretos dos deuses não podem ser entendidos (2.10-38; ANET, 434-435 Ver Ecl. 8: 12-14 e 3:11, 8:17). O pessimismo do ludlul aparece também no que foi chamado de o ‘Eclesiastes babilônico’, embora também seja semelhante a Jó: ‘Um diálogo sobre a miséria humana’ ou ‘A teodiceia babilônica’ . . . . A obra hebraica tem em comum com a epopeia de Gilgamesh o tema da morte e da vida humana transitória, e a preocupação com o nome e a memória. Os comentaristas não deixam de apontar as semelhanças entre o conselho dado a Gilgamesh e o que é oferecido em Ecl. 9:7 em diante”. – pp. 41, 42.

Veja a seguir alguns trechos das três obras mesopotâmicas (dos povos semitas) que foram mencionadas por Roland Murphy.

1) Epopeia de Gilgamesh, Tabuleta X, Coluna III, linha 90:

Gilgamesh, aonde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois este também é o destino do homem.

2) O Poema do Justo Sofredor (Ludlul bel nemeqi), tabuleta II (são quatro tabuinhas, no total):

Aquele que estava vivo ontem
Está morto hoje
Por um minuto alguém está abatido
Então de repente cheio de alegria
Um momento ele canta em exaltação
Em outro geme com um luto profissional
A condição das pessoas muda

Como o abrir e fechar de olhos.

. . . .

Quanto a mim, o esgotado
Um turbilhão está me conduzindo!
Doença debilitante está solta sobre mim
Um vento malvado soprou
Das extremidades do céu
Dor de cabeça subiu sobre mim
Do peito do submundo
Um espectro maligno saiu

De sua profundidade escondida.

. . . .

Meu túmulo estava aberto
Meus bens funerários estavam prontos
(Mesmo) antes de eu estar morto
Lamentos para mim estavam concluídos
.

3) Teodiceia Babilônica (os colchetes [...] indicam trecho fragmentado na tabuleta cuneiforme):

Onde está o homem sábio de seu calibre?
Onde está o estudioso que pode competir com você?
Onde está o conselheiro a quem posso relacionar meu sofrimento?
Eu terminei. A angústia veio sobre mim.
Eu era uma criança mais nova; O destino tomou meu pai;
Minha mãe que me deu à luz e partiu para a Terra Sem Retorno.
Meu pai e minha mãe me deixaram sem um tutor.

. . . .

Preste atenção, meu amigo, entenda minhas ideias.
Ouça a expressão de escolha das minhas palavras.
As pessoas exaltam a palavra de um homem forte treinado em assassinato,
Mas derrubam os impotentes que não fizeram o mal.
Eles confirmam o ímpio cujo crime é [...]
Contudo, suprime o homem honesto que atende à vontade de seu deus.
Enchem de ouro a casa do opressor,
Mas esvazia a despensa do mendigo de suas provisões.
Eles apoiam os poderosos, cuja [...] é culpa,
Mas destroem o fraco e afasta os impotentes.
E quanto a mim, o pobre, um novo rico está me perseguindo.

b) O tratamento que Eclesiastes dá ao tema da morte:

“Os pontos de vista de Eclesiastes sobre a morte são, em alguns aspectos, surpreendentemente diferentes da visão bíblica padrão. Em geral, houve uma notável resignação à morte por parte dos antigos israelitas. E encontraram algum consolo no fato de que a ‘memória’ do justo vivia como uma bênção (Prov. 10:7). Mas, é claro, Eclesiastes negou que houvesse alguma ‘memória’ (Ecl. 1:11; 2:16). A imortalidade repousava na continuidade da posteridade, mas o ‘qohelista’ pergunta se aquele que virá após ele será sábio ou insensato (2:18-19). Os grandes sábios tiveram um problema com a morte, se ela acontecia logo em contraste com uma vida longa, ou se foi marcada com a adversidade. A morte dos ímpios tinha que ser triste, um dia de ira (Prov. 11:4). Aqueles que confiam nas riquezas em vez de em Deus não poderiam levá-las consigo (Sl. 49.16-17); suas mortes os deixariam desolados sem qualquer conforto ou força em que confiar. A visão de Eclesiastes sobre a morte é condicionada por seus interesses particulares”. – pp. 62, 63.

c) Sobre o destino do homem e dos animais:

O destino do homem é o mesmo do animal; o mesmo destino os aguarda... Todos vão para o mesmo lugar; vieram todos do pó, e ao pó todos retornarão.

Eclesiastes 3:19, 20

“O ‘lugar’ a que todos vão é especificado pelo ‘pó’ (cf. 6:6), embora Eclesiastes reconheça prontamente a existência do Sheol (9:10). O tema do retorno ao pó é freqüente (Jó 10: 9; 34:15; Sl. 104: 29; 146: 4, Sir. 40:11)”. – p. 28-38.

d) O valor da vida humana e a expectativa da morte:

Ora, para aquele que está na companhia dos vivos há esperança; porque melhor é o cão vivo do que o leão morto. Pois os vivos sabem que morrerão, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco têm eles daí em diante recompensa; porque a sua memória ficou entregue ao esquecimento. Tanto o seu amor como o seu ódio e a sua inveja já pereceram; nem têm eles daí em diante parte para sempre em coisa alguma do que se faz debaixo do sol. Vai, pois, come com alegria o teu pão e bebe o teu vinho com coração contente; pois há muito que Deus se agrada das tuas obras. Sejam sempre alvas as tuas vestes, e nunca falte o óleo sobre a tua cabeça. Goza a vida com a mulher que amas, todos os dias da tua vida vã, os quais Deus te deu debaixo do sol, todos os dias da tua vida vã; porque este é o teu quinhão nesta vida, e do teu trabalho, que tu fazes debaixo do sol. Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças; porque no Seol, para onde tu vais, não há obra, nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma.

Eclesiastes 9:4-11.

“Eclesiastes recorre ao que foi sem dúvida um ditado popular em apoio da vantagem de estar vivo. O valor de um cão no antigo Oriente Próximo era mínimo, se é que valia alguma coisa (1 Sam. [1]7:43; 24:[14,]15). Daí a pungência da comparação com o leão morto. Em conexão com o v. 4, tanto R. Braun (Kohelet, 104) quanto N. Lohfink citam Eurípides (Troad. II, 634-35): ‘Não, criança! Não compare a vida com a morte. A morte significa aniquilação! O que ainda está vivo pode esperar’. Braun apresenta várias outras citações de filósofos helenísticos. Mas o grau de relevância é a questão aqui. Talvez a atitude de Eclesiastes em relação à vida não seja tão positiva quanto a de Eurípides, mas esteja discutindo sobre um plano que é diferente daquele do filósofo grego. A ironia deste verso é inescapável; a vantagem dos vivos sobre os mortos é que eles sabem que vão morrer! Se Eclesiastes não é irônico aqui, ele está falando de forma muito abstrata (e alguns comentaristas o interpretam assim). Esse conhecimento teórico dificilmente é uma vantagem que os vivos têm sobre os mortos que não sabem nada... ‘recompensa’ / ‘lembrança’. O lucro e a lembrança já foram descartados para os vivos (1:3,11)... a última palavra [inveja] pode levar o significado de ‘rivalidade’ como no 4:4. Em outro lugar [o hebraico] hieµleq, ‘parte’ aparece em conexão com a recomendação de se gozar a vida (3:22; 5: 17-18; 9: 9), e pode manter uma nota positiva aqui. Mas também está associado a tudo o que é feito sob o sol (uma inclusão com v. 3), que permanece um mistério desagradável para ‘qohelista’... Em vista do uso que Eclesiastes faz de ‘vier [à mão]’ como um termo-chave em 6:10-8:17, onde ele nunca encontra nada, a ocorrência da palavra aqui merece atenção. O significado é bastante casual: qualquer atividade que se encontre à mão - o que for capaz de fazer - deve-se perseguir. Esse conselho, para viver intensamente, é motivado por uma perspectiva severa, mas realista: no Sheol não há atividade ou vida real, então aja agora! Esta descrição do Sheol é clássica; retrata um estado de não-vida”. – pp. 88-94, colchetes acrescentados.

A obra de Eurípedes mencionada chama-se “As Mulheres Troianas”. A parte citada encontra-se na linha 630, que traz o diálogo entre Andrômaca e Hécuba, mulheres sobreviventes da Guerra de Troia:

Andrômaca

Sua morte foi mesmo como foi, mesmo assim a morte dela foi, afinal, um destino mais feliz do que a minha vida.

Hécuba

A morte e a vida não são a mesma coisa, minha filha; Uma é a aniquilação, a outra mantém um lugar para a esperança.

Ou conforme diz outra versão desse mesmo trecho:

Andrômaca

Ela morreu sua morte, e mesmo sendo tão escura, sua morte é mais doce que minha miséria.

Hécuba

A morte não pode ser o que a vida é, criança; a xícara da morte está vazia, e a vida sempre tem esperança.

e) A morte é o fim da vida humana:

... porque o homem se vai à sua casa eterna, e os pranteadores andarão rodeando pela praça; antes que se rompa a cadeia de prata... e o pó volte para a terra como o era, e o espírito volte a Deus que o deu.

Eclesiastes 12:5-7.

“A nota de morte continua. O processo aqui descrito é o inverso de Gen 2:7. O fim da vida é a dissolução (não aniquilação, os israelitas nunca especularam sobre como o ‘eu’ estava no Sheol, cf. Ecle. 9:10). Os seres humanos retornam ao pó (Gen. 3:19) de onde vieram, enquanto o fôlego da vida dado por Deus [‘espírito’] retorna ao seu possuidor original. Este é um quadro de dissolução, não de imortalidade, como se houvesse um reditus animae ad Deum, ‘o retorno da alma a Deus’. Não há discussão alguma sobre ‘alma’ aqui, e sim sobre fôlego de vida, uma categoria totalmente diferente de pensamento . . . . Alguns afirmam que há uma diferença entre o fôlego de vida dos seres humanos e o dos animais; a pergunta de Eclesiastes (‘quem sabe?’) nega qualquer diferença qualitativa. Mas ele certamente concorda com o resto do AT que Deus é o dono e doador da vida, isto é, o fôlego de vida”. – p. 120, colchetes acrescentados

Word Biblical Commentary: Ecclesiastes, de Roland E. Murphy. Word, Incorporated, Dallas, TX, USA, Vol. 23A, 1992.

Comentário:

O livro de Eclesiastes certamente é um dos favoritos das pessoas que abraçaram o materialismo “cristão”, pois é a única parte da Bíblia que realmente pode induzir um leitor a achar que a morte significa o fim absoluto da existência. No entanto, conforme explicado por Roland Murphy, trata-se apenas de um enfoque diferenciado que contrasta com o resto da Bíblia. O autor de Eclesiastes, de maneira muito semelhante à literatura mesopotâmica, supervaroliza a existência humana terrestre e não nutre qualquer esperança de felicidade para depois da morte. Para todos os efeitos ela é o fim de tudo o que diz respeito à vida humana. Ressalte-se, porém, que mesmo havendo esse tratamento radical e pessimista, que quase abraça o ideal aniquilacionista, abaixo da superfície do texto percebe-se que o “qohelista” não advoga a extinção completa de quem morre, mas apenas a de sua existência física. E o motivo é simples. Ele menciona o Seol, que todo israelita entendia como um lugar nas profundezas do subsolo, para onde todos os que morressem iriam. Murphy destaca essa distinção, ao dizer que embora Eclesiastes se refira frequentemente ao “pó” como destino do homem, o autor bíblico reconhece também a existência do Seol, que por tratar-se de uma região do subterrâneo profundo é obviamente um lugar diferente daquele de uma simples sepultura no solo da superfície terrestre. Ou seja, ao passo que depois da morte um corpo ficava na sepultura (“pó”), a pessoa de alguma maneira iria para o coração da Terra, longe das atividades típicas dos seres humanos. De modo que havia uma continuidade da existência, ainda que de maneira sombria e triste, aspectos que o escritor de Eclesiastes evitou comentar. Talvez para deixar ainda mais patente o conceito apresentado de que vida mesmo é só a material. Ele também não falou nada da possibilidade de um dia alguém sair do Seol, tal como escreveu o salmista: “Não deixarás a minha alma no Seol”. – Salmo 16:10; compare com Atos 2:22-28.

Tendo tudo isso em mente, é por isso que Murphy destacou que a ênfase de Eclesiastes é na dissolução do corpo e aquilo que ele proporciona, e não na aniquilação total da pessoa, pois os hebreus acreditavam que iriam para um outro mundo chamado Seol, embora eles não tenham feito nenhuma sistematização teológica a respeito, nem especulado como isso se daria. Em suma, o que o “qohelista” tinha em mente era apenas a existência humana, e não a continuidade das almas (“sombras”) no Seol, cujos moradores não possuem o mecanismo da respiração (“fôlego”) nem podem dizer que têm uma verdadeira vida lá, ainda que estejam conscientes de si mesmos e dos companheiros ao redor. Conforme Murphy bem lembrou, esse tratamento literário de apresentar a morte como o fim de tudo (o que é humano) pode ser encontrado até mesmo na literatura grega, ainda que os gregos acreditassem indubitavelmente que a alma sobrevive à morte. De modo que quando Eurípedes diz que a morte é o fim de tudo e só os vivos nutrem esperança, ele não está afirmando o aniquilacionismo materialista, mas apenas aspectos puramente humanos e terrenos, os quais desaparecem quando a alma desce para o Hades.

Portanto, é muito prematuro alguém se valer dessas passagens de Eclesiastes no intuito de defender o materialismo, uma crença que é estranha às Escrituras Sagradas. Quem faz isso demonstra o quão distante se encontra da verdadeira perspectiva bíblica sobre esse assunto, especialmente quando o Novo Testamento é considerado.

32) A Theology of the New Testament, de George Eldon Ladd (1993)

“Jesus falou pouco sobre o destino do indivíduo além do lugar dele ou dela no Reino de Deus escatológico. O Novo Testamento inteiro faz uma clara distinção entre Hades, o estado intermediário, e a Geena (inferno), o lugar da punição final. Hades é o equivalente grego do Seol do Antigo Testamento. No Antigo Testamento, a existência humana não termina com a morte. Ao invés disso, a pessoa continua a existir no mundo subterrâneo. O Antigo Testamento não fala da alma ou espírito de alguém descendo ao Seol; as pessoas continuam a existir como ‘sombras’ (rephaim). As rephaim são ‘continuações sombrias e enfraquecidas dos vivos que então perderam sua força e vitalidade’ (conf. Sal. 88:11; Prov. 2:18; 21:16; Jó 26:5; Isa. 14:9). Elas ‘não são almas extintas mas suas vidas têm pouca substância’. O Seol, onde as sombras estão reunidas, é descrito como um lugar abaixo (Sal. 86:13; Prov. 15:24; Eze. 26:20), uma região de escuridão (Jó 10:22), uma terra de silêncio (Sal. 88:12; 94:17; 115:17). Os seus mortos, que estão reunidos em tribos (Eze. 32:17-32), recebem os que morrem (Isa. 14:9, 10). O Seol não é tanto um lugar, é mais o estado dos mortos. Não é a inexistência, mas também não é a vida, porque a vida só pode ser desfrutada na presença de Deus (Sal. 16:10, 11). O Seol é a maneira do Antigo Testamento assegurar que a morte não elimina a existência humana.

“Existem umas poucas indicações no Antigo Testamento de que a morte não é capaz de destruir o companheirismo que o povo de Deus usufrui com ele. Visto que Deus é o Deus dos viventes e o Senhor de tudo, ele não abandonará os do seu povo ao Seol, mas os habilitará de alguma maneira não definida a continuar desfrutando dessa comunhão com Ele (Sal. 16:9-1; 49:15; 73:24; Jó 19:25, 26). Estas passagens não têm um claro ensinamento de um abençoado estado intermediário, mas corporificam a semente de tal ensino. Os salmistas não conseguem conceber que a comunhão com Deus seja em algum momento quebrada, nem mesmo pela morte”.

. . . .

“Em uma única declaração, Jesus lançou um raio de luz no destino dos justos. Ao ladrão moribundo que expressou fé em Jesus, ele prometeu: ‘Hoje você estará comigo no Paraíso’ (Luc. 23:43). Aqui é uma clara afirmação que a alma ou espírito do homem que estava morrendo estaria com Jesus na presença de Deus. ‘Paraíso’, significando parque ou jardim, é usado na LXX [Septuaginta Grega] como jardim do Éden (Eze. 28:13; 31:8) e, às vezes, é usado para a era messiânica, quando as condições do Éden serão restauradas (Eze. 36:35; Isa. 51:3). A palavra é também usada na literatura intertestamentária para a era messiância de bem-aventurança (Enoque 60:7, 23; 61:12). A palavra aparece apenas três vezes no Novo Testamento - na referida passagem de Lucas, em 2 Coríntios 12:3 e em Revelação (Apocalipse) 2:7 - onde ela simplesmente designa a morada de Deus. Devemos concluir que Jesus não deu nenhuma informação sobre o estado dos iníquos, e ele afirma somente que os justos que morreram estão com Deus”.

A Theology of the New Testament, George Eldon Ladd, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1974, 1993, pp. 194, 195.

33) Enciclopédia Mirador (1994)

“No judaísmo antigo é incerta a condição dos mortos no sheol (lugar obscuro, caverna situada por debaixo dos oceanos, fechada por portas |Jó 10,21; 26,5; 38|). Primitivamente, pensava-se que os mortos permaneciam para sempre separados de Deus, incapazes de louvá-lo. Mais tarde, admite-se que Deus pode libertar do sheol os justos; a morte seria finalmente vencida. Nos últimos livros do Antigo Testamento esboça-se a doutrina do juízo final e da ressurreição dos mortos . . . . No cristianismo são claramente afirmadas as seguintes doutrinas: imortalidade da alma; juízo particular, em que cada pessoa é julgada perante Deus segundo os atos praticados durante a (única) existência terrestre, sendo os bons recompensados e os maus condenados; juízo ou julgamento universal no fim do mundo, após a ressurreição corporal”.

Enciclopédia Mirador (Encyclopaedia Britannica do Brasil), 1986, Vol. 8, verbete “Escatologia”, pp. 4012-13; a edição citada pelo autor do MB foi a de 1994, que também apresenta esse trecho.

Comentário:

Nota-se, mais uma vez, a mesma ideia já vista em outras obras aqui: os hebreus acreditavam que depois da morte continuavam vivos no Seol, que não é o mesmo que sepultura, pois fica nas profundezas da Terra. Entretanto, a existência nesse lugar estranho não era tida por eles como verdadeira vida, mas apenas uma versão triste e enfraquecida da pessoa humana que antes morava na Terra. Ou seja, uma mera sombra do que era antes, longe das atividades dos seres humanos, dentre elas o louvor a Deus. Essa concepção de que os mortos possuem uma existência consciente no subterrâneo, porém entristecida, também é vista na crença de outros povos antigos, a exemplo dos gregos, sobre os quais a Enciclopédia Mirador também informou:

“Essa mesma unidade de fins e de composição [a tragédia] patenteia-se na Odisseia, a partir do canto XI, quando Ulisses desce ao Hades para lá encontrar as vítimas do conflito troiano a lamentarem suas vidas perdidas, cessam as aventuras fantásticas do herói”. – Vol. 26, p. 3941, verbete “Epopeia I”, colchetes acrescentados.

34) New Testament Theology, de George Bradford Caird and L. D. Hurst (1994)

“O enfoque histórico é quase o único tipo de escatologia que encontramos no Antigo Testamento – isso não é surpreendente quando se considera que quase todos os livros do Antigo Testamento já tinham sido escritos antes que os judeus alcançassem uma crença na vida após a morte. . . . A complexidade da questão é exacerbada no Novo Testamento, uma vez que nessa época tanto os judeus quanto os cristãos têm uma crença bem estabelecida na vida após a morte. . . .

“Que durante o período formativo da escatologia judaica o povo hebreu não tinha nenhuma crença na vida após a morte é um fato que dificilmente pode ser superstimado. O Seol, tal como o Hades dos gregos, era a terra dos mortos, o despejo final, e foi associado geralmente com termos tais como a morte, o esquecimento, a escuridão, o túmulo e o poço. Seus habitantes eram sombras, fantasmas, fotocópias pálidas relegadas ao armário de arquivos subterrâneos. . . .

“Quando a crença na vida após a morte finalmente começou a surgir, foi como um subproduto da crença em uma nova era da história do mundo amanhecendo para a nação de Israel. A ideia de uma ressurreição, que automaticamente associamos com a imortalidade pessoal, foi usada figurativamente pela primeira vez por Oséias e Ezequiel referindo-se a um renascimento nacional, e apenas quatro séculos mais tarde veio a ser usada literalmente por Daniel relacionada à ressuscitação dos mortos justos, que precisariam de seus corpos para se juntarem ao futuro glorioso da nação. . . . Quando o autor da Sabedoria de Salomão afirma que ‘as almas dos justos estão nas mãos de Deus... porque, embora aos olhos dos homens eles tenham sido punidos, têm uma esperança segura de imortalidade... porque Deus os testou e os achou dignos de serem Seus’ (3:1-5), ele pode estar usando linguagem emprestada do mundo helenístico, mas suas ideias são um legado de seus antepassados judeus . . . .

“Quando nos voltarmos para as Epístolas de Paulo, recebemos a impressão geral de que a ressurreição do corpo deve ocorrer somente na última trombeta. Contudo, na sua primeira carta ele pôde dizer que, quer acordemos quer durmamos [na morte], estaremos vivos com Cristo (I Tess. 5:10), e em sua última carta ele pôde falar de estar pronto para partir e estar com Cristo (Fil. I:23...). No Apocalipse há a passagem já mencionada, na qual os mártires recebem as vestes brancas que os equipam para a vida eterna na cidade celestial”.

Dentro dos parágrafos onde estão os trechos acima, duas notas de rodapé ainda dizem o seguinte:

Nota 18: “De acordo com Ezeq. 32:22-30 os mortos no Seol estão dispostos em nações. Cf. também o começo da Ilíada de Homero, que retrata os corpos dos soldados espalhados no campo de batalha enquanto suas sombras estão no Hades”.

Nota 19: “Os gregos, já não satisfeitos com a obscuridade do Hades clássico, vieram sob a influência dos filósofos a acreditar que o corpo é um túmulo e a terra uma prisão da qual a alma piedosa deve esforçar-se para escapar na morte”.

New Testament Theology [A Teologia do Novo Testamento], George Bradford Caird e L. D. Hurst, editores, 1994, pp. 243-246, colchetes acrescentados.

35) What Do Jews Believe? – The Spiritual Foundations of Judaism, de David S. Ariel (1995)

“Esta passagem [da sentença de morte dada a Adão], como outras (‘Se um homem morrer, pode ele viver novamente?’ - Jó 14:14), sugere que a vida termina no momento da morte. Outras seções [da Bíblia Hebraica, porém,], particularmente nos escritos proféticos, sugerem que há uma vida após a morte em que todos os mortos descem a uma região nas profundezas da terra chamada Sheol. Esta região também é chamada kever (o túmulo), bor ou shachat (o poço), e avadon (terra de descarte). É um lugar de escuridão e tristeza onde todos os mortos compartilham o mesmo destino infeliz. Os mortos que já esperam no Sheol saúdam os recém-chegados com avisos sobre o que encontrarão: ‘Os vermes serão sua cama, as larvas, sua manta’ (Isaías 14:11). . . . A única referência explícita bíblica à vida após a morte vem do muito tardio Livro de Daniel: ‘Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, alguns para a vida eterna e outros para as repreensões e aborrecimento eternos’ (12:2)”.

What Do Jews Believe? - The Spiritual Foundations of Judaism [Em Que Creem os Judeus? – As Fundações Espirituais do Judaísmo], David S. Ariel, 1995, pp. 73, 74, colchetes acrescentados.

36) New Bible Dictionary, de D. R. W. Wood e outros (1996)

a) Verbete “Alma”, pp. 39, 40:

“As numerosas ocorrências com uma referência psíquica incluem estados de consciência: (a) onde nefesh é a sede do apetite físico (Nm 21.5; Dt 12.15, 20, 21; 23.24; Jó 33.20; Sl 78.18; 107.18; Ec 2.24; Mq 7.1); (b) onde é a origem das emoções (Jó 30.25, Sl 86.4; 107.26; Ct 1.7; Is 1.14); (c) onde é associada com a vontade e com a ação moral (Gn 49.6; Dt 4.29; Jó 7.15; Sl 24.4; 25.1; 119.129, 167). Em adição a esses empregos há outros onde nefesh designa um indivíduo ou pessoa (p. ex., Lv 7.21; 17.12; Ez 18.4), ou então é usada com um sufixo pronominal para denotar o próprio ‘eu’ (p. ex., Jz 16.16; Sl 120.6; Ez 4.14). Notável extensão deste último sentido é a aplicação de nefesh a um cadáver (p. ex., Lv 19.28; Nm 6.6; Ag 2.13). Usualmente a nefesh é considerada como a parte do homem que se separa do corpo por ocasião da morte (p. ex., Gn 35.18), ainda que a palavra jamais seja empregada para indicar o espírito dos mortos. Visto que a psicologia hebraica ressentia-se de falta de terminologia exata, há certa indiscriminação no emprego de nefesh, lev (levav) e ruah (v. CORAÇÃO, ESPÍRITO)”.

. . . .

“Quando Paulo emprega psyche juntamente com pneuma em 1 Ts 5.23 está meramente descrevendo a mesma parte imaterial do homem em seus aspectos inferior e superior. O emprego que Pedro faz dos termos é diferente. Ele aplica psyche à personalidade inteira do homem, incluindo seus aspectos mais elevados. Por outro lado, reserva o vocábulo pneuma, em sua acepção humana, para aquela porção do homem que sobrevive à morte. Dessa maneira, uma das principais diferenças entre o uso do AT e o do NT é a aplicação de ambos os termos, psyche e pneuma à existência humana além da morte. V. tb. ESPÍRITO”.

b) Verbete “Inferno”, p. 617:

“Nos escritos judaicos posteriores, Geena veio a ter sentido de lugar de punição para os pecadores (Assunção de Moisés 10.10; 2 Esdras 7.36). A literatura rabínica contém diversas opiniões sobre quem haveria de sofrer a punição eterna. Eram generalizadas as idéias que os sofrimentos de alguns terminariam no aniquilamento, ou que os fogos da Geena em alguns casos eram purgatórios. Porém, aqueles que sustentavam essas doutrinas também ensinavam a realidade do castigo eterno para certas classes de pecadores (A. Edersheim, The Life and Times of Jesus the Messiah, 1894, ii. 44, 791s). Tanto essa literatura como os livros apócrifos afirmam a crença numa retribuição eterna (cf. Judite 17.16; Salmos de Salomão 3.13). O ensino do N[ovo] T[estamento] endossa essa crença (v. ESCATOLOGIA). As passagens sobre as quais se tem baseado a negação dessa verdade não suportam um exame cuidadoso. Assim é que Lc 12.47s. se refere à intensidade, e não à duração do castigo. Mt 5.26 é passagem metafórica, e certamente não pode ser pressionada para dar base a essa negação; enquanto apenas um violento esforço da imaginação pode fazer com que Mt 12.32 ensine que haverá perdão para alguns pecados no mundo vindouro, ainda que não no mundo atual”.

New Bible Dictionary [Novo Dicionário da Bíblia], D. R. W. Wood, A. R. Millard, J. I. Packer, D. J. Wiseman, I. Howard Marshall, editors, 3ª Edição, 1996.

37) “Christianity and The Survival of Creation”, de Wendell Berry, em The New Religious Humanists, de Gregory Wolfe (1997)

“A Bíblia é um livro inspirado escrito por mãos humanas; e como tal, é certamente sujeita a críticas. Mas os ambientalistas anti-cristãos não dominaram a primeira regra da crítica dos livros: você tem que lê-los antes de criticá-los . . . . Não posso fingir, obviamente, ter feito um estudo tão meticuloso; se eu fosse capaz disso, não viveria tempo suficiente para fazê-lo. Mas eu tentei ler a Bíblia com algumas dessas questões em mente . . . . Se lermos a Bíblia tendo em mente a conveniência dessas duas sobrevivências - do Cristianismo e da Criação -, estaremos aptos a descobrir várias coisas que as organizações cristãs modernas mantiveram notavelmente silenciosas . . . . Não temos o direito da Bíblia de exterminar ou destruir permanentemente ou desprezar qualquer coisa na terra ou nos céus acima dele ou nas águas abaixo . . . .

“O bom trabalho humano honra a obra de Deus . . . . Ele não dissocia vida e trabalho, ou prazer e trabalho, ou amor e trabalho, ou utilidade e beleza . . . . Esse dualismo, eu acho que é a doença mais destrutiva que nos aflige. No seu mais conhecido, seu mais perigoso, e talvez sua versão fundamental, é o dualismo do corpo e da alma. Esta é uma questão tão difícil quanto importante, e por isso para lidar com ela, devemos começar do início. O teste crucial provavelmente é Gênesis 2:7, que dá o processo pelo qual Adão foi criado: ‘O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego de vida; e o homem foi feito alma vivente.’ . . . . Podemos ver como é fácil cair no dualismo do corpo e da alma quando se fala sobre as inevitáveis dualidades mundanas do bem e do mal, do tempo e da eternidade. Mas desprezar o corpo ou maltratá-lo por causa da ‘alma’ não é apenas queimar sua casa para receber o seguro, nem é apenas o auto-ódio, do mais profundo e perigoso tipo. É mais uma blasfêmia . . . .

“Se pensarmos em nós mesmos como criaturas meramente biológicas, cuja história é determinada pela genética, pelo ambiente, pela história... então, por mais agradável ou doloroso que seja o papel que desempenhamos, não importa muito. Seu significado é o de mera auto-preocupação . . . . Se pensarmos em nós mesmos como almas elevadas presas temporariamente em corpos humildes em um mundo desanimado, desesperado e não amado, que devemos desprezar por causa do Céu, então o que fizemos para essa questão de significativo? Não muito, eu acho . . . . Se, por outro lado, acreditamos que somos almas viventes, a poeira de Deus e a respiração de Deus. . . . então todos os nossos atos têm um significado supremo . . . . Se pensarmos em nós mesmos como almas vivas, criaturas imortais, que vivem no meio de uma Criação... então vemos por que alguns professores religiosos entendem o trabalho como uma forma de oração”.

“Christianity and The Survival of Creation” [O Cristianismo e a Sobrevivência da Criação], Wendell Berry. Artigo publicado em The New Religious Humanists [Os Novos Religiosos Humanistas], Gregory Wolfe, The Free Press, 1997, pp. 243-256.

Comentário:

Conforme os trechos acima transcritos indicam, o escritor Wendell Berry não está defendendo o materialismo ou a descrença de uma vida após a morte. Na verdade, ele apenas tangencia essa questão, pois o enfoque principal do texto dele não é a análise bíblica dos conceitos de corpo e alma. Mas sim a atitude dos cristãos diante do desafio de respeitar e preservar a natureza. Mesmo assim, nota-se que Berry deixa transparecer que tem a mesmíssima crença da maioria dos que advogam o Cristianismo, que é a de que a morte não significa o fim automático da vida. O argumento básico apresentado por ele é o que está apresentado na citação nº 45, de que o ser humano deve ser visto como um todo único, formado por corpo e alma, tal como visto na maior parte do Antigo Testamento, quando chama o homem de “alma vivente”, e não de um alma encarnada, presa temporariamente no corpo mau que não faz parte dos planos eternos de Deus. Esta ideia é tipicamente grega helenística e não tem amparo nas Escrituras Sagradas. O dualismo grego seria assim o primeiro de vários outros dualismos maléficos impregnados na sociedade humana. A visão integralista esboçada por Berry é, de acordo com ele, um passo importante para reconhecer a sacralidade do corpo e adquirir a consciência necessária para a preservação da natureza e de todos os seres que vivem no bioma terrestre.

38) The Death of Death – Resurrection and Immortality in Jewish Thought, de Neil Gillman (1997)

“Não inesperadamente, o retrato bíblico do Sheol não é tão coerente como o descrevemos até agora. Primeiro, a Bíblia não podia suportar a noção de limites territoriais ao domínio de Deus:... Mais importante, apesar da nossa insistência de que o Seol marca o fim absoluto do destino humano, o fato é que existe alguma forma de continuidade humana, que as pessoas não se extinguem totalmente na morte. Se Jacó afirma que vai chorar seu filho no Sheol, isso significa que seu filho está lá para ele ir. Isso de modo algum melhora ou dilui a realidade da morte de seu filho, mas sugere que, de alguma forma, seu filho continua a ‘ser’ mesmo após a morte. O problema aqui é a dificuldade de conceber apenas o que acontece com uma pessoa após a morte, ou mais grosseiramente, exatamente para onde essa pessoa ‘vai’...” – p. 68.

Os antigos claramente compartilhavam esse sentido. Estar o corpo deles enterrado na terra provavelmente os levou a localizar o Seol como nas entranhas dela. Eles também sabiam que o corpo se desintegra na terra. No entanto, a pessoa morta, de alguma forma, continua ‘existindo’ após o seu enterro. Isso não deve de modo algum ser interpretado como se referindo à existência contínua, após a morte, de uma ‘alma’ humana. Não há noção deste tipo de entidade, independente do corpo, na Bíblia. Mas sugere que o ser humano é, de alguma forma, mais do que apenas um corpo e que essa dimensão extra da personalidade continua após a morte. Portanto, não há questionamento sobre o testemunho esmagador da Bíblia de que qualquer forma de existência contínua no Sheol está singularmente comprometida”. – p. 69.

[Em nossa consideração] Eschatology: Our Vision of the Future nós afirmamos em parte que para o ser humano individual a morte não significa extinção e esquecimento”. – p. 237.

The Death of Death – Resurrection and Immortality in Jewish Thought [A Morte da Morte – A Ressurreição e a Imortalidade no Pensamento Judaico], Neil Gillman, Jewish Lights Publishing, EUA, 1997.

Comentário:

Neil Gillman é um rabino dos Estados Unidos. Ele é um caso no Judaísmo moderno que lembra aqueles teólogos “progressistas” cristãos que combatem qualquer coisa que lembre o conceito grego de imortalidade da alma, porém sem aderir ao aniquilacionismo materialista. A queixa de Gillman é que judeus recentes abandonaram uma parte da doutrina do antigo judaísmo sobre a morte e mantiveram o restante. No caso, deram as costas ao conceito de ressurreição do corpo físico e reconheceram somente a imortalidade da alma destinada a uma vida espiritual. Isto seria uma ruptura na ortodoxia judaica e Gillman se posiciona contra tal mudança doutrinária.

A opinião desse erudito judeu sobre o tema da morte é visivelmente contraditória. E ele próprio reconhece isso, conforme exemplificado nos trechos supracitados. Ele não acredita que a alma (nefesh) sobreviva de alguma maneira à morte do corpo físico e acha que quando a Bíblia diz que ela sai do corpo quando a pessoa morre é apenas uma figura de linguagem, que se refere à dissipação da vida. Ou seja, ela não sai de fato para nenhum lugar. O mesmo ocorre no caso do espírito. Por outro lado, ele admite que os antigos hebreus não acreditavam na aniquilação total de quem morre e que há textos bíblicos que sugerem uma “dimensão extra da personalidade” que continua existindo depois da morte. Naturalmente, ele não quer chamar essa parte invisível de “alma” devido ao “juramento” que fez de repelir a todo custo ideias gregas. E note o seguinte. Ele diz que não tem culpa desse discurso paradoxal e responsabiliza a Bíblia por isso:

“Não há nenhuma razão pela qual devamos escolher entre essas explicações variadas da etiologia da morte. A Bíblia não é um livro internamente coerente. Em vez disso, é uma biblioteca, uma coleção de documentos compostos em vários momentos por várias comunidades. Até ser canonizado, cada documento passou por um extenso processo de composição. Não é incomum, portanto, que a Bíblia preserve explicações múltiplas e mesmo contrárias de eventos históricos e fenômenos naturais. Se há uma diferença entre os quatro relatos das origens da morte, ela se baseia na forma como entendemos a afirmação judaica de que a morte será abolida para sempre. Nossas duas interpretações favoritas consideram este estado como restaurador, um retorno a um estado de coisas primitivo ideal. Suas alternativas veem a escatologia como vetorial, isto é, uma mudança de um estado imperfeito no início para um estado ideal no final”. – p. 56.

Traduzindo tudo o que foi dito acima por Gillman... A Bíblia hebraica apresenta dois cenários relativos à morte e ao Seol: um de continuidade e outro de fim absoluto, sendo este mais preponderante na narrativa bíblica. Por isso optou por ele e rejeitou o anterior. (Lembre-se que os comentários desse rabino não levam em consideração a escatologia do Novo Testamento, que dirime qualquer dúvida que poderia haver entre os dois pontos de vista supostamente contraditórios do Antigo Testamento). Na página 120 do seu livro, Gillman também opina que até mesmo as declarações e narrativas atribuídas a Jesus não são confiáveis, pois não há certeza de que elas são autênticas, pois os documentos que as contêm são polêmicos.

39) The Encyclopaedia of Judaism, de Jacob Neusner e outros (1999)

Após a morte, as pessoas vão para o Sheol... o mundo inferior, as entranhas da terra, o limite (juntamente com os ‘céus’) da percepção humana (Jó 11: 7-8). O Sheol é tipicamente retratado em termos aterrorizantes. É um monstro que devora todas as pessoas e nunca está saciado (Is. 5:14, Prov. 27:20). É um lugar de vermes e decadência (Jó 17: 13-16). Não há consciência entre os habitantes do Sheol (Jó 14:21-22), nem têm um relacionamento com Deus (Salmo 88: 4-5, 11-13). Apesar da afirmação frequentemente repetida de que ninguém volta do Sheol (Jó 7: 9-10, 10: 20-21), a Bíblia preserva uma narrativa que fala de tal retorno. 1 Sam. 28 relata como Saul, desesperado para obter a garantia de Deus antes de entrar na batalha com os filisteus, solicitou a mulher de Endor que fizesse Samuel subir do Sheol . . . .

“Apesar do fato de que a existência no Sheol significa total esquecimento, em certo sentido existe uma forma de existência contínua lá... Samuel claramente existia em algum sentido enquanto estava no Sheol . . . .

“Finalmente, se alguém especular sobre as razões para a ênfase bíblica no caráter definitivo da morte, surgem duas possibilidades. A primeira é distanciar a religião bíblica das religiões pagãs que adoravam os mortos. A segunda baseia-se na insistência bíblica de que somente Deus é imortal. Os seres humanos morrem, e essa é a diferença entre eles e a divindade . . . .

“Uma característica importante da religião são os elementos mais sombrios que são muitas vezes esquecidos nos tratamentos padrão: a adivinhação, a magia e as ‘artes esotéricas’. A condenação destas nas fontes bíblicas e outras (por exemplo, Deut. 18:9-14, Is. 65:3-4) tem sido muitas vezes tomada por seu valor nominal, para indicar que essas coisas não tinham lugar no judaísmo. A evidência indica o contrário... A adivinhação foi oficialmente praticada pelos sacerdotes desde cedo com o uso do Urim e do Tumim, e certamente estava presente entre as pessoas, mesmo quando algumas franziam a testa. Isso evidentemente incluiu cultos para os mortos . . . . Embora não haja evidência para cultos aos mortos no período do segundo Templo, em particular, outras formas de contato com o mundo espiritual estão bem documentadas. . . .

“[Com respeito à alma e sua imortalidade] A segunda metade do tratado de Saadia [um filósofo judeu da Idade Média] é principalmente dedicada a um conjunto de problemas que têm a ver com a questão geral da recompensa e da punição . . . . A própria Bíblia não é muito clara nestes tópicos. Em algumas passagens fala sobre um dia de julgamento; em outros lugares, e mais uma vez não muitos, refere-se à alma, ou espírito, retornando a Deus. Apenas no Livro de Daniel, o último livro da Bíblia [hebraica], aparece uma clara referência à doutrina da ressurreição dos mortos... Saadia pode ter sido o primeiro a tentar formular uma teoria do ‘fim dos dias’, um relato que integra as várias ideias bíblicas e rabínicas desses assuntos. Primeiro ele discute a natureza da alma. Embora Saadia trabalhe com algum tipo de dualismo alma-corpo, ele não exibe as distinções e preconceitos como os dualismos platônicos ou cartesianos fazem... [para ele] a alma assume principalmente a responsabilidade por nossas ações; faz as escolhas que nossos corpos realizam. De fato, o corpo não é intrinsecamente impuro, como os platonistas haviam sustentado. Torna-se impuro se a alma faz escolhas imprudentemente. A alma e seu corpo são criados juntos. Aqui Saadia rompe novamente com o platonismo, que havia afirmado a preexistência da alma. Ao rejeitar a preexistência, Saadia também é capaz de negar a transmigração, ou metempsicose. Isso não significa, contudo, que a alma morra com a morte de seu corpo. Quando este último morre, a alma sobrevive em uma ‘sala de espera neutra’, a bíblica ‘bolsa da vida’, onde aguarda a próxima etapa de sua carreira”.

The Encyclopaedia of Judaism [Enciclopédia de Judaísmo], Neusner, Jacob, Avery-Peck, Alan J., Green & William Scott (eds.), Brill Academic Publishers (Leiden, Boston e Tóquio), 1999, pp. 595, 596, 1307, 1410, 1411, entradas “Doutrinas Judaicas sobre Morte e Vida no Além”, “História do Judaísmo, Parte II: A Época do Segundo Templo” e “Filosofia e Teologia do Judaísmo, Era Medieval”, respectivamente, colchetes acrescentados.

Comentário:

Conforme se percebe acima, a inconsciência dos mortos é apenas em sentido relativo. Conforme já visto, as almas (“sombras”) estão debilitadas no Seol e, por conseguinte, têm suas faculdades perceptivas comprometidas. Não estão inconscientes no sentido de não terem pensamentos, nem tampouco tal inconsciência denota simbolicamente a própria inexistência. Conforme demonstram os autores dessa enciclopédia, toda história do Judaísmo desde os seus primórdios, o que inclui o conceito primitivo de Seol, demonstra que os judeus jamais acreditaram na inexistência completa de quem morreu. Por isso era difícil banir da nação a prática de tentar conversar com os mortos, cuja proibição não era motivada por ideias materialistas e muito menos porque os mortos que se manifestavam eram demônios, ainda que houvesse esta possibilidade. Os mortos existem e se assemelham a presidiários detidos em algum local de confinamento. O cenário de debilidade e inconsciência relativa dos mortos pode ser visto até mesmo na literatura egípcia tardia:

“O Oeste [a terra dos mortos] é uma terra de sono e densas sombras, um lugar onde os habitantes uma vez instalados, cochilam em suas formas mumificadas, nunca mais acordarão para ver seus irmãos; nunca mais reconhecerão seus pais e suas mães, esqueceram em seus corações das suas esposas e filhos. A água da vida, que a terra dá a todos que nela moram, é para mim [, que já morri,] estagnada e morta; a água flui para todos os que moram na terra, enquanto que para mim é apenas um líquido putrefato, esta é a minha água. Desde quando eu vim para esse vale de mortos eu não sei onde estou nem quem eu sou”. – History of Egypt, Chaldea, Syria, Babylonia and Assyria (1901-1906), vol. 1, de Angelo S. Rappoport, Gaston Maspero e outros, pp. 158, 159, palavras da falecida esposa de Pasherenptah, chamada Taimhotep; colchetes acrescentados.

40) Baker Encyclopedia of Psychology and Counseling, de David G. Benner & Peter C. Hill, orgs., (1999)

“A erudição moderna tem ressaltado o fato de que os conceitos hebraico e grego de alma não eram sinônimos. Embora a visão de mundo hebraica distinguisse a alma do corpo (como base material da vida), não havia qualquer questão sobre duas entidades separadas, independentes. Uma pessoa não tinha um corpo, mas era um corpo animado, uma unidade de vida que se manifestava em forma carnal – um organismo psicofísico (Buttrick, 1962). Embora os conceitos gregos da alma variassem amplamente, de acordo com a era específica e a escola filosófica, o pensamento grego frequentemente apresentava um conceito da alma como uma entidade separada do corpo. Até décadas recentes, a teologia cristã da alma tem refletido mais o pensamento grego (compartimentalizado) do que as ideias hebraicas (unificadoras)”.

Baker Encyclopedia of Psychology and Counseling [Enciclopédia Baker de Psicologia e Aconselhamento], David G. Benner & Peter C. Hill (editores), 2a Edição, 1999, p. 1148.

Comentário:

David Baker é Ph.D em aconselhamento psicológico pela Universidade do Texas e não escreve sobre doutrinas bíblicas (veja o currículo dele aqui). Logo, o foco do livro acima é a psicologia e não assuntos teológicos. Baker faz parte de uma “escola” de psicólogos cristãos que pegaram carona nessa “onda” recente do discurso monista, segundo o qual a visão patrística sobre a alma não tem nenhuma serventia numa abordagem psicológica do ser humano, voltada para ajudá-lo aqui mesmo neste mundo. Ainda que não se possa negar completamente tal visão, o fato é que a informação bíblica geralmente não é o forte de tais escritores que são profissionais da saúde mental. Além disso, eles parecem estar comprometidos com a opinião de que tudo o que acontece na mente humana é resultado apenas de uma combinação de elementos físico-químicos que geram impulsos elétricos no cérebro. O que implica dizer que não há nenhuma substância verdadeiramente espiritual no corpo humano. Mesmo assim eles se esforçam para integrar a teologia com a psicologia, e isso tem ocasionado algumas críticas. Note a seguir um exemplo:

“Nos anos e décadas desde que os pioneiros no movimento de orientação cristã clamaram por uma integração rigorosa da psicologia com a teologia, uma guerra interna entrou em erupção. ‘Os cristãos tomaram posições diferentes em relação até onde deveriam ter alguma coisa a ver com a psicologia moderna, alguns abraçando de todo o coração, outros a rejeitando muito vigorosamente, e muitos outros recaindo em algum lugar entre as duas situações’ (Johnson & Jones, 2000, p. 9)... Uma segunda visão argumenta que a psicologia e a teologia são disciplinas paralelas que envolvem diferentes níveis de explicação e, portanto, não são campos verdadeiramente integráveis (Myers, 2000). Esta segunda visão, na prática, muitas vezes dá mais atenção ao lado psicológico da equação do que ao lado teológico. Uma terceira visão argumenta que devemos procurar construir uma psicologia cristã, vasculhando a sabedoria dos santos que nos precederam, ao invés de tentar separar a verdade de fontes contemporâneas e largamente seculares de informações psicológicas (Roberts, 2000). Obviamente, essa visão coloca maior ênfase nas fontes históricas, bíblicas e teológicas da informação do que no lado psicológico”. – The Integration of Psychology and Theology: An Enterprise out of Balance, Seminário de Denver, de James R. Beck, p. 6.

E o fato mais importante que interessa aqui é que quando Baker, por exemplo, dá a entender que nos últimos anos houve entre os cristãos uma migração do entendimento dualista para o monista, fica a impressão de que isso, além de ser uma coisa boa, é uma evidência de que o Cristianismo está progredindo ao caminhar para essa outra direção, que não tinha sido vislumbrada pelos cristãos primitivos. É a própria rejeição do legado da antiga igreja. No entanto, a real situação não é assim tão simples. Não só as vozes em prol da ortodoxia continuam ativas, como também apontam a fragilidade da maneira como o conceito monista é hoje apresentado. O artigo prossegue:

“Os autores da integração às vezes podem deturpar posições teológicas. Boyd (1996) afirma que o monismo contingente de Erickson ou a unidade condicional é ‘tendenciosa em favor desta vida’ (p.27) e que está no extremo oposto do espectro do dualismo modificado de Cooper... Os autores da integração às vezes citam as Escrituras com pouca atenção dada ao contexto ou intenção autoral. Por exemplo, em muitos trabalhos recentes sobre a alma, um tópico apropriadamente bíblico, os escritores citam passagens sem deixar claro que os autores da Escritura usam o termo de forma diferente, como podemos constatar observando como Pedro usa a palavra em relação ao que Paulo escreve sobre a alma (veja Beck, 2001, para exemplos mais específicos)... Em outros casos, o material bíblico e teológico está quase ausente das conversas de integração na literatura... Minha intenção em apontar esses exemplos não é desencorajar os autores da integração de usarem conceitos teológicos e bíblicos em seus escritos. Pelo contrário, precisamos desse tipo de reflexão. Mas precisamos atualizar a qualidade e a quantidade das observações teológicas e bíblicas que fazemos para não prejudicar a intenção do nosso trabalho, a saber, construir a igreja e edificar os santos”. – Ibid., pp. 8, 9.

Falando em desencorajar, quando eu menciono que a explicação monista nega o valor do Cristianismo histórico, eu não estou querendo dizer que ela seja errada em si mesma. De fato, se não fosse a queda edênica o homem jamais teria que ser “dividido” e ficar em um estado anormal no Hades, ou no céu, aguardando a restauração de todas as coisas ao padrão original. O erro não está no monismo* (que é a intenção divina, de acordo com a Bíblia), mas no discurso daqueles que o reivindicam, que não considera todos os fatores bíblicos envolvidos e aquilo que foi ensinado no primeiro século de Cristianismo. Não há dicotomia e dualismo no sentido grego, porém existe uma parte espiritual que se separa do corpo depois da morte, comumente chamada de “alma”, e enquanto isso não acontece o corpo se opõe a ela, devido ao pecado. Era isso o que os cristãos antigos pensavam. Os que hoje aderem a uma visão lastreada apenas no que é material, numa aparente submissão plena ao Velho Testamento, ainda que sejam chamados de “progressistas”, na realidade regrediram teologicamente, pois ignoraram o ensino dos apóstolos e seus sucessores diretos. Para que não haja dúvida quanto a isso, recomendo outra vez a leitura dos dois textos indicados a seguir:

O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?

A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?

Depois que os ler, verá que não existe justificativa razoável para essa negação de crenças básicas do antigo Cristianismo por parte dos referidos teólogos “progressistas”, mesmo que sejam válidos alguns argumentos apresentados por eles.

* Por outro lado, se o que a pessoa entende como monismo é que ele significa que o corpo humano é uma peça única sem características internas invisíveis de natureza espiritual (própria do mundo celeste de Deus) e que funciona apenas devido a mecanismos físicos, conforme preconizam as ciências naturais, então, neste caso, tal tipo de monismo deve ser rejeitado pelo cristão, pois ele não passa de um materialismo disfarçado. – Compare com 2 Coríntios 4:18.

41) Eerdmans Dictionary of the Bible, de David Noel Freedman e outros (2000)

a) Verbete “Depois da Morte”, p. 25:

“No A[ntigo] T[estamento] vários termos hebraicos como šĕ’ôl (“Seol”), māwet (“morte”), ‘ereṣ (“terra”), šaḥaṭ (“poço”), bôr (“poço”), e ‘ăḇaddôn (“lugar de destruição”) podem se referir ao mundo inferior ou morada dos mortos. Alguns destes termos são adicionalmente qualificados por taḥtît ou suas várias outras formas que significam ‘as partes mais baixas’. O Seol mais frequentemente designa as regiões inferiores, embora tenha poucos cognatos, se é que tem algum, no antigo Oriente Próximo, tornando a origem de sua etimologia ainda mais obscura. Mesmo que pudéssemos descobrir sua história etimológica completa, não seria necessário esclarecer o significado ou função do Seol.

Tal como suas contrapartes do Oriente Próximo, o mundo inferior na antiga tradição israelita é tipicamente retratado como um lugar para o qual se desce. É escuro, empoeirado, e um lugar de silêncio. Pode ser conectado com as águas do caos sobre o qual tipicamente se viaja até o mundo subterrâneo. O Seol é descrito como possuindo barras, portões, cordas e laços, com os quais se sugere que é completamente improvável escapar do mundo inferior... E se aproxima, pelo que sabemos, do que dizia a tradição mesopotâmica onde o mundo subterrâneo é descrito como ‘a terra da qual não há retorno’... O mundo inferior também é sobreposto com vários outros termos do AT para ‘sepultura’, sugerindo que eles consideravam a sepultura como estando incorporada à ampla morada do Seol. Só se poderia entrar no Seol a partir de uma sepultura, indicando que ela poderia ter a função de entrada para o mundo subterrâneo.

“No antigo Israel aqueles que moram no mundo subterrâneo são chamados de mēṯîm (‘os mortos’) e pā’îm (‘enfraquecidos’; conf. esp. Sal. 88:11 [MT 12]); Isa. 26:14). O termo ‘rephaim’ (ou rp’m) é usado dois textos fenícios do sexto século para denotar simplesmente os mortos (KAI 13.7.7-8; 14.8-9). Os espíritos dos mortos são designados repetidamente como ‘os que sabem’ (yiddĕ‘ōnîm) e ‘os que nunca retornam’ (’ŏḇôt) em textos bíblicos mais tardios, quando a prática da necromancia é também abordada pela primeira vez como uma adaptação vinda da Mesopotâmia. Em Isa. 19:3 eles são chamados de ’iṭṭîm (‘espíritos’ ou ‘fantasmas’), provavelmente o equivalente hebraico do acadiano eṭemmu. É frequentemente alegado que os mortos poderiam ser chamados de ‘deuses’ (‘ĕlōîhm) baseado na tradução questionável do texto deuteronomista de 1 Sam. 28:13-14 e na dúbia suposição que os espíritos e deuses foram igualados na Mesopotâmia e na tradição israelita. Embora alguns textos acadianos pareçam representar duas classes de seres do outro mundo, a familiar ou deuses pessoais (’ilu) e os espíritos de parentes falecidos (eṭemmu), sua exata conexão permanece inconclusiva”.

Sobre a relação da sepultura com o Seol veja o Salmo 141:7, na ARIB.

b) Verbete “Alma”, p. 1245:

“Embora o N[ovo] T[estamento] contenha pouca evidência do dualismo corpo-alma que é apresentado na filosofia helenística, algumas passagens indicam que a alma sobrevive à morte (Lucas 9:25; 12:4; 21:19)”.

c) Verbete “Inferno”, pp. 572, 573:

“Originalmente, todos os mortos tinham a mesma existência banal no Seol. Só mais tarde o Seol foi incluído na dimensão escatológica, um futuro com ressurreição, o julgamento final, as doutrinas... Durante o tempo de Jesus a Geena significava uma irrevogável e eterna condenação para os completamente maus... O Seol e o antigo conceito de Hades denotam escuridão, as moradas sombrias dos mortos. O aumento da crença judaica na ressurreição resultou que Deus traria os mortos do Hades de volta à vida - um retorno da vida corpórea, uma vida para os espíritos ressuscitados no céu. Deus traz a alma do Hades e o corpo do túmulo para serem rejuntados na ressurreição. Na ressurreição, a morte cessa, e o Hades será fechado. Tanto a morte como o Hades desaparecem no lago de fogo (Apocalipse 20:14)”.

d) Verbete “Dualismo”, p. 358:

“Embora a antropologia bíblica assevere a unidade das pessoas (Gen. 2:7; 1 Cor. 15:35-50), algumas literaturas bíblicas podem refletir a influência do dualismo antropológico (Deut. 6:5; Sab. 3:1-4; Mc. 5:3; 2 Cor. 5:1-10). Paulo, no entanto, afirma que uma alma desencarnada é semelhante à nudez (2 Cor. 5:3). Outros exemplos da influência do dualismo na ideologia e antropologia bíblicas pode ser observada em algumas bipolaridades do antigo pensamento cristão (luz vs. escuridão, vida vs. morte, amor vs. ódio e verdade vs. mentira)”.

e) Verbete “Corpo”, p. 194:

“O pensamento semítico não fez nenhuma clara distinção entre o aspecto físico e o espiritual ou psicológico da existência humana, por isso o AT não contém palavras com a conotação de ‘corpo’ conforme o entendimento moderno do termo. O hebraico bāśār, ‘carne’, que designa basicamente toda a aparência externa de um ser humano (ex.: Lev. 13:3; Sal. 109:24), como distinguido de suas partes específicas (pele, ossos, sangue; conf. Lam. 3:4; Ez. 37:6, 8), se refere geralmente à criatura viva por inteiro e pode ser usado de maneira intercambiável com nepeš, ‘alma’... O NT distingue mais claramente o ‘corpo’ (gr. sṓma) da ‘carne’ (sárx). Embora ambos possam se referir ao aspecto externo, soma carrega uma conotação mais holística (conf. Mat. 5:29).... [No NT] maior distinção é feita entre a natureza física dos humanos e a espiritual, ou alma (Mat. 10:28; 1 Tes. 5:23; conf. 2 Cor. 12:2-3)”.

f) Verbete “Morte”, p. 330:

“No AT a morte física (heb. māweƫ mûṯ) resultava no retorno do corpo para a terra (Gen. 3:19), o espírito para Deus (ec. 12:7) e a partida da alma ou essência da vida (Gen. 35:18; 1 Reis 17:21; Jon. 4:3)... Acreditava-se que os mortos vivem no Seol ou no Poço, um lugar sombrio de escuridão e silêncio (Jó 10:21,22; Sal. 94:17; Prov. 2:18; Jon. 2:6[7]). O poder de Deus se estendia ao Seol (Sal. 139:7,8; Amós 9:2), mas ele não se fazia presente lá (Sal. 88:5[6]; Isa. 38:18). Aqueles que moravam no Seol não podiam louvar a Deus (Sal. 30:9[10]; 115:17) ou se lembrar dele (Sal. 6:5[6]; 88:12[13]). Apenas Enoque (Gen. 5:24) e Elias (2 Reis 4:35) escaparam do destino usual... [No NT] fala-se da morte física em termos positivos, como sendo um ganho (Fil. 1:21) e como partir para estar com Cristo (v. 23)... sobre aquele que uma vez conheceu Cristo é dito que ele já recebeu a vida eterna, mesmo estando na presente vida mortal (João 3:3-8)”.

Eerdmans Dictionary of the Bible [Dicionário da Bíblia Eerdmans], David Noel Freedman, Astrid B. Beck & Allen C. Myers (Eds.), 2000, colchetes acrescentados.

42) Christ and the Future in New Testament History, de E. Earle Ellis (2000)

“Em meados do século, duas hipóteses, que têm efeitos contínuos até hoje, tiveram uma importância considerável para a reconstrução da escatologia de Lucas. A tese mais discutida foi que Lucas introduziu uma teologia da história da salvação para explicar o atraso da parousia (Hans Conzelmann). Uma segunda tese foi que a escatologia lucana envolveu uma mudança de categoria horizontal (apocalíptica - esta Era x a Era por vir) para categoria vertical (platônica - terra x céu, tempo x eternidade). Por esta mudança, a consumação da salvação é removida do futuro temporal para uma esfera atemporal (Helmut Flender). Anteriormente, Johannes Weis havia argumentado de forma semelhante para a transformação precoce na escatologia da igreja a partir de uma expectativa de uma parousia iminente e nova criação para uma visão em que os justos foram transferidos na morte para o reino messiânico no paraíso ou no céu. Como exemplos do efeito desta mudança, ele apontou para Atos 14:22 (‘através de muitas tribulações, devemos entrar no reino de Deus’) e às tradições lucanas, especialmente em Lc. 16:19-31 e 23:43, quais sejam, sobre o homem rico e Lázaro e a promessa ao ladrão na cruz, cuja origem ele colocou na congregação de Jerusalém (pós-70 A.D.)”. – p. 108.

Outro exemplo é a visão de Estevão pouco antes de ser assassinado, que tem sido interpretada como uma mensagem de boas vindas de Jesus para aqueles que são martirizados (Atos 7:56). Por isso, o livro de Apocalipse diz que as almas dos que foram mortos por defenderem o nome de Jesus já estão no céu (Revelação 20:4). Sobre esse entendimento, Edward Ellis comenta:

“Indo além de Weiss, C. K. Barrett considerou essa interpretação de Atos 7:56 como indicativo de que Lucas reescreveu a escatologia primitiva: ‘Lucas entendeu que para o cristão individual a morte era verdadeiramente um eschaton (mesmo não sendo o eschaton...), marcado pelo que se pode considerar uma parousia particular e pessoal do filho do homem. O que aconteceria no sentido universal no último dia, acontecia em termos individuais [na morte]’.” – p. 108.

Em seguida, cita outro autor que propõe uma visão semelhante:

“Helmut Flender, em St. Luke: Theologian of Redemptive History, numa avaliação da teologia de Lucas sobre esta questão, chegou essencialmente à mesma conclusão por outro caminho. De acordo com Flender, Lucas busca relacionar a história em andamento do mundo ao ‘novo mundo de Deus trazido por Cristo’ (164). Por fazer da exaltação de Jesus – em distinção de sua ressurreição – o evento decisivo, Lucas situa a consumação da salvação no céu (91-106). Para Paulo, a mudança das eras acontece na ressurreição de Jesus, ou seja, no tempo. Para Lucas, ‘a transição... é deste mundo para o mundo celestial que existe simultaneamente’ (19). Embora a escatologia seja feita (de maneira escondida) presente para a igreja e no Espírito venha ‘descendo do céu’ e na palavra da proclamação (140-152), Flender prossegue dizendo que sua origem celestial determina seu aspecto: ‘A presença divina não pode ser projetada indefinidamente no tempo’ (151). Visto que o objetivo de Jesus é alcançar sua exaltação, ela e sua parousia são essencialmente idênticas (94). Os dizeres apocalípticos de Lucas 17 são, portanto, considerados como uma aplicação individual e de transferência por Lucas: ‘Naquela noite um será tomado, e outro será deixado’ (Lc. 17:34; conf. 12:20), sendo similares à promessa de Jesus ao ladrão na cruz: ‘Hoje estarás comigo no Paraíso’ (Lc. 23:43). Ambas se referem ao dia da morte individual no qual ele tanto perde sua vida quanto ‘a ganha’ (15, 159)”. – p. 109.

Christ and the Future in New Testament History [Cristo e o Futuro na História do Novo Testamento], Edward Earle Ellis, Brill Academic Publishers Inc., Boston , MA, EUA, 2000.

Comentário:

Edward Earle Ellis foi um teólogo batista americano que abandonou uma formação na área jurídica para dedicar-se à teologia. Em seu novo campo de estudo, obteve o doutorado (PhD) na Universidade de Edinburgh. Foi professor de alguns seminários teológicos dos Estados Unidos e ficou conhecido por combater o tradicional ensino cristão sobre a alma e o inferno. Ele fazia parte da “escola” de Oscar Cullmann, um dos principais responsáveis no século 20 em disseminar ideias aniquilacionistas e negar o ensinamento do Cristianismo primitivo sobre a alma e o destino do homem. Tanto Ellis quanto Cullmann alegavam estreita aderência à Bíblia e achavam que a antiga igreja foi corrompida pelo platonismo. Mas eles foram ainda mais longe que aqueles teólogos “progressistas” contemporâneos que são contra o uso da filosofia grega no Cristianismo, pois advogaram abertamente o aniquilacionismo, porém numa linguagem mais refinada, filosófica e cheia de circunlóquios.

Sendo assim, as informações acima citadas, na verdade, não fazem parte da opinião de Ellis. Ele as citou apenas com o intuito de combatê-las. De qualquer modo, citá-las aqui é útil, pois demonstram que a realidade bíblica não é o que ele gostaria que fosse. Um exame adicional de seus argumentos de refutação à ortodoxia reforça mais ainda tal conclusão, conforme ficará claro a seguir. Para começar, Ellis lança mão do velho discurso monista para cativar o interesse do leitor:

“O homem é totalmente uma unidade que pode ser vista de diferentes perspectivas, mas não é, por exemplo, um dualismo alma/corpo. Não há nada no homem inerentemente imortal ou divino e, consequentemente, o homem inteiro é igualmente sujeito ao poder da morte”. – p. 110.

E, como sempre acontece, ele tenta comprovar que essa é a visão bíblica correta. Não discutirei aqui os argumentos que ele apresenta porque é algo totalmente desnecessário, visto que uma exegese séria e completa destrói facilmente o que ele apresenta. Mas se quiser se inteirar das explicações dele sobre esse tema, basta acessar o link acima do livro dele (está em inglês). No entanto, sugiro que termine primeiro de ler este meu comentário. Depois disso talvez você chegue à mesma conclusão a que eu cheguei, de que é uma grande perda de tempo estudar o que Ellis e outros teólogos aniquilacionistas escrevem sobre esse assunto.

Note, por exemplo, o que ele disse na pequena amostra abaixo:

“É verdade que alguns grupos do Judaísmo do primeiro século tinham uma visão dualística do homem, e a parábola de Lucas 16:19-31 [do rico e Lázaro] parece apoiar esse tipo de pressuposto. Além disso a igreja patrística posterior, ou seja, aquela parte influenciada pelo filosofia grega e o gnosticismo, similarmente complementou sua afirmação dos atos de Deus na história com a crença da partida da alma na morte para uma morada eterna e atemporal. De fato, este ponto de vista continua sendo prevalecente na teologia popular e tradicional de hoje. Mas tal síntese depende de um entendimento sobre o homem e a morte muito diferente daquele encontrado em Lucas”. – p. 111, colchetes acrescentados.

Em adição a isso, Ellis também afirmou que na igreja primitiva havia três visões conflitantes sobre a natureza e o destino do homem: (1) todos serão salvos, (2) os maus sofrerão eternamente no fogo da Geena e (3) os maus vão ser erradicados da existência ou aniquilados. Portanto, a imortalidade recebida pelos justos é completamente condicional, e não inerente conforme ensinavam os platonistas. E a melhor parte vem agora... Ele disse que os principais representantes do terceiro entendimento foram Inácio de Antioquia, Justino de Roma, Arnóbio de Sica e Atanásio. – pp. 179-196; as mesmas explicações podem ser vistas também no artigo dele intitulado “New Testament teaching on hell”, publicado em Rethinking Hell: Readings in Evangelical Conditionalism, pp. 116-137.

Caso não tenha percebido, veja quantos erros e incoerências já podemos de imediato identificar nessas explicações de Ellis:

1) Ele admite que o contexto religioso do primeiro século não se adequa a tal visão monista aniquilacionista. Não só as pessoas acreditavam que o homem possui uma alma que sobrevive à morte, como não houve nenhuma tentativa por parte dos apóstolos em combater tal crença (detalhe que é convenientemente sempre “esquecido” pelos aniquilacionistas).

2) O próprio Novo Testamento, em especial o evangelho de Lucas, contém afirmações que corroboram o ponto anterior, a exemplo da parábola do rico e Lázaro, e da promessa que Jesus fez ao malfeitor na cruz.

3) Mesmo reconhecendo o fato acima, Ellis diz que esse conceito de separação da alma “é muito diferente daquele encontrado em Lucas”, mesmo o evangelista tendo dito que o Senhor ensinou que o rico sofria nas chamas do Hades! Você já viu alguma sepultura pegando fogo com alguém sofrendo nela e reclamando de tal sofrimento?

4) E, como se não bastasse, além de “uma parte” da igreja primitiva ter sido influenciada pelo platonismo, ela também recebeu semelhante influência do gnosticismo! (No ponto seguinte você entenderá porque ele poupou “uma parte” da igreja). Será que esse homem não leu os escritos patrísticos e não viu que foi justamente contra os gnósticos o primeiro grande combate da igreja dos dois primeiros séculos? Como é que alguém poderia ensinar as próprias coisas que combate?

5) Pelo que parece, Ellis realmente não leu as obras patrísticas e escreveu apenas do que ouviu falar, pois nenhum dos homens que ele citou era aniquilacionista e todos eles, sem exceção, acreditavam que o homem possui uma alma que permanece viva e consciente depois da morte. O que eles ensinavam de diferente (e nem todos) é que essa alma poderia ser extinta para sempre depois do julgamento final de Deus. Para confirmar isso leia o seguinte estudo já recomendado: O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?

6) Até mesmo os antigos cristãos “imortalistas” acreditavam que a imortalidade, no fim das contas, é condicional. Afinal, qualquer cristão que saiba ler já viu na Bíblia que só Deus é verdadeiramente imortal. Os demais que não morrem continuam a existir por mera concessão divina. Ellis disse que Orígenes foi o principal representante dos imortalistas. Mas veja o que Orígenes disse: “[Deus] é capaz de proporcionar uma vida imortal para a alma”. (Contra Celso, Livro V, cap. 24). Será que Orígenes estava então se contradizendo? Claro que não. O que acontece aqui é que Ellis misturou tudo e mais um pouco, e não disse nada que faça sentido para esclarecer essa questão. Falou de uma coisa e apresentou outra.

7) E ainda há outro problema que não vou analisar aqui. Ellis usa textos bíblicos normalmente utilizados contra o aniquilacionismo para apoiar o que ele acredita! (ou melhor dizendo, acreditava, pois ele morreu e hoje já deve saber como as coisas realmente são).

8) Por fim, mesmo diante de explicações tão questionáveis, ele distorceu a realidade do que acontece nesse assunto e apresentou os que creem no ensino ortodoxo sobre a alma como aderentes de uma teologia “tradicional e popular”, que estaria em contraste com a suposta interpretação correta dos teólogos aniquilacionistas. A verdade, porém, é que o entendimento tradicional sobre a morte tem uma base muito segura que remonta à era apostólica. A fragilidade está no aniquilacionismo.

O trecho abaixo resume bem a razão de Edward Earle Ellis ter trilhado o incoerente caminho do aniquilacionismo:

“O contraste platônico do tempo e da eternidade está igualmente ausente da escatologia de Lucas, como está do Novo Testamento em geral. O contraste de Lucas entre o céu e a terra não é motivo de especulação cosmológica. É um contraste do ‘visto’ e do ‘não visto’ que, como sua antropologia, tem antecedentes em Paulo e no Antigo Testamento. Importante para esta questão é a tese do meu professor Oscar Cullmann em Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? Não é um tema isolado, mas é um vínculo significativo na teologia total de Cullmann. Como ele reconhece corretamente, uma teologia que inclui uma partida da alma para um reino atemporal ou a antecipação da realização da parousia na morte contradiz o conceito do Novo Testamento de uma redenção temporal de todo o homem”. – p. 112.

O exemplo acima demonstra que um doutorado em teologia e uma vida dedicada a ela não é garantia de que um erudito ensinará sempre o que é correto. Um erro religioso muito enraizado tem mais força que evidências bem apresentadas, por mais sólidas que sejam. Ainda que essa falha não comprometa a conduta que se espera de quem quer seguir a Cristo, mesmo assim ela não deixa de ser algo indesejável. É no mínimo decepcionante ver homens da envergadura de Ellis e Cullmann* não terem enxergado isso. E o pior, se tornarem referências para aniquilacionistas que procuram apoio acadêmico para sua crença não bíblica. Isso é a prova que nenhum cristão deve achar que é incapaz de trilhar o seu próprio caminho no conhecimento das coisas de Deus ou então se intimidar com o título acadêmico de outrem. Às vezes, uma boa capacidade de leitura aliada a muito esforço vale mais do que um diploma.

De qualquer maneira, na história da igreja sempre houve desafios e seus membros se envolveram em várias querelas doutrinais, não raro acaloradas. Agora não é diferente. Cabe aos cristãos que não perderam de vista a antiga sabedoria cristã, hoje tão menosprezada, tentar mostrar aos que foram enlaçados pelo materialismo “cristão” que o homem não é apenas um animal racional. Uma centelha da realidade divina e espiritual está dentro dele.

* Uma ressalva, porém, se faz necessária no caso de Cullmann. Em alguns pontos do seu trabalho, ele parece contradizer o conceito de aniquilacionismo. Por exemplo, ele admite que os hebreus achavam que experimentariam depois da morte uma existência sombria no Seol, logo não seriam completamente aniquilados. Além disso, afirmou que a falta de informações no Novo Testamento sobre o estado intermediário não dá o direito de supor que ele realmente não existe. Talvez a razão desse discurso contraditório seja porque ele não queria ser identificado como aniquilacionista, mas apenas alguém que apresentou uma ideia alternativa sobre a morte, para fazer frente à suposta adaptação do conceito grego no Cristianismo. Portanto, existe uma zona nebulosa que impede dizer com segurança que a crença de Cullmann era realmente aniquilacionista. Para dissipar essa dúvida seria preciso fazer uma investigação minuciosa de tudo o que ele escreveu. Já Ellis foi mais claro ao se identificar como adepto do aniquilacionismo.

43) Tyndale Bible Dictionary, de Philip W. Comfort e Walter A. Elwell (2001)

“[Abaddon:] Palavra hebraica que significa ‘lugar de destruição’. A palavra ocorre seis vezes no AT, geralmente se referindo ao lugar dos mortos (Jó 26: 6; 28:22; 31:12; Sal. 88:11; Prov. 15:11) 27:20). Ele serve como sinônimo de Seol e é traduzido de maneira variada como ‘inferno’, ‘morte’, ‘sepultura’ ou ‘destruição’. A mesma palavra hebraica ocorre uma vez no NT em seu equivalente grego, Apollyon (Rev. 9:11). Aqui, a ideia de destruição é personificada como o ‘anjo do abismo’, então a palavra é muitas vezes traduzida como ‘destruidor’. Abaddon (ou Apollyon) era o anjo que reinava sobre o reino dos mortos, que apareceu após a quinta trombeta na visão de João (Rev. 9:1)”. – Verbete “Abadon”, p. 11.

“[‘Seio de Abraão’:] Figura de linguagem provavelmente derivada do costume romano de se reclinar ao lado esquerdo nas refeições, com o convidado de honra no seio do seu anfitrião (ver Tg. 13:23-25). Foi usado por Jesus na história de Lázaro como uma descrição do paraíso (Luc. 16:22-23). Em escritos rabínicos, bem como em 4 Macabeus 13:17, os povos justos foram considerados bem-vindos na morte por Abraão, Isaque e Jacó. Jesus, provavelmente ciente disso, também aludiu ao ‘banquete messiânico’, uma imagem que ele usou diversas vezes. Assim, no mundo vindouro, os pobres piedosos como Lázaro não só seriam bem recebidos por Abraão, mas ocupariam o lugar de honra ao lado dele no banquete”. – Verbete “Abraão”, p. 16.

Comentário:

Ser um anjo retratado como o governante do reino dos mortos (Seol) demonstra que tal lugar não é uma mera sepultura com um cadáver dentro dela. O que está de acordo com a definição dos eruditos bíblicos sobre esse local e seu significado preponderante na Bíblia.

Mesmo que as histórias contadas por Jesus em suas parábolas sejam fictícias, ele nunca usou elementos que não existem de fato. Com a ilustração sobre o rico e Lázaro não poderia ser diferente. Por isso aprendemos do relato que existe um lugar paradísico chamado “seio de Abraão” para onde determinadas pessoas podem ser levadas pelos anjos, o que torna pertinente o fato de que o evangelista Lucas também contou que Jesus prometeu o paraíso ao criminoso arrependido na cruz, dizendo que ele estaria lá no mesmo dia de sua morte. De modo que tudo se encaixa perfeitamente no contexto geral do Novo Testamento. E ainda há o detalhe que essa morada abençoada de Abraão era um entendimento no Judaísmo do primeiro século. Se isso fosse uma falsa crença religiosa dificilmente Jesus a usaria para ensinar uma lição aos seus ouvintes.

Tyndale Bible Dictionary [Dicionário Bíblico Tyndale], Philip W. Comfort e Walter A. Elwell, 2001.

44) Care for the Soul: Exploring the Intersection of Psychology & Theology, de Mark R. McMinn e Timothy R. Phillips, orgs. (2001)

“Acreditava Paulo que morreria e deixaria para trás o seu cadáver, ou ele acreditava que levaria o seu sōma com ele depois que partisse?... Em 2 Coríntios 5:8, Paulo diz que ‘preferia ficar ausente do corpo (sōma) e fazer seu lar junto com o Senhor’ (NASB). Novamente, em Filipenses 1:23, ele diz que deseja ‘partir e estar com Cristo’ (NASB). O contexto torna claro que ele estava se referindo a deixar a carne (vv. 22-24). Disto eu concluo que Paulo também acreditava na existência de cadáveres, o que implica dizer que ele era um dualista corpo-alma. Então ele não acreditava na existência da pessoa total depois da morte antes da ressurreição. Ele era um dualista porque ele era um realista sobre o destino do sōma carnal. Paulo fazia distinção entre dois corpos diferentes. O sōma carnal de 2 Coríntios 5:8 não é idêntico ao sōma espiritual de 1 Coríntios 15:42-44.

“Quando eu fiz uma palestra baseada nesse capítulo na conferência de Wheaton, um erudito bíblico do Moody Bible Institute se levantou e me desafiou usando o argumento com o qual os eruditos bíblicos costumam me desafiar. Ele disse que eu estava ignorando a vasta literatura sobre o significado holístico da palavra hebraica bāsār e da grega sōma. Ambas as palavras significam ‘corpo’, mas há bastante literatura acadêmica que discute sobre a consequência de toda pessoa ser um bāsār. Por exemplo, o referido erudito bíblico disse que há qualidade física nos espíritos dos mortos que estão no Sheol do Antigo Testamento. E no Novo Testamento há uma qualidade física na alma de Lázaro que se recosta no seio de Abraão (Luc. 16:19-31), e há uma qualidade física no rico que arde nas chamas e deseja uma gota de água para a sua língua. Ele tem uma língua, que é uma característica física. Portanto, de acordo com meu desafiante o meu argumento não tem base escritural porque nós humanos sempre somos pessoas inteiras, até depois da morte, porque somos seres físicos mesmo assim.

“Eu não nego que as metáforas físicas são usadas para descrever o estado intermediário. Para falar a verdade, eu tenho dificuldade de imaginar a vida sem o meu corpo, e por mais que eu pense a respeito como isso seria, menos eu entendo. Eu me conforto com o pensamento que se eu estiver nu ou sem esta tenda terrena (2 Cor. 5:1-3), pelo menos eu estarei com Cristo.

“Considerando a história do rico e Lázaro (Luc. 16:19-21). Ambos os homens morreram e foram imediatamente para o céu e o inferno, mesmo enquanto os cinco irmãos do rico ainda estavam vivos. O que significa que a ressurreição geral não tinha acontecido ainda. Se os cinco irmãos cavassem a sepultura do homem rico, eles encontrariam lá o corpo dele (Luc. 16:22). Portanto, existe um dualismo corpo-alma porque o corpo na sepultura é diferente da alma queimando nas chamas do inferno. De modo que dizer que há uma ‘qualidade física depois da morte’ não prova nada.

“Os pais da igreja são de ajuda neste assunto. No seu livro sobre a alma Tertuliano cita a história do rico e Lázaro. Ele observa que o rico no fogo tem uma língua que pode ser vista por Lázaro, que está recostado ao seio de Abraão. Disto Tertuliano conclui que há uma qualidade física e visível da alma, ou seja, que ‘a alma possui um corpo’. Ele diz que há dois corpos: o corpo carnal é idêntico ao corpo da alma durante esta vida, mas a morte os separa. Alguma coisa que é translúcida e que tem a forma de um corpo humano deixa o corpo físico, pois a alma tem um corpo que é feito de ar e luz. É justamente como visto naquelas imagens em filmes de Hollywood que mostram como ficam as almas que partiram depois da morte: a alma tem uma espécie de luminosidade, visível, um corpo etéreo para si mesma. Mas Tertuliano afirma claramente que é um dualista corpo-alma. O corpo deixado para trás comprova isso. Durante o estado intermediário há dois corpos (‘o corpo material’ e ‘o corpo da alma’), o que implica em dualismo. Eruditos bíblicos têm distorcido o significado da palavra dualismo como se o termo sempre significasse que uma parte é desprezada. O termo significa simplesmente ‘dicotomia’ ou ‘dois’, de acordo com o American Heritage Dictionary.

“Afirmaria algum erudito bíblico que os escritores da Bíblia não esperavam que os humanos deixassem um cadáver para trás quando partissem dessa terra? Por que há tanta conversa sobre corpos e ossos na Bíblia? Eu considero que tanto os escritores do Novo quanto do Velho Testamento sabiam que as pessoas deixam um corpo morto para trás. Tanto Pedro quanto Paulo falam de partir depois desta morada terrestre, ou seja, o corpo (2 Ped. 1:13-15; 2 Cor. 5:1-3). O que os faz dualistas, porque há duas partes: a morada terrestre e o ‘eu’ que deixa essa morada.

“Não é um procedimento erudito estudiosos da Bíblia redefinirem a palavra dualismo como algo antibíblico e em seguida argumentar que a Bíblia não é dualista. É um raciocínio circular. Se você considerar os antigos teólogos no argumento sobre o dualismo corpo-alma então você terá de aceitar a mesma definição de dualismo que eles usavam, ou seja, o conceito de duas partes. Em uns poucos escritos de Agostinho ele segue Platão e Plotino na ideia de desprezo do corpo. Mas se nos concentrarmos no significado central da frase dualismo corpo-alma em Agostinho, descobriremos que ele se refere ao momento da morte, depois da qual o corpo é realmente inferior à alma porque ele se desintegra e apodrece. Se os teólogos do século vinte tivessem sido um pouco mais cuidadosos com sua definição da palavra dualismo então não haveria nenhum debate sobre o dualismo corpo-alma, e a palavra alma não teria sido ‘tirada’ da Bíblia (Os leitores que tenham mais afinidade com teologia filosófica talvez queiram ver uma discussão mais extensa sobre o monismo versus dualismo corpo-alma; para isso eles poderão considerar o meu artigo ‘O Conceito de Si Mesmo e a Teologia Bíblica’.).

“A maioria dos teólogos jamais ponderou se sua doutrina cristã da pessoa inteira é similar ou diferente do conceito da psicoterapia secular da pessoa inteira. Nem eles jamais se perguntaram como a ideia deles de que o corpo é a pessoa inteira difere da ideia promovida na campanha publicitária dos tênis da Nike de que o corpo é a pessoa inteira. Esta falha dos teólogos de não ponderar a mais óbvia das questões me faz suspeitar que eles devem ter assimilado uma ideia do século vinte e feito dela uma leitura bíblica (eisegesis), sem ponderar a respeito. Aqui está o que eu gostaria de saber: será que sorrateiramente a empresa Nike pagou muito dinheiro aos teólogos bíblicos com o intuito deles promoverem um conceito de que o ser está limitado à vida nesta terra como prelúdio da campanha publicitária da Nike? Eu faço essa pergunta despropositada apenas para provocar reflexão.

“Mas ainda há outro importante aspecto que esses teólogos bíblicos não indagaram. Será que esse alegado conceito hebraico da pessoa inteira não soaria para os leigos como algo muito parecido com a visão secular da natureza humana a ponto deles o confundirem com um aval ao movimento secular* sobre a saúde mental?”. . . .

“… é notável que os psicólogos e psiquiatras seculares com nível zero de sofisticação teológica tenham triunfado sobre a teologia cristã. Hoje a teologia é considerada irrelevante para o povo americano, mas a psicologia secular é um assunto necessário em todos as universidades; há psicólogos conselheiros na maioria das escolas secundárias americanas, e o ‘psicologuês’ enche os meios de comunicação de massa”.

* A tendência atual, devido à disseminação do materialismo, é considerar que a mente humana é resultado apenas dos impulsos eletroquímicos do cérebro, não havendo espaço para nada de natureza espiritual. A realidade seria fruto apenas do que é físico. Visto que este é um dos pilares do ateísmo científico, em especial nas ciências naturais, não é algo confortável constatar que o discurso monista valoriza exatamente tal realidade material em detrimento de aspectos espirituais intrínsecos ao corpo humano. – O artigo a seguir pode ser útil nesta consideração: O debate - possível - entre materialismo reducionista e fenomenologia, Universidade da Beira Interior, Portugal, de Urbano Mestre Sidoncha.

Care for the Soul: Exploring the Intersection of Psychology & Theology [Cuidado para a Alma: Explorando a Intersecção da Psicologia Com a Teologia], Mark R. McMinn e Timothy R. Phillips (Eds.), 2001, pp. 111-113, 115.

Comentário:

Jeffrey H. Boyd é médico e presidente do departamento de ética e psiquiatria do Waterbury Hospital, em Connecticut, EUA. Como se nota, ele fez a “lição de casa” e escreveu conforme o conselho de James Beck, citado no comentário à obra nº 40 (Baker Encyclopedia of Psychology and Counseling), pois ele teve extremo cuidado ao apresentar informações bíblicas, patrísticas e teológicas em conexão com a área da psiquiatria, que é sua especialidade. Ao contrário do autor da obra nº 42, por exemplo, ele demonstrou que os pais da igreja acreditavam que a alma do cristão sai do corpo por ocasião da morte e vai para a presença de Cristo, em conformidade com a expectativa que os apóstolos Pedro e Paulo tinham.

É realmente gratificante ler um texto cujo autor sabe realmente do que está falando, e não fica apenas repetindo o discurso “politicamente correto” do monismo com o alegado intuito de se opor a concepções gregas no Cristianismo. E Boyd ainda nos faz o favor de expor a realidade nua e crua sobre a verdadeira razão desse ponto de vista materialista ter se infiltrado na teologia contemporânea. Caso leia na língua inglesa, será proveitoso considerar a análise inteira de Boyd, pois ela é ainda melhor do que a amostra acima deixa transparecer. Ler o artigo que ele indicou também é recomendável. Basta clicar nos links que você será remetido aos respectivos materiais.

45) Encyclopædia Britannica (2004)

“Não obstante a horrível evidência da decomposição física causada pela morte, tem persistido a crença de que algo da pessoa individual sobrevive a tal experiência. Em contraste, a ideia da extinção pessoal devido à morte é um conceito sofisticado que era desconhecido até o 6º século antes de Cristo, quando apareceu no pensamento metafísico do Budismo indiano; ele não encontrou expressão no antigo Mediterrâneo antes de sua exposição pelo filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.). . . . A mais primitiva [das interpretações sobre a natureza humana, a integralista, concebia o homem] como um organismo psicofísico, do qual tanto os constituintes materiais como os não-materiais são essenciais. . . . A partir de tal avaliação, seguiu-se que a morte é a quebra fatal da existência pessoal. Embora se acreditasse que algum elemento constituinte da pessoa viva sobrevivesse. . . . As conseqüências dessa estimativa da natureza humana podem ser vistas nas escatologias de muitas religiões. Os antigos mesopotâmicos, os hebreus e os gregos, por exemplo, pensavam que, após a morte, apenas um espectro sombrio descia ao reino dos mortos, onde existia miseravelmente na poeira e na escuridão. Tal concepção do homem, por sua vez, significou que, onde a possibilidade de uma vida efetiva após a morte foi prevista, como na religião egípcia antiga, no judaísmo, no zoroastrismo, no cristianismo e no Islã, a ideia de uma reconstituição ou ressurreição do corpo também foi envolvida, pois se considerou algo essencial para restaurar o complexo psicofísico da personalidade [Por isso os egípcios preservavam corpos na mumificação]. . . . A visão alternativa da natureza humana pode ser denominada dualista. Ela concebe a pessoa individual como compreendendo um eu essencial interno ou alma, que é não-material, e um corpo físico. . . . a alma é considerada como sendo essencialmente imortal e como existente antes da formação do corpo. Sua encarnação no corpo é interpretada como uma penalidade incorrida por algum pecado primordial ou erro”.

Encyclopædia Britannica, 2003-2005, Vol. 26, p. 805, verbete “Rituais fúnebres” (Death rite), colchetes acrescentados.

46) Grande Enciclopédia Barsa (2004)

 

“A ideia de céu como destino final das almas não é bíblica. O Novo Testamento é discreto em indicá-lo como habitação das almas dos eleitos, preferindo falar de seio de Abraão ou paraíso. Na tradição cristã, no entanto, o céu aparece como a mansão dos eleitos”. – Verbete “Céu”.

“Mesmo em Israel, somente depois de lenta evolução da consciência moral foi que se impôs a ideia de punição depois da morte, paralelamente à noção dos escolhidos por Deus para a partilha de sua vida e de sua felicidade. Os excluídos seriam então condenados a sofrer num lugar de horrores, que se chamava geena, alusão ao vale de Ge Ben-Hinnom, lugar onde tinham sido cremadas crianças sacrificadas a Moloch e onde se queimava o lixo de Jerusalém. No Novo Testamento, alude-se freqüentes vezes a um lugar em que serão punidos os condenados: ‘geena’ (Mc 9:44; Mt 5:22,29 e 18:9); ‘fornalha’ (Mt 13:42,50), ‘lago de fogo, que arde com enxofre’ (Ap 19:20); ‘fogo eterno’ (Mt 18:8; 25:41; Jd 7) etc.” – Verbete “Inferno”.

Grande Enciclopédia Barsa, Editorial Planeta, edição digital, 2002.

Comentário:

Conforme apresentado no apêndice A, o platonismo ensinava que a esfera celestial é o destino de todas as almas, não importando os vícios ou pecados demonstrados aqui na Terra, pois os mesmos seriam apagados no processo de reencarnações sucessivas. Já para os judeus e cristãos, só os justos herdariam o paraíso ou o céu, enquanto que os maus seriam punidos depois da morte num lugar chamado Geena (ou mesmo no Hades), concepção que com o tempo passou a ser chamada de “inferno”, devido à tradução latina. Como se nota, a Enciclopédia Barsa está dizendo que tais conceitos são bíblicos, ainda que tenham se desenvolvido gradualmente em Israel.

47) The Modern Theologians: An Introduction to Christian Theology Since 1918, de David F. Ford e Rachel Muers, orgs. (2005)

“Não só o conceito budista do não-eu esclarece os conceitos bíblicos da individualidade, como também esclarece a doutrina da ressurreição. Pois, se as pessoas são constituídas pelo não-eu, a questão permanece: o que continua depois da morte? Em contraste com a doutrina budista da reencarnação, a resposta bíblica é a doutrina da ressurreição... Não pode haver sobrevivência após a morte a menos que, e somente se, Deus recriar um novo ser. Isto, segundo De Silva, é a verdade do ensino bíblico da ressurreição interpretado através das lentes da doutrina do não-eu. A ressurreição é um ato de Deus pelo qual Ele cria o que São Paulo chamou de ‘corpo espiritual’. Para explicar o significado de ‘corpo espiritual’, De Silva usou uma ‘teoria da réplica’, segundo a qual, no momento da morte, Deus cria uma ‘réplica psicofísica exata da pessoa falecida’. É uma nova criação. Mas visto que é uma recriação, o corpo espiritual não é idêntico ao eu que existia em um corpo terrestre. É uma réplica psicofísica exata. A doutrina da ressurreição como uma ‘replicação’ é, conforme ele acreditava, uma maneira de reconceber significativamente ‘o além aceitando ao mesmo tempo o fato do anātta’ [‘não-eu’]”.

The Modern Theologians: An Introduction to Christian Theology Since 1918 [Os Teólogos Modernos: Uma Introdução à Teologia Cristã Desde 1918], Editado por David F. Ford com Rachel Muers (3ª Edição), Malden, Massachusetts: Blackwell Publishing, 2005, p. 693; o mesmo texto está publicado em The Process of Buddhist-Christian Dialogue, 2009, de Paul O. Ingram, que é o autor do capítulo do The Modern Theologians de onde foi extraído o trecho acima.

Comentário:

O autor deste texto, que é um protestante da Igreja Luterana do Pacífico, discorre sobre um enfoque inusitado: entender o Cristianismo pela óptica do budismo. Mas, ao invés de emitir sua própria opinião sobre o assunto, ele apresenta o que outros religiosos escreveram sobre esse “diálogo com o budismo” (sic.). O objetivo é demonstrar que há muito mais semelhanças e afinidade entre os dois sistemas do que se imagina, e isto se soma ao esforço recente dos teólogos “progressistas” para rejeitar a epistemologia da filosofia grega (note o título do livro). Além de Cristo ser equiparado a Buda, pontos da filosofia oriental são adaptados ao modelo cristão, a exemplo da metafísica idealista da Yoga carā (caminho da Yoga). Uma “Cristologia Mahayana” é também criada. É por meio de tais conceitos que se dá o alegado esclarecimento pela perspectiva budista...

Bem, com um tratamento assim dispensado ao Cristianismo dá para imaginar a qualidade exegética de um “diálogo” desse tipo. E veja que são essas pessoas que criticam a mais que milenar interação do Cristianismo com a filosofia grega. Mas, enfim, o que eu gostei mesmo nessa citação não tem nada a ver com os méritos ou deméritos desse procedimento. Foi o fato dela sustentar que a ressurreição é um processo pelo qual se cria uma cópia da pessoa original e o indivíduo que surge é um novo ser com características diferentes (espirituais). Ou seja, o ressuscitado seria apenas uma réplica da pessoa cujo corpo foi para o túmulo. Para quem bradou aos quatro ventos contra a minha explicação de tal cenário e disse que isso ‘ofende a inteligência do leitor’, muito admira o autor do MB achar que esse trecho serve aos interesses dele. Ou será que ele também não entendeu o que Paul Ingram disse? Leia o item “b” da seção 7 para compreender o caso.

E ainda há mais agravantes. Além dele ter trazido para debaixo do próprio nariz aquilo que ele não gosta que lhe seja apontado, o autor do MB parece que não percebeu outros dois detalhes inconvenientes desse “cristianismo budista”. O budismo diz que a experiência da vida não comporta um ser substancialmente permanente. É a chamada doutrina do não-eu. Ninguém dura para sempre. No entanto, ainda que o indivíduo que morre seja extinto, ele reencarna e se torna outra pessoa que acumulará novas lembranças e experiências, que serão também apagadas quando essa nova criatura morrer também.

Do acima se conclui que alguma coisa permanece em existência entre uma encarnação e outra, pois se não fosse assim não haveria como dizer que o replicado tem alguma coisa a ver com o replicante. Mas vamos ignorar esse ponto, para facilitar a vida dos aniquilacionistas. Lynn de Silva adaptou essa história dizendo que a ressurreição entra no lugar da reencarnação. No entanto, há uma sensível diferença em relação ao que o autor do MB acredita. A cópia da pessoa é feita no momento exato da morte e ela recebe simultaneamente o novo corpo. Essa dinâmica explicaria como alguém deixa de existir de maneira completa quando morre, isto é, sem sair uma alma espiritual do corpo, e ao mesmo tempo continuará viva no céu. É praticamente a explicação daqueles teólogos “progressistas”, porém dita de outra forma, aqueles que não acreditam na imortalidade da alma, mas acham que a morte não implica na inexistência da pessoa até uma data indeterminada no futuro.

48) Old Testament Theology, de John Goldingay (2006)

“O Primeiro Testamento sugere uma analogia racional. Deus é como se fosse um xeique senhor do deserto, espalhando os céus como uma tenda na qual vive (Is. 40:22; cf. Is. 42:5; 51:13; Jó 9:8; Sal. 104:2, 3). Posto de outra maneira, ele esticou o Zafon sobre o vazio (tōhû) e suspendeu a terra sobre o norte, exceto o Seol e as águas debaixo da terra (Jó 26:5-7). Notamos que o monte Zafon era a montanha sagrada dos cananeus, onde Baal vivia e os deuses se reuniam (Is. 14:13, 14). No Salmo 48 o nome é aplicado polemicamente ao monte Sião, como sendo o verdadeiro local sobre a terra onde Deus vive”. – p. 84.

“A similaridade entre nĕpilîm e nāpal (‘caídos’) convida o leitor a entender o substantivo como significando ‘os caídos’ e os relacionar aos ‘anjos caídos’, criaturas que caíram do céu para a terra e/ou da terra para o Seol, ainda que não se diga que eles realmente caíram ou foram lançados abaixo. Alguns dizem que o conceito de anjos banidos se baseia nas referências da ‘queda’ de um ‘céu’ que está em Isaías 14 e Ezequiel 28, onde as histórias do Oriente Próximo sobre tentativas de deuses novatos usurpar a posição de deuses veteranos na hierarquia do céu se tornou parte das parábolas dos objetivos políticos dos reis de Babilônia e de Tiro. Teólogos do segundo século a exemplo de Tertuliano e Orígenes argumentaram que estes textos se referem à ‘queda de Satanás’ (veja Tertuliano, Contra Marcião 2.10 e Orígenes, Fundamentos 1.5), o que proveu para a igreja a informação sobre a origem de Satanás para satisfazer os anseios de saber algo sobre o qual a Escritura nada diz”. – Nota 17 da página 144.

“[Saul] no seu desespero solicitou que seus homens encontrassem uma médium nos limites entre a os territórios filisteu e israelita, a fim de consultar o falecido Samuel... A morte não abrandou Samuel. Ele diz as mesmas coisas sobre a desobediência e rejeição que ele falou quando estava vivo, mas ele não responde a pergunta de Saul”. – p. 584.

“Dentre as árvores [do Éden] uma foi chamada de ‘árvore viva’ ou ‘árvore da vida’. Sua significância não é explicada, porém duas passagens posteriores podem nos ajudar de diferentes maneiras. Em Provérbios ‘árvore da vida’ é uma metáfora para algo que significa a transferência de vida plena, e isto faz sentido em Gênesis 2. A árvore é um sacramento que implica em proporcionar plenamente a vida para as pessoas... Não houve talvez necessidade dos primeiros humanos comerem imediatamente desta árvore, mas eventualmente eles teriam que fazê-lo. Desde o Princípio, a humanidade estava destinada para a vida eterna com Deus. Talvez um embasamento teológico implícito desta noção seja o argumento que Jesus depois apresentou, de que Deus é o Deus de Abraão, Isaque e Jacó - não o Deus de mortos, mas de vivos (Mc. 12:26, 27). Se Deus ainda é o Deus dessas pessoas a quem chamamos de mortos, então, como eles podem realmente ou permanentemente estarem mortos? Se você entra em um relacionamento com Deus, isso transmite a vida de Deus. Dificilmente pode desaparecer. Portanto, ela deve ser para a humanidade em geral. Mas isso não aconteceria automaticamente. Na verdade não aconteceria nada, e o Seol se tornaria o tedioso destino da humanidade até que Deus fizesse alguma coisa para implementar o Plano Original”. – pp. 119, 120.

Old Testament Theology [A Teologia do Antigo Testamento], John Goldingay, Volume 2 – A Fé de Israel, 2006.

Comentário:

Nota-se que o livro informa que o Seol é uma região longínqua abaixo da Terra, assim como o céu está acima. Logo, não pode se referir a uma simples sepultura. Se a pessoa vai para lá depois da morte, então significa que não é o corpo dela que vai para esse lugar, pois nenhum cadáver é transportado para um lugar muito longe abaixo da Terra ou no interior dela. Portanto, é algo imaterial que sobrevive à morte que vai para o Seol.

Aprendemos também que apesar do mundo dos mortos ser o destino comum para a humanidade em geral, os que possuem um relacionamento com Deus podem ser poupados das garras da morte, ou seja, de uma existência sombria no Seol (morte na Bíblia tem sempre este sentido, e não se refere à aniquilação completa), pois eles são retratados como possuidores da vida, conforme Jesus falou a respeito de Deus não ser Deus de mortos, mas de vivos.

49) Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible, de John H. Walton (2006)

“Teve Israel alguma revelação sobre a vida após a morte que os levaria a rejeitar seu ambiente cognitivo? O principal elemento do ambiente cognitivo que foi rejeitado no texto bíblico, embora não sempre pelos israelitas que lutavam contra o sincretismo, foi o culto aos mortos totalmente articulado, embora certamente Israel ainda venerasse os antepassados de alguma das mesmas maneiras que são encontradas no contexto cultural maior.

Sheol é o termo hebraico usado para designar o lugar para onde os mortos vão. O termo não tem antecedentes conhecidos em outras culturas ou religiões do mundo antigo, e a etimologia da palavra é incerta e, portanto, incapaz de contribuir para a discussão. A mais extensa passagem do Antigo Testamento sobre o Seol é Isaías 14:9-11. Nela os espíritos dos mortos são retratados como indo ao recém-falecido rei da Babilônia. Os espíritos de outros reis falecidos se compadecem dele pela perda de seu poder. Eles observam que sua antiga pompa não encontrou lugar no Seol, onde ele tem apenas um colchão de vermes e cobertores de minhocas. A natureza figurativa desta passagem torna difícil fazer declarações conclusivas sobre os detalhes da vida no Seol, mas o autor é bastante bem sucedido ao transmitir a ideia de que não é particularmente agradável. Nesse sentido, é muito parecido com a imagem do mundo inferior da literatura mesopotâmica, ainda que lá eles acreditassem que os reis retivessem um pouco do seu status terrestre.

“Uma das questões complicadas ao tentar desenvolver uma compreensão do Seol como o mundo inferior é que o termo é freqüentemente usado metaforicamente para se referir à morte ou ao túmulo (por ex., Isa. 28:15). Como resultado, fala-se dele como um lugar de decadência. (Sal. 16:10) para o qual alguém cavaria abaixo (Amós 9: 2). A conseqüência do uso metafórico é que muitas passagens se tornam ambíguas. Quando Jacó fala de ir ao Seol (Gênesis 37:35; 42:38; 44: 29,31) ele está falando sobre o mundo inferior ou da sepultura? Alguns sustentaram que o termo nunca se refere ao mundo inferior, mas sempre ao túmulo. As dificuldades deste entendimento incluem:

“- No Salmo 55:15, o salmista ora: ‘Que a morte tome meus inimigos de surpresa; Deixe-os descer vivos ao Seol, pois o mal encontra hospedagem entre eles’. O contraste entre a ‘morte’ no primeiro ponto e ‘vivo’ no segundo nos adverte que a morte e o Seol não são sinônimos. Seria difícil imaginar que o salmista espera que seu inimigo fosse enterrado vivo.

“- No Salmo 139: 8, o salmista observa: ‘Se eu fizer minha cama no Seol, lá você está’, devido ao que ele diz da impossibilidade de fugir de Deus. Dificilmente se argumentaria que Deus está na sepultura, ao passo que o acesso dele ao mundo inferior é de significado apropriado (veja também Amós 9:2; Prov. 15:11).

“Estes textos sugerem que o conceito de Seol como o mundo inferior deve ser considerado como central na compreensão do entendimento israelita sobre a vida após a morte”.

Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible [O Pensamento no Oriente Próximo da Antiguidade e o Antigo Testamento: Apresentando o Mundo Conceitual da Bíblia Hebraica], John H. Walton, Baker Academic, Grand Rapids, MI, EUA, 2006, p. 320.

Comentário:

Não obstante o esclarecimento que diversas obras de referência dão sobre o verdadeiro sentido de Seol, a exemplo desta agora citada, observe o que o autor do MB disse sobre isso em uma nota de seu texto:

“Conforme outros eruditos citados aqui esclarecem, a crença judaica relacionada com os mortos no Seol não era de modo algum semelhante às crenças das nações circunvizinhas deles. Os judeus não acreditavam em nenhuma ‘existência literal’ dos mortos ‘nas profundezas da terra’.” (Os negritos são dele).

E veja que as tais obras eruditas que supostamente apoiariam tal afirmação são justamente as que estão sendo aqui apresentadas e que ensinam precisamente o contrário do que foi dito acima! É o caso dessa referência nº 49. A miopia do autor do MB em relação a esse assunto é realmente surpreendente. Na verdade é mais do que isso. É uma cegueira total e pelo visto irreversível.

Com respeito à pergunta retórica de Walton, relacionada ao desejo que Jacó expressou de morrer, a ambiguidade não é tanta assim, ainda que algumas versões bíblicas realmente tragam no texto “sepultura” ao invés de “Seol”. Isso porque Jacó afirmou que com a morte se juntaria ao seu filho José. Jacó não sabia do paradeiro dele. Sendo assim não poderia ter em mente o próprio túmulo ao falar que queria ir para junto do filho, porque o corpo de José não estaria lá. Sob esse ponto de vista apenas material, a morte não o deixaria perto de José. E naquele momento de dor tudo o que Jacó queria era estar novamente com seu filho. Por outro lado, tendo em mente o mundo subterrâneo as palavras que Jacó disse passam a fazer sentido. Se morresse ele poderia encontrar a “sombra” (espírito) de José no Seol, e ficar outra vez próximo de seu filho. Isso se José tivesse morrido mesmo. Na verdade, tudo não passou de uma armação de seus irmãos invejosos, que o venderam para mercadores.

Outro exemplo que atesta que Seol não é o mesmo que sepultura, e que os israelitas acreditavam literalmente na existência dos mortos nas profundezas da Terra, é o caso do que aconteceu depois da morte do profeta Samuel. O rei Saul, que tinha caído no desfavor de Deus, pediu a uma necromante que ela fizesse Samuel subir do Seol, a fim de receber do profeta informações sobre o futuro. A Bíblia diz que a alma de Samuel saiu de dentro da terra, subindo. O que demonstra que ele veio de outro lugar que não era o cemitério, pois o túmulo de Samuel estava a muitos quilômetros de onde aconteceu esse encontro. Ou seja, não era necessário eles se postarem em cima da sepultura onde o corpo de Samuel estava para que sua alma subisse de lá. Isto porque não é de uma cova que alguém do mundo dos mortos pode vir, mas das partes longínquas do subterrâneo terrestre, que é onde fica o Seol de acordo com a Bíblia. – 1 Samuel 28:13-15 (compare com 2:6); Salmo 71:20; Mateus 12:40.

50) Encyclopaedia Judaica – Second Edition (2007):

O judaísmo sempre manteve uma crença na vida após a morte, mas as formas que essa crença assumiu e os modos nos quais ela foi expressa variaram grandemente e diferiram de período para período. Assim, ainda hoje existem várias concepções distintas sobre o destino do homem após a morte, relativas à imortalidade da alma, à ressurreição dos mortos e à natureza do mundo vindouro após a redenção messiânica, que existem lado a lado dentro do judaísmo. Embora estas concepções estejam entrelaçadas, não existe qualquer sistema teológico aceito geralmente sobre sua inter-relação... A Bíblia é comparativamente inexplícita sobre o destino do indivíduo após a morte. Parece que os mortos descem ao Seol, uma espécie de Hades, onde vivem uma existência etérea e sombria (Núm. 16:33, Sal. 6:6, Isa. 38:18). Diz-se também que Enoque ‘andou com Deus, e não era mais; porque Deus o tomou’ (Gen. 5:24); e que Elias é levado para o céu em uma carruagem de fogo (2Reis 2:11). Mesmo o trecho mais completo sobre o assunto, o incidente necromântico envolvendo o profeta morto Samuel em En-Dor, onde seu espírito é ressuscitado dos mortos por uma bruxa por ordem de Saul, pouco faz para lançar luz sobre o assunto (1 Sam. 28:8 em diante.). O único ponto que emerge claramente das passagens acima é que existia uma crença na vida após a morte de uma forma ou de outra. (Para uma discussão completa, veja-se Pedersen, Israel, 1-2 (1926), 460 e seguintes). Uma visão mais crítica pode ser encontrada em G. von Rad, Old Testament Theology [Teologia do Antigo Testamento], 2 vols., 1962.)”.

Encyclopaedia Judaica - Second Edition, Thompson Corporation, USA, in association with Keter Publishing House, Jerusalem, Israel, 2007, Vol. 1, p. 441, verbete “Vida após a morte”.

Comentário:

Note que essa crença em uma vida após a morte estava presente entre judeus antigos, na história inicial do povo de Deus descrita no Velho Testamento. Por isso Jacó pôde dizer que desceria chorando ao Seol, por achar que seu filho José havia morrido. Nenhum cadáver vai pranteando para dentro de uma cova. Além do mais, Jacó expressou o desejo de se encontrar com seu filho no Seol. Não se sabia o paradeiro do corpo de José. Portanto, é óbvio que Jacó não estava pensando que seria posto numa sepultura ao lado do seu filho, pois isso era impossível, devido às circunstâncias (Gênesis 37:35). Tais expectativas da pós-morte não surgiram por causa do contato de Israel com Babilônia ou a Grécia, séculos depois, conforme muitos alegam equivocadamente para justificar o fato de que na época de Cristo os judeus, em geral, acreditavam que ficavam vivos depois da morte, especialmente os fariseus, dos quais o apóstolo Paulo fazia parte. E foi justamente Paulo quem disse o seguinte sobre sua morte iminente:

“Estou pressionado dos dois lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é muito melhor; contudo, é mais necessário, por causa de vocês, que eu permaneça no corpo”. – Filipenses 1:23-24.

A mesma ideia se apresenta no último livro da Bíblia:

“Quando ele abriu o quinto selo, vi por baixo do altar as almas dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que haviam dado. Eles clamaram em alta voz: 'Até quando, Soberano Senhor, santo e verdadeiro, tu te refrearás de julgar os que moram na terra e de vingar o nosso sangue, que eles derramaram?’.”. – Apocalipse 6:9, 10.

Apesar dos aniquilacionistas terem o costume de formular teorias no intuito de mudar o sentido desses textos, tais versículos são muito claros em si mesmos.

51) A Hebrew and English Lexicon Without Points, de John Parkhurst (2015)

a) Verbete “Juntar-se”:

אסף [asap] Reunir, reunir-se, retirar-se, congregar-se, juntar-se (coligere), se retrair (retrahere). Gên. vi. 21. xxix. 22. Êxo. iii. 16. Em Niph. Ser reunido, coletado. Gên. xxix. 3, 7. Comp. Gên. xxv. 8, 17. Num. xx. 24. Jud. ii. 10. Então נאספיﬦ Isa lvii. 1 é usado elipticamente para juntar-se aos seus pais ou povo, i.e., ir para o [Seol] שאול ou Hades, o estado separado, ou receptáculo geral dos falecidos. Veja Vitringa em Isaías. Como substantivo feminino אספות Collections. Também a tradução francesa des recueils, Ecle. xii. 11. Veja sob שמר IX. e compare com Harmer’s Observations, vol. Iv. P. 70, &c. Em hith. reunir-se, juntar a si próprios. Deut. xxxiii. 5”. – pp. 31, 32.

b) Verbete “Seol”:

שאול [Sheol] O invisível estado dos mortos, ‘o lugar e estado daqueles qui in quæstiones sunt (Cocceius) que está fora do caminho e pelo qual se procura’. Bate. Ver inter. Gên. xlii. 38. xliv. 31. 1 Reis ii. 9. Num. xvi. 30, 33. Jó xvii. 13, 14. Sal. xlix 15. lxxxix. 49. cxli. 7. Isa. xiv. 9, 11. Nesta visão ele parece se aproximar ao conceito de Hades* dos gregos ‘Aδης (pelo qual a LXX quase constantemente traduz), i.e. ὁ αϊδης τοπος, o lugar invisível, e para a nossa antiga palavra inglesa Hell [Inferno], que agora é tão pouco usada exceto como o lugar de tormento, sendo ainda um derivado do saxão hillan ou helan, esconder ou de holl, a caverna. Antigamente denotava o lugar escondido ou não visto dos mortos em geral, como é notório na versão dos Salmos xlix. 14, lv. 16, lxxxviii. 9 e lxxxix. 44 na Grande Bíblia do Rei Henrique VIII, que ainda é utilizada em nossa Liturgia; e é assim que deve ser entendido em outros locais da Tradução. קבר [qabar, enterrar] denota a sepultura ou o túmulo propriamente dito; שאול [Sheol] significa aquilo que é comum a todos, o receptáculo comum dos mortos. Compare Ecle. iii. 20. Eclo. xl. 11. xli. 10. Deste modo Leigh em seu Crit. Sacra bem observa que ‘Jacó, Gen. xxxvii. 35, desceria pranteando ao Sheol (שאול) para o seu filho; não para o Inferno (o lugar dos condenados), pois ele nunca pensou que seu filho fosse para tal lugar, e nem para a sepultura propriamente dita, porque ele achou que seu filho tinha sido devorado por um animal selvagem, mas sim que iria para o receptáculo dos mortos. Não é שאול às vezes usado para se referir a uma grandeprofundidade no subterrâneo, fora da vista, e pela qual se procura’ (Bate) sem nenhuma referência aos mortos? Veja Deut. xxxii. 22. Jó xi. 8. Salm. cxxxix. 8. Eze. xxxi. 17. Am. ix. 2”. – p. 673.

* A palavra grega Hades denota algo que é invisível ou escondido da vista humana, e ela guarda grande semelhança com o inglês hidden (“escondido”) e hide (esconder). O que indica que essas palavras podem ter uma origem etimológica em comum. Essa é uma evidência adicional de que Hades não se refere a uma cova, que pode ser vista ou escavada por qualquer pessoa.

A Hebrew and English Lexicon Without Points: In Which the Hebrew and Chaldee Words of the Old Testament Are Explained in Their Leading and Derived Senses,... to This Work Are Prefixed, a Hebrew and a Chaldee Grammar, Without Points, London, 1823 (reimpressão de 2015).

Comentário:

A definição bíblica sobre o Seol, de acordo com os eruditos, é muito clara. Ele é um local invisível nas profundezas da Terra. O que implica dizer que não se refere a uma simples sepultura, ainda que a palavra Sheol seja ocasionalmente usada como sinônimo de morte ou túmulo. Isto é assim por causa do vínculo que há entre esses conceitos (morte, sepultura e Seol). Eles fazem parte do destino único do homem. Primeiro a pessoa morre, depois é enterrada e em seguida sua parte imaterial desce para o Seol. Além disso, ao dizer que as sombras dos mortos habitam tal lugar e que lá elas podem se reconhecer e serem reconhecidas, a Bíblia Hebraica atesta a realidade do mundo inferior. O que indica que a morte não significa a aniquilação ou extinção total de quem morreu. Para lá vão as “almas” ou “espíritos” dos falecidos, conforme dizemos na linguagem de hoje.

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Para ver mais obras citadas pelo autor do MB consulte a seção 8.

 

3. VISÃO GERAL DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS QUE FORAM ANALISADAS

A ideia agora é listar os pontos mais relevantes que aprendemos em cada uma das citações transcritas na seção 2, para que o quadro geral fique bem claro e de maneira mais rápida. As principais informações apresentadas foram as seguintes:

- Os colchetes e parêntesis são meus, com informações complementares que não aparecem na respectiva obra a que se referem.

1) Commentary Critical... on the Old and New Testaments:

Almas de parentes que morrem se reencontram no Seol, o mundo dos mortos. O falecido profeta Samuel apareceu para o rei Raul. O homem é formado de corpo e alma, e por isso no mundo terreno assassinos só podem matar o corpo. A alma, a parte espiritual do homem, sobrevive. E a punição dos ímpios consistirá em sofrimentos físicos e espirituais. O Hades, também chamado de Inferno, é o mundo invisível. As almas dos justos talvez tenham sido retiradas do Hades depois da ressurreição de Cristo e foram para a presença celestial de Deus.

2) The Jewish Encyclopedia:

Os antigos hebreus acreditavam que continuavam vivendo no mundo subterrâneo (Seol) depois da morte, porém numa existência pálida e entristecida. Mas depois surgiu a crença da ressurreição, que consistia na retirada da pessoa do Seol, embora alguns Salmos indiquem que a ressurreição não é absolutamente necessária para se estar na presença de Deus de maneira espiritual.

3) The International Standard Bible Encyclopedia:

As almas dos homens, bons e maus, sobrevivem à morte. Não há nenhuma dúvida que esse conceito é ensinado no Novo Testamento.

4) Jewish Theology – Systematically and Historically Considered:

A crença dos hebreus de continuarem a existir depois da morte no mundo subterrâneo e sombrio estava presente no inteiro mundo antigo, a exemplo de babilônios, fenícios, gregos e romanos. E a crença dessa existência depois da morte foi se modificando com o tempo, de modo a satisfazer os anseios de uma vida verdadeira depois da morte, e não apenas uma existência entristecida.

5) Die Letzten Dienge – Lehrbuch der Eschatologie:

O homem é formado de corpo e alma (ou seja, pessoa = corpo + alma). Nenhuma pessoa é imortal. Na morte, a alma e o corpo desaparecem, pois o homem [ou melhor dizendo, a alma que restou dele] vai para o poço sem fundo [o Seol]. A ressurreição é o despertar da pessoa inteira (alma + corpo), [e não somente a parte que ficou no Seol], o lugar que é chamado de “nada” [por ser desolado e esquecido]. Veja na próxima seção mais detalhes sobre o que Paul Althaus escreveu.

6) Dictionnaire Encyclopedique de la Bible:

A alma é a parte imaterial do homem, e o Hades é um abismo debaixo da terra para onde vão os espíritos dos mortos, reduzidos em meras sombras.

7) The Distinctive Ideas of the Old Testament:

As ideias religiosas do Antigo Testamento são diferentes das ideias de qualquer outra religião. O Novo Testamento tem sido interpretado de acordo com as filosofias de Platão e Aristóteles, quando deveria ser com base no Antigo Testamento. A abordagem dos gregos sobre a imortalidade da alma não é encontrada em nenhum lugar da Bíblia, por isso não é um ensino bíblico de maneira alguma.

8) The Interpreter’s Dictionary of the Bible:

A unidade do ser humano (corpo + alma) é destruída na morte e ele perde a vitalidade, o que significa que ele continua vivo no Seol, mas num estado muito fraco.

9) The Encyclopedia Americana:

A alma e o corpo eram inseparáveis na criação, porém com a entrada do pecado no mundo esse vínculo que deveria ser eterno foi comprometido e com a morte a alma se separa do corpo. A ressurreição consistirá em deixá-los juntos novamente e a alma passará a animar o corpo da maneira que fazia antes. Os judeus adotaram a crença na ressurreição do corpo por influência de ideias gregas e persas. Mas o corpo da ressurreição será um corpo melhorado, em glória. Os injustos sofrerão no inferno de maneira completa, com corpo e alma. Os gregos também comparavam a morte com o sono. Na filosofia grega de Platão o corpo é desprezado e a alma anseia se separar dele para sempre. [Ou seja, o oposto da ideia judaico-cristã]. A bruxa de Endor fez que a alma do profeta Samuel se levantasse do Seol [O que indica que os israelitas acreditavam na existência dos espíritos dos mortos]. Com o tempo os hebreus começaram a nutrir a esperança que ficariam numa situação melhor no Seol, e que só os ímpios sofreriam lá. A crença do tormento do inferno sempre existiu na igreja primitiva.

10) Studies In Dogmatics. Man – The Image of God:

O Antigo Testamento apresenta a morte como uma transição para um estado de fraqueza e impotência, com privação de vitalidade, ligados à terra da escuridão e do esquecimento [o Seol]. O fim causado pela morte é a privação da riqueza da vida, é a remoção deste mundo para outro. Na esperança cristã a morte passou a ser uma passagem direta para a vida eterna [obviamente, longe das tristezas do Seol]. Em ambas as seções bíblicas (A.T. e N.T.), a existência depois da morte nunca foi questionada, porém ela não equivalia ao conceito grego de imortalidade natural da alma e de sua dicotomia substancial do corpo, ainda que a alma do fiel vá imediatamente para Cristo e nunca venha a experimentar a destruição. O estado intermediário é o período de tempo entre a morte do corpo e a ressurreição, seguida do Julgamento Final. A alma tem uma natureza espiritual. Há total certeza que a igreja primitiva sempre acreditou na existência contínua depois da morte. A alma é uma substância que tem raciocínio e inteligência.

11) The New Bible Dictionary:

Uma exegese bíblica honesta não pode se evadir da verdade bíblica sobre o sofrimento eterno na Geena. Jesus prometeu ao malfeitor na cruz que eles estariam juntos no paraíso naquele mesmo dia, antes do por do sol. Na concepção hebraica, a ressurreição consiste em tirar a pessoa do Seol [profundo], onde lá experimenta uma subvida [devido à fraqueza de seus moradores e a tristeza do lugar, conforme aprendemos em outras obras aqui citadas].

12) A Theological Word Book of the Bible:

O Seol (ou Hades) é a morada dos espíritos dos mortos. O ensino bíblico da ressurreição repudia a visão grega sobre a imortalidade. Os hebreus, da mesma maneira que outros povos antigos, não acreditavam que a morte significava a completa inexistência ou aniquilação, pois achavam que os mortos continuam existindo em formas semimateriais (“sombras”) em um mundo de silêncio e miséria. Também não devemos abraçar o conceito de extinção eterna, já que a Bíblia não autoriza esse entendimento. Jesus, por sua vez, aceitou a visão rabínica corriqueira (sobre o que acontece no Hades), ao contar a parábola do rico e Lázaro, ainda que os detalhes relatados não devam ser entendidos como aquilo que realmente acontece no mundo dos mortos.

13) Theological Dictionary of the New Testament:

No Judaísmo tardio [em especial o intertestamentário] a permanência no Hades é temporária e esta visão é semelhante à do Novo Testamento. A existência sombria no mundo dos mortos não é a verdadeira vida.

14) Dictionary of the Bible:

Os anjos exercem funções a exemplo do que fizeram com a alma do mendigo da ilustração do rico e Lázaro. Os judeus e cristãos antigos imaginaram muitas dessas funções para os anjos. O paraíso do Éden já existia antes da criação da Terra, de acordo com vários escritos judaicos, e este paraíso passou a ser o lugar dos justos no estado intermediário entre a morte e o Julgamento Final. Este entendimento é apenas um dos aspectos do conceito de vida após a morte no Novo Testamento. O Xeol é um dos limites do universo [portanto, não é o mesmo que sepultura]. A alma e o corpo são elementos distintos. O corpo é a expressão concreta da existência. Ele morre como resultado do pecado, porém o espírito sobrevive a esta morte devido à justiça. Para estar com Cristo é preciso se ausentar do corpo. Ou seja, morrer. A palavra “espírito” no Novo Testamento assumiu outros significados diferentes daquele conceito básico do Antigo Testamento e passou a ser usado com o sentido de vida espiritual consciente. Na concepção hebraica vida estava associada somente às características físicas do corpo humano e o que este proporciona. Não chamavam de vida a existência no Seol [ainda que lá continuassem conscientes]. Por isso a ideia de vida futura foi atrelada à restauração do corpo, mas em um momento tardio do Antigo Testamento. [Ou seja, não houve um desenvolvimento gradual dessa crença nos períodos anteriores]. A Geena é um conceito de punição depois da morte que está presente tanto em livros apócrifos quanto no Novo Testamento.

15) The New Catholic Encyclopedia:

A respiração distingue os vivos dos mortos. Após a morte a nefesh (alma) vai para o Seol [mas sem a capacidade da respiração]. Quando Jesus disse que os homens podem matar o corpo, mas não a alma, ele estava se referindo a uma vida que existe separadamente do corpo.

16) Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament:

O Senhor tem autoridade sobre os espíritos do Hades. O fim da vida humana resulta em uma viagem para o Sheol ou Hades, que é a habitação temporária dos mortos.

17) Christian Doctrine:

No conceito bíblico o corpo não é uma prisão da qual a alma deseja escapar. A vida eterna resultará na restauração da existência humana, na forma de almas encarnadas e corpos dotados de alma. Há, portanto, um contraste entre essa vida e os que existem de maneira sombria no Seol [ou seja, uma existência que não pode ser chamada de vida porque não possui nenhum contentamento, ainda que os que estejam lá sejam seres vivos, porém invisíveis para nós].

18) The Religious Ideas of the Old Testament:

O conceito hebraico sobre o Seol tem muitos pontos semelhantes ao Hades dos gregos [exemplos: fica no subterrâneo profundo, seus habitantes são versões enfraquecidas do que eram e são invisíveis aos olhos humanos]. Mas os hebreus não tinham a visão dualista dos gregos sobre o corpo e a alma, pois consideravam que o homem é uma unidade formada por corpo e alma que desaparece inteiramente na morte. Mesmo assim acreditavam que algo de aparência sombria da pessoa continuava existindo no Seol (e compartilhava essa morada com outros que também foram para lá). Devido a tal cenário limitante, os hebreus concentravam sua atenção na vida presente [pois o que achavam que vivenciariam no Seol não era desejável].

19) Anthropologie des Alten Testaments:

Os hebreus, da mesma maneira que os povos vizinhos, concebiam o mundo dos mortos como um grande local subterrâneo nas profundezas abismais, onde os mortos existem na forma de espíritos sombrios e falam uns com os outros. Esse lugar é chamado de Seol, sendo completamente desprovido de poder e dignidade. A Bíblia também relata o encontro do espírito de Samuel com o rei Saul.

20) As Grandes Religiões:

O judeu Fílon foi um dos primeiros a utilizar o método alegórico para descobrir informações ocultas na Bíblia. Essa metodologia já tinha sido utilizada na mitologia grega. Ele foi influenciado pelo platonismo, que preconizava a oposição entre a matéria e o espírito. Os teólogos do Cristianismo nascente se valeram mais de Fílon do que os judeus.

21) The Zondervan Encyclopedia of the Bible:

A morte para os ímpios não é aniquilação, mas a descida para o Seol. O estado intermediário dos justos e dos iníquos é uma experiência consciente ao invés de aniquilação.

22) Calvinism and Scholasticism in Vermigli's Doctrine:

Os judeus da antiguidade tinham apenas uma pequena noção da vida após a morte. Os aniquilacionistas [da época de Pietro Martire Vermigli] estavam errados por causa de uma falsa interpretação de uma passagem escrita pelo apóstolo Paulo.

23) Jewish Ideas & Concepts:

A região dos mortos localiza-se nas profundezas da Terra e os que estão lá são chamados de rephaim (“sombras”, em hebraico). O pessimismo presente entre os hebreus em relação ao mundo dos mortos era típico dos povos semitas, inclusive dos babilônios, cuja literatura se assemelha à dos hebreus nesse pormenor.

24) The Concise Jewish Encyclopedia:

O Seol é a morada dos mortos, um longínquo lugar no interior da Terra. [O que implica dizer que não são corpos físicos que vão para lá, pois estes ficam no cemitério, mas sim a parte imaterial do homem, ou seja, a sua alma]. O Seol se destina especialmente aos ímpios. Por isso, com o tempo, tornou-se sinônimo de inferno [lugar onde sofrem os pecadores].

25) Genesis – Volume I:

De acordo com os antigos hebreus, os mortos se transformam em “sombras” fantasmagóricas que vivem no mundo subterrâneo em condições de extrema fraqueza. Os cristãos, por outro lado, têm uma crença na vida plena depois da morte, e Abraão, apesar de não ter nutrido essa expectativa certamente foi recebido com alegria no mundo espiritual.

26) The Parables of the Kingdom, Grace and Judgment:

O alimento mantém a alma e o corpo juntos. A morte e a ressurreição de Jesus são a chave de nossa redenção. Embora mortos, nossa vida está escondida com Cristo. Nossa morte é o veículo para a vida com ele.

27) Harper’s Bible Dictionary:

O Seol é o mundo subterrâneo para onde vão os espíritos dos que morrem. Embora o conceito de alma no Novo Testamento difira do conceito grego, a alma denota a existência de uma pessoa depois da morte.

28) The Eerdmans Bible Dictionary:

Na concepção hebraica, o Seol fica no subterrâneo e é o lugar mais profundo que existe, além de escuro e decadente. Lá habitam as “sombras” dos mortos, que são versões enfraquecidas das pessoas que morreram [O termo pode ser tomado como sinônimo de “espíritos”, conforme a literatura ugarítica]. A existência das “sombras” no Seol é tão triste e incompleta que não pode ser chamada de vida. O ser humano tem uma natureza espiritual e física. A ressurreição consiste na integração da alma com o corpo. Dentro da ideia de estado intermediário, o livro de Apocalipse mostra a presença no céu das almas dos cristãos que foram assassinados. O falecido profeta Samuel apareceu para o rei Saul. O lugar para onde foram banidos os anjos rebeldes foi chamado pelo apóstolo Pedro de Tártaro, palavra que na literatura clássica se referia à parte mais profunda do Hades [literalmente, Pedro disse que eles foram “tartarizados”].

29) New Dictionary of Theology:

A alma de Cristo desceu para o Hades depois de sua morte. Desde os tempos primitivos, muitos cristãos crêem que essa descida implicou em uma pregação para os que lá estavam, embora tal entendimento não seja unanimidade. O conceito de “sombras” [conscientes] no Seol é uma ideia prévia que contribuiu para o desenvolvimento da crença da ressurreição [neste caso, seria trazer de volta quem continua existindo e não “recriar” a pessoa]. O “estado intermediário” tem dois pontos de vista: (1) a existência da alma no céu até a ressurreição do corpo, ou (2) o cristão já ter recebido o corpo espiritual definitivo e a ressurreição ser apenas a manifestação visível da consumação de todas as coisas. (Em ambos os casos é um estado consciente e não de inexistência). Há várias objeções bíblicas contra a crença do “sono da alma” (psicopaniquismo). O materialismo nega o dualismo mente-corpo e, à primeira vista, a Bíblia parece apoiar a visão materialista. No entanto, a doutrina bíblica da continuidade pessoal depois da morte do corpo prevalece.

30) The True Image – The Origin and Destiny of Man in Christ:

Calvino se opôs à ideia de que a alma morre junto com o corpo, e ele tinha boas razões para acreditar que a alma sobrevive à morte do corpo, com base em Mateus 10:28. Mas as passagens citadas por Calvino mostram apenas que a alma sobrevive à morte física e não que ela seja em si mesmo imortal [aqui no sentido de que jamais poderá ser destruída; mas se isso acontecer não é depois da morte do corpo, e sim após o Julgamento Final]. A imortalidade assegurada ao cristão será em sua natureza total, de corpo e alma. Ou seja, natureza humana e natureza espiritual.

31) Word Biblical Commentary – Ecclesiastes:

O livro de Eclesiastes é uma peça literária sue generis dentro da Bíblia que se assemelha a obras babilônicas a exemplo do Épico de Gilgamesh, onde se destaca que a vida humana é transitória e tudo o que importa está ligado apenas a ela, e quando finda resulta na inexistência do homem. Mas, veja bem, é o fim do homem enquanto ser humano. Eclesiastes não aborda a existência dos mortos no Seol, mas reconhece isso implicitamente porque menciona tal lugar. Esse tratamento de Eclesiastes ao tema da morte difere da visão bíblica padrão, pois nele a morte está condicionada por interesses particulares do escritor [relacionados à vida humana que ele tanto preza]. Por isso, Eclesiastes é irônico ou abstrato. Estilo semelhante também pode ser visto na literatura grega, a exemplo de Eurípedes. O que Eclesiastes fala sobre a morte não é o conceito de aniquilacionismo, pois os hebreus nunca acreditaram nisso, ainda que não tivessem o costume de especular como a existência no Seol se dá. O que Eclesiastes destaca são apenas aspectos de natureza humana, que inexistem no Seol [onde não há criaturas de carne e osso, mas apenas espíritos, isto é, as “sombras” dos mortos]. Portanto, Eclesiastes não ensina a aniquilação, mas apenas a dissolução da vida humana na morte.

32) A Theology of the New Testament:

A existência humana não termina com a morte. O ensino do Antigo Testamento é que as pessoas continuam existindo no mundo subterrâneo, porém em formas enfraquecidas chamadas de “sombras”. A morte não é capaz de destruir o companheirismo que o povo de Deus usufrui com ele, o que denota um abençoado estado intermediário (dos justos), ainda que não haja um claro ensinamento sobre isso no Velho Testamento. Quando Jesus prometeu ao malfeitor na cruz o paraíso para o mesmo dia, indicou que uma alma ou espírito do homem continua existindo depois da morte, podendo ir para a presença de Deus.

33) Enciclopédia Mirador:

No judaísmo antigo o Seol era concebido como uma vasta região abaixo dos próprios oceanos e os mortos iam para lá, embora não se soubesse muito bem qual era a situação deles nesse lugar sombrio. Mas, de uma maneira geral, acreditava-se que eles eram privados de todas as atividades corriqueiras do ser humano. Depois os hebreus passaram a acreditar que os mortos poderiam ser resgatados do Seol através da ressurreição. Já no cristianismo a doutrina da imortalidade da alma foi afirmada juntamente com a ressurreição do corpo.

34) New Testament Theology:

Na época do Novo Testamento tanto judeus quanto cristãos tinham uma crença bem estabelecida de vida após a morte, de modo que a antiga visão dos hebreus do Seol qual lugar de despejo de almas fracas e entristecidas não deve ser superestimado. [Naturalmente por tratar-se de outro estágio da fé].

35) What Do Jews Believe? – The Spiritual Foundations of Judaism:

Não obstante a sentença de morte dada a Adão, há passagens do Antigo Testamento que sugerem uma vida após a morte em que todos descem para uma região nas profundezas da Terra chamada de Seol [palavra que, às vezes, é utilizada como sinônimo de sepultura, certamente porque os dois conceitos estão relacionados]. Nessa visão, os mortos compartilham o mesmo destino triste.

36) New Bible Dictionary:

Dentre as várias acepções da palavra “alma” no Antigo Testamento uma delas refere-se à parte do homem que se separa do corpo por ocasião da morte (ex.: Gênesis 35:18), ainda que tal palavra nunca seja usada para se referir aos espíritos dos mortos. Isto pode ser assim porque a psicologia hebraica carecia de terminologia exata. O Novo Testamento inova no uso intercambiável das palavras “alma” (psyche) e “espírito” (pneuma), pois os aplica à existência humana além da morte. Além disso, endossa a crença no sofrimento eterno dos pecadores na Geena (“Inferno”), de maneira semelhante à apresentada na literatura extrabíblica.

37) “Christianity and The Survival of Creation”:

O dualismo grego é, na opinião de Wendell Berry (autor da obra acima), a doença mais destrutiva que aflige a crença cristã, pois o corpo é desprezado e maltratado por causa da alma. Isso é uma blasfêmia, pois o corpo está nos planos de Deus para a nossa imortalidade.

38) The Death of Death – Resurrection and Immortality in Jewish Thought:

As pessoas não se extinguem por completo depois da morte. De alguma forma elas continuam a existir, ainda que a maior parte do Antigo Testamento diga que a morte é o fim total do ser humano. Conforme sugerido por alguns versículos bíblicos, os antigos hebreus acreditavam que uma dimensão extra da personalidade continua existindo depois da morte, embora não costumassem chamá-la de “alma”. Portanto, a morte não significa extinção.

39) The Encyclopaedia of Judaism:

Depois da morte as pessoas vão para o Seol, um mundo que fica nas entranhas da Terra e que é um dos limites do universo juntamente com os céus. Embora a Bíblia em geral diga que ninguém volta de lá, ela registra um retorno, o do falecido profeta Samuel em um reencontro com o rei Saul. Embora a existência no Seol signifique total esquecimento, continua havendo uma forma de existência lá [ou seja, de pessoas vivas e conscientes]. O dualismo grego de corpo e alma é uma forma de preconceito, pois classifica o corpo como sendo intrinsecamente impuro.

40) Baker Encyclopedia of Psychology…:

Os conceitos hebraico e grego de alma não eram sinônimos. Embora distinguissem alma de corpo, para os hebreus a pessoa era um corpo vivo e eles não discutiam sobre uma alma separada do corpo, da maneira que os gregos faziam.

41) Eerdmans Dictionary of the Bible:

No Antigo Testamento Seol significa mais frequentemente as regiões inferiores para onde vão os mortos. Tal como em outras literaturas semíticas, esse lugar é descrito como escuro e sombrio. Outra semelhança é que seus moradores são chamados de “sombras”, palavra com o significado de espíritos dos mortos. Algumas passagens do Novo Testamento indicam que a alma sobrevive à morte. A ressurreição consiste em trazer a alma do Hades e juntá-la ao corpo físico. O apóstolo Paulo afirmou que a alma desencarnada é semelhante a um estado de nudez. O Velho Testamento não fez uma clara distinção entre a parte material e a espiritual do homem, porém no Novo Testamento essa diferenciação foi feita mais claramente. Além disso, outra diferença é que no N.T. a morte é apresentada em termos positivos, significando a ida para a presença de Cristo.

42) Christ and the Future in New Testament History:

Alguns estudiosos da Bíblia propõem que logo cedo, na história da igreja, instalou-se o conceito escatológico que os justos são transferidos na morte para o reino de Deus, num eschaton particular, enquanto não ocorre a parousia do Cristo. Os escritos de Lucas (Atos e evangelho) refletem essa teologia antiga, em passagens a exemplo da parábola do rico e Lázaro e a promessa que Jesus fez ao ladrão na cruz. [Estas não são opiniões do autor do livro. Ele apenas as mencionou].

43) Tyndale Bible Dictionary:

A palavra hebraica Abadon ocorre na Bíblia com o significado de Seol, dentre outros, e significa “lugar de destruição”. Esse termo também designa o nome do anjo que reinava sobre o reino dos mortos, que aparece na visão do apóstolo João em Apocalipse. O seio de Abraão é uma figura de linguagem que foi utilizada por Jesus para descrever o paraíso onde o mendigo Lázaro ficou depois que morreu. Este conceito fazia parte das crenças judaicas e Jesus sabia disso. Razão provável porque usou tal conceito em sua ilustração.

44) Care for the Soul:…Intersection of Psychology & Theology:

Tanto os escritores do Novo Testamento quanto os autores patrísticos acreditavam que depois da morte deixariam para trás um corpo físico que se decomporia na sepultura, e iriam para a presença de Cristo em um corpo invisível e imaterial chamado de “alma”. O discurso monista de determinados teólogos de hoje demonstra que a teologia foi indevidamente influenciada por conceitos que valorizam apenas o que é físico (em detrimento de aspectos espirituais intrínsecos do corpo). Muitas pessoas não têm mais interesse pela teologia que existe desde os tempos antigos, pois ela perdeu espaço nas universidades e foi sobrepujada pela psicologia [que alguns querem integrar com a própria teologia].

45) Encyclopædia Britannica:

O conceito de aniquilação total depois da morte, ou seja, a extinção completa, é uma ideia sofisticada que não existia entre os povos da Antiguidade e só apareceu no século 6 a.C. no pensamento budista indiano, e no Mediterrâneo foi expresso pelo filósofo grego Epicuro no final do século 4 a.C. Embora os hebreus antigos não fossem aniquilacionistas, pois acreditavam que os mortos sobrevivem em formas sombrias no Seol, eles viam o homem como um organismo cujos elementos materiais e não-materiais eram essenciais para a personalidade humana e a morte quebrava essa ligação. [Por isso os mortos eram “sombras” enfraquecidas no Seol]. Já no dualismo grego a ruptura da alma-corpo é irrelevante, pois o corpo é visto como um constituinte mau do qual a alma anseia libertar-se, pois estar junto a ele é uma forma de penalidade.

46) Grande Enciclopédia Barsa:

Tanto os judeus quanto os cristãos antigos acreditavam que só os escolhidos receberão a vida eterna e que os maus serão condenados à Geena ardente. Este ensinamento está no Novo Testamento, que também mostra que as almas dos eleitos iriam para o seio de Abraão ou paraíso, chamado também de céu na tradição cristã.

47) The Modern Theologians… Christian Theology Since 1918:

De acordo com uma visão budista adaptada ao Cristianismo, na morte a pessoa deixa de existir completamente (sem alma espiritual) e simultaneamente recebe o corpo da ressurreição. [Não há período de “sono” ou inatividade]. Porém o ressuscitado é uma cópia da pessoa original, uma réplica psicofísica exata de quem morreu.

48) Old Testament Theology:

Assim como os céus são uma região acima da Terra, o Seol é uma região abaixo dela. O Seol é tão distante que uma pessoa pode ser lançada para lá da mesma maneira que alguém pode ser lançado do céu para a Terra. O falecido profeta Samuel falou com o rei Saul. A “árvore da vida” do Éden pode ser um simbolismo para representar a vida plena que Deus dá ao homem. E enquanto Deus não proporciona à inteira humanidade tal benefício, alguns servos dele já podem usufruí-lo de imediato, conforme sugerido nas palavras de Jesus de que Ele não é Deus de mortos, mas de vivos. Quanto aos demais, que não conhecem a Deus, eles aguardam no Seol pela ressurreição.

49) Ancient Near Eastern… World of the Hebrew Bible:

O Seol é a morada dos espíritos dos mortos e não é o mesmo que sepultura. Quando a Bíblia usa “Seol” em referência à sepultura ou à morte é apenas uma metáfora. O sentido literal dessa palavra se refere ao mundo inferior [ou subterrâneo]. A concepção que os hebreus tinham sobre tal lugar é semelhante à encontrada na literatura mesopotâmica. Ou seja, um lugar desagradável [e que fica nas profundezas da Terra].

50) Encyclopaedia Judaica – Second Edition:

O judaísmo sempre possuiu a crença de uma vida após a morte, embora ela tenha tido vários formatos ao longo do tempo. O judaísmo primitivo, por exemplo, concebia que os mortos estão vivos no Seol, porém em uma existência etérea e sombria. [Por isso eles são chamados no Antigo Testamento de “sombras”]. Embora o episódio de Endor não seja de muito esclarecimento sobre a realidade dos mortos, ele indica claramente que existia entre os israelitas uma crença na vida após a morte.

51) A Hebrew and English Lexicon Without Points:

O Seol é o lugar invisível para onde vão os mortos. É retratado nas profundezas da Terra, mesmo quando os mortos não são mencionados. Portanto, não é o mesmo que sepultura.

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Para saber o que dizem outros livros mencionados pelo autor do MB consulte a seção 8.

Dentre todas essas informações, uma coisa ficou bastante evidente: a maioria das obras citadas não dão qualquer indicativo de que a Bíblia ensina que a pessoa que morre deixa de existir completamente. As únicas exceções são as de nº 42 e 47 (esta com ressalva), e talvez as obras 5, 37 e 40, e mesmo assim apenas uma delas parece ensinar exatamente aquilo em que o autor do MB acredita. Também está claro que quase todas afirmam que há uma existência contínua fora do corpo físico. Portanto, tais referências bibliográficas não servem para dar suporte ao aniquilacionismo materialista.

Saiba que não é de hoje que o autor do MB utiliza obras eruditas de referência no afã de conseguir extrair delas afirmações a favor do que acredita sobre a morte. Por exemplo, ao tentar provar que Hades ou Seol é simplesmente sinônimo de sepultura ele já havia citado determinadas declarações dos comentaristas Albert Barnes e S. D. F. Salmond, onde eles expressam a opinião de que Jesus não desceu às profundezas da Terra para pregar a espíritos aprisionados, contrariando assim o entendimento de muitos cristãos da Antiguidade (e atuais). Mas, não obstante a opinião que Barnes e Salmond tinham contra essa famosa “pregação de Jesus no Inferno” (Efésios 4:9; 1 Pedro 3:18-20), eles acreditavam totalmente na existência do Hades no subterrâneo profundo da Terra e que os espíritos dos mortos iam para lá! Veja o que Salmond disse a respeito:

“A morte não é o fim do ser, mas a penalidade e redução do ser, que leva a dois resultados distintos – remoção da convivência dos vivos na terra e remoção da convivência de Deus. O homem morto não deixa de existir. Ele passa a uma condição de existência inferior ao que usufruía aqui. . . . Mas se a pessoa não deixa de existir integralmente quando morre, onde ela existe e em que condição? A resposta é no mundo subterrâneo e como uma sombra. A ideia de um lugar subterrâneo que reúne os que partiram aparece tanto no Velho Testamento quanto entre gregos e babilônios... seu nome declarado é Sheol... diferindo do sentido de sepultura. . . . Então a pessoa viva se torna no Além uma pessoa morta, retendo uma existência negativa, uma versão enfraquecida do que era antes, com suas faculdades dormentes, sem força, memória, consciência, conhecimento ou a energia de qualquer afeição. A identidade continua; a forma persiste, tanto que ela pode reconhecer e ser reconhecida... A subsistência vazia, lânguida, gasta e magra, que é tudo o que é possível lá, encontra expressão no nome característico que é dado em Jó, Provérbios e Isaías aos habitantes do Sheol – os Rephaim, as sombras, os habitantes debilitados, flácidos”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), de Stewart Dingwall Fordyce Salmond, pp. 199-206.

Salmond ainda dedicou um capítulo inteiro de seu livro (p. 630) para discorrer contra o aniquilacionismo, e também afirmou que há três categorias de seres vivos: os anjos, os que vivem na terra e os que partiram para o mundo subterrâneo (p. 542). Barnes, por sua vez, escreveu bastante contra ideias aniquilacionistas. Por exemplo, comentando a afirmação de Jesus de que ninguém consegue matar a alma, mas apenas o corpo, Barnes disse o seguinte em seu comentário bíblico:

“Eles que matam o corpo. Isto é, os homens, que não têm nenhum poder para ferir a alma, a parte imaterial. O corpo é a matéria menor, em comparação com a alma. A morte temporária é algo mínimo, comparada à morte eterna, ele os alerta, entretanto, a não se alarmarem diante da perspectiva de uma morte temporária; antes temam a Deus, aquele que pode destruir tanto a alma quanto o corpo para sempre. Esta passagem prova que os corpos dos iníquos serão levantados para serem punidos para sempre”. – Comentário sobre Mateus 10:28.

Para finalizar com mais um exemplo, o autor do MB ao tentar provar que os apóstolos não acreditavam na existência de fantasmas (espíritos dos mortos que assombram os vivos), cita o comentarista John A. Broadus, que defendeu o ponto de vista de que quando os apóstolos viram na escuridão Jesus andando sobre as águas e gritaram “É um fantasma!”, a tradução mais adequada seria “É uma aparição!”, versão que seria ainda melhor do que “É um espírito!” (Mateus 14:26). Dependendo da Bíblia utilizada, qualquer uma dessas possibilidades pode ser vista. Naturalmente, ao citar Broadus, o autor do MB pretendia dizer que os espíritos dos mortos não podem existir porque os mortos não existem mais. Ou seja, foram aniquilados. Mas, para “variar”, no mesmo livro onde falou da palavra “fantasma”, Broadus se posicionou abertamente a favor da imortalidade da alma e contra o aniquilacionismo, e em sua acepção mais ortodoxa:

“Não temam os homens, mas temam a Deus. A ideia de alguns de que a frase Aquele que é capaz de destruir a alma e o corpo no inferno significa Satanás é totalmente injustificada e inadequada. Deus é capaz de destruir; Ele não deseja que ninguém pereça. (2 Pedro 3: 9) Jesus não diz que Deus matará a alma, mas, evitando esse termo, diz que vai destruir a alma e o corpo. Pois ‘destruir’ não significa aniquilação, mas apenas ruína, perdição, a destruição de tudo o que torna desejável a existência”. – Comentário sobre Mateus 10:28.

“As associações mais íntimas desta vida serão, em muitos casos, separadas, num momento e para sempre, pela vinda de Cristo. E assim a morte, todavia para nenhum [será] um sono eterno, infelizmente será para muitos uma separação eterna... Se a punição eterna envolve qualquer realidade física correspondente ao fogo, não sabemos; haverá algo tão ruim quanto o fogo, e sem dúvida pior, pois nenhuma imagem terrena pode ser adequada... Será imediatamente dado como certo, por qualquer mente sem preconceitos e dócil, que o castigo dos ímpios durará tanto quanto a vida dos justos; é extremamente improvável que o Grande Mestre teria usado uma expressão que tão inevitavelmente sugere uma grande doutrina caso realmente ele não tivesse a intenção de ensiná-la; Aqueles que negam a doutrina [do sofrimento eterno] devem estabelecer aqui uma diferença de significado, e com uma presunção esmagadora em desfavor deles”. – Comentário sobre o capítulo 25 de Mateus (destino dos justos e dos injustos), colchetes acrescentados.

No capítulo 7 do meu livro “Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma” eu comentei esse mau uso que o autor do MB faz de fontes bibliográficas ao tratar desse assunto de vida após a morte. É muito provável que ele tenha lido tudo o que eu escrevi, pois depois que foi avisado da existência do meu livro ele começou a ampliar as suas críticas, citando pontos específicos do meu texto, mas sem revelar a origem ou o seu autor.

Logo, ao invés de desistir dessa prática inadequada depois que ela foi exposta publicamente, ele fez exatamente o contrário, a reforçou... Lançou mão de todas essas obras aqui analisadas como se elas servissem para apoiar o que ele defende, quando, na verdade, a maioria delas ensina precisamente o contrário da crença aniquilacionista! Se isso não é obstinação ou teimosia, o que então poderia ser?

 

4. O QUE O AUTOR “BEREANO” PENSOU QUE VIU NOS LIVROS QUE CITOU

Conforme visto nas seções anteriores, o verdadeiro ensino de quase todas as referências citadas pelo autor do MB é bastante diferente do que ele gostaria que fosse. A única maneira de tais obras serem utilizadas para alimentar o ideal aniquilacionista é citá-las fora do contexto autoral e, consequentemente, em desacordo com a intenção dos autores. O que levaria alguém a fazer isso? Quem está fora dessa discussão poderá concluir que foi devido a uma leitura incompleta desses livros, o que realmente deve ter acontecido em determinados casos, ou tão somente má fé. Ainda que haja esta última possibilidade em algum momento, a verdadeira origem do problema está nos cinco erros descritos a seguir:

1) Não entender as críticas contra o conceito de imortalidade da alma

Quando teólogos fazem críticas ao conceito grego da imortalidade da alma, eles estão pensando somente no que ele significa. Para os gregos, em especial os seguidores de Platão, a alma já existe antes do nascimento da pessoa e se encarna no corpo apenas para passar uma temporada na Terra, e durante sua estada no mundo físico anseia por sua partida, pois o corpo é um repositório mau que deve ser descartado para o alcance da plenitude na esfera celeste. Nesse sistema filosófico não há espaço para a ressurreição do corpo. Além disso, a alma não pode ser destruída sob nenhuma hipótese, pois é uma parte secundária de Deus. Veja mais detalhes no apêndice A.

A crença judaico-cristã, por outro lado, diverge do entendimento grego, pois sustenta que Deus ressuscitará o corpo físico da pessoa falecida. E essa ressurreição consistirá em recolocar no corpo recriado a sua alma, que até chegar esse momento fica esperando por isso no Hades (Seol) ou até mesmo no céu. A partir desse reencontro a alma ficará para sempre junto de seu corpo físico, porém num estado glorificado e poderoso. Características que nenhum ser humano atualmente possui. Ou seja, os referidos teólogos, ainda que rejeitem as ideias de independência e indestrutibilidade inerentes da alma, em sua maioria acreditam que ela sobrevive à morte física e fica consciente em algum lugar, aguardando a ressurreição. Depois deste evento é que se inicia a verdadeira vida, pois a pessoa estará apta a viver tanto no mundo físico quanto no espiritual, da mesma maneira de Jesus. Tal expectativa está de acordo com o texto abaixo:

“E vi debaixo do altar as almas dos que tinham sido mortos porque haviam anunciado a mensagem de Deus e tinham sido fiéis no seu testemunho. Eles gritavam com voz bem forte: – Ó Todo-Poderoso, santo e verdadeiro! Quando julgarás e condenarás os que na terra nos mataram? – Cada um deles recebeu uma roupa branca. E foi dito a eles que descansassem um pouco mais, até que se completasse o número dos seus companheiros no trabalho de Cristo, que eram seus irmãos e que iam ser mortos como eles tinham sido. . . . Em seguida vi alguns tronos, e os que estavam sentados neles receberam o poder de julgar. Vi também as almas das pessoas que tinham sido degoladas porque haviam anunciado a mensagem de Deus e a verdade que Jesus revelou. Elas não tinham adorado o monstro nem a sua imagem, nem tinham recebido o seu sinal na testa ou na mão. Essas pessoas tornaram a viver e reinaram com Cristo durante os mil anos. Os outros mortos não tornaram a viver até que os mil anos terminaram. Esta é a primeira ressurreição”. – Apocalipse 6:9-11, 20:4, 5.

O cenário acima descrito confirma o que Jesus já tinha dito sobre os cristãos que seriam assassinados na Terra:

“Não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28, TNM.

2) Deslocar o centro da discussão para se esquivar da ideia primária

Um exame da literatura cristã do século 2 em diante, chamada de Patrística, demonstra acima de qualquer dúvida que todos os cristãos acreditavam que a alma sobrevive à morte. O que demonstra que os textos bíblicos supracitados devem ser entendidos assim mesmo, do jeito que estão, longe das releituras e interpretações que os aniquilacionistas insistem em fazer.

No entanto, como se vê nas palavras de Jesus, há um detalhe adicional relacionado à sobrevivência da alma, que já foi objeto de controvérsias no início do Cristianismo: Seria a alma inerentemente imortal e por isso não poderia jamais ser destruída? Se a resposta fosse dada pelo viés helenístico a resposta seria indubitavelmente “sim!”. No entanto, se nos basearmos apenas no que Jesus disse a resposta não será bem essa, pois ele indicou claramente que a alma pode ser destruída ou perecer, conforme a tradução mais aceita. Mas isso não acontece depois da morte do corpo físico. É um evento possível apenas para depois do Julgamento Final, numa data desconhecida no futuro. Até lá as almas ficam no Hades ou no domínio celestial, vivas e conscientes.

O que Mateus 10:28 apresenta relaciona-se apenas à destrutibilidade da alma, e não à sua extinção imediata após a morte do corpo físico. Embora isto esteja bastante claro no versículo, devido à advertência de Jesus os aniquilacionistas dizem: “Olha aí! Está vendo como a alma não é imortal? Pois Jesus disse que ela pode ser destruída”. Sim, e daí? Qual é o problema nisso? Absolutamente nenhum! A questão importante aqui é saber se o homem possui ou não uma alma que continua viva depois da morte. O que acontecerá com ela na eternidade é uma questão completamente secundária. Além disso, não faz o menor sentido os adeptos do materialismo “cristão” se agarrarem à segunda parte desse versículo, visto que eles acham que a morte do corpo resulta automaticamente na morte da alma, visto que atrelam o sentido dessa palavra (“alma”) ao enfoque dado pela parte hebraica da Bíblia. Fazer isso sem considerar todos os fatores envolvidos é o terceiro problema.

3) Usar de maneira errônea o enfoque da Bíblia hebraica sobre o termo “alma” (nefesh)

O Velho Testamento diz que o homem é uma alma vivente. Então, se o homem morre, logicamente a alma também morre. No entanto, isso é apenas uma peculiaridade literária, pois o próprio Antigo Testamento traz também a ideia implícita de que existe uma alma que sobrevive à morte, ainda que não seja a nefesh enquanto homem. É o caso do texto de Salmos que foi aplicado à morte de Jesus:

“Não deixarás a minha alma do Seol”. – Salmo 16:10; Atos 2:22-28.

De acordo com o raciocínio inflexível dos aniquilacionistas, após a morte não existe mais nenhuma alma, então, como uma alma poderia ser tirada do Seol?

O que os defensores do materialismo “cristão” não entendem é que a concepção bíblica sobre a existência não é rígida e apresenta pontos de inflexão, que não estão obrigatoriamente atrelados à visão hebraica mais usual. Observe no texto abaixo de Jó que a alma vivente chamada “homem” possui outra alma dentro dele:

“O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra.... Apenas a sua própria carne, enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele, continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 22, TNM.

E foi justamente Jó quem disse que gostaria de ficar aguardando no Seol a chamada de Deus, e assim que a ouvisse ele responderia prontamente. Ou seja, ao que parece ele quis dizer que desejava morrer para interromper o sofrimento pelo qual estava passando na carne. Quem não existe não pode nutrir as expectativas que Jó disse que nutriria caso fosse para o Seol. Note que outras partes da Bíblia também chamam os que estão no Seol de sombras (Jó 10:20-22; Salmos 88:10, 11; Isaías 26:19), o que está de acordo com o que foi dito por Jó e isso certamente não é coincidência. Sobre essa passagem de Jó 14:2, 22 uma nota de rodapé da Bíblia de Jerusalém diz:

“Ou o autor pretende dizer que esta sombra só pensa e sente pena por ela própria; ou então, que se lembra com saudade da sua existência carnal”. – Comentário sobre Jó 14:1-22.

4) Ignorar o que comentaristas disseram sobre o mundo dos mortos

Os aniquilacionistas ainda ampliam a incoerência por acharem que o Seol é sempre sinônimo de sepultura, seja em sentido figurado, referindo-se à humanidade inteira, ou em sentido literal, indicando uma sepultura individual. Mas como foi visto em algumas obras de referência aqui citadas, na visão bíblica o Seol é um dos limites do universo e está muito distante do lugar onde ficam os cemitérios. Neste caso, quando a Bíblia diz que alguém vai para lá depois da morte ela não se refere ao corpo que fica em uma sepultura, ainda que esta seja a “porta de entrada” para tal lugar normalmente inacessível.

De acordo com alguns textos do Antigo Testamento, o Seol é um lugar de trevas onde as almas que lá estão são “sombras” indigentes, fracas e entristecidas, e o sono é a marca característica delas. O que é bastante lógico, pois comparando com a realidade terrestre, o que é que normalmente se faz na escuridão da noite? Isso mesmo. Dorme-se! Sendo assim, a existência dos mortos, de acordo com o ponto de vista semítico, não pode ser chamada verdadeiramente de vida, embora eles estejam vivos lá no mundo deles (eles estão mortos apenas do nosso ponto de vista). É um cenário tão deprimente e indesejável que já houve quem se referisse a ele como o “não-mundo”, dado o contraste que há com a vida na Terra, repleta de atividades das mais diversas e também de alegrias.

No entanto, partindo-se da compreensão errônea que os aniquilacionistas têm do Seol, as declarações dos comentaristas bíblicos sobre esse lugar passam a ser entendidas incorretamente ou menosprezadas. Quando os eruditos dizem que os mortos não têm atividade vital no Seol, estão dormindo ou inconscientes é dentro da realidade acima descrita. Não se trata de uma linguagem figurada para se referir à inexistência completa de quem morreu. É uma referência à realidade sombria do Seol que, para todos os efeitos, é o oposto da vida com a qual todo hebreu estava acostumado enquanto sua alma não partisse como uma sombra para tal lugar, no momento da morte.

5) Valer-se de peculiaridades de cada autor ou de teorias formuladas por teólogos liberais

Como veremos melhor nesta seção, há eruditos que, embora não sejam aniquilacionistas ou materialistas, quiseram inovar em alguns entendimentos e romperam com visões que eram aceitas amplamente na Antiguidade entre judeus e cristãos. Normalmente o que leva esses autores a tomarem esse caminho é o desconforto que sentem diante da doutrina grega da imortalidade da alma, que foi parcialmente aceita pelos cristãos ao longo dos séculos, e por acharem que as pessoas no passado estavam entregues a crenças primitivas que não podem corresponder à realidade. O mundo dos mortos situado a milhares de quilômetros no subterrâneo terrestre* seria um desses mitos. Visto que nenhum estudo de algum instituto sismológico ou geológico detectou qualquer tipo de atividade inteligente nas profundezas da Terra, essa concepção dos antigos aparentemente estaria mais para mitologia. Obviamente se o mesmo critério fosse utilizado para determinar a existência do céu onde os anjos estão, esta crença também seria posta em dúvida.

* Considerando a cosmografia hebraica, quando se diz que o Seol está “debaixo da terra” isto também pode significar que ele está depois dela, para baixo, assim como o céu está para cima, nas alturas. Ou seja, dois mundos localizados em pontos opostos com a Terra no meio. Isto explicaria porque a literatura rabínica diz que o Seol é muitas vezes maior do que a Terra. Se é maior, então significa que ele não está dentro dela.

Nos parágrafos seguintes serão apresentadas algumas dessas peculiaridades que vez ou outra são citadas por aniquilacionistas no intuito de anular a força de determinados textos bíblicos que sempre foram utilizados para provar biblicamente a vida depois da morte. Dentre elas está um conceito que foi chamado por um religioso brasileiro de “kairosfera”, que se refere ao mundo celestial, o qual supostamente seria atemporal. Em contraste, a esfera terrestre é chamada de “cronosfera”, pois é aqui onde existe a passagem do tempo e a cronologia.

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Veja a seguir as principais citações que o autor do MB fez das 51 obras que foram aqui analisadas. Perceba que se os cinco pontos acima explicados forem levados em consideração, poucas das referências citadas atendem realmente o que pressupõe o autor do MB, ainda que lhe convenha uma ou outra peculiaridade presente no entendimento de cada comentarista bíblico.

- Os negritos são do autor do MB, e os destaques em azul ou vermelho são meus.

- As citações foram abreviadas para visualizar facilmente os pontos que interessam.

- Os trechos completos citados pelo autor do MB estão publicados neste link: A ‘Vida Após a Morte’ na Concepção Hebraica e Cristã Primitiva.

1) Commentary Critical... on the Old and New Testaments:

“[Jó 15]:22. ‘Carne’ e ‘alma’ descrevem o homem inteiro. As Escrituras baseiam a esperança de uma vida futura, não na imortalidade inerente da alma, mas na restauração do corpo com a alma. . . . [Marcos 12:]27. Ele não é o Deus dos mortos, mas [o Deus] dos vivos... É certamente verdade que para Deus nenhum ser humano está ou estará morto, mas toda a humanidade mantém uma relação consciente permanente com Ele... Estes mantêm uma graciosa relação pactuada com Deus que não pode ser dissolvida. (Cf. Romanos 6:10, 11) Nesse sentido, nosso Senhor afirma que para Moisés chamar o Senhor de ‘Deus’ dos seus servos patriarcais, se naquele momento eles não tivessem qualquer existência, seria indigno dele... nosso Senhor mostrou que até mesmo lá a doutrina da Ressurreição foi ensinada. . . . Em parte alguma [das Escrituras] se ensina a imortalidade da alma, distinta do corpo: um conceito que muitos erroneamente derivaram de filósofos pagãos. As Escrituras não contemplam o estado anômalo provocado pela morte como a meta a se buscar seriamente (2 Coríntios, 5, 4), e sim a ressurreição”. – Vol. I, p. 789; Vol. III, pp. 212, 213; Vol. III, p. 784, colchetes acrescentados.

Não obstante a interpretação apresentada sobre ninguém estar morto para Deus, não foi dito que os mortos são pessoas que não existem mais. O que deixa de existir é a versão física da pessoa, ou seja, a constituição humana. Mas sua alma espiritual continua viva literalmente, conforme essa mesma obra afirmou, em referência ao Seol: “O lugar das almas que se foram, onde Jacó esperava na morte se encontrar com seu filho amado”. Conforme já visto, José não estava enterrado em lugar algum. E tampouco o local onde Jacó esperava encontrar-se com ele seria a sepultura onde o seu corpo viesse a ser depositado, e muito menos tal encontro seria com o corpo físico sem vida, ou seja, sem a alma que desceria ao Seol. Logo, seria a alma de Jacó, a alma que toda nefesh possui, que se encontraria com a alma de José no mundo dos mortos. – Vol. 1, pp. 23, 24.

Sobre a questão da imortalidade, é completamente verdadeiro que a Bíblia não ensina o que os gregos ensinavam sobre a alma, conforme comentado anteriormente. Mas as almas continuam existindo no Seol e de maneira consciente, ainda que taciturna.

2) The Jewish Encyclopedia:

“A crença de que a alma continua sua existência após a dissolução do corpo é uma questão de especulação filosófica ou teológica, e não de simples fé e, concordemente, não é ensinada expressamente em parte alguma da Sagrada Escritura... a alma desce para o SHEOL ou Hades, para levar lá uma existência sombria, sem vida e inconsciente... a vida eterna era atribuída exclusivamente a Deus e aos seres celestiais que ‘comem da árvore da vida e vivem para sempre’... Foi só em conexão com a esperança messiânica que, sob a influência de ideias persas, a crença na ressurreição emprestou à alma desencarnada uma existência contínua... A crença na imortalidade da alma chegou aos judeus do contato com o pensamento grego e principalmente por meio da filosofia de Platão, seu principal expoente. . . . Como todos os povos da antiguidade, os hebreus primitivos acreditavam que os mortos descem ao mundo inferior e vivem ali uma existência descaracterizada... A concepção hebraica mais antiga sobre a vida considerava de tal maneira a nação como uma unidade que não se considerava qualquer mortalidade ou imortalidade individual... Um conceito diferente, que tornava uma ressurreição desnecessária, foi mantido pelos autores do Sal. xlix. e lxxiii., que acreditavam que na morte apenas os ímpios iam para o Seol e que as almas dos justos iam diretamente para Deus. Isto, também, parece basear-se em conceitos análogos aos de Jeremias e Ezequiel, e provavelmente não foi mantido amplamente. No longo prazo, o antigo conceito nacional se afirmou na forma das esperanças messiânicas. Estas deram origem a uma crença numa ressurreição” – Verbetes “Imortalidade da Alma” e “Ressurreição”.

Novamente, a Bíblia não ensina a versão grega de imortalidade. E a existência descaracterizada no Seol é apenas uma referência ao estado debilitado dos que estão lá (a palavra inglesa utilizada aqui é colorless, que ficaria melhor traduzida por “pálida” ou “sem cor”, que é uma alusão à aparência das “sombras” do Seol, ou seja, as almas dos mortos). Não se refere à inexistência absoluta de quem morreu. Por isso a Enciclopédia Judaica disse que os mortos vivem no Seol. Os mortos podem até estar enfraquecidos, mas mesmo assim são fracos que existem literalmente e que se movimentam quando querem. Quanto à questão da influência persa, diz respeito à ressurreição do corpo. Muitos comentaristas dizem que essa crença surgiu entre os judeus devido ao contato com os persas durante o exílio babilônico, sendo que na visão de alguns salmos bíblicos a ressurreição não é absolutamente necessária para o fiel ir até à presença de Deus. O que está totalmente de acordo com outras partes da Bíblia, mesmo levando-se em consideração que a ressurreição do corpo ocorrerá de qualquer maneira. É o caso quando Paulo disse que só estaria na presença de Cristo quando deixasse o corpo e também das almas que pediram vingança diante do altar de Deus. – 2 Cor. 5: 6, 8; Apocalipse 6:9-11, 20:4, 5.

3) The International Standard Bible Encyclopedia:

“Pois sempre somos mais ou menos influenciados pelo conceito grego, platônico, de que o corpo morre, mas a alma é imortal. Tal ideia é totalmente contrária à consciência israelita, e não se encontra em parte alguma no Antigo Testamento. O homem inteiro morre, quando na morte o espírito... Não só o seu corpo, mas sua alma também retorna a uma condição de morte e pertence ao mundo inferior; desta forma o Antigo Testamento pode falar da morte da alma de alguém... O Seol (she'ol) está em contraste com a terra dos vivos em todos os aspectos... é uma morada de escuridão e sombra da morte... um lugar de destruição, sim a própria destruição... Os mortos (‘as sombras’ na Versão Revisada, margem; confira o artigo MORRER) estão dormindo... enfraquecidos (Isa. 14:10) e sem forças (Sal. 88:4) . . . . Será visto à medida que avançamos, que o conceito bíblico é diferente de todos estes [dos conceitos mantidos pelos povos da antiguidade, como os egípcios]. A alma, de fato, sobrevive ao corpo; mas esta condição desencarnada nunca é encarada como uma de completa ‘vida’... A esperança deles de imortalidade, portanto, era, em princípio, não apenas a esperança de uma ‘imortalidade da alma’, mas também da ressurreição – do completo livramento do Seol”. – Vol. II, pp. 811, 812; Vol. III, pp. 1458-1460, colchetes acrescentados.

A mesma coisa: a imortalidade da alma conforme os gregos concebiam não é ensinada na Bíblia. Mesmo assim, de acordo com a mesma Bíblia, os que morrem continuam vivos no Hades ou Seol, ainda que enfraquecidos, dormindo ou inconscientes. Mas a inconsciência aqui é mais ou menos como a inconsciência durante o sono de um ser humano. Não significa que a pessoa não existe ou não está viva. Os pensamentos continuam e a pessoa acorda quando quer ou precisa. Ou seja, há movimento e atividade, mesmo que no Seol hebraico seja tudo muito mais restrito.

4) Jewish Theology: Systematically and Historically Considered:

O homem inteiro, tanto o corpo como a alma, tem assim a potencialidade de uma vida mais elevada e mais nobre... a totalidade do homem é permeada pelo espírito de Deus... a teoria dele [de Filo] era a platônica [e]... não tem qualquer fundamento bíblico... Além da doutrina filosófica da imortalidade da alma, porém, a crença tradicional na ressurreição do corpo exigiu alguma consideração por parte desses filósofos [judeus]... A crença na ressurreição tinha criado raízes tão profundas na consciência judaica e tinha sido estabelecida tão firmemente por meio da liturgia da Sinagoga, que filósofo algum poderia tocá-la sem ferir os próprios fundamentos da fé”. – pp. 212-214; 290-293, colchetes acrescentados.

A desvalorização do corpo, especialmente em relação à vida eterna, era um pensamento tipicamente grego e não encontra respaldo nas Escrituras. A ressurreição envolve necessariamente um corpo físico, embora a parte espiritual do homem continue viva depois da morte. Logo, mais uma vez o trecho citado não atende ao propósito pretendido pelo autor do MB. É “confundir alhos com bugalhos”, como diz o adágio popular.

5) Die Letzten Dienge: Lehrbuch der Eschatologie:

“O corpo e a alma desaparecem. A morte é o colapso do homem em um poço sem fundo ... É uma partida para o nada... A morte é mais do que uma saída da alma do corpo. A pessoa, corpo e alma, está envolvida na morte... A fé cristã nada sabe sobre uma imortalidade da pessoa. Isso significaria uma negação da morte, não reconhecê-la como julgamento de Deus. Ela conhece apenas um despertar da morte real por meio do poder de Deus. Só há existência após a morte por um despertar da ressurreição da pessoa inteira”. – pp. 83, 157.

Este é um fragmento bastante divulgado por diversos sites adventistas, que o reproduzem exatamente como está transcrito acima, com reticências. Nunca trazem o texto completo de Althaus. Provavelmente porque nenhum de seus divulgadores o leu completamente no original em alemão, e se dão ao trabalho apenas de copiar e colar esses dois trechos que alguém traduziu. Essas afirmações do teólogo Paul Althaus é o que podemos chamar de um desvio ocasional do padrão das obras sérias citadas pelo autor do MB, pois têm feições nitidamente aniquilacionistas, embora o que Althaus escreveu possa ser compreendido perfeitamente à base do entendimento verdadeiramente bíblico sobre a morte. A escolha que ele fez das palavras talvez tenha tido exatamente esse propósito dúbio.

O que o autor do MB talvez não soubesse ao citar esse trecho é que Althaus fazia parte de um pequeno grupo de teólogos independentes que tentaram embaçar a imagem que a Bíblia apresenta sobre a existência contínua depois da morte. Dentre tais teólogos o mais conhecido e citado atualmente é Oscar Cullmann. Se o autor do MB tivesse percebido isso, provavelmente ele não teria citado Paul Althaus naquele momento, pois, ao que parece, a intenção inicial com essas citações era demonstrar que as próprias fontes “imortalistas” admitem tacitamente a “verdade” do aniquilacionismo. E citar uma obra abertamente aniquilacionista, ou algo próximo disso, não teria o mesmo valor. Naturalmente, essa “metodologia” implicaria em supor certo grau de desonestidade dos autores “imortalistas” citados, pois mesmo com tais “evidências” eles continuam acreditando que a alma continua viva depois da morte.

De qualquer maneira, um detalhe que deve ter passado sem o conhecimento do crítico renitente do MB é que Paul Althaus se “retratou” dessas coisas que dizia e, na prática, reconheceu que estava vendendo uma ideia que não corresponde completamente à realidade bíblica. Aparentemente esta é a razão porque, com um pouco de esforço, é possível ver no trecho citado uma negação do aniquilacionismo, dada à escolha que Althaus fez das palavras. Quem chamou atenção para a “retratação” de Althaus foi o também alemão Joseph Ratzinger, cardeal católico mais conhecido por Papa Bento XVI, no seu livro “Escatologia: a Morte e a Vida Eterna”. Note o que ele disse:

“Nas últimas décadas, surgiu uma questão básica sobre a imortalidade da alma e da ressurreição. A discussão que se seguiu tem transformado cada vez mais o panorama da teologia e da devoção. Oscar Cullmann coloca a situação de maneira superficial, senão drástica:

‘Se hoje se pergunta a um cristão mediano, não importa se protestante ou católico, intelectualmente inclinado ou não, o que o Novo Testamento ensina sobre o destino do ser humano individual após a morte, em quase todos os casos receberá a resposta “A imortalidade da alma”. Nesta forma, esta opinião é um dos maiores mal-entendidos do cristianismo que pode existir’.

“Hoje, poucos se aventurariam a oferecer a resposta que era antes uma questão bem definida, uma vez que a ideia de que esta resposta foi baseada em um mal-entendido se espalhou com uma velocidade surpreendente entre as congregações da cristandade. No entanto, nenhuma nova resposta de qualquer concretude tomou seu lugar. O caminho para essa mudança de atitudes foi pavimentado por dois homens: os teólogos protestantes Carl Stange (1870-1959) e Adolf Schlatter (1852-1938), até certo ponto auxiliados e coadjuvados por Paul Althaus, cuja escatologia foi publicada pela primeira vez em 1922. Apelando à Bíblia e a Lutero, esses homens rejeitaram como sendo dualismo platônico a noção de separação do corpo e da alma na morte, como pressupõe a doutrina da imortalidade da alma. A única doutrina verdadeiramente bíblica é a que sustenta que quando o homem morre ‘Perece, corpo e alma’. Somente dessa forma pode-se preservar a ideia da morte como um julgamento, do qual a Escritura fala com acentos tão inconfundíveis. A verdadeira coisa cristã, portanto, é falar não da imortalidade da alma, mas da ressurreição do ser humano completo e só isso... A piedade que circunda a morte, impregnada como está com uma escatologia de ir para o céu, deve ser eliminada em favor da única verdadeira forma de esperança cristã: a expectativa do Último Dia. Em 1950, Althaus tentou envidar algumas advertências contra esta visão que, entretanto, já tinha ganhado bastante terreno. Ele observou que a Bíblia estava perfeitamente familiarizada com o ‘esquema dualista’. Ela sabia não só da expectativa do Último Dia, mas também de uma forma de esperança individual para o céu. Althaus também tentou mostrar que o mesmo era verdadeiro para Lutero [ou seja, Lutero também reconhecia os dois aspectos: o integralista e o dualista]. E assim [Althaus] reformulou sua posição nas seguintes palavras:

‘A escatologia cristã não deve lutar contra a imortalidade como tal. O escândalo a que nos últimos tempos temos freqüentemente nos envolvido por esta luta não é o skandalon do qual o Evangelho fala’.

“Embora a discussão que se seguiu ao artigo [de ‘retratação’] de Althaus tenha produzido um amplo consenso a seu favor, suas ‘retratações’ não tiveram impacto no debate contínuo como um todo. A ideia de que falar da alma não é bíblica foi aceita de tal forma que até o novo Missal romano suprimiu o termo anima em sua liturgia para os mortos. Também desapareceu do ritual de sepultamento.

“Como foi possível derrubar tão rapidamente uma tradição firmemente enraizada desde a era da Igreja primitiva e sempre considerada central? Em si, a aparente evidência dos dados bíblicos certamente não teria bastado. Essencialmente, a força da nova posição decorria do paralelo entre, por um lado, a suposta ideia bíblica da indivisibilidade absoluta do homem e, por outro, uma antropologia moderna, elaborada a partir da ciência natural e a identificação do ser humano com seu corpo, sem qualquer resto que pudesse admitir uma alma distinta desse corpo. Pode-se admitir que a eliminação da imortalidade da alma remove uma possível fonte de conflito entre a fé e o pensamento contemporâneo. Entretanto, isso dificilmente salva a Bíblia, já que a visão bíblica das coisas é ainda mais primitiva pelos padrões modernos. A aceitação da unidade do ser humano pode ser satisfatória e boa, mas quem, com base nos princípios atuais das ciências naturais, poderia imaginar uma ressurreição do corpo? Essa ressurreição pressupõe um tipo de matéria completamente diversa, um cosmos fundamentalmente transformado que está completamente fora do que podemos conceber. Novamente, a questão de o que, neste caso, aconteceria com o morto até o ‘fim dos tempos’ não pode simplesmente ser deixada de lado. A ideia de Lutero sobre o ‘sono da alma’ certamente não resolve esse problema. Se não há nenhuma alma e, portanto, nenhum sujeito que se aproprie de tal ‘sono’, quem é essa pessoa que vai ser realmente levantada? Como pode haver uma identidade a partir do nada entre o ser humano que existiu em algum ponto do passado e a contraparte que tem de ser recriada? A irritada recusa de [ponderar] tais questões de ordem ‘filosófica’ não contribui para uma discussão mais significativa”. – Eschatology: Death and Eternal Life (1988), 2ª edição, de Joseph Ratzinger, pp. 104-106, colchetes acrescentados.

Há bastante sobriedade nesses comentários de Ratzinger, os quais demonstram que o aniquilacionismo, além de não ser bíblico, peca num aspecto crucial que seus defensores ignoram, referente à noção de existência, sobre o qual venho falando há bastante tempo. Se a morte ocasiona a inexistência total e absoluta, ao recriar um corpo no futuro e implantar nele as lembranças de alguém que faleceu Deus estaria criando apenas uma cópia da pessoa original. Embora isso possa parecer mera reflexão filosófica, desprezá-la é fechar os olhos ao que seria uma realidade inescapável. O que Ratzinger disse também toca na essência do que Jesus falou aos incrédulos saduceus, que só acreditavam no Pentateuco, de que Yahweh não é Deus de mortos, mas de vivos, e justamente por isto eles podem ser levantados. Ou seja, trazidos de volta. (Êxodo 3:1-6; Lucas 20:27-38). O que resulta em dizer que eles existem de alguma maneira após a morte, conforme o mesmo evangelista que registrou essa lição de Jesus aos saduceus deixou claro, ao mencionar o caso do ladrão arrependido na cruz e a parábola do rico e Lázaro (Lucas 16:19-31; 23:43). Comparando, alguém só pode ser levantado, depois de tropeçar e cair, se continuar existindo no chão onde caiu. Mas se a pessoa se precipitar nas lavas incandescentes de um vulcão e virar cinzas, não haverá ninguém para ser levantado. As ponderações subsequentes de Ratzinger deixam isso ainda mais patente:

“O primeiro ponto a que podemos chegar em uma tentativa de conclusão é que o elemento decisivamente novo que permitiu que o cristianismo emergisse do judaísmo era fé no Senhor ressuscitado e na veracidade atual de sua vida. A presença do Cristo ressuscitado transforma a fé em uma reivindicação realizada sobre o futuro, preenchendo-a com a certeza da própria ressurreição do crente. Mais parciais, os aspectos individuais são assumidos do judaísmo, sem ruptura de continuidade, e assimilados fragmentadamente neste fundamento cristológico. Através da fé no Senhor ressuscitado, o estado intermediário e a ressurreição estão ligados um ao outro de uma maneira mais completa do que poderia ter sido o caso anterior. No entanto, eles permanecem distintos [ou seja, a vida após a morte e a ressurreição são coisas distintas]. No Novo Testamento e nos pais [da Igreja] reaparecem todas as imagens geradas pelo judaísmo para o estado intermediário: o seio de Abraão, o paraíso, o altar, a árvore da vida, a água, a luz. Veremos daqui a pouco o quão conservadora a Igreja primitiva estava para ser nesta mesma área de representação escatológica. Longe de sofrer uma mudança do ‘semitismo’ para o ‘helenismo’, a Igreja permaneceu inteiramente dentro do cânon semítico de imagens, como demonstra a combinação da arte das catacumbas, da liturgia e da teologia...”. – Ibid., pp. 129, 130, colchetes acrescentados.

O conservadorismo da igreja primitiva mencionado refere-se à adesão dela ao entendimento semítico sobre a morte, segundo o qual a alma era lançada no poço profundo do Seol e não aniquilada. E sobre isso, Ratzinger disse:

“Parte desse conceito primitivo e generalizado da morte, para o qual Israel ainda não fez nenhuma contribuição distinta, é que a morte não é simplesmente aniquilação. O homem morto desce ao Sheol, onde experimenta uma espécie de ‘desvida’ entre as sombras. Como uma sombra, ele pode fazer uma aparição no mundo acima, e é assim percebido, como algo terrível e perigoso. No entanto, ele é essencialmente cortado da terra dos vivos, da vida prezada, banido para uma zona de não comunicação onde a vida é destruída precisamente porque o relacionamento é impossível. A extensão total do abismo do Sheol [feito] de nada é vista pelo fato de que Yahweh não está lá, nem é louvado lá. Em relação a ele também, há uma completa falta de comunicação no Sheol. A morte é, portanto, uma prisão interminável. É simultaneamente o ser e o não ser, de alguma forma a existência permanece e ainda assim a vida não . . . .

“Os antigos não comunicavam aos seus sucessores qualquer conceito claro do destino humano além do túmulo. A Igreja primitiva não poderia derivar suas respostas dessa fonte. Com base nos resultados que a nossa investigação produziu até agora, podemos formular com alguma confiança a nossa principal tese sobre esta questão. A visão da vida após a morte, o período de tempo entre a morte e a ressurreição que se desenvolveu na Igreja primitiva, é baseada em tradições judaicas da vida dos mortos no Sheol, tradições transmitidas e que receberam o foco cristológico no Novo Testamento. Qualquer outra posição diferente está em conflito com os fatos históricos. A doutrina da imortalidade na Igreja primitiva tinha dois lados. Primeiro, foi determinada pelo centro cristológico, de onde se garantia a indestrutibilidade da vida ganha pela fé. Em segundo lugar, ligou esta visão teológica à ideia de Sheol, utilizando essa ideia como fundamento antropológico e, assim, encontrou um amadurecimento numa crença básica que é, como vimos, de um tipo humano universal. Esta crença fundamental certamente se desenvolveu além do arcaico, mas suas implicações antropológicas não foram elaboradas de maneira consistente e precisa. Isso explica porque a Igreja primitiva não tinha uma terminologia unificada neste reino. Na tradição judaica, esse ser da pessoa humana que sobrevive à morte e, portanto, na perspectiva cristã, o portador da existência com Cristo, é mais freqüentemente chamado de alma ou espírito (esses termos estão lado a lado, por exemplo, no livro etíope de Enoque).

“Infelizmente, ambos os conceitos foram obscurecidos pelos sistemas gnósticos que se espalham rapidamente, nos quais a psique, a alma, é classificada como o mais baixo degrau da existência humana, em contraste com a condição mais elevada dos homens de espírito, os ‘pneumáticos’. O lastro assim levado a bordo por esses termos teve seu efeito muito além do âmbito dos simpatizantes do pensamento gnóstico”. – Ibid., pp. 80, 146, colchetes acrescentados.

Para mais informações sobre a teologia particular de Paul Althaus, consulte o livro Twentieth-Century Lutheran Theologians (2013), de Mark C. Mattes, p. 136 em diante. Se quiser ler as retratações de Althaus elas estão no artigo “Retraktionen zur Eschatologie”, do periódico de teologia liberal Theologische Literatur Zeitung 75 [Jornal de Literatura Teológica] (1950), número 4/5, coluna 256. O texto está em alemão.

6) Dictionnaire Encyclopedique de la Bible:

“A ideia judaica deriva da concepção judaica da personalidade humana, cujo ponto de partida é a afirmação da unidade desta personalidade. Para o hebreu, o princípio pessoal do homem, o seu ego não está no espírito apenas, e sim no corpo animado pelo sopro do Eterno, que se torna uma alma vivente; (Cf. Gênesis 2:7) essa alma é inseparável do corpo... A ressurreição marca a permanência da personalidade inteira, corpo e alma. É a vitória completa sobre a sepultura... Para os gregos, a personalidade humana compõe-se de duas partes, corpo e alma; mas esses dois elementos, longe de formarem um conjunto harmonioso, opõem-se um ao outro... a ideia de uma ressurreição do corpo não tinha lugar no pensamento grego”. – Vol. 2, p. 557.

Novamente, nenhuma novidade. O que essa obra 6 está dizendo é que a Bíblia não adere ao conceito grego sobre a alma. Nada mais que isso. Ela não está afirmando que quem morreu deixa de existir ou que não há uma alma invisível que permanece viva depois da morte. E nem poderia, pois, conforme visto na seção 2, esse mesmo dicionário diz que aqueles que vão para o Hades continuam conscientes, apesar de serem apenas “sombras”, e também que a alma é a parte imaterial do homem.

7) The Distinctive Ideas of the Old Testament:

“Estas [as ideias distintivas da religião do Antigo Testamento] são diferentes das ideias de qualquer outra religião. Em particular, elas são bem distintas das ideias da religião grega... [não] absolutamente nenhum [trecho do Antigo Testamento] que fale sobre alguma imortalidade da alma, que não é uma ideia bíblica de maneira alguma”. – pp. 10, 89, colchetes acrescentados.

Perfeito! A versão grega sobre a imortalidade da alma realmente não é ensinada na Bíblia. Mesmo assim, a Bíblia ensina, em especial no Novo Testamento, que a alma do homem permanece viva depois da morte e fica separada do corpo temporariamente. O que vai acontecer com ela na eternidade já é outra questão.

8) The Interpreter’s Dictionary of the Bible:

“... A nephesh ou ‘alma’ (veja acima, pags. 367-68), portanto, não continua a existir. Ela se desintegra, ou como no caso do servo sofredor, diz-se que ela é ‘derramada’ como uma oferenda à morte (Isaías 53:12). Os mortos são como ‘águas derramadas na terra que já não se podem juntar.’ (2 Sam. 14:14). Isso não significa, porém, que a existência cessa. O homem continua a viver, embora em um estado muito fraco, no mundo inferior do Seol, junto com os que passaram para este reino antes dele. Lá ele subsiste na escuridão (Jó 10:21-22), numa espécie de sono (Naum 3:18), na fraqueza (Isaías 14:10), no esquecimento (Salmo 88:12). Assim, a existência no Seol era concebida como o oposto da vida. A terra é o lugar da luz; o Seol está cheio da treva primordial (Gen. 1:2). Vida significa vitalidade e energia; a morte é fraqueza, inação, uma mera sombra da vida... a ideia do homem como consistindo de corpo e alma que são separados na morte não é hebraica, e sim grega”. – Vol. II, 1953, p. 1015.

“A partida da nefesh [alma] deve ser encarada como uma figura de linguagem, pois ela não continua a existir independentemente do corpo, mas morre com ele (Num. 31:19; Jz. 16:30; Eze. 13:19). Nenhum texto bíblico autoriza a afirmação de que a ‘alma’ se separa do corpo no momento da morte.” – Vol. I, 1962, p. 802.

No AT ela jamais significa a alma imortal, mas é essencialmente o princípio da vida, ou o ser vivo, ou o eu como sujeito de apetite e emoção, ocasionalmente de volição [vontade própria].” – Vol. IV, 1962, p. 428.

O próprio fato da enciclopédia acima dizer que quem morreu experimenta um estado consciente em outro lugar, ainda que desprovido de força e alegria, descarta qualquer possibilidade dela ser usada para apoiar o aniquilacionismo. Mesmo assim, o autor do MB faz vista grossa a isso e destaca pontos que ele acha que dão suporte ao seu entendimento, quando, na verdade, são apenas tecnicismos ou detalhes idiomáticos. Não percebe que quando um erudito escreve um comentário sobre uma crença antiga ele se coloca no lugar de uma pessoa da época, a fim de descrever com precisão o que ela acreditava e de que maneira expressava sua crença (que se fosse descrita na linguagem atual atestaria mais ainda que os hebreus não eram aniquilacionistas).

Se a palavra “alma” for entendida apenas como pessoa humana que respira, é óbvio que o ser consciente no Seol (o “morto” do nosso ponto de vista) não poderá ser chamado de alma, pois ele sequer precisa respirar para continuar vivo. E a respiração é justamente a ideia por trás da origem etimológica da palavra alma e seu conceito subjacente. Mas isto não foi empecilho para que os gregos também chamassem as “sombras” do Hades de “almas” (eles intercambiavam as duas palavras). Se os hebreus não fizeram o mesmo é um detalhe completamente irrelevante no referido cenário. E nem isso é completamente verdadeiro, conforme está explicado na seção 5. O Seol é outra realidade: etérea, imaterial ou espiritual. Não é física, mas nem por isso menos real.

Portanto, não existe justificativa minimamente razoável para o autor do MB não compreender a verdadeira intenção autoral do livro citado, pois ela está demasiadamente escancarada para o leitor. E praticamente todas as outras obras citadas que abordam esses assuntos da nephesh e do Sheol colocam a situação na mesmíssima perspectiva!

9) The Encyclopedia Americana:

As citações desta enciclopédia apresentadas na seção 2 demonstram que essa obra é uma das mais “imortalistas” de todas as que o autor do MB citou. De modo que nem seria necessário dizer mais nada para comprovar o uso inadequado feito por ele. Mas vejamos mesmo assim o que as citações escolhidas pelo autor “bereano” dizem.

Ressurreição, um artigo de crença contido em todos as formulações da fé cristã, a saber, que no último dia todas as criaturas humanas que tiverem vivido na terra se levantarão de suas sepulturas nos corpos que tiveram em vida. Trata-se de uma doutrina peculiar à religião cristã, que não era mantida pelas nações pagãs da antiguidade nem pelos hebreus até o último período de sua história como nação. Nas Escrituras Hebraicas há muitos trechos que favorecem mais ou menos a doutrina da ressurreição dos mortos; mas tais trechos não estão em nenhum caso livres de ambigüidade”. – Edição de 1904, verbete “Ressurreição”.

Nenhuma novidade. A ressurreição do corpo físico é um dos principais ensinos do Cristianismo e sempre foi assim. Já em outras religiões onde esse conceito apareceu não houve a mesma consistência ao longo do tempo, embora o Judaísmo em dado momento também tenha se firmado nessa crença.

“A doutrina varia de uma crença num período de sobrevivência indefinido após a morte até a crença na vida pessoal eterna, sendo esta última o uso legítimo do termo imortalidade… O Seol, ou o reino das sombras, aparece na história primitiva dos judeus como uma amplificação da ideia do túmulo, como a morada escura dos espíritos que partiram, onde as almas vivem sem corpo, inconscientes, sem sentimentos. As referências na primeira parte das Escrituras do Antigo Testamento a uma vida futura são raras e vagas, e a doutrina da imortalidade da alma não é explicitamente ensinada em parte alguma nos livros primitivos... A origem da doutrina da imortalidade entre os gregos está perdida na mais remota antiguidade. Encontra-se nas primeiras tradições dos mistérios órfico e dionisíaco, nos poemas de Homero e Hesíodo, e constitui um princípio central na filosofia de Pitágoras... foi só com Platão que uma base filosófica foi fornecida à doutrina... Os conceitos dos gregos e, especialmente, os conceitos de Platão tiveram uma influência profunda e incalculável no pensamento cristão, nas primeiras formulações teológicas e na totalidade da filosofia ocidental. Platão não era apenas um estruturador da filosofia, um intérprete intelectual da realidade, era, mais ainda, um homem de religião, um vidente”. – Edição de 1959, Vol. XIV, pp. 716-718.

Note a incoerência em destaque. O autor do MB deixa em negrito a palavra “inconscientes”, em referência aos mortos, como se ela significasse total inexistência como preconiza o aniquilacionismo. No entanto, não foi essa a intenção de quem escreveu o trecho, pois ele afirmou que os tais “inconscientes” são “espíritos que partiram” para um lugar onde “as almas vivem”. Ele não estava falando de pessoas que deixaram de existir completamente, como acham os aniquilacionistas. Por isso que quando eles dizem que os mortos “estão inconscientes” estão usando esta expressão apenas em sentido figurado, pois quem não existe não pode experimentar qualquer estado.

Se considerarmos tudo o que as obras aqui analisadas disseram sobre o reino das “sombras” (Seol) nota-se facilmente que a inconsciência dos mortos é tal qual a que vemos nas madrugadas do nosso mundo. Qual o resultado de combinar cansaço com escuridão? Isso mesmo. Sono, muito sono. Ou seja, um estado de inconsciência temporária, porém de plena atividade cerebral, com sonhos, pesadelos e sobressaltos. Ou seja, a pessoa continua viva. Além disso, ao passo que a maioria dorme, insones estão curtindo a Netflix ou assaltando a geladeira. Mesmo não contando com tais benefícios, os que estão na noite eterna do Seol hebraico vivem uma realidade análoga. Estão permanentemente cansados e sonolentos*, mas mesmo assim vivos. Por isso podem se movimentar quando querem, como foi o caso dos que recepcionaram o rei de Babilônia ou dos servos do Faraó que continuavam a servi-lo no mundo inferior. – Isaías 14:9-11, 14, 15; Ezequiel 32:21, 22, 27.

Por fim, quando os hebreus, assírios ou babilônios se recusavam a chamar de vida a existência consciente no mundo subterrâneo, e sempre se referiam a ela com sentimentos negativos, sendo a palavra morte a única designação possível, é porque eles sabiam que lá embaixo não haveria atividades humanas, alegria ou diversão. O cenário que concebiam era todo deprimente e ausente daquilo que gostavam de fazer enquanto viviam na superfície do solo. E em épocas posteriores os hebreus ainda acrescentaram ao Seol a ideia de punição e tortura no fogo para aqueles que merecessem tal castigo (Hades / Geena / Inferno). Jesus Cristo e os escritores do Novo Testamento se referiam frequentemente a essa perspectiva de sofrimento para os maus que morriam. O mesmo fizeram os autores patrísticos.

* Quando a Bíblia diz que na morte o ‘espírito do homem volta para Deus’, há possibilidade disso significar que quando a pessoa desce para o Seol ela perde parte de suas faculdades cognitivas e sentimentos que tinha qual ser humano. Isto porque a palavra “espírito” frequentemente aparece na Bíblia com significado de atividade mental. Deste modo, os mortos agiriam que nem sonâmbulos, vagando por um mundo escuro e sem sentido. Só quando Deus ressuscitasse a pessoa, num corpo físico, é que o seu “espírito” lhe seria devolvido.

O tempo e os detalhes da Parousia são tratados em outro lugar. (Veja ESCATOLOGIA). Este artigo limita-se ao fato e à maneira da ressurreição. A crença escatológica judaica corrente, no início da era cristã, é manifestada por Marta em relação ao seu irmão Lázaro: ‘Eu sei que ele se levantará na ressurreição no último dia’ (João 11:24)”. – Edição de 1959, Vol. XXIII, pp. 422-425.

Sendo que eles acreditavam que a ressurreição consistiria no resgate daqueles que estivessem no Hades, o profundo mundo subterrâneo. O resultado disso é que eles receberiam novos corpos físicos para viver na Terra novamente. Esta é a verdadeira expectativa que eles nutriam e que está de acordo com os outros comentários da Enciclopédia Americana. Nada tem a ver com a reconstituição da pessoa a partir do nada ou da criação de uma cópia perfeita de quem já viveu juntamente com suas lembranças, conforme pensam os aniquilacionistas (para mais detalhes veja o item “b” da seção 7).

“O conceito do Antigo Testamento sobre o homem é o de uma unidade, não uma união de alma e corpo. Embora a palavra hebraica ne'phesh seja freqüentemente traduzida como ‘alma’, seria impreciso ler nela um significado grego... Ne'phesh jamais é concebida como funcionando à parte do corpo. No Novo Testamento, a palavra grega psy·khe' é traduzida frequentemente como ‘alma’, mas, de novo, não se deve entender prontamente que tenha o significado que a palavra tinha para os filósofos gregos. Geralmente ela significa ‘vida’ ou ‘vitalidade’ ou, às vezes, ‘o eu’. Enquanto a maioria dos cristãos acredita numa vida após a morte, a Bíblia não fornece uma descrição clara de como uma pessoa sobrevive após a morte. Os teólogos cristãos tiveram de recorrer às discussões de filósofos em busca de um meio adequado de descrever a sobrevivência do indivíduo após a morte, e os filósofos tradicionalmente utilizaram o conceito da alma como o veículo da imortalidade. – Edição de 1977, Vol. XXV, p. 236.

O acima é o conceito monista ou integralista a que tanto os aniquilacionistas se referem, por acharem que é de alguma serventia nessa discussão (mais informações no apêndice F). O que foi visto nos demais trechos dessa obra atesta que não passa de mais outro esforço infrutífero, pois a ideia judaico-cristã de permanência consciente depois da morte foi muito bem definida pelos eruditos que escreveram os verbetes da Enciclopédia Americana. Igualmente ineficaz é destacar que o conceito hebraico de alma não tem nada a ver com o da filosofia grega. Esta afirmação está totalmente correta, porém sem nenhuma implicação no que interessa, uma vez que as duas visões apresentam o ponto em comum de que uma parte do ser humano sobrevive à morte de maneira consciente. Por isso eu prefiro dizer que as duas correntes têm pouco a ver uma com a outra, ao invés de afirmar que elas não têm nenhuma semelhança. Mas quase todo o ensino da filosofia grega sobre a alma é realmente muito diferente do que antigos judeus e cristãos acreditavam, conforme pode ser visto no apêndice A.

10) Studies In Dogmatics. Man: The Image of God:

“Parece claro, portanto, que as Escrituras jamais retratam o homem como um ser dualista ou pluralista... Esse conceito de superior e inferior no homem geralmente forma o pano de fundo para o dualismo antropológico e muitas vezes também se manifesta na teologia. A alma então vem a ser encarada como mais próxima de Deus do que o corpo, o qual forma a parte inferior do homem... Não analisaremos mais a fundo essa depreciação do corpo do homem, que veio à tona na teologia sob a influência do pensamento grego, e que se manifestou não só na teoria da salvação do corpo como se fosse a salvação duma forma inferior, como também na prática do ascetismo. É claro que não há margem para tal concepção de uma parte superior e inferior no conceito bíblico do homem. – pp. 203-205.

Da perspectiva do platonismo, de fato a Bíblia não ensina o dualismo e a pluralidade do ser. Ou seja, a alma não odeia o corpo e nem o encara como punição ou algo a ser desvalorizado. Nem tampouco ensina que a alma fica habitando em vários corpos diferentes em uma série de reencarnações ao longo do tempo. Por outro lado, as Escrituras ensinam que o ser humano tem um corpo e uma alma, sendo que esta sobrevive à morte do corpo (Jó 14:1, 2, 22; Mateus 10:28). É por isso que esse mesmo livro citado pelo autor do MB disse que há total certeza que a igreja primitiva sempre acreditou na existência contínua depois da morte. A alma é uma substância que tem raciocínio e inteligência.

11) The New Bible Dictionary:

“A vida é proporcionada ao indivíduo como uma unidade psicossomática na qual ‘nossas próprias distinções entre a vida física, a vida intelectual e a vida espiritual não existem’ (von Allmen, p. 231 e seg.); e o ponto de vista do AT sobre o homem pode ser descrito sumarizadamente como ‘corpo animado’ (Robinson, p. 27). Dessa maneira, alma pode ser paralela à carne (SI 63.1; cf. Mt 6.25; At 2.31), à vida (Jó 33.28), ou ao espírito (SI 77.2 e seg.; cf. Lc 1.46 e seg.), bem como a todos os termos que indicam o ‘eu’. É o ‘eu’ que vive — e que morre (cf. Gn 7.21; Ez 18.4)”. – p. 1376.

Dizer que um corpo é animado significa dizer que ele tem uma alma, ou seja, é “almado”. (Anima é alma em latim). Até mesmo o grego clássico apresenta essa ideia de possessão. A palavra comumente traduzida por “ser vivo” ou “criatura” é ἔμψυχα (émpsykha), que significa “alma nele” ou “almado”. E certamente o “eu” (a pessoa em si) tanto vive quanto morre, porém é a morte no sentido judaico e não de acordo com o pensamento aniquilacionista. Por isso essa mesma obra disse que na concepção hebraica, a ressurreição consiste em tirar a pessoa do Seol, onde lá experimenta uma subvida.

12) A Theological Word Book of the Bible:

Os escritores da Bíblia, apegando-se à convicção de que a ordem criada deve a sua existência à sabedoria e ao amor de Deus e é, portanto, essencialmente boa, não poderiam conceber a vida após a morte como uma existência desencarnada (‘não seremos encontrados nus’, 2 Cor. 5:3), e sim como uma renovação sob as condições da íntima unidade de corpo e alma, que era a vida humana como eles a conheciam. Assim a morte... era encarada como a morte do homem inteiro, e frases tais como ‘libertação da morte’, incorruptibilidade ou imortalidade só poderiam ser adequadamente utilizadas para descrever o que se entende pela expressão Deus eterno ou vivo (v. VIDA, VIVO), ‘o único que tem imortalidade’ (1 Tim. 6:16). O homem não possui dentro de si a qualidade da imortalidade, mas deve, se ele há superar o poder destrutivo da morte, recebê-la como um dom de Deus que ‘levantou Cristo dentre os mortos’, e pôs a morte de lado como uma peça de roupa (1 Cor. 15:53-54). É através da morte e ressurreição de Jesus Cristo que esta possibilidade para o homem (2 Tim. 1:10) foi trazida à existência e foi confirmada a esperança de que a corrupção (Rom. 11,7), que é uma característica universal da vida humana será efetivamente superada”. – pp. 111, 112.

O “homem inteiro” de fato não sobrevive à morte. Quem é que pode questionar isso? No entanto, uma parte dele, comumente chamada de “alma”, continua viva depois da morte, porém em um miserável estado semimaterial chamado de “sombra”, conforme explicou essa mesmíssima obra, que também afirmou que a Bíblia não autoriza o entendimento de completa extinção depois da morte. E o que Paulo quis dizer com a esperança de ‘não ser achado nu’ depois da morte foi que, mesmo antes da ressurreição geral, ele esperava possuir um corpo depois da morte. Algo bem diferente do conceito grego de vida incorpórea no mundo das ideias.

13) Theological Dictionary of the New Testament:

“A marca decisiva da criatura viva é a respiração, e sua cessação significa o fim da vida. Assim, a raiz נפשׁ na forma do substantivo נָ֫פֶשׁ [nephesh], que ocorre 755 vezes na Bíblia hebraica, denota ‘vida’ ou ‘criatura vivente’, sendo o sentido especial de ‘fôlego’ expresso por נְשָׁמָה [neshamah], embora com frequência este compartilhe o desenvolvimento da נָ֫פֶשׁ [nephesh] Deut. 20:16; Jos. 10:40; 11:11, 14; 1 Reis 15:29; Sal.150:6; Isa. 57:16. Alguém poderia dizer que a נָ֫פֶשׁ [nephesh] sempre inclui o נְשָׁמָה [neshamah] mas não se limita a ele. Em 1 Reis 17:17 a falta de נְשָׁמָה [neshamah] causa a partida da נָ֫פֶשׁ [nephesh], que retorna quando o profeta dá à criança o fôlego novamente, pois só a נָ֫פֶשׁ [nephesh] é que faz duma criatura vivente um organismo vivo... Contudo, não se deve concluir que a נָ֫פֶשׁ [nephesh] seja um princípio imaterial que pode ser abstraído da sua subestrutura material e que pode levar uma existência independente. A partida da נָ֫פֶשׁ [nephesh] é uma metáfora da morte, um homem morto é aquele que deixou de respirar… נָ֫פֶשׁ [nephesh] é o termo usual para a natureza total de um homem, para o que ele é e não simplesmente para o que ele tem... Ela não tem qualquer existência à parte de um corpo. Assim, a melhor tradução em muitos casos é ‘pessoa’ compreendida na realidade corpórea”. – Vol. 9, 1974, pp. 618-620.

É bastante questionável esse entendimento de que a partida da alma mencionada na Bíblia seja uma metáfora, e entre os eruditos não há uma unanimidade sobre isso. Há os que defendem que é uma saída literal. Mas, de qualquer maneira, realmente o enfoque que os hebreus davam à palavra “alma” era de caráter físico, e não de acordo com a visão metafísica dos gregos. No entanto, há exceções, ainda que implícitas, conforme está comentado na seção 5. E lembre-se também que essa mesma obra disse que a pessoa continua existindo no Seol, embora o que ela experimenta lá não possa ser chamado de verdadeira vida, devido ao que foi explicado nas obras precedentes. De modo que não é incorreto, se considerarmos o contexto da Bíblia inteira, incluindo o Novo Testamento, dizer que uma alma deixa literalmente o corpo por ocasião da morte. Concentrar-se somente na abordagem predominante da Bíblia hebraica é recusar o benefício da evolução que houve sobre esse assunto até o início do Cristianismo.

E com respeito à tradução do hebraico nefesh, ao passo que esta obra diz que a melhor opção é “pessoa”, a obra nº 18, por sua vez, diz que é “vida”. A verdade, porém, é que não há tradução melhor, e o ideal seria verter sempre por “alma” e deixar que o leitor concluísse qual é o sentido em cada situação, pois este claramente pode variar de acordo com o contexto. É o próprio caso quando se diz que “a alma parte” por ocasião da morte (Gênesis 35:18). Uma partida denota um deslocamento de um lugar para outro. Nada que fique parado em um mesmo local partirá para outro. Por isso é muito mais natural entender a partida da alma como algo imaterial que sai do corpo do que supor que é uma metáfora para dizer que a vida teve fim. Ao que parece, alguns comentaristas não aceitam o entendimento óbvio por mero preconceito e também por causa do temor tolo que se instalou na teologia contemporânea de dar margem à filosofia grega.

Outro caso é quando o salmista diz que Deus não deixaria sua alma no Seol (Salmo 16:10). Se todos sabem que esse lugar fica numa distante região abaixo da Terra e que um corpo em decomposição no túmulo não é uma pessoa, e muito menos com vida, conclui-se que essa alma é algo imaterial que não se encontra mais neste mundo, mas continua sendo um ser vivo e consciente. A opção de traduzir o termo hebraico nefesh por um pronome pessoal ou reflexivo não muda em nada essa realidade (“Não me deixarás no Seol”), pois quando o salmista afirmou isso ele era uma pessoa viva que demonstrou que continuaria existindo em outro lugar, nem que fosse na forma de uma “sombra” em um mundo caótico e escuro. Era deste lugar que ele tinha esperança que Deus um dia o tirasse. O mesmo pensamento nutria Jó, que nem usou a palavra nefesh ao dizer que, uma vez instalado no Seol, aguardaria com expectativa a chamada de Deus, denotando assim que estaria vivo nesse lugar:

“Quem dera que me escondesses no Seol, que me mantivesses secreto até que a tua ira recuasse, que me fixasses um limite de tempo e te lembrasses de mim! Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, até vir a minha substituição. Tu chamarás e eu mesmo te responderei”. – Jó 14:13-15, TNM.

O “varão vigoroso”, ou seja, o homem integral do conceito monista pode morrer, porém a alma que desce para o Seol continua existindo, sendo ela o “me” e o “eu” do texto acima. Não se refere a um cadáver. Porém sabemos que é uma versão enfraquecida da pessoa (“sombra”) em um mundo sem contentamento, conforme o mesmo Jó expressou em outro momento de suas angústias:

“Quão poucos são os meus dias! Que Deus termine e se afaste de mim, e terei um instante de alegria, antes de partir, sem retorno, para o país de trevas e sombras, para a terra escura e opaca, de confusão e negrume, onde a própria claridade é sombra”. – Jó 10:20-22, PER.

Por isso para Jó e todos os antigos hebreus a única vida verdadeira e desejável é a que pode ser usufruída na superfície do solo terrestre, onde todas as atividades humanas são possíveis. Será que essa partida que Jó mencionou seria apenas uma metáfora para se referir ao fim da vida e à própria inexistência? A descrição que ele fez do Seol indica que não, pois reforça o conceito de que o mundo dos mortos é um lugar amplo e distante, e não se refere a uma mera sepultura.

14) Dictionary of the Bible:

O conceito prevalecente no AT é de que a morte é terminal. O conceito de morte de uma pessoa é determinado, em última instância, pelo seu conceito de vida; daí o conceito hebraico da pessoa humana como um corpo animado, em vez de um espírito encarnado, fez com que o fim da animação parecesse ser a cessação de toda atividade vital. Quando uma pessoa morria, o ‘espírito’ partia; o falecido continuava a existir como um ‘eu’ (nepeš) no Seol, mas era incapaz de qualquer atividade ou passividade vital. Os mortos não participam no culto divino (Sal 6:6; 30:10; 88:11; 115:17, compare também com Isa 38:11, 18). É contra esse pano de fundo da crença do AT que Jesus disse que Deus não é Deus dos mortos, mas de vivos (Mat. 22:32, Mar. 12:27, Luc. 20:38). A morte é aceita como o fim natural do homem (2 Sam. 14:14).... A imortalidade da alma, conforme proposta na S[abedoria] de S[alomão], um produto do judaísmo alexandrino, era realmente um elemento estranho à crença hebraica e à psicologia hebraica, que jamais foi assimilado dentro do AT ou do NT”. – Vol. 1, pp. 183, 184.

Pode ser aplicado a essa citação o mesmo que foi dito no caso da obra nº 8. Ou seja, o próprio teor do trecho impede qualquer possibilidade de usá-lo em apoio ao aniquilacionismo. E sobre a questão do judaísmo alexandrino e sua suposta influência sobre o livro da Sabedoria, que é um livro canônico na Bíblia católica e sempre foi considerado dos tempos antigos antes da definição do cânon hebraico, não há nada nessa informação que invalide o fato de que esse dicionário bíblico está ensinando sobre uma existência consciente depois da morte, não importando se os seres que estão no Seol eram chamados de “almas” ou não. De qualquer maneira, como foi visto na segunda seção há outros trechos em que essa obra diz enfaticamente que o homem possui uma alma e que ela sobrevive à morte do corpo.

15) The New Catholic Encyclopedia:

“Com o advento do neoplatonismo fundado por Amônio e desenvolvido por Plotino, o platonismo definitivamente entrou na causa do paganismo contra o cristianismo. Mesmo assim, a grande maioria dos filósofos cristãos até S. Agostinho era platonista. Eles apreciavam a influência edificante da psicologia e da metafísica de Platão e reconheceram nessa influência um poderoso aliado do cristianismo na guerra contra o materialismo e o naturalismo. Estes platonistas cristãos subestimavam Aristóteles, a quem geralmente se referiam como um lógico ‘aguçado’ cuja filosofia favorecia os oponentes heréticos do cristianismo ortodoxo... Fora das escolas de filosofia que são descritas como platônicas, há muitos filósofos e grupos de filósofos nos tempos modernos que devem muito à inspiração de Platão e ao entusiasmo pelas atividades superiores da mente que derivaram do estudo de suas obras”. – Edição de 1911, Vol. 12, pp. 161, 162.

Não há dicotomia alguma de corpo e alma no AT. O israelita encarava as coisas concretamente, em sua totalidade, e assim considerava os homens como pessoas e não como compostos. O termo nepeš, embora traduzido por nossa palavra ‘alma’, jamais significa alma como distinta do corpo ou da pessoa individual. Outras palavras no AT, tais como espírito, carne e coração, também significam a pessoa humana e diferem apenas como vários aspectos do mesmo ser... No Novo Testamento. O termo ψυχή é a palavra do NT correspondente a nepeš. Ela pode significar o princípio da vida, a própria vida ou o ser vivo. Por meio da influência helenística, diferente de nepeš, ela foi oposta ao corpo e considerada imortal... Em resumo, a nepeš hebraica geralmente está associada com o sinal concreto da vida no indivíduo, o ‘eu’ que sente, deseja, calça, etc. O fim dela é o Seol. A contraparte grega, ψυχή, inclui muitos dos significados de nepeš; mas adicionou ao conceito ‘eu’ a imortalidade da filosofia e da revelação posteriores”. – Edição de 1967, Vol. 13, pp. 449, 450.

Mesmo caso dos anteriores. Citações completamente fora do contexto autoral da obra. A primeira é apenas para insinuar que a crença de que existe uma alma que sobrevive à morte do corpo entrou na igreja devido à influência da filosofia grega, quando nem de longe este é o caso, conforme você pode constatar lendo o texto “A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?”. Conforme verá, a influência grega se deu em outros pormenores. O mesmo se aplica à segunda citação. Continuar a alma viva depois da morte não significa que ela é imortal em sentido platônico. Ao ler o texto indicado você entenderá o que estou dizendo.

Outro fator que passou ao largo da leitura que o autor do MB fez da Enciclopédia Católica é que quando ela disse que novos conceitos foram incorporados na definição de alma, isso não se restringiu somente à influência da filosofia grega. Também aconteceram “revelações posteriores”. E isto ocorreu no Novo Testamento. Por isso a mesma enciclopédia diz que quando Jesus aconselhou os seus seguidores a não temerem aqueles que só podem matar o corpo, mas nada podem fazer contra a alma, isto “significa uma vida que existe separadamente do corpo”. Logo, para os cristãos, a parte sobrevivente passa a ser chamada abertamente de acordo com o que ela verdadeiramente é. Ou seja, um ser vivo (alma), não importando em que condições ele esteja depois da morte. Esta é a evolução a que me referi na obra nº 13. Por isso quem morre pode ser levado imediatamente ao paraíso ou então para as chamas do Hades. – Lucas 16:19-31; 23:43.

16) Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament:

O corpo é a esfera concreta da existência, através da qual se leva a efeito o relacionamento do homem com Deus... A compreensão que Paulo tem da ressurreição reflete a antropologia judaica. A vida humana é inconcebível sem o corpo. Assim, exclui-se qualquer divisão do homem em alma e corpo segundo as linhas da antropologia gr[ega]... Talvez seja, no entanto, o próprio silêncio do NT a respeito dos detalhes do além e do estado temporário que excitou a curiosidade dos pseudo-piedosos e levou à dissatisfação com o colocar em Cristo somente a sua esperança. A ideia de que as declarações bíblicas precisam ser aumentadas pela imaginação humana indica uma falta de fé. Um fator contribuinte neste ponto é a substituição da doutrina neotestamentária da ressurreição dos mortos (1 Cor cap. 15) pela doutrina gr[ega] da imortalidade da alma... As especulações na igreja a respeito do paraíso, e os conceitos da piedade popular, também se ligam ao fato da doutrina da imortalidade da alma ter entrado para tomar o lugar da escatologia neotestamentária, com a sua esperança da ressurreição dos mortos e da nova criação (Ap caps. 21-22), de tal maneira que a alma recebe o julgamento depois da morte, e chega ao paraíso, que é considerado como parte do outro mundo, enquanto os pecadores vão para o inferno... O NT não faz referência direta à ‘ressurreição do corpo’ ou à ‘ressurreição da carne’ mas, sim, somente à ‘ressurreição dos mortos’ ou à ‘ressurreição dentre os mortos’. ‘Os sujeitos da ressurreição são pessoas inteiras, que são transformadas externa e internamente naquilo que pode ser chamado uma aceleração do processo de cristificação’.” – pp. 442, 1024, 1586, 2060 e 2100.

Outro caso que não considera o real significado da afirmação de que o conceito sobre a alma na filosofia grega não é bíblico. Nada tem a ver com a extinção completa de quem morre. Por isso essa mesma obra afirmou que os mortos no Hades são espíritos que lá ficam de maneira provisória, até a ressurreição do corpo.

17) Christian Doctrine (pp. 378-381, 384, 392-394):

Trecho 1

“Esta doutrina [imortalidade da alma] não foi ensinada pelos próprios escritores bíblicos, mas ela era comum na religião grega e nas religiões orientais do mundo antigo em que a igreja cristã nasceu. Alguns dos primeiros teólogos cristãos foram influenciados por ela, leram a Bíblia à luz dela e introduziram-na no pensamento da igreja... Segundo esta doutrina meu corpo morrerá, mas eu mesmo não morrerei. Meu corpo é só a concha em torno de meu verdadeiro eu. Não sou eu; é só a residência física terrena em que eu moro temporariamente, ou a prisão terrestre física na qual estou preso por um tempo. Meu verdadeiro eu é a minha alma, minha parte espiritual que é como Deus e, portanto, compartilha a imortalidade de Deus (não passível de morrer). O que acontece na morte, então, é que minha alma imortal escapa do meu corpo mortal. Meu corpo morre, mas eu mesmo continuo vivo e retorno ao reino espiritual de onde vim e ao qual eu realmente pertenço. . . . Se seguirmos a Reforma Protestante buscando fundar nossa fé ‘nas Escrituras apenas’, devemos rejeitar esta esperança tradicional para o futuro baseada na crença na imortalidade da alma... é inaceitável do ponto de vista bíblico”.

Ok, nenhum problema na explicação acima. A imortalidade da alma de acordo com a Bíblia não é aquela que foi ensinada pelos gregos. O único ponto seguramente em comum entre os dois sistemas de crença é que após a morte do corpo físico a essência espiritual do homem sobrevive e permanece consciente em outro lugar até a ressurreição do corpo. Alguns não querem chamar essa parte que não morre de “alma” por mero preciosismo, como é o caso do autor aqui em análise. Mas ele reconhece que a Bíblia não ensina o aniquilacionismo materialista, conforme veremos mais adiante. Os comentaristas que evitam chamar a consciência que sobrevive à morte de “alma” normalmente fazem isso para ficar mais de acordo com a mentalidade dos hebreus antigos, segundo a qual a alma estava quase que invariavelmente atrelada à existência física do ser humano. Mas, conforme explicado anteriormente, isso é mera questão de enfoque. Uma realidade não anula a outra. A perspectiva bíblica é dual.

Trecho 2

“... Segundo as Escrituras, a alma não é a parte íntima divina (e, portanto, imortal) de nós, que vem de Deus e retorna a Deus; ela é simplesmente o ‘fôlego de vida’ dado por Deus que faz de nós criaturas vivas... É verdade, então, que quando morremos a alma ‘parte’ e ‘se foi’. Mas isso não significa que nossa parte imortal divina partiu para viver em algum outro lugar. Significa que a vida nos deixou, que nossas vidas chegaram ao fim, que estamos agora ‘mortos e enterrados’. Em outras palavras, segundo as Escrituras minha alma é tão humana, criatural, finita – e mortal – quanto meu corpo; ela é simplesmente a vida do meu corpo... essa doutrina [da imortalidade da alma] nega a terrível realidade da morte... a morte é real, total e terrível... tanto a vida corporal como a espiritual são desejadas e abençoadas por Deus... nossa esperança para o futuro... [é] a renovação da existência humana total como almas corporificadas e corpos dotados de alma. Assim foi com Jesus: O Novo Testamento não nos diz que a alma dele deixou seu corpo e ‘voltou para casa’ para estar com Deus... Se pensarmos sobre a vida neste mundo ou no mundo vindouro, o desprezo pela nossa própria vida corporal (ou de qualquer outra pessoa) é antibíblica e anticristã. A esperança bíblico-cristã para o futuro é a esperança para os seres humanos que são corpo e alma em sua unidade inseparável”. - colchetes acrescentados.

Considerando-se a alma como sendo única e exclusivamente o ser humano de carne e osso, certamente a morte do corpo significa a morte da alma-homem. Porém a alma-alma continua em existência. É esta que deixa o corpo por ocasião da morte. Alguns comentaristas, devido ao referido preciosismo, querem transformar em sentido figurado o que é claramente literal. O conceito da partida da alma-alma para outro domínio é o que tornou viável o Apocalipse dizer que as almas dos cristãos que foram mortos já estavam no céu antes mesmo da ressurreição do corpo físico, e pelo mesmo motivo Jesus disse que os assassinos desses cristãos só matavam o corpo e nada podiam fazer contra a alma. Há também outras imprecisões menos importantes no trecho acima: (1) embora etimologicamente alma (nefesh) tenha a ver com fôlego, a nefesh hebraica é a combinação do “fôlego” (espírito) com o corpo; (2) o conceito grego de imortalidade da alma não nega a realidade da morte física, o que seria impossível, mas apenas a menospreza, pois para os gregos a existência realmente importante era a da alma-alma e não a da alma-homem. Sim, os gregos às vezes também usavam a palavra “alma” com o sentido de ser humano, e diziam que essa alma morre. Para mais detalhes veja o apêndice B.

Trecho 3

Chegamos aqui ao próprio coração da esperança cristã para o futuro... devemos rejeitar a esperança na imortalidade da alma... e recria seres humanos inteiros. Quando os cristãos confessam sua esperança para o futuro, dizem que acreditam na ‘ressurreição do corpo.’... Nos escritos do Antigo Testamento...Todo aquele que morre vai para o mesmo lugar, o Seol, ‘a terra da sombra e da escuridão profunda’ (Jó 10:21), uma região onde todos os mortos têm uma espécie de existência sombria completamente cortada de Deus e esquecida por Deus... Perto do fim do período do Antigo Testamento, a esperança de Israel para o futuro mudou quando o povo foi levado para o exílio... Surgiu uma esperança ‘apocalíptica’ de uma grande batalha cósmica entre Deus e todas as forças demoníacas do mal no final da história... Naquele tempo, todos os mortos serão ressuscitados para a ‘vida eterna’ ou para ‘vergonha e desprezo eterno’ (Daniel 12:2) para receber a recompensa ou a punição que não receberam nesta vida...”.

Isso mesmo! A imortalidade da alma de acordo com o ponto de vista grego é rejeitada pelos cristãos, e na ressurreição o que será recriado é o corpo físico e não a alma que espera no Seol pelo milagre de sua restauração à realidade terrestre. Como também está muito claro no trecho acima, a Bíblia Hebraica não afirma que quem morre deixa de existir, mas apenas que a existência que se segue é triste e sombria, em uma região que não é a sepultura onde o corpo é enterrado. E se não é, significa que os seres enfraquecidos que experimentam uma existência parcialmente consciente no Seol não são os corpos depositados em cemitérios. Não há como escapar dessa lógica!

Trecho 4

“Dissemos que a esperança para a ressurreição do corpo é a alternativa cristã à esperança da imortalidade da alma.... A ideia da ressurreição dos mortos não se originou com Jesus ou com a igreja primitiva. Ela originou-se na escatologia apocalíptica do judaísmo tardio...Visto que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos, podemos estar certos de que Deus fará o mesmo por todos. Como é que se faz essa conexão entre o que aconteceu com Jesus e o que acontecerá a todos nós em 1 Cor. 15:12-22 e Rom. 8:11? Mais uma vez vemos que a esperança cristã para o futuro se baseia no que já aconteceu no passado... para os escritores bíblicos ‘corpo’ ou ‘carne’ é sinônimo de ‘ser humano’. Ressurreição do corpo significa ressurreição de uma pessoa... é impossível pensar em um ser humano sem um corpo... A ressurreição de pessoas significa necessariamente a ressurreição de seus corpos... Paulo disse que teremos [depois da ressurreição] ‘corpos espirituais’ perfeitos (1 Cor. 15:42-44). Nós não podemos e não precisamos tentar conceber exatamente o que isso pode significar. Mas, se seguimos a regra de que a nossa melhor pista para o que vai acontecer conosco é o que aconteceu com Jesus, podemos dizer isso de nosso corpo ressuscitado. 1 João 3:2 diz que não sabemos o que seremos, mas sabemos que seremos ‘como ele’... Ele era a mesma pessoa de uma maneira diferente”.

Essa esperança apocalíptica que tem a ressurreição física qual subproduto é aquela que vários comentaristas dizem que surgiu por influência dos persas. Sobre o que significa o ressuscitado vir a ter um corpo espiritual dentro do contexto de uma ressurreição física, o que ocorrerá é que ele terá um corpo físico e espiritual ao mesmo tempo, corpo que se manifestará em cada uma das duas naturezas conforme a necessidade (releia a explicação da Enciclopédia Americana). É claro que ninguém faz ideia como isso será possível, pois será um milagre de Deus.

O que aconteceu com Jesus, incluindo sua preexistência no céu, permite tomar uma distância maior desse assunto e contemplar o quadro bíblico de uma maneira mais completa. Esse vislumbre mais amplo demonstra o quão incoerente é o materialismo “cristão”, biblicamente falando. Jesus antes de vir para a Terra certamente tinha um corpo espiritual, pois era um espírito que vivia no céu. (Isto em si já é uma “semente” para especular sobre a preexistência da alma, para nos fazermos semelhantes a Cristo em todos os sentidos...). Na concepção materialista como seria possível transferir esse espírito para a Terra e transformá-lo em um embrião no útero de Maria? O que se pode imaginar é um processo semelhante à “ressurreição” materialista, que consiste em uma transferência de informações para uma réplica de um corpo em outro momento do tempo ou em outro lugar do espaço. Mas o problema é que espíritos não morrem. Deus, numa atitude inédita, certamente não mataria seu Filho e se livraria do corpo espiritual dele só para recriar uma cópia de suas lembranças na Terra em um corpo físico. Mas se Ele fizesse isso o retorno de Cristo para o céu seria de natureza igualmente sue generis, num procedimento sucessivo de cópia e recópia, no qual Jesus teria que morrer duas vezes, a primeira na fase Filho-espírito e a segunda quando era Filho-homem. É claro que a primeira morte poderia ser evitada, bastando apenas que Deus replicasse Jesus na Terra sem ter que erradicar o seu Filho original da existência no céu. E hoje Deus estaria na companhia de dois Filhos ao invés de um só. Um de corpo espírito-carnal e outro com o corpo feito só de espírito.

Mas não é necessário ficar racionalizando a vida com esse enfoque físico que é digno de ficção científica. O que deve ter acontecido é que aquele espírito que seria chamado de Jesus na Terra permaneceu em existência contínua e Deus simplesmente o transferiu para o corpo que estava sendo gerado no ventre de sua mãe terrena. E quando esse corpo parou de funcionar na cruz, uns 34 anos depois, esse mesmo espírito deixou aquele corpo e foi para o Hades, carregando consigo uma marca que antes não tinha, a da humanidade. Por isso a ressurreição do seu corpo físico se fazia necessária. Não era porque Jesus tivesse passado à inexistência e inconsciência absoluta. Em nenhum momento o espírito consciente de Jesus deixou de existir. A prova é tanta que Jesus prometeu o Paraíso para o mesmo dia de sua morte ao ladrão arrependido (conforme comentado por John McKenzie). O Paraíso de Deus não necessita de corpos terrenos. Esta é razão porque Paulo considerou a possibilidade que sua experiência extática que o levou para lá tenha se dado “fora do corpo”. – Lucas 23:43; 2 Coríntios 12:4.

Por que os aniquilacionistas materialistas são incapazes de compreender o que foi explicado do parágrafo acima? Porque a opinião deles sobre a existência é completamente incompatível com o cenário global das Escrituras Sagradas, que apresenta os seres vivos sob dois enfoques distintos, porém harmônicos.

Trecho 5

“... Em Lucas 23:42, Jesus diz ao ladrão moribundo: ‘Hoje estarás comigo no Paraíso’. Em Filipenses 1:3, Paulo expressa seu desejo de ’partir e estar com Cristo’. Por outro lado, Paulo nos diz que há algo como um sono de espera de todos os mortos até que todos eles sejam levantados ao mesmo tempo no que mais tarde foi chamado de ‘ressurreição geral’ no fim da história... A tradição protestante clássica solucionou este problema, combinando as doutrinas da imortalidade da alma e da ressurreição do corpo. Quando morremos, Deus determina a cada um de nós o nosso destino eterno. Nossas almas vão imediatamente para o céu ou inferno, enquanto que nossos corpos permanecem na sepultura. No último dia, nossos corpos são criados e reunidos com nossas almas para um juízo final e destinação para o céu ou inferno... Esta explicação pode ser criticada por várias razões: (1) Sua separação do corpo e da alma, ainda que temporariamente, é antibíblica. (2) O julgamento final parece supérfluo se imediatamente após sua morte já foi determinado o lugar permanente das almas dos justos e dos ímpios. Para que fazer tudo de novo?

O trecho acima é um ótimo exemplo do que acontece quando um cristão, mesmo que não seja aniquilacionista, resolve declarar “guerra” à “famigerada” doutrina grega da imortalidade da alma. As inconsistências de algumas explicações são inevitáveis. E o autor do MB ainda destaca em negrito tais peculiaridades como se fossem determinantes a favor do que defende. Primeiro, a separação temporária da alma do corpo nada tem de antibíblica (Releia as explicações do Theological Dictionary of the New Testament e do Studies In Dogmatics, apenas para mencionar duas fontes que trataram disso). Jesus disse que o corpo morre, mas alma permanece (Mat. 10:28), a Bíblia diz que na morte a alma abandona o corpo (Gênesis 35:18), que essa mesma alma vai para o Seol e lá fica, mesmo depois que o corpo desaparece completamente (Salmos 16:10) e Paulo afirmou que provavelmente saiu do corpo quando foi para o terceiro céu, o paraíso de Deus. Esses e outros textos, conforme está mais detalhado na seção 5, transmitem a ideia de uma existência autônoma fora do corpo humano, que está sintetizada nas palavras a seguir de Paulo:

“Sabemos que, se for destruída a temporária habitação terrena em que vivemos [ou seja, o corpo], temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna no céu, não construída por mãos humanas... Portanto, temos sempre confiança e sabemos que, enquanto estamos no corpo, estamos longe do Senhor”. – 2 Coríntios 5:1-8, colchetes acrescentados.

A diferença da esperança cristã para a antiga expectativa dos hebreus é que a alma do cristão pode ir imediatamente para a presença de Deus depois da morte, ao passo que na visão hebraica primitiva ela ia para o Seol e era transformada em uma “sombra” pálida e sem alegria, desprovida de um corpo digno que proporcionasse satisfação em sua existência. Mas, infelizmente, há pessoas, e não apenas aniquilacionistas, que têm essa mania de desfigurar o quadro bíblico sobre esse assunto e apresentar entendimentos alternativos ou reinterpretações que jamais foram concebidas pelos cristãos primitivos, conforme nos lembrou Prince John Loewenstein em sua crítica a teólogos progressistas que atribuem pouca importância à imagética do mundo espiritual apresentada na Bíblia. Por exemplo, no caso da “alma” que deixou o corpo de Raquel durante sua morte, não seria uma alma imaterial, ainda que a Bíblia diga que essa mesma alma vá para o Seol, mas simplesmente a vida do corpo material de Raquel. A vida humana não deixa corpo algum, apenas deixa de existir. O que implica em um entendimento figurado, caso se aceite essa explicação. O que implica em um entendimento figurado, caso se aceite essa explicação. Os que a defendem temem a leitura literal de Gênesis 35:18 porque acham que seria uma promiscuidade com a crença dos gregos antigos, e por isso não admitem a possibilidade de que a alma que deixou o corpo de Raquel é aquela mesma que vai para o Seol aguardar a ressurreição do corpo. Preferem achar que em alguns momentos a palavra “alma” deixa de ter o sentido de alma vivente (corpo + fôlego de vida) e a passa a significar apenas vida. Se há então mais de um significado da palavra “alma”, por que não admitir logo que ela pode apresentar o sentido de uma parte espiritual e consciente que deixa o corpo do homem? Isto se faz especialmente adequado se os textos supracitados do Novo Testamento forem considerados. Mas não. Os que agora se envergonham daquilo que foi defendido nos primeiros tempos preferem entabular novas interpretações estranhas ao antigo pensamento judaico-cristão. O que vem a seguir demonstra esse fato lamentável.

Trecho 6

“A explicação tradicional confunde as categorias de tempo e eternidade. Após a morte, uma pessoa está além de nossas categorias criaturísticas de espaço e tempo. Nossas distinções entre presente e futuro e o tempo entre eles (assim como nossas categorias de para cima e para baixo) não são mais aplicáveis. A Bíblia reconhece isso quando diz que ‘com o Senhor um dia é como mil anos’ (2 Pedro 3:8). Eventos que, do nosso ponto de vista, estão amplamente separados no tempo, podem acontecer simultaneamente do ponto de vista do ‘Agora do Deus eterno’, que inclui o passado, o presente e o futuro de uma só vez. (4) Embora a explicação tradicional combine duas expressões da esperança do Novo Testamento para o futuro, o Novo Testamento em si não procura reconciliá-las ou combiná-las, mas se contenta em deixá-las em sua contraditória aparência e deixa sem resposta nossas perguntas sobre exatamente quando e como tudo acontecerá. Não deveríamos fazer o mesmo?

Uma vez assisti a um debate na TV entre dois pastores evangélicos, um tradicional e outro que defende o ponto de vista descrito acima, que foi concebido apenas para dar uma explicação alternativa às declarações bíblicas de vida imediata após a morte, a exemplo do que foi prometido ao ladrão arrependido na cruz. O pastor que apresentou essa novidade passou sérios apuros, pois o outro simplesmente recorria aos textos bíblicos que desmontam essa teoria, que foi apresentada com o neologismo “kairosfera” (mas Shirley Guthrie não chega a utilizá-lo, apenas apresenta a ideia). Até lembra um pouco as peripécias interpretativas do teólogo Oscar Cullmann, que é muito citado por aniquilacionistas de plantão. O referido debate pode ser visto no link abaixo:

Vejam Só - Sono ou consciência após a morte?

Segundo essa especulação da kairosfera, a morte resulta no rompimento do tempo e espaço (qualquer relação com as ideias da Física relativista que só surgiram em nosso tempo pode não ser apenas coincidência...). O que implica dizer que do ponto de vista de Deus os mortos já reviveram, inclusive os que ainda estão aqui na Terra, pois o reino espiritual não está sujeito à nossa noção de tempo. Ou seja, se você for uma pessoa fiel a Deus, a sua versão glorificada já está no céu e o que você está vivendo agora já é passado para o “você” da kairosfera, esse mundo onde o tempo funciona de forma estranha. A meu ver, isso transfere para as pessoas parte da onisciência de Deus, o Ser Supremo que se quiser pode agora mesmo conversar com aquele Abraão cuidando de ovelhas na Ur dos caldeus e ao mesmo tempo dizer “olá” para o Abraão que está na kairosfera. E veja que Shirley Guthrie ao que parece se convenceu que a Bíblia reconhece essa realidade alternativa simplesmente porque o apóstolo Pedro disse que para Deus mil anos é como se fosse um só dia. Você consegue entender tudo o que foi acima explicado somente por esse texto de Pedro? Ou acha que Pedro estava simplesmente contrastando a brevidade da existência humana com a eternidade de Deus? A segunda opção é mais viável, pois Pedro estava falando a respeito do “dia do Senhor” que ainda não tinha vindo e ele explicou que o motivo da aparente falta de pressa de Deus é porque milhares de anos para nós são apenas alguns dias para Ele. Na verdade, não é nem a milionésima parte de um segundo, pois Ele é o rei da eternidade.

Mas, enfim, uma única passagem bíblica é suficiente para demonstrar que essa explicação da kairosfera não tem fundamento de acordo com a concepção do Judaísmo e Cristianismo antigos. Trata-se da parábola do rico e Lázaro, que mostra uma inter-relação em tempo real de três mundos do universo judaico: o Seio de Abraão, a Terra e o Hades. Para os judeus, o “seio de Abraão” é o paraíso para onde vão as almas dos bons no estado intermediário, entre a morte e a ressurreição do corpo. O que implica em outra inconsistência no comentário de Guthrie, pois essa visão já existia antes de Cristo e não foi a “solução” encontrada pela Igreja, que teria combinado elementos bíblicos com filosofia grega... Há também dois entendimentos sobre o “seio de Abraão”, (1) o que ele seria uma região separada do Hades, ou (2) que era, na verdade, o céu, ainda que não fosse o céu dos céus, o paraíso de Deus. Pois bem, nessa parábola quando o rico vai para o Hades, de alguma maneira ele entra em contato com o próprio Abraão que está no paraíso junto com Lázaro, e pede para que eles avisem os seus familiares lá na Terra sobre o sofrimento que ele, o rico, está passando no Hades, a fim de que eles não tenham o mesmo destino. Obviamente por melhorarem o próprio comportamento no mundo. Logo, não há nenhuma ideia de kairosfera para os que saem do orbe terrestre e adentra nos mundos invisíveis, pois na parábola as coisas se sucedem separadamente e ao mesmo tempo. Além do mais, dentro desse “kairosferismo”, a preocupação do rico não faria o menor sentido, pois se seus parentes fossem dignos eles já estariam com Abraão, e se não fossem o rico já os veria no próprio Hades.

Se a teoria da kairosfera fosse verdadeira, quando Paulo foi arrebatado misteriosamente para o terceiro céu será que ele não correria o risco de se deparar consigo mesmo já glorificado? Afinal, ele esteve momentaneamente no lugar onde supostamente não se aplicam as nossas noções de tempo e espaço.

Como se nota, essa proposta de um universo à parte do tempo e do espaço, embora possa parecer atraente em sentido metafísico, apresenta problemas de difícil solução quando analisada do ponto de vista puramente bíblico e de acordo com a crença que o antigo povo de Deus nutria. Há vários outros detalhes que podem ser trazidos à tona contra a teoria kairosférica. Abaixo outros exemplos:

1) Quando Samuel veio do mundo dos mortos ao encontro de Saul ele dialogou sobre eventos ainda em curso na nação de Israel. – 1 Samuel 28:4-24.

2) Da mesma maneira, quando Moisés e Elias apareceram para Jesus, na visão da transfiguração, eles conversaram com Jesus a respeito de sua morte e subsequente retorno ao céu, acontecimentos que ainda estavam para acontecer. – Marcos 9:2-5; Lucas 9:28-36.

3) Quando o anjo Gabriel foi enviado certa vez para auxiliar o profeta Daniel, ele se atrasou 21 dias e justificou a demora dizendo que se engalfinhou com príncipe angélico da Pérsia, e só se viu livre dele quando o príncipe de Israel, Miguel, veio ajudá-lo e enfrentou o príncipe da Pérsia. – Daniel 10:12-14.

Nenhuma dessas histórias dá a entender que no mundo espiritual o tempo não corre sempre para frente e em paralelo com o mundo terreno. Não que não possa haver alguma diferença no fluxo de tempo, a exemplo de alguns instantes lá serem equivalentes a horas aqui, quando as duas realidades são conectadas. De acordo com a teoria da relatividade de Einstein, anomalias desse tipo ocorrem até mesmo no universo físico se corpos imprimirem velocidades próximas à da luz. Mas daí a dizer que há uma disruptura total no curso dos acontecimentos entre a Terra e o céu, de modo que passado e presente se confundem, já é outra coisa completamente diferente. E pior ainda é querer usar esse raciocínio especulativo para explicar afirmações bíblicas de vida imediata depois da morte.

Naturalmente, essas minhas observações que evidenciam a incoerência do kairosferismo não serão aceitas ou entendidas por aniquilacionistas materialistas, pois eles negam as realidades espirituais esboçadas na Bíblia, relacionadas ao “Seio de Abraão” e ao Hades. Mas para quem está em sintonia com o pensamento bíblico, conforme expressado nos tempos antigos, verá sentido em minhas palavras. De qualquer maneira, quem abraça a teoria da kairosfera não necessariamente a usa para defender o aniquilacionismo ou que a Bíblia Hebraica não tem o ensino de que uma parte invisível do homem desce para o Seol por ocasião da morte. O debate do vídeo mencionado anteriormente demonstra isso.

O kairosferismo até poderia ser aceitável e todo o antigo conhecimento sobre a vida além da morte ser reformulado. Especialmente porque, na prática, essa proposta significa que depois da morte a vida eterna é imediata*, ainda que na cronosfera seja um evento futuro. No entanto, só seria possível recepcionar esse novo entendimento se Deus revelasse a factualidade dele, pois dentro das páginas da Bíblia ou da literatura antiga extrabíblica é bastante difícil chegar a tal conclusão, por que não dizer impossível. E mesmo que esse novo entendimento fosse apresentado pelos meios espirituais competentes, seria bastante difícil convencer o público-alvo, já que a maioria dos cristãos baniu completamente de suas mentes a possibilidade de novas revelações divinas que não sejam as que estão encerradas no Novo Testamento. De qualquer maneira, essa transferência do “homem inteiro” para o céu só aconteceria para os crentes após a ressurreição de Jesus Cristo, o primogênito dentre os mortos. De modo que, para os que morreram antes desse período, continuaria sendo necessário que a alma fosse para o Hades e ali aguardasse. – Colossenses 1:18; João 1:18; 3:13; Atos 2:34.

* Note que até mesmo na visão aniquilacionista algo semelhante ocorreria, uma vez que não há passagem de tempo para quem deixa de existir e o “ressuscitado” acharia que tinha acabado de morrer quando abrisse os olhos para a sua nova vida.

Por fim, ao contrário do que supôs Guthrie, não há “aparente contradição” na perspectiva bíblica apresentada de vida após a morte, ora descrita como futura, ora como imediata, pois são duas realidades distintas, porém relacionadas. Nenhum cristão deve se encabular em compreender esse assunto mediante a dualidade corpo-alma (a bíblica, não a grega), pois ela está bem delineada no Novo Testamento, conforme explicado na seção 6. Admitir isso não é abrir a porta da mente cristã para a filosofia grega ou para o gnosticismo. Cada conceito está no seu devido lugar e não se confundem entre si. Além do mais, como será visto na seção 5, essa dualidade moderada da existência humana está esboçada no próprio Antigo Testamento, ainda que não muito explicitamente.

18) The Religious Ideas of the Old Testament:

Para o hebreu, a alma não é uma abstração esotérica e mística; é a respiração... A palavra hebraica para essa alma-respiração é nephesh, e a melhor tradução dela é com frequência simplesmente ‘vida’. Quando o profeta Elias orou pela restauração da vida do filho da viúva de Sarefá, ‘a nephesh do menino voltou para dentro dele, e ele viveu’. A ideia é claramente a da respiração animando os órgãos físicos do corpo, quase tão materialisticamente concebida como quando pensamos no vapor que põe um motor em movimento... A ideia da natureza humana implica uma unidade, não um dualismo. Não há contraste entre o corpo e a alma, como os termos instintivamente sugerem para nós. As sombras dos mortos no Seol, como veremos, não são chamadas de ‘almas’ ou ‘espíritos’ no Antigo Testamento... Um exemplo instrutivo dessa necromancia é oferecido pela visita bem conhecida de Saul à bruxa de Endor... Assim, supõe-se que os mortos continuam existindo de uma maneira ou de outra, mesmo no pensamento primitivo de Israel. Mas isso é uma existência que não tem atração alguma para o israelita, e cai fora da esfera da própria religião deles. Não é sua alma que sobrevive em absoluto; os mortos são chamados de ‘sombras’ (refaim), não de ‘almas’, no Antigo Testamento. O lugar (subterrâneo) de sua permanência é chamado Seol, e em muitos aspectos particulares é como o Hades grego... [Enoque e Elias] são casos excepcionais, e simplesmente comprovam a regra para o homem comum, que nenhuma vida verdadeira o esperava além da morte. – pp. 79-83, 91-99, colchetes acrescentados.

Novamente, o teor dessas explicações atesta a continuidade consciente depois da morte, sendo completamente irrelevante se os israelitas chamavam ou não os que iam para o Seol de “almas” ou “espíritos”. Portanto, mais uma obra que não serve aos interesses do autor do MB, mas mesmo assim ele a cita e ignora o que realmente ela está dizendo no ponto que interessa nessa discussão.

Também notamos que, ao contrário da obra nº 13, esta daqui diz que a melhor tradução de nefesh é “vida” e não “pessoa”. E ela também diz que a saída da alma na morte é metafórica, embora não haja certeza disso e o entendimento natural seja o de uma saída literal da alma, como foi explicado no comentário à 13ª obra. De qualquer maneira, está muito claro em qualquer uma dessas referências que os mortos continuam conscientes no mundo deles, a ponto de tal lugar ser comparado ao Hades dos gregos.

19) Anthropologie des Alten Testaments

“É necessário examinar até que ponto, quando passou a usar a língua grega, a filosofia helênica deturpou e substituiu concepções semítico-bíblicas. Para isso, temos de esclarecer o uso veterotestamentário das palavras”. – p. 29.

“Certamente, [néfesh] não significa ‘alma’. N. deve ser vista aqui em conjunto com a figura total do ser humano e especialmente com sua respiração; por isso, o ser humano não tem n., mas é n., vive como n.– pp. 33, 34.

“Este emprego de n. em prescrições da lei para a garantia da vida corresponde a um uso em amplas áreas da língua. Quando alguém pede pela própria vida ou pela de outros, está pedindo pela n.: 2Rs 1.13; Est 7.3; 1 Rs 3.11; quando pede a morte, ele diz: ‘Tira de mim a minha n.!’ (Jn 4.3; cf. 1 Rs 19.4)... Nunca se atribui à n. a significação de um núcleo de existência indestrutível, em oposição à vida corporal, podendo existir também separado dela... falta também qualquer especulação sobre o destino da ‘alma’ para além do limite da morte”. – p. 48.

“No relato javista da criação (Gn 2.7), vemos o ser humano definido expressamente como נֶפֶשׁ חַיָּה [néfesh hayyä / alma vivente] mas sua simples formação do pó da terra não faz com que seja vivo. Ele só vem a sê-lo por Javé Deus soprar o fôlego da vida em seu nariz. Apenas a respiração produzida pelo criador faz dele uma n. viva, isto é, um ser vivo, uma pessoa viva, um indivíduo vivo. Portanto, o ser humano aqui é definido mais precisamente sob este aspecto. נֶפֶשׁ חַיָּה [néfesh hayyä / alma vivente] na estrutura dos enunciados de Gênesis 2.7 não introduz uma diferença específica em oposição a animais vivos; neste caso a definição posterior também do ser animal como נֶפֶשׁ חַיָּה [néfesh hayyä / alma vivente] em 2.19 dificilmente seria possível. Mas, recebendo de Deus o fôlego da vida, o ser humano como indivíduo vivo se distingue da נֶפֶשׁ מֵת [néfesh met / alma falecida] como de um corpo sem vida ou de um cadáver”. – p. 52.

Visto que essa obra também disse em outros lugares que o Seol é um amplo local subterrâneo nas profundezas abismais e que os seus habitantes são espíritos sombrios que falam uns com os outros, e que o próprio aparecimento do falecido profeta Samuel atesta essa realidade, qual é a relevância das ponderações acima? Francamente eu não vejo nenhuma. Não passam de uma análise lingüística da antiga maneira hebraica de pensar, que não possuía ainda o vocabulário que nós temos hoje em dia.

20) As Grandes Religiões, Abril Cultural:

“[Fílon de Alexandria é] considerado não só o primeiro teólogo... mas também o primeiro psicólogo da fé e, finalmente, o primeiro sistematizador da alegoria bíblica... Para explicar a Bíblia, Fílon utiliza o método alegórico. Em suas exposições do texto bíblico, procura um duplo significado: o literal ou evidente e o alegórico ou oculto. Para ele, o primeiro representaria o ‘corpo’ e o segundo a ‘alma’ das revelações divinas. Atrás das palavras, Fílon procura descobrir um significado mais profundo, espiritual, que é, para ele, o verdadeiro sentido da Escritura, a essência da revelação divina... Seu pensamento revela nítidas influências de diversas escolas gregas, especialmente a de Platão (428/7-348/7 a.C), com uma oposição entre o mundo sensível e o inteligível, entre a matéria e o espírito... Os seguidores do pensamento de Fílon não foram os rabinos, mas os teólogos do Cristianismo nascente. – Volume 1, pp. 78-80.

A citação desse livro não tem outro objetivo senão insinuar que o Cristianismo foi corrompido pela filosofia grega ainda em sua infância. Porém, conforme demonstrado em outros estudos isso não passa de um mito, ainda que seja verdade que houve alguma influência grega. Ter Fílon inspirado teólogos cristãos a exemplo de Orígenes não resulta em nenhum problema sério para a ortodoxia, e nem tampouco os transforma em vilões conforme alguns aniquilacionistas erroneamente supõem.

21) The Zondervan Encyclopedia of the Bible:

“A tradução de nepeš pelo termo ‘alma’ frequentemente tem sido mal compreendida como ensinando uma antropologia bipartida (alma e corpo: dicotomia) ou tripartida (corpo, alma e espírito: tricotomia). Igualmente enganadora é a interpretação que tão radicalmente separa a alma do corpo como no conceito grego da natureza humana... ‘Para o hebreu, o homem não era um ‘corpo’ e uma ‘alma’, mas antes um ‘corpo-alma’, uma unidade de poder vital’ (cp. BDT, s.v.)... O problema mais perplexo da antropologia e psicologia do AT é o relacionamento da alma com a morte e a vida depois da morte. Este problema se concentra não apenas na natureza da alma, mas no sentido e significado do termo nepeš. Gênesis 35.18 e 1 Reis 17.21,22 falam do nepeš como sendo a partida e/ou a volta [ou seja, a alma partindo e/ou voltando]. Todavia, as séries cruciais dos textos são aquelas nas quais os escritores do AT indicam um medo da morte e um medo da perda do eu ou da alma por meio da experiência da morte (Cp. Jó 33.18-30; SI 16.10; 30.3; 116.8; Is 38.15-17). O que é essencial para compreender a mente hebraica é o reconhecimento de que o homem é uma unidade: corpo-alma! A alma não é, pois, insensível à experiência da morte. A escatologia do AT contém elementos seminais de esperança que sugerem os ensinos mais positivos do NT, como pode ser observado na frase do AT ‘descansou com seus pais’ (1 Rs 2.10; 11.21), na atitude confiante de Davi em relação à morte de seu filho (2Sm 12.12-23) e a esperança de Jó pela ressurreição (Jó 19.20-29). É esta unidade essencial da alma-corpo que provê a singularidade do conceito bíblico da ressurreição do corpo como distinto da ideia grega da imortalidade da alma”. – pp. 232, 233.

Muito mais mal compreendidas têm sido as explicações a exemplo desta daí acima. Ter o autor do MB destacado em negrito o que eu marquei de vermelho é uma evidência disso... Mesmo esse trecho possuindo aparentemente informações que alimentam a ilusão aniquilacionista, se prestarmos atenção ele apresenta todas as dicas de que está ensinando exatamente o contrário do que poderão pensar os aniquilacionistas materialistas que se deparam com essa citação! Se não, vejamos.

Primeiramente, o próprio enfoque integralista dos antigos hebreus demonstra que eles acreditavam na existência de uma alma, embora normalmente unida ao corpo. Ou seja, o que eles chamavam de “alma vivente” é, na verdade, um ente duplicado, que a enciclopédia chamou de “corpo-alma.” (Alma vivente = corpo + alma). Ou seja, a “alma vivente” tem outra alma dentro dela, e é esta que deixa o corpo por ocasião da morte, pondo fim ao ser humano que é a própria “alma vivente”. Portanto, vemos aqui uma dicotomia implícita. Além disso, a enciclopédia indica que os hebreus se preocupavam com uma vida após a morte. Certamente nutriam algum temor do Além devido ao pensamento que tinham de que quando chegassem ao Seol experimentariam a tristeza dos que estão vivos lá, em suas formas decaídas e fantasmagóricas. O que demonstra que a “alma nº 2” não é insensível à morte da “alma nº 1”, isto é, a alma imaterial* em contraste com a outrora “alma vivente” material, que não existe mais.

* Que está morta apenas do ponto de vista terrestre, mas do ponto de vista do Seol está viva.

Os textos bíblicos aludidos pela enciclopédia remetem precisamente para tal cenário de continuidade da existência:

1) Quando um hebreu morria em outro país e seu corpo era enterrado, invariavelmente ele se ‘deitava com seus antepassados’ ou se ‘juntava a seu povo’. Mas como isso seria possível se o corpo dele ficava sozinho em um cemitério estrangeiro? Simplesmente porque não era seu corpo que se juntava aos seus antepassados, mas sua alma! (a “alma nº 2”). E mesmo que morresse em Israel ele não era enterrado em uma cova coletiva para se adequar à expectativa de se reunir com seus parentes. – Gênesis 15:15; Números 20:24, 28; Deuteronômio 32:48-50, 34:5, 6; 2 Reis 2:10, 8:24, 11:21.

2) A mesma ideia da parentela que se junta novamente depois da morte está indicada nas palavras de Davi, quando um de seus filhos morreu: “Seus conselheiros lhe perguntaram: ‘Por que ages assim? Enquanto a criança estava viva, jejuaste e choraste; mas, agora que a criança está morta, te levantas e comes!’ Ele respondeu: ‘Enquanto a criança ainda estava viva, jejuei e chorei. Eu pensava: Quem sabe? Talvez o Senhor tenha misericórdia de mim e deixe a criança viver. Mas agora que ela morreu, por que deveria jejuar? Poderia eu trazê-la de volta à vida? Eu irei até ela, mas ela não voltará para mim’.” (2 Samuel 12:12-23). Dificilmente o que Davi pensou foi que um dia seria enterrado junto do corpo da criança recém-nascida que tinha acabado de falecer, fruto de seu adultério com Bate-Seba.

3) Sentimento de continuidade depois da morte também expressou Jó por mais de uma vez. Disse que se Deus o enviasse para o Seol, lá ficaria escondido aguardando com expectativa a chamada de Deus (Jó 14:13-15). Ele sabia que quando isso finalmente acontecesse o corpo da outrora “alma vivente” já não existiria mais, alma que tanto afligiu a alma “nº 2” (Jó 14:1, 2, 22). Não foi sem propósito então que ele disse o seguinte: “E, depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus. Eu o verei com os meus próprios olhos; eu mesmo, e não outro! Como anseia no meu peito o coração!” – Jó 19:26, 27.

Logo, aí estão eles! Alguns dos ‘elementos seminais de esperança [de vida após a morte] que sugerem os ensinos mais positivos do Novo Testamento’, a exemplo de Mateus 10:28 e 2 Coríntios 5:8, 9.

No entanto, talvez seja pedir muito que o autor do MB, ou qualquer outro aniquilacionista que tenha se apaixonado pelo materialismo “cristão”, entenda da maneira que eu expliquei acima o trecho supracitado da Enciclopédia Bíblica de Zondervan, ainda que seja exatamente isso o que ela ensina. Compreender tal ensino é demais para os aniquilacionistas. Nem desenhando eles percebem. Se não virem declarações rígidas e taxativas não se convencem. E mesmo diante destas às vezes ainda dão um jeito de entender de outra maneira, como é o caso do que fazem com Mateus 10:28 ou dos textos que mencionam as “sombras” que vivem taciturnamente no Seol. Felizmente, porém, a referida enciclopédia possui vários outros trechos que atestam que ela é totalmente contra o aniquilacionismo materialista. Veja a seguir o que há no final da mesma página citada pelo autor do MB:

c. Escatologia e a alma: É impossível isolar a discussão sobre a psyche da compreensão do NT do estado intermediário e do estado final de todos os cristãos, que demandam uma ressurreição do corpo e uma reunião do corpo e da alma. A natureza do estado intermediário é sugerida na declaração de Jesus em Mateus 10.28, porém mais específica é 2 Coríntios 5.1-10, onde Paulo descreve o conflito espiritual dos cristãos sobre a possibilidade de permanecer ‘vestido’, porém separado de Cristo, ou estar espiritualmente ‘nu’, mas permanecer na presença de Cristo. Tanto Cristo, quanto Paulo, afirmam que a alma, o ego, pode existir, e de fato existe, independentemente do corpo, embora não de uma maneira normal. O estado intermediário é, no entanto, uma condição anormal no relacionamento da alma com o corpo. Conseqüentemente, o que o cristão deseja é a ressurreição do corpo e a transformação deste na Segunda Vinda de Cristo”. – The Zondervan Encyclopedia of the Bible, Volume 5: Revised Full-Color Edition, p. 587; citado da versão em português da Enciclopédia da Bíblia, Cultura Cristã, São Paulo, SP, Brasil, 2008, Vol. 1, pp. 233, 234, verbete “Alma”.

A palavra “ego” que aparece no destaque acima é a tradução do inglês self, que se refere à pessoa em si, o “eu”. É nesse contexto que o cristão podia pensar: “Estarei com Cristo depois que eu deixar este corpo”.

22) Calvinism and Scholasticism in Vermigli's Doctrine of Man and Grace:

“A erudição bíblica do século vinte concorda amplamente que os judeus da antiguidade tinham pouca noção explícita de uma vida após a morte pessoal até bem tarde no período do Antigo Testamento. A imortalidade da alma era um conceito filosófico tipicamente grego, bem alheio ao pensamento dos antigos povos semitas. Só o último estrato do Antigo Testamento afirma até mesmo a ressurreição do corpo, um conceito mais próprio dos semitas. Como Calvino, Martyr [Peter Martyr Vermigli] tomou a si uma tarefa hercúlea ao tentar defender a imortalidade da alma com um punhado de textos vagos do Novo Testamento (por exemplo, Lucas 23:43) contra os defensores do sono da alma, que tinham uma abundante fonte de contradições da imortalidade obtida dos primitivos estratos do Antigo Testamento.” – pp. 99, 100.

Primeiramente, como já foi comentado, só em o autor acima dizer que os antigos hebreus tinham pouca noção de uma existência contínua depois da morte implica exatamente no fato de que eles tinham alguma noção, e não o contrário. E o conceito grego de imortalidade da alma realmente não fazia parte da crença deles. Fato já conhecido e irrelevante, pois isso não foi impedimento para que eles acreditassem que continuariam existindo no distante Seol, ainda que em formas enfraquecidas (“sombras”).

De qualquer modo, esse trecho está apenas relatando o embate de Martyr Vermigli com pessoas que defendiam o sono permanente da alma até a ressurreição, os chamados psicopaniquista, indivíduos que nem sempre eram aniquilacionistas (veja o item “c” da seção 7). Sendo que, conforme visto na seção 2, essa obra também menciona que a outra frente que Martyr combatia, os aniquilacionistas, cometia um erro doutrinário ao supor que a alma morre junto com o corpo.

23) Jewish Ideas & Concepts:

“O termo nefesh pode denotar a essência de qualquer criatura viva e pode até ser equiparado com o sangue vital. Significa o ‘indivíduo’, o ‘ego’, a ‘pessoa’ e, consequentemente, às vezes o corpo (Êxodo 21:23)... o homem não é uma dicotomia de corpo e alma (um conceito característico do Orfismo e do Platonismo), e certamente não uma tricotomia de elementos. Seu ser é um unitário multifacetado – sendo nefesh hayyah, ‘uma pessoa vivente.’ (Gênesis 2:7)”. – pp. 99-102.

Essa explicação está essencialmente correta, quando se leva em consideração o que os filósofos platonistas ensinavam. Os antigos hebreus não tinham tais noções típicas do pensamento grego. Entretanto, eles acreditavam sim que os mortos permanecem de maneira semiconsciente no Seol, um local que não fica em nosso mundo, mesmo que não chamassem os seus habitantes de “almas” e nem o desejassem, pois tratava-se de uma região triste e indesejável. E este sentimento negativo era nutrido por vários povos semitas, e não apenas pelos hebreus. O livro acima citado menciona todas essas informações, conforme vimos na segunda seção.

24) The Concise Jewish Encyclopedia:

Imortalidade da alma. A Bíblia não declara uma doutrina da imortalidade da alma, nem isto surge claramente na primitiva literatura rabínica.” – p. 257.

Mais uma vez, o acima é verdadeiro, pois tem como foco o ensino da filosofia grega, segundo o qual a alma é indestrutível, nunca teve princípio e tem as esferas superiores qual destino. Nada disso é ensinado na Bíblia. No entanto, ela afirma que os mortos vão para um distante lugar abaixo da Terra chamado Seol, conforme foi informado por essa mesmíssima enciclopédia judaica (pp. 487, 788).

25) Genesis – Volume I:

“... ‘imortalidade’ da alma. Esta não é uma ideia hebraica, e sim uma ideia grega. Em hebraico, a ‘alma’ não é uma parte do homem, e sim a pessoa viva completa, consistindo, como este versículo deixa claro, de seu corpo mais o fôlego que lhe dá vida... Não se deve permitir que a simplicidade deste quadro de Deus formando o ‘homem’ como um oleiro nos deixe cegos quanto ao seu significado essencial. Isto significa que nós e todos os seres humanos derivamos nossas vidas diretamente dele. Sem o fôlego que ele coloca em nós, estamos mortos e nossos corpos se dissolvem no pó de onde vieram”. – pp. 103, 104.

Como foi visto na seção 2, o escritor da obra acima deixou claro que é cristão e verdadeiro o conceito de que a pessoa continua viva depois da morte, porém os primeiros hebreus não tinham noção disso. Ainda deu a entender que deve ter sido uma surpresa para Abraão acordar no paraíso depois que morreu. No entanto, é claro que essa continuidade da existência, antes mesmo da ressurreição geral dos mortos, não é mérito de nenhum de nós, pois não temos uma alma indestrutível e dona se si própria conforme os gregos concebiam. A vida é sempre uma concessão de Deus, mesmo aquela deprimente experimentada no Seol e que não pode ser chamada de verdadeira vida. Este é o cenário hebraico sobre a morte. Nada tem a ver com o aniquilacionismo.

26) The Parables of the Kingdom, Grace and Judgment:

“O maior obstáculo para encararmos o julgamento de Jesus como o grande sacramento da vindicação talvez seja a nossa infeliz preocupação com o conceito da imortalidade da alma. A doutrina é uma peça de bagagem filosófica não hebraica com a qual estamos grudados desde que a igreja adentrou no vasto mundo do pensamento grego. Sozinha ao lado da ideia concomitante de ‘vida após a morte’ [imediata], ela não nos trouxe quase nada além de problemas: ambos os conceitos militam contra uma séria aceitação da ressurreição dos mortos que é a única base do julgamento”. – p. 71.

Quem não conhece o contexto da obra de Capon e se depara com tais palavras pode ter a nítida impressão de que ele era um convicto aniquilacionista. No entanto, conforme foi analisado na segunda seção, esse erudito jamais professou o materialismo “cristão” e acreditava que o homem continua vivo depois da morte, seja no céu ou no inferno, porém de maneira completa e não apenas uma alma à parte do corpo. Como isto seria possível, já foi visto na mesma seção. De modo que, até certo ponto, o autor do MB está desculpado por cair nessa “armadilha” não intencional de Robert Capon. Realmente esses teólogos “progressistas” têm sido uma “casca de banana” para aniquilacionistas desavisados ou não dispostos a examinar o assunto com mais profundidade e mente aberta.

De qualquer maneira, é preciso destacar que a birra dos referidos teólogos com aquilo que a ortodoxia cristã vem apresentando há séculos sobre a alma tem como foco o conceito grego, que rigorosamente falando realmente tem muito pouco a ver com o ensinamento bíblico sobre a morte e a vida eterna. E não raro eles fazem referência a isso. Com Capon não foi diferente:

“Aparentemente, portanto, nem Deus nem nós mesmos fornecemos qualquer garantia final sobre o assunto da existência separada da alma. Certamente, não devemos desprezar a crença antiga e generalizada da raça [humana] de que a alma sobrevive à morte do corpo. Mas, para que fique registrado, deve-se notar que nos círculos cristãos essa capacidade de sobrevivência se baseava apenas na alma humana. Considerou-se que as almas animais e vegetais perecem quando a matéria que animaram perece. Foi realmente dito que a alma humana se mantém. Mas o raciocínio por trás dessa conclusão baseou-se principalmente na teoria de que, ao contrário de todas as outras almas, cada alma humana individual foi criada diretamente por Deus e infundida em um corpo fornecido por pais cooperativos. Isso, no entanto, é uma das noções mais minimamente escriturárias de todas. Deriva principalmente de religiões altamente espirituais e de outro mundo que estabelecem um dualismo antagônico entre matéria e espírito: a alma, como espiritual, é boa. O corpo, como matéria, é o mal. O objetivo da vida humana é livrar-se do velho e desagradável casulo físico em que a bela borboleta da alma está presa, de modo que, sem restrições, ela pode assumir sua verdadeira natureza e voar para Deus”. – The Romance of the Word: One Man's Love Affair with Theology: Three Books, Eerdmans, 1995, p. 306.

Caso você, leitor, venha a ler este trabalho completamente e todas as referências a que ele remete, em especial a seção 5 e o apêndice A, notará que a situação, na realidade, não é tão simples e uniforme quanto Capon e outros gostariam que fosse. A crença na sobrevivência após a morte não é de jeito nenhum exclusividade de religiões espiritualistas, pois também está presente nas páginas da Bíblia, mesmo sem a típica linguagem grega (mas nem sempre).

Conforme já observado, a exegese bíblica foi pouco explorada por Capon e ele mesmo admitiu isso, na parte onde afirmou que não era universalista. O estilo literário que ele escolheu não tinha por objetivo discorrer sobre pontos que minam aspectos importantes do discurso monista ou da teologia existencialista e social para a qual tendem os seus defensores. As razões prováveis que explicam essa tendência deles estão comentadas na seção 7.

27) Harper’s Bible Dictionary:

“Para um hebreu, ‘alma’ indicava a unidade de uma pessoa humana; os hebreus eram corpos vivos, eles não tinham corpos. Este campo semântico hebraico é violado na Sabedoria de Salomão [o livro apócrifo] pela introdução explícita de ideias gregas sobre a alma. Um dualismo da alma e do corpo está presente: ‘o corpo corruptível torna pesada a alma’ (9:15). Este corpo corruptível é oposto por uma alma imortal (3:1-3). Tal dualismo poderia significar que a alma é superior ao corpo. No NT, ‘alma’ retém o seu campo semântico hebraico básico. Alma refere-se à vida de alguém”. – pp. 982, 983.

E mesmo assim, de acordo com o ensinamento cristão do Novo Testamento, o ser humano tem uma alma que permanece viva depois da morte, conforme indicado pelo próprio Harper’s Dictionary, que também informou que a visão hebraica é que os espíritos dos mortos vão para o mundo subterrâneo do Seol, não obstante o que foi dito na citação acima.

28) The Eerdmans Bible Dictionary:

“Realmente, a salvação da ‘alma imortal’ tem sido às vezes um lugar-comum na pregação, mas isso é fundamentalmente antibíblico. A antropologia bíblica não é dualista, e sim monista: o ser humano consiste na totalidade integrada de corpo e alma, e a Bíblia jamais contempla a existência desencarnada da alma em gozo.” – p. 518.

“ALMA. A tradução usual do Heb. nepeš e Gk. psychḗ (embora a maioria das traduções mantenham considerável liberdade em suas versões destes termos). Assim como outros termos, tais como ‘corpo’, ‘coração’ e ‘espírito’, ‘alma’ não designa uma parte de um ser humano, e sim a pessoa inteira considerada de um aspecto particular de seu funcionamento. Como tal, ela representa primariamente a força vital do corpo (Gênesis 2:7) ou a vida interior da pessoa, abrangendo desejos e emoções”. – p. 964.

Caso semelhante à obra anterior. A explicação semântica sobre o hebraico nefesh (alma) não anula o entendimento que o povo de Deus sempre teve que a pessoa continua viva depois da morte, ainda que numa situação rebaixada, no caso da concepção hebraica. Por isso, esse mesmo dicionário também disse que Jesus ensinou sobre o estado intermediário, que os mártires cristãos estão no céu, que o falecido profeta Samuel apareceu para Saul, que o Seol é um lugar distante e profundo habitado por espíritos sombrios (dos mortos) e que há regiões infernais nas quais os anjos rebeldes foram confinados.

29) New Dictionary of Theology:

“Gen. 2:7 faz referência a Deus formando Adão ‘do pó da terra’, e soprando ‘em suas narinas o fôlego da vida’, para que o homem se tornasse um ‘ser vivente’. A palavra ‘ser’ traduz a palavra hebraica nep̄eš que, embora seja muitas vezes traduzida pela palavra inglesa ‘alma’, não deve ser interpretada no sentido sugerido pelo pensamento helenístico (veja Platonismo; Alma, Origem da). Ela deve, em vez disso, ser entendida no seu contexto próprio no âmbito da AT como indicativa de homens e mulheres como seres ou pessoas vivas em relação a Deus e a outras pessoas. A LXX traduz esta palavra hebraica nep̄eš pela palavra grega psychē, o que explica o hábito de interpretar este conceito do AT à luz do uso grego de psychē. Porém, é certamente mais apropriado entender o uso de psychē (tanto na LXX como no NT), em função do uso de nep̄eš no AT. Segundo Gen. 2, qualquer concepção da alma como uma parte ou divisão separada (e separável) de nosso ser parece ser inválida. Da mesma forma, o debate popular sobre se a natureza humana é um ser bipartido ou tripartido parece ser de uma irrelevância muito mal fundamentada e inútil. A pessoa humana é uma ‘alma’ em virtude de ser um ‘corpo’ que se tornou vivo pelo ‘sopro’ (ou ‘Espírito’) de Deus”. – pp. 28, 29.

Novamente, explicação correta sob determinado enfoque, porém irrelevante para o que interessa aqui. Isto porque os autores dessa obra sabem perfeitamente que não existe aniquilacionismo. Por isso disseram também que o Novo Testamento afirma que a alma de Jesus desceu para o Hades depois da morte e que durante o estado intermediário os descrentes passam por angústias nesse mesmo lugar.

30) The True Image – The Origin and Destiny of Man in Christ:

“O que pode ser deduzido da revelação bíblica?... Foi por sua rebelião contra seu Criador que ele passou de um relacionamento positivo para um negativo e trouxe a maldição sobre si mesmo. Sua morte, que é a conta dessa maldição, é também a evidência de que o homem não é inerentemente imortal. Afirmar que só a alma humana é inatamente imortal é manter uma posição que não é aprovada em parte alguma no ensino das Escrituras, pois, no âmbito bíblico, a natureza humana é sempre vista como integralmente composta tanto do espiritual quanto do corporal. Se não fosse assim, toda a doutrina da encarnação e da morte e ressurreição do Filho seria despojada de significado e realidade. O homem é essencialmente uma entidade corpóreo-espiritual. A advertência de Deus no princípio, a respeito da árvore proibida: ‘No dia em que dela comerás, morrerás’, foi dirigida ao homem como uma criatura corporal e espiritual – se comesse dela, como tal ele morreria. Não há qualquer sugestão de que uma parte dele era imortal e, portanto, que sua morte só seria em parte. Concordemente, a imortalidade com a qual o cristão é assegurado, não é inerente nele mesmo ou em sua alma, mas é concedida por Deus e é a imortalidade da pessoa inteira na plenitude de sua humanidade, tanto corporal quanto espiritual. – p. 400.

Aqui já é aquela outra abordagem relacionada à doutrina grega, que não é ensinada na Bíblia. A obra não está dizendo que não existe uma alma que sobrevive à morte. O que ela está explicando é que a alma que sobrevive não tem as características preconizadas pelos filósofos gregos. Por isso esse mesmo livro contém a seguinte afirmação:

“Temos argumentado que a sobrevivência da pessoa, ou da alma, no estado intermediário entre a morte e a ressurreição, não implica necessariamente na sua sobrevivência eterna”.

Ou seja, a alma fica viva depois da morte do corpo, porém Deus poderá um dia erradicá-la da existência (Mateus 10:28). Embora este entendimento difira da crença predominante da antiga igreja de que toda alma ficará viva para sempre, quer o destino dela seja o céu ou a Geena (inferno), e que por isso o autor dessa obra poderia até ser classificado como aniquilacionista por defender tal ponto de vista, assim como fizeram com Arnóbio de Sica nos tempos antigos, o ponto importante aqui é que o referido autor está defendendo a sobrevivência continuada da alma depois da morte.

31) Word Biblical Commentary – Ecclesiastes:

“A nota de morte continua. O processo aqui descrito é o inverso de Gen 2:7. O fim da vida é a dissolução (não aniquilação, os israelitas nunca especularam sobre como o ‘eu’ estava no Seol, veja Ecle. 9:10). Os seres humanos retornam ao pó (Gen. 3:19) de onde vieram, enquanto o fôlego da vida dado por Deus retorna ao seu possuidor original. Este é um quadro de dissolução, não de imortalidade, como se houvesse um reditus animae ad Deum, ‘o retorno da alma a Deus’. Não há discussão alguma sobre ‘alma’ aqui, e sim sobre fôlego de vida, uma categoria totalmente diferente de pensamento. Portanto, não há razão para negar a autoria deste versículo a Coheleth [o autor do Eclesiastes]. K. Galling, A. Lauha e outros argumentaram que ele deve pertencer a um glosador [comentarista] porque contradiz o versículo 3:21, onde Coheleth nega a afirmação de que o רוּחַ rûah humano sobe em contraposição ao רוּחַ rûahi de animais. Mas, o contexto de 3:21 é polêmico. Alguns afirmam que há uma diferença entre o fôlego de vida dos seres humanos e o dos animais; a pergunta de Coheleth (‘quem sabe?’) nega qualquer diferença qualitativa. Mas ele certamente compartilha com o resto do AT que Deus é o dono e doador da vida, isto é, o fôlego de vida (Sal. 104:29-30, Jó 33:4; 34:15, veja também Sir 40:11b, Texto hebraico).” – p. 120, sobre Eclesiastes 12:7.

Como foi visto na seção 2, o autor do livro acima não sustenta o aniquilacionismo. Ele apenas expõe o assunto do ponto de vista dos que escreveram Eclesiastes, que é uma peça literária peculiar, típica dos povos semíticos, que ressalta e amplia o pessimismo que hebreus, babilônios e outros tinham sobre a morte. Embora o autor do MB não tenha feito uma análise mais detalhada do livro, conforme está apresentado na referida seção, o próprio trecho acima que ele selecionou já dá um indicativo do que estou dizendo aqui (veja o destaque em azul).

32) A Theology of the New Testament:

O conceito hebraico do homem é muito diferente do conceito grego. Não há qualquer vestígio de dualismo. A palavra hebraica para corpo ocorre apenas quatorze vezes no Antigo Testamento e jamais está em contraste com a alma (nephesh). Com mais frequência, a palavra para carne (basar) é usada para designar o corpo (23 vezes). Esta palavra carrega principalmente um significado físico... Jamais se visualiza vida incorpórea para a nephesh. A morte afligia a nephesh (Num. 23:10) bem como o corpo... nem nephesh nem ruach são concebidos como uma parte do homem capaz de sobreviver à morte do basar. Ambos designam o homem como um todo visto de diferentes perspectivas”. – pp. 499-501.

Visto com a lente do platonismo tudo o que está dito acima é essencialmente correto. Mesmo assim as mesmas pessoas que nutriam tais conceitos “materialistas” também acreditavam que seus espíritos iriam para outro mundo chamado Seol, porém chamavam esses espíritos de “sombras”. Esta é a razão porque essa mesma obra diz que “a existência humana não termina com a morte” e que ‘Jesus afirmou claramente que o espírito do malfeitor arrependido na cruz estaria no Paraíso naquele mesmo dia’. Sim, a alma pode ser mandada tanto para o céu quanto para qualquer outro lugar que Deus determine.

33) Enciclopédia Mirador:

“No neoplatonismo, a alma é por natureza imortal, mesmo que tenha sido criada, isto é, não tenha tido preexistência desde a eternidade. Essa concepção dualista, característica do pensamento grego desde Homero, quando não se cogitava, ainda, de nenhuma distinção metafísica ou teológica, contrasta com a doutrina ensinada pelos profetas hebreus, como W. Robinson sintetizou: ‘a personalidade humana era um corpo animado e não uma alma encarnada.’ A influência do platonismo sobre o pensamento cristão dos primeiros séculos, foi, porém, muito forte, e predominou sobre a influência hebraica, prevalecendo na teologia cristã ao longo dos tempos. A patrística foi quase totalmente dominada pela síntese platônica que, afinal, se tornou parte integrante da doutrina e prática, pregação e liturgia, bem como da hinologia cristãs… O pensamento bíblico não oferece nenhuma base para uma concepção tricotômica ou dicotômica do homem. Na Bíblia, a alma não corresponde a uma parte do ser humano, mas ao homem em sua manifestação de ser vivo... nas Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento, o homem é concebido como uma unidade de tal natureza que, dependendo do ponto de vista pelo qual é ele considerado, tanto pode ser chamado soma (corpo), como psyche (alma) ou sarx (carne) ou pneuma (espírito), sendo que nenhum desses termos se refere jamais a uma só parte do homem, mas a este como um todo. – Volume 2, p. 404, verbete “Alma”.

“No judaísmo antigo é incerta a condição dos mortos no sheol (lugar obscuro, caverna situada por debaixo dos oceanos, fechada por portas |Jó 10,21; 26,5; 38|). Primitivamente, pensava-se que os mortos permaneciam para sempre separados de Deus, incapazes de louvá-lo. Mais tarde, admite-se que Deus pode libertar do sheol os justos; a morte seria finalmente vencida. Nos últimos livros do Antigo Testamento esboça-se a doutrina do juízo final e da ressurreição dos mortos. Uma vasta literatura apocalíptica se desenvolve a partir do século I a.C. Os livros de Enoc, o quarto livro de Esdras, a Assunção de Moisés apresentam alguma teoria apocalíptica no meio de um emaranhado de elucubrações fantásticas que influenciaram a primitiva literatura cristã e o islamismo”. – Volume 8, p. 4012, verbete “Escatologia”.

“... a expectativa não se irá restringir apenas à ressurreição de Davi (Ez 34, 23, 31), mas abrangerá todas as almas (Ez 37,1-14). Há, no entanto, certa reserva nos livros do Antigo Testamento, pelo menos até o aparecimento do movimento apocalíptico, quando as ideias de ressurreição se tornam exuberantes. Fala-se num juízo final com a pressuposição de que haveriam de voltar à vida tanto os bons como os ímpios. Foi nesse clima espiritual que surgiu o cristianismo. – Volume 18, pp. 9824, 9825, verbete “Ressurreição”.

Novamente, mais explicações semânticas e históricas que estão corretas sob determinado ângulo, mas que são completamente irrelevantes para repelir a crença de que existe uma alma que sobrevive à morte. Por isso essa mesma enciclopédia também disse que o Seol, para onde vão os mortos, é um lugar escuro abaixo dos próprios oceanos. Ou seja, não se refere a uma sepultura com um cadáver, e sim um mundo distante. Além disso, a Mirador também nos informa que o Cristianismo ampliou esse entendimento por afirmar claramente que a alma não morre e que haverá uma ressurreição corporal no juízo final e que depois disso uns irão para a vida eterna e outros para a condenação.

34) New Testament Theology:

“Depois de sua conversão, Paulo aceitou o relato da Igreja primitiva sobre o que havia acontecido com Jesus no Domingo de Páscoa e rapidamente incorporou isso à estrutura de sua teologia. Ele acreditava que quando Cristo deixou o túmulo, o corpo físico dele foi transformado em um corpo espiritual ou glorioso (Filipenses 3:21), assim como uma semente plantada no solo morre e recebe um corpo novo (1 Cor 15:36-38). Assim também o cristão deve passar por uma transformação futura. Em 1 Coríntios, isto é vislumbrado como ocorrendo de repente, ‘num momento, num abrir e fechar de olhos’ (1 Cor. 15:52). Um quadro ligeiramente diferente do processo surge na segunda carta, onde Paulo assegura aos seus leitores que a vida cristã é uma transfiguração constante na semelhança de Cristo. Esta metamorfose prossegue através de uma renovação diária da natureza interior, ainda que a aparência exterior esteja em declínio (2 Cor. 4:16). Alguns intérpretes modernos ficariam mais felizes se, nesse momento, Paulo tivesse afirmado que a casca externa é liberada e deixa o eu interior desimpedido da fraqueza dela. Mas o judeu não acreditava que os seres humanos consistem de uma alma imortal sepultada por algum tempo num corpo mortal. O que acontecia com o corpo acontecia com a pessoa. Se existe a vida eterna, então este humilde corpo de humilhação deve ser mudado como foi o de Cristo”. – p. 267.

Outra vez uma explicação correta, ao balancear a visão hebraica com a grega, porém irrelevante, pois essa obra informa também que “tanto os judeus quanto os cristãos têm uma crença bem estabelecida na vida após a morte”, e que por isso os fiéis estarão vivos com Cristo depois da morte. O livro também enfatizou que não devemos superestimar o antigo pessimismo hebraico sobre a morte, pois naquele tempo eles ainda não sabiam o que nós sabemos hoje.

35) What Do Jews Believe? – The Spiritual Foundations of Judaism:

“Na Torá não há qualquer ideia de corpo e alma como dois aspectos distintos e diferentes de um ser humano. Um homem ou uma mulher viva é visto como um ser orgânico unificado, descrito em hebraico como nefesh. Nefesh refere-se à vida humana em geral e ao caráter humano em particular... O ser humano é um ser monista ou unificado consistindo de uma natureza integrada. Não há qualquer noção na Bíblia de algum dualismo ou dupla natureza – tal como corpo e alma – no ser humano. A Bíblia não contém qualquer menção de uma alma separada”. – pp. 53, 54.

Mesmo caso de outros aqui analisados. O enfoque hebraico sobre a alma não anula a crença que se tinha antigamente da continuidade da existência. Por isso esse mesmo livro disse que o Seol fica nas profundezas da Terra e nele os espíritos dos mortos compartilham a infelicidade do lugar.

36) New Bible Dictionary:

“Uma instância específica do repúdio hebraico ao dualismo é a doutrina bíblica do homem. O pensamento grego e, em conseqüência, muitos sábios judeus e cristãos helenizantes, consideravam o corpo como uma prisão da alma: sōma sēma ‘o corpo é um túmulo’. O objetivo do sábio era conseguir a libertação de tudo o que é corporal e, dessa forma, libertar a alma. Mas, para a Bíblia o homem não é uma alma em um corpo, e sim uma unidade corpo/alma; tanto é que, mesmo na ressurreição, embora a carne e o sangue não possam herdar o reino de Deus, ainda teremos corpos (1 Cor. 15:35 em diante)”. – p. 284.

“Os gregos encaravam o corpo como um empecilho para a verdadeira vida e ansiavam pelo tempo em que a alma se libertaria de seus entraves. Eles tinham um conceito de vida após a morte em termos da imortalidade da alma.” – p. 1010.

E mesmo assim, conforme essa obra também observa, usualmente se considera que a nefesh (alma) é uma parte que se separa do corpo no momento da morte e que no Novo Testamento essa parte é chamada tanto de “alma” quanto de “espírito”, diferindo assim do que é visto na parte hebraica da Bíblia, que normalmente não equipara essas duas palavras. E a obra diz mais, que o Novo Testamento endossa o ensino do sofrimento eterno para os pecadores impenitentes e aqueles que não acreditam nisso se baseiam em premissas muito frágeis, que resultam de um exame deficiente dos textos bíblicos envolvidos.

37) “Christianity and The Survival of Creation”:

“O teste crucial provavelmente é Gênesis 2:7, que dá o processo pelo qual Adão foi criado... A fórmula dada em Gênesis 2:7 não é homem = corpo + alma; a fórmula lá é alma = pó + fôlego. Segundo este versículo, Deus não fez um corpo e colocou uma alma dentro ele, como uma carta dentro dum envelope. Ele formou o homem do pó; daí, por soprar seu fôlego nele, Ele fez o pó viver. O pó, formado como homem e feito viver, não incorporou uma alma, ele tornou-se uma alma. ‘Alma’ aqui refere-se a uma criatura completa. A humanidade é, assim, apresentada a nós, em Adão, não como uma criatura de duas partes distintas temporariamente coladas juntas, e sim como um mistério único”. – p. 253.

Ainda que tais explicações possam ser usadas para justificar o aniquilacionismo, não está claro se o autor delas realmente está defendendo tal ponto de vista, devido a outras coisas que ele disse e que estão destacadas na seção 2. Por exemplo, embora ele rechace o dualismo grego, ele disse que devemos nos considerar almas vivas e imortais. Obviamente, alma no sentido monista, sempre completa e não etérea. Por assumir tal visão o ser humano estaria mais apto a valorizar o mundo onde vive e contribuir para a preservação da natureza. Em suma, o enfoque do livro é ecológico e não teológico.

38) The Death of Death – Resurrection and Immortality in Jewish Thought:

“Por grande parte dos últimos dois milênios, o mundo ocidental, incluindo os judeus, tem caracterizado a morte como a separação entre a alma e o corpo. Este conceito deriva-se originalmente da filosofia grega, certamente de Platão e possivelmente da religião órfica de meados do sexto século [A.C.]... Por mais que este conceito de separação entre a alma e o corpo tenha se tornado parte da concepção do Judaísmo sobre a vida após a morte, ele não é, de modo algum, o conceito bíblico. A antropologia bíblica nada sabe deste perfil dualista da pessoa humana... A Bíblia, em contraste, retrata cada ser humano como uma entidade única, revestida em carne moldada do solo, que é animada ou vivificada por uma centelha ou impulso vital, chamado variadamente de ruah, nefesh, neshamah ou nishmat hayyim... A morte é entendida como o ‘sair’ do ruah, ou o semelhante ‘sair’ da nefesh (como em Gênesis 35:18), ou como Deus ‘tirar’ a nefesh (como em 1 Reis 19:4) ou o neshamah (como em Jó 34:14). É precisamente essa noção de que algo ‘sai’ do corpo na morte que permitiu à tradição posterior identificar esse ‘algo’ com a alma de Platão. Porém, no contexto bíblico, o que deixa a pessoa não é uma entidade distinta, e sim aquela centelha vivificante que inicialmente tinha dado vida à carne moldada do solo, em primeiro lugar. A chave para a compreensão de todos estes trechos é o relato da criação da pessoa humana em Gênesis 2:7... Identificar esse fôlego de vida com o que mais tarde seria chamado de ‘alma’ seria atribuir-lhe uma identidade distinta que incluiria a autoconsciência. Mas, simplesmente não existe nada disso nos textos bíblicos. Aqui, a referência é mais a uma centelha impessoal que, por fim, simplesmente se dissipa... a ideia de ressurreição evoluiu dentro de Israel como um desenvolvimento completamente natural de conceitos profundamente enraizados na religião bíblica desde o princípio. – pp. 75-77, 83, 84, 96, 97.

Visto que esse livro também afirmou que “as pessoas não se extinguem totalmente na morte” e que ‘existe uma dimensão extra que continua’ existindo, e o autor até usou um episódio bíblico para exemplificar isso, como devemos compreender os trechos acima? Se não for encontrado um meio termo para balancear tudo o que foi dito, o livro estará expondo um ponto de vista contraditório. Mesmo não sendo tão fácil enxergar nesse caso, a resposta do problema está no enfoque que o autor deu à semântica das palavras hebraicas em contraste com a filosofia grega, que é como comparar a água com o vinho. Embora um pouco de vinho seja benéfico (1 Timóteo 5:23), é claro que o mais importante é a água (João 4:14) [Analogia]. Ou seja, no que tange à linguagem do Antigo Testamento o hebreu não usava as palavras “almas”, “espíritos” e outras de feição metafísica do mesmo modo que os gregos. Mesmo assim os hebreus acreditavam que algo sobrevivia, porém se referiam a isso de outras maneiras. Por exemplo, já vimos que eles chamavam os espíritos no Seol de “sombras”.

Conforme vimos na seção 2, o autor desse livro responsabiliza a ‘incoerência interna’ da Bíblia hebraica por esse labirinto que é “preciso” percorrer para alguém chegar ao entendimento compartilhado por judeus e cristãos de que existe uma alma que sobrevive à morte, mesmo que não seja aquela nefesh do Antigo Testamento.

39) The Encyclopaedia of Judaism:

“Uma segunda doutrina da vida após a morte entra no Judaísmo não na própria Bíblia, mas no período intertestamental, isto é, do século I AC ao século I DC. Esta doutrina ensina que todo ser humano é um composto de duas entidades, um corpo material e uma alma não-material; que a alma é preexistente ao corpo e abandona o corpo na morte; que, embora o corpo se desintegre no túmulo, a alma, por sua própria natureza, é indestrutível; e que ela continua a existir por toda a eternidade. Nem sequer uma sugestão desse conceito dualista do ser humano aparece na Bíblia.” – Volume 1, pp. 200, 201.

“Ainda que estejamos cônscios do amplo e bem comum uso bíblico do termo ‘alma’, deve ficar claro para nós que as Escrituras não apresentam sequer uma teologia rudimentarmente desenvolvida da alma. A narrativa da criação é clara no sentido de que toda a vida se origina de Deus. Ainda assim, as Escrituras Hebraicas não oferecem qualquer compreensão específica da origem das almas individuais, de quando e como elas se agregam a organismos específicos, ou de sua existência potencial, à parte do corpo, após a morte. A razão para isso é que, conforme observamos no início, a Bíblia Hebraica não apresenta uma teoria da alma desenvolvida muito além do simples conceito de uma força associada com a respiração, portanto, uma força vital.” – Volume 3, p. 1343.

Por tratar-se de outra obra judaica escrita por quem acredita na imortalidade da alma, porém não abre mão da antiga visão hebraica sobre o homem, o livro apresenta as mesmas contradições aparentes que vimos na obra anterior. A diferença nesta é que é mais fácil concluir que ela não está ensinando o aniquilacionismo, pois ela disse em outro trecho que depois que o corpo morre “a alma sobrevive em uma ‘sala de espera neutra’, a bíblica ‘bolsa da vida’”. Por isso, os mortos continuam existindo no Seol e de maneira consciente. Para confirmar isso, o autor até menciona o caso do falecido profeta Samuel que voltou do mundo dos mortos para dar seu último parecer ao infiel rei Saul.

40) Baker Encyclopedia of Psychology and Counseling:

“A erudição moderna tem ressaltado o fato de que os conceitos hebraico e grego de alma não eram sinônimos. Embora a visão de mundo hebraica distinguisse a alma do corpo (como base material da vida), não havia qualquer questão sobre duas entidades separadas, independentes. Uma pessoa não tinha um corpo, mas era um corpo animado, uma unidade de vida que se manifestava em forma carnal – um organismo psicofísico (Buttrick, 1962). Embora os conceitos gregos da alma variassem amplamente, de acordo com a era específica e a escola filosófica, o pensamento grego frequentemente apresentava um conceito da alma como uma entidade separada do corpo. Até décadas recentes, a teologia cristã da alma tem refletido mais o pensamento grego (compartimentalizado) do que as ideias hebraicas (unificadoras).” – p. 1148.

Como vimos na segunda seção, o objetivo desse livro é discorrer sobre psicologia e não teologia. E não há elementos suficientes para dizer que o discurso monista que ele apresenta está realmente alinhado com o aniquilacionismo. Seria preciso ler a obra inteira para talvez determinar isso com segurança.

41) Eerdmans Dictionary of the Bible:

“Longe de se referir simplesmente a um aspecto de uma pessoa, ‘alma’ refere-se à pessoa integral. Assim, um cadáver é referido como uma ‘alma morta’, embora a palavra seja geralmente traduzida como ‘corpo morto’ (Lev. 21:11; Num. 6:6.). ‘Alma’ também pode se referir à própria vida de uma pessoa (1 Reis 19:4; Eze. 32:10). Com frequência ‘alma’ refere-se, por extensão, à pessoa integral”. –  p. 1245.

Ao contrário da obra anterior, o entendimento “imortalista” dos autores desse dicionário bíblico está exposto de forma total e reluzente, não obstante o breve discurso monista acima. Para constatar isso, basta ler os trechos que eu destaquei na seção 2.

42) Christ and the Future in New Testament History:

“O conceito platônico de que a pessoa essencial (alma/espírito) sobrevive à morte física tem sérias implicações para a cristologia de Lucas e para sua teologia da salvação na história. Para a cristologia isso encontra seu resultado lógico, por exemplo, em uma exegese gnóstica de Luc. 23:46: O homem terreno morreu, ‘mas o próprio [Jesus], entregando o espírito nas mãos do Pai, ascendeu ao Bom’. Para a escatologia isso representa uma platonização da esperança cristã, uma redenção do tempo e da matéria... Suponho que um dualismo antropológico entrou no pensamento da igreja patrística, principalmente com a grandiosa síntese do cristianismo e da filosofia grega feita por Clemente e Orígenes. Isto eclipsou a esperança cristã primitiva do retorno de Cristo e da ressurreição dos mortos. Mas não caracterizava o cristianismo do Novo Testamento, e só pode ser encontrado em Lucas se lermos os textos com lentes baseadas em Atenas, como fizeram aqueles pais cristãos... O hiato no seu ser individual entre a sua morte e a sua ressurreição no último dia desta era é, na sua consciência, um tique do relógio. Para eles, o grande e glorioso dia da Parousia de Cristo é só um momento no futuro. O ‘estado intermediário’ é só algo que os vivos experimentam com relação aos mortos, e não algo que os mortos experimentam em relação aos vivos ou a Cristo... Embora tenham muitas raízes e acessórios tradicionais, essas teologias têm, penso eu, deturpado seriamente a escatologia da Paulo da salvação na história. É porque Paulo considera o corpo como a pessoa e a pessoa como o corpo físico que ele insiste na ressurreição do corpo”. – pp. 127, 177, 178.

Esta é uma das poucas obras citadas pelo autor do MB que realmente advogam o aniquilacionismo, porém ela está repleta de problemas facilmente identificáveis. Caso não tenha lido ainda, considere as minhas observações sobre ela na seção 2.

43) Tyndale Bible Dictionary:

Não existe no AT qualquer sugestão da transmigração da alma como uma entidade imaterial, imortal. O homem é uma unidade de corpo e alma — termos que não descrevem tanto duas entidades separadas em uma pessoa, quanto descrevem uma pessoa a partir de diferentes pontos de vista. Assim, na descrição da criação do homem em Gênesis 2:7, a frase ‘uma alma vivente’ (KJV) é mais bem traduzida como ‘um ser vivente’.” – p. 1216.

Não há nenhum problema nessa explicação, se nos focarmos na antiga semântica hebraica e o contraste dela com o entendimento grego. Mas nada disso é empecilho para a crença na continuidade da existência depois da morte, conforme esse mesmo dicionário explica em outros verbetes.

44) Care for the Soul – Exploring the Intersection of Psychology & Theology:

“Surgiu um amplo consenso entre os eruditos bíblicos e teológicos de que o dualismo corpo-alma é uma ideia platônica, helenística que não é encontrada em parte alguma na Bíblia. A Bíblia, de capa a capa, promove o que eles chamam de ‘conceito hebraico da pessoa integral.’ G. C. Berkouwer escreve que o conceito bíblico é sempre holístico, que na Bíblia nunca se atribui à alma qualquer significado religioso especial. Werner Jaeger escreve que o dualismo corpo-alma é uma ideia bizarra que foi lida na Bíblia por pais da igreja mal orientados tais como Agostinho. Rudolf Bultmann escreve que Paulo usa a palavra sōma (corpo) para se referir à pessoa como um todo, o ser, de modo que não há uma alma e um corpo, mas o corpo é a coisa toda. Esta interpretação da antropologia paulina foi um tema em grande parte da erudição paulina posterior.” – pp. 107, 108.

A citação acima faz parte do capítulo do livro intitulado “O Conceito do Eu - em Defesa da Palavra Alma”, escrito por Jeffrey H. Boyd. Conforme visto na segunda seção, ao contrário do que o trecho pode deixar transparecer, o autor não estava defendendo tais opiniões. Ele apenas as mencionou e explicou em seguida porque acha que elas não têm fundamento. É tanto que no final do excerto ele diz que tudo isso não passa de uma interpretação que surgiu depois da época do apóstolo Paulo.

Provavelmente o autor do MB não notou que esse texto não está ensinando o monismo materialista sobre a alma. É fácil deduzir isto porque o trecho citado pelo “bereano” aparece em outros lugares da Internet exatamente como está acima, a exemplo da Wikipédia ou sites que defendem o mortalismo ou o ateísmo (se quiser conferir, quando estiver dentro de uma página, busque pelo título em inglês da obra com a ferramenta de localizar no navegador). Várias das citações apresentadas pelo autor do MB foram conseguidas dessa mesma maneira. Ele não foi diretamente nas obras ler o que elas dizem. Apenas coletou o que outras pessoas com opiniões similares à dele publicaram.

45) Encyclopædia Britannica:

Conforme foi visto na segunda seção, esta enciclopédia informa que na época dos antigos hebreus não havia o conceito de que a morte significa a extinção completa de quem morreu, pois todos os povos daquela época tinham a crença de que algo sobrevivia à morte. Foi somente no tempo do grego Epicuro que a ideia de aniquilação ganhou algum destaque. De modo que tal cenário antigo deve ser levado em consideração ao ler as demais informações da Enciclopédia Britânica sobre esse assunto.

“Os hebreus primitivos evidentemente tinham um conceito da alma, mas não a separavam do corpo, embora escritores judaicos posteriores tenham desenvolvido adicionalmente a ideia da alma. As referências do Antigo Testamento à alma estão relacionadas com o conceito de respiração e não estabelecem qualquer distinção entre a alma etérea e o corpo físico. Os conceitos cristãos de uma dicotomia corpo-alma originaram-se com os gregos da antiguidade e foram introduzidos na teologia cristã em uma data precoce por S. Gregório de Nyssa e por S. Agostinho... Assim como houve diferentes conceitos da relação entre a alma e o corpo, houve muitas ideias sobre quando a alma entra em existência e quando e se ela morre. As crenças dos gregos da antiguidade eram variadas e evoluíram ao longo do tempo. Pitágoras sustentava que a alma era de origem divina e existia antes e depois da morte. Platão e Sócrates também aceitaram a imortalidade da alma, enquanto Aristóteles considerava que apenas uma parte da alma, os noûs, ou o intelecto, tinham essa qualidade. Epicuro acreditava que tanto o corpo como a alma terminavam com a morte. Os primeiros filósofos cristãos adotaram o conceito grego da imortalidade da alma e o pensamento da alma como sendo criada por Deus e infundida no corpo no momento da concepção. – Edição digital, 2005, verbete “Alma”.

Quem não está bem familiarizado com esse tema poderá concluir ao ler a explicação acima que o conceito de uma alma que sobrevive à morte entrou no Cristianismo devido à filosofia grega, e somente no século IV. No entanto, não é isso o que a Britânica está realmente informando. O momento histórico a que ela se refere é quando autores cristãos aproveitaram elementos da filosofia grega e os incorporaram na teologia. Não se trata da simples crença de que a alma continua viva depois da morte. Tem muito mais coisa envolvida. E isso, de fato, só aconteceu depois do século III.

Todos os registros cristãos desde a escrita do Novo Testamento apresentam a realidade da vida imediata depois da morte. Obviamente, no caso bíblico os aniquilacionistas fazem de tudo para reinterpretar as passagens bíblicas que mencionam essa esperança e negar o que elas estão dizendo. E nas demais, as extrabíblicas, geralmente optam pela saída mais fácil de dizer que elas foram corrompidas pelo platonismo, com apenas algumas exceções. Afinal, é preciso construir um pano de fundo adequado para que a suposta corrupção pareça realista e tenha ocorrido de maneira gradual. Não haver evidências do aniquilacionismo fora no Novo Testamento é a morte dessa teoria. Infelizmente, porém (para os aniquilacionistas), mesmo as obras mais antigas, algumas contemporâneas dos apóstolos e escritas por seguidores deles, apresentam a mesma ideia de sobrevivência imediata após a morte. Mas sem linguagem da filosofia grega. Conforme venho sugerindo em outras partes deste trabalho, basta ler os dois textos abaixo para constatar isso:

O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?

A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?

“O registro arqueológico sugere que cada um dos vários elementos raciais que foram assimilados para formar a nação judaica trouxe para a nova comunidade os seus próprios costumes tribais, frequentemente baseados em crenças em uma vida após a morte... No Seol, os bons e os ímpios compartilhavam um destino comum, tanto quanto no mundo inferior babilônico. O lugar não evocava imagens de uma vida após a morte, pois nada acontecia ali. Ele era literalmente inconcebível, e era isso o que o tornava assustador: a morte era absolutamente definitiva, ainda que um tanto mal definida... O conceito de uma ressurreição dos mortos teve uma evolução mais concreta. Parece ter se originado durante o período helenístico do Judaísmo (século IV AC – século II DC). Isaías anunciou que os ‘mortos viverão, os seus corpos se levantarão’... O próprio Seol veio a ser departamentalizado. Segundo o Primeiro Livro de Enoque, uma obra não-canônica que se acredita ter sido escrita entre o século II AC e o século II DC, o Seol era composto de três divisões, às quais os mortos seriam designados de acordo com seus méritos morais. O verdadeiro Ge Hinnom (‘Vale de Hinom’), onde se disse que os israelitas primitivos sacrificaram seus filhos a Moloque (e no qual gerações bíblicas posteriores incineravam o lixo municipal de Jerusalém), foi transmutado na noção de Geena, um vasto campo projetado para torturar os ímpios pelo fogo. Isto foi um claro precursor das coisas que viriam – as versões cristã e islâmica do inferno. – Edição digital, 2005, verbete “Morte”.

Provavelmente o motivo do autor do MB ter citado o trecho acima é para explicar o inconveniente de haver ideias de vida após a morte no próprio Velho Testamento, a parte da Bíblia que, segundo toda essa gente que odeia o “imortalismo”, não teria tal conceito e estaria fundada apenas em conceitos monistas, integralistas e toda essa conversa que eles divulgam. A culpa do antigo cenário hebraico não ser bem assim seria a herança israelita de tempos mais primitivos, onde as referidas tribos tinham o conceito de vida no Além. Mas veja só que coisa. Em uma época tão adiantada quanto a que viveu o rei Saul, ele próprio resolveu procurar uma necromante para receber notícias do falecido profeta Samuel. Será então que Deus teria colocado no trono alguém que ainda tinha o conceito “tribal” de que existe uma alma espiritual e imorredoura no homem?

E tem mais. De acordo com o pensamento do autor do MB, o materialismo “cristão” é a crença mais refinada e correta sobre o que acontece na morte nessa evolução antropológica do antigo povo de Deus. Entretanto, à medida que o tempo passou, em vez do “imortalismo” ter sido abandonado ele foi ampliado, a ponto de Jesus incluir em seu ensino elementos tais como o sofrimento na Geena ardente e pessoas depois da morte serem levadas pelos anjos para o céu ou jogadas no inferno. E isso até o último dia de sua vida qual ser humano, pois na cruz ele prometeu o paraíso para o mesmo dia ao condenado que demonstrou uma fé de última hora (Lucas 23:43). Será mesmo que é tão difícil de perceber que existe algo errado com a teoria aniquilacionista, não importando por qual ângulo ela seja analisada?

“A concepção de morte na maioria das religiões está intimamente relacionada com a visão particular sobre a constituição da natureza humana... A partir dessa avaliação, seguia-se que a morte é o rompimento fatal da existência pessoal. Embora se julgasse que algum elemento constituinte da pessoa viva sobrevivesse a esta desintegração, isso não era considerado como a conservação do eu ou personalidade essencial. As consequências dessa avaliação da natureza humana podem ser vistas nas escatologias de muitas religiões. Os mesopotâmios, hebreus e gregos, por exemplo, pensavam que após a morte só um espectro sombrio descia para o reino dos mortos, onde existia miseravelmente no pó e na escuridão. Essa concepção do homem, por sua vez, significava que, onde a possibilidade de uma vida após a morte efetiva era prevista, como na antiga religião egípcia, judaísmo, zoroastrismo, cristianismo e islamismo, a ideia de uma reconstituição ou ressurreição do corpo também estava envolvida; pois isso era considerado essencial para restaurar o complexo psicofísico da personalidade. – Edição digital, 2005, verbete “Rituais Fúnebres”.

Este é o verbete onde a Britânica informa que nos tempos antigos não havia conceitos religiosos de extinção total depois da morte. Só por saber disso o autor do MB jamais deveria ter trazido para a sua coletânea de citações inadequadas o referido verbete. E nem precisa destrinchar o que foi apresentado, pois o próprio trecho contradiz o objetivo pretendido. Ou será que o autor do MB não entendeu nesse trecho que o indivíduo que vai para o Seol é um ser consciente, mesmo não sendo a “personalidade essencial” e que o mundo onde ficará é caótico e estranho? E o morador desse lugar não é a personalidade essencial justamente porque não é mais uma pessoa humana. Não respira, não tem sangue e nem faz mais nada do que fazia antes. Em outras palavras, é um espírito na escuridão! É tanto que a enciclopédia também apresenta nesse rol exemplificativo os mesopotâmios e os gregos. Será que só porque eles também acreditavam que os espíritos dos mortos não tinham a vitalidade humana eles não encaravam o mundo inferior tão real quanto o nosso? Veja abaixo dois exemplos sobre essa crença, um de Babilônia e outro da Grécia:

Ele [o deus Nergal] libertou Enkidu [do mundo subterrâneo] para falar [mais] uma vez com seus parentes e mostrou a Gilgamesh como descer a meio caminho do mundo dos mortos, [que fica] nas entranhas da terra. E a sombra de Enkidu levantou-se lentamente em direção dos vivos e de seus irmãos. Fraca e emocionada tentou abraçá-los, tentou falar, tentou e falhou ao tentar tudo, mas soluçou.

“Fale comigo, meu irmão”, sussurrou Gilgamesh. “Conte-me da morte e onde você está”.

“Não estou disposto para falar da morte”, respondeu Enkidu numa vagarosa resposta. “Mas se você desejar sentar um pouco, eu descreverei o lugar onde estou”.

Épico de GilgameshTabuleta XII, linha 80 em diante, colchetes acrescentados.

Alcançaram o prado coberto de asfódelos, onde se achavam reunidas as almas, imagens dos mortos. A alma de Aquiles Peleio em primeiro lugar encontraram, mais a de Pátroclo, e assim a do grande e impecável Antíloco, bem como a sombra de Ajaz, o maior, em beleza e estatura... Enquanto estavam reunidas à volta da sombra de Aquiles, aproximou-se-lhes a alma do filho de Atreu, Agamémnone, cheia de dor, pelas almas cercadas de quantos haviam no alto palácio do Egisto morrido e cumprido o destino.

Encontro de Aquiles e seus amigos no Hades, Odisseia, de Homero, capítulo XXIV.

Certamente o autor da epopeia babilônica não pretendeu dizer que Gilgamesh estava delirando e falando sozinho, ou que os espíritos dos mortos não eram reais, mesmo não tendo mais uma constituição humana e carnal como tinham antes. O mesmo ocorre no caso da obra de Homero. Ainda que a história seja ficção, ela reflete a crença na existência literal de espíritos dos mortos no mundo subterrâneo, também chamados de “sombras” ou “almas” (no caso dos gregos).

“A crença na ressurreição do corpo é geralmente associada com o cristianismo, por causa da doutrina da ressurreição de Cristo, mas também está associada ao judaísmo posterior... O antigo pensamento religioso do Oriente Médio forneceu um pano de fundo para a crença na ressurreição de um ser divino (por exemplo, o deus babilônico da vegetação Tamuz), mas a crença na ressurreição pessoal de seres humanos era desconhecida. No pensamento religioso greco-romano havia uma crença na imortalidade da alma, mas não na ressurreição do corpo. A ressurreição simbólica, ou renascimento do espírito, ocorreu nas religiões de mistério helenístico, como a religião da deusa Ísis, mas a ressurreição corpórea pós-morte não era reconhecida. – Edição digital, 2005, verbete “Ressurreição”.

O trecho acima nada diz de importante para o cerne do que está sendo discutido aqui. Além disso, ainda levanta uma nova questão. O autor do MB acha que a pessoa “ressuscitada” receberá um corpo espiritual semelhante aos anjos. No entanto, a ressurreição bíblica é física, assim como foi a de Jesus Cristo. Porém o corpo ressurreto será melhor e terá dupla natureza, pois também estará apto para viver no céu, transformando-se em espírito quando for para lá. Exatamente como aconteceu com Jesus. Mas, enfim, essa é outra história...

46) Grande Enciclopédia Barsa:

“A noção de alma como ‘sopro’, princípio ativo do corpo, acha-se em quase todos os povos e culturas... Definida como elemento vital e espiritual do ser humano, a alma foi sempre um dos problemas mais constantes da maior parte das religiões e filosofias de todos os tempos. Diversas manifestações religiosas encontraram nela seu interesse principal, como o animismo e o espiritismo, e também algumas correntes filosóficas, especialmente as originárias do platonismo, que defendia a imortalidade da alma e a metempsicose (transmigração das almas). O dualismo inerente à abordagem platônica é uma herança do orfismo e do pitagorismo: a alma pertence à esfera divina, ao mundo das idéias e das formas, confundindo-se com estas e sendo, por isso, eterna, imortal, indestrutível. ‘O corpo é a prisão da alma’... Para os profetas e pensadores hebreus, ‘a personalidade do homem era um corpo animado, não uma alma encarnada’, mas o platonismo chegou a exercer maior influência sobre os filósofos cristãos do que a tradição hebraica: a patrística foi quase totalmente dominada pela síntese platônica, que, com o tempo, se tornou parte da doutrina, da prática, da liturgia e da hinologia cristã... a alma é a vida humana de um ponto de vista individual, referindo-se a um sujeito consciente e voluntário. Nessa perspectiva, o teólogo suíço Karl Barth é ao mesmo tempo aristotélico e bíblico, quando afirma: ‘O homem é a alma de seu corpo, a alma racional guiando o organismo vegetativo e animal que está a seu serviço. Mas é um só e o mesmo ser, não dois domínios separados; trata-se sempre de um todo, do homem.’ Outro teólogo protestante, Rudolf Kittel, acentua igualmente a unidade da natureza humana. Essa é também a direção da teologia católica mais recente, quer em seu novo catecismo, quer na orientação divulgada pelo concílio ecumênico Vaticano II”. – Volume 1, pp. 266, 267.

Mesma combinação de argumentos já vista em outras obras: o monismo hebraico em contraste com os conceitos da filosofia grega relacionados à alma, bem como o aproveitamento de alguns elementos gregos por teólogos cristãos do século III em diante, conforme já vimos. No entanto, nenhuma dessas coisas contribuiu para a crença que os cristãos sempre tiveram de sobrevivência imediata após a morte. Por isso essa mesma enciclopédia diz que o Novo Testamento ensina sobre a punição dos ímpios na Geena (depois da morte), e que ele dá alguns indicativos de que a alma do cristão vai para o céu, embora este seja um ponto pouco evidenciado no Novo Testamento.

47) The Modern Theologians – An Introduction to Christian Theology Since 1918:

“Embora a ideia de uma alma imortal seja uma crença estabelecida para a maioria dos cristãos, ela não pode ser apoiada por textos bíblicos. Além disso, as imagens bíblicas da individualidade são corroboradas pela doutrina budista do não-eu. Em outras palavras, a doutrina budista do não-eu revela o significado da individualidade nos textos bíblicos — significados que são perdidos quando os textos bíblicos são lidos através das lentes de conceitos filosóficos gregos sobre a alma. – p. 693.

Como foi dito na seção 2, esta é outra obra que realmente pode ser usada para apoiar o intento dos aniquilacionistas. No entanto, ela apresenta pelo menos dois detalhes que diferem da crença deles. Por exemplo, a cópia completa de quem morreu é feita imediatamente depois da morte, de modo que a “pessoa” continua sempre em existência. Portanto, a “ressurreição” é particular e ocorre à medida que as pessoas vão morrendo.

48) Old Testament Theology:

“O que é a morte? A morte é o fim da vida. Ela não tem qualquer natureza positiva; é simplesmente a ausência de algo. Quando as pessoas morrem, elas não deixam de existir. Podemos vê-las em seu leito de morte depois que sua vida se foi, mas elas deixaram de ter vida... Ainda mais óbvio, ela significa um fim de minha própria atividade. Significa um fim da consciência. ‘Quem está entre os vivos tem esperança; até um cachorro vivo é melhor do que um leão morto! Pois os vivos sabem que morrerão, mas os mortos nada sabem; para eles não haverá mais recompensa, e já não se tem lembrança deles. Para eles o amor, o ódio e a inveja há muito desapareceram; nunca mais terão parte em nada do que acontece debaixo do sol.’ (Ecle. 9:4-6)... Nos dias de Qohelet [o autor do Eclesiastes], talvez houve pessoas que especularam que os seres humanos desfrutariam de uma vida melhor após a morte, o que não seria o caso dos animais. Qohelet assinala que não há qualquer evidência disso”. – pp. 639, 640, 644.

Como foi visto na obra nº 31, o livro de Eclesiastes enfatiza a natureza negativa da morte que os antigos povos semitas nutriam. O autor do livro acima está apenas reproduzindo a visão deprimente dos escritores desse livro bíblico. Isto não significa que a Bíblia ensina o aniquilacionismo. Por isso o autor disse que, juntamente com o céu, o Seol é uma das extremidades do universo, lugar que Eclesiastes reconhece a existência. E se os mortos vão para esse local distante, significa que não são seus corpos que são levados para lá, pois estes ficam nos cemitérios. Por isso essa obra nº 48 afirmou que o falecido profeta Samuel voltou temporariamente do Seol em seu encontro com Saul. Além do mais, a morte não exerce mais pleno domínio sobre os fiéis, pois Deus transmitiu vida a eles e não os deixa no mundo inferior.

49) Ancient Near Eastern…Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible:

“Até mesmo os teólogos modernos discutem se a pessoa humana é mais bem compreendida por tricotomia (corpo / alma / espírito), dicotomia (corpo / alma-espírito) ou unidade. O mundo antigo compartilhava de nossa preocupação pela compreensão da pessoa humana, mas encarava a pessoa de maneira bem diferente da nossa... A terminologia hebraica não corresponde à terminologia egípcia ou mesopotâmica em nada mais do que corresponde à dos idiomas modernos... Alguns, porém, argumentaram que o termo hebraico nephesh é equivalente ao acadiano eṭemmu. Os conceitos israelitas de basar (‘carne’), nephesh (frequentemente traduzido como ‘alma’ ou ‘eu’) e ruah (normalmente traduzido como ‘espírito’) não coincidem claramente nem como o modelo mesopotâmico nem com o egípcio.... O termo hebraico nephesh, apesar de sua tradução tradicional ‘alma’, jamais se refere ao que continua a existir após a morte, embora a nephesh parta quando se morre (Gen. 35:18). Sobre isso, H. W. Wolff observa que ‘o ser humano não tem [nephesh], mas é [nephesh], vive como [nephesh].’ Deus também é caracterizado por nephesh (por exemplo, Isaías 1:14). Embora tenha sido concedido a Adão quando Deus soprou nele (Gên. 2:7), isso não é um ‘parte’ do divino, mas apenas encontra a sua fonte lá... Os dados comparativos... não nos dão qualquer compreensão maior da antropologia metafísica israelita”. – pp. 210-214.

Por nem sempre haver uma correspondência etimológica entre as palavras hebraicas e babilônicas, o autor do MB concluiu erroneamente que não há equivalência entre conceitos religiosos referentes à morte. Porém, conforme foi visto na seção 2, o autor da obra acima informou que as crenças desses dois povos sobre o que acontece na morte eram semelhantes em alguns aspectos. Ambos achavam que os espíritos dos mortos (“sombras”) eram levados para o mundo subterrâneo. Veja o trecho da Epopeia de Gilgamesh, citado no comentário desta seção à obra nº 45.

50) Encyclopaedia Judaica – Second Edition:

“Embora os rabinos talmúdicos alegassem que há muitas alusões ao assunto na Bíblia (Sanh. 90b-91a), a primeira formulação bíblica explícita da doutrina da ressurreição dos mortos ocorre no livro de Daniel”. – Vol. 1, p. 441.

A ressurreição deve ser distinguida da crença em algum tipo de existência pessoal em outro reino após a morte (veja Vida Após a Morte) ou na imortalidade da alma. Uma doutrina importante da escatologia judaica juntamente com a do Messias, a crença na ressurreição é firmemente atestada desde o período dos Macabeus, ordenada como um artigo de fé na Míxena (Sanh 10:1) e incluída como a segunda bênção da Amidá e como o último dos 13 princípios da fé de Maimônides”. – Vol. 17, pp. 240, 241.

“Ao contrário dos deuses da Mesopotâmia e Canaã, por exemplo, Apsu, Tiamat, Baal e Mot, que, embora não pudessem sofrer uma morte natural, estavam sujeitos a uma violenta, o Deus de Israel é o Deus vivente (Ose. 2:1 Sal. 18:47). Seu senhorio se estende do céu até o Seol (Sal. 139:8, Jó 26:6); Ele mata e dá vida (1 Sam. 2:6, 1 Reis 17:17-22, 2 Reis 4:18-37); e Ele pode livrar seus fiéis do Seol (Sal. 16:10)... Na Bíblia, diz-se que duas pessoas deixaram este mundo de uma maneira especial: Enoque ‘foi tomado por Deus’ (Gên. 5:24) e Elias ‘foi levado ao céu em um redemoinho’ (2 Reis 2; compare com Sal. 49:16). O significado exato destas tradições não é claro... Contudo, em Daniel 12:2 a ressurreição para a vida eterna para alguns é inequivocamente predita. Foi só no período pós-bíblico que uma crença clara e firme na imortalidade da alma tomou o controle (por exemplo, Sab[edoria, um livro apócrifo] 3) e tornou-se um dos pilares da fé judaica e cristã.” – Vol. 19, pág. 35.

Conforme citado na seção 2, esta obra disse que havia na antiga nação de Israel claramente uma crença de sobrevivência depois da morte, porém numa forma etérea e sombria no Seol. Ou seja, não acreditavam na aniquilação total e isto não atrapalha em nada o ensino da ressurreição. Pelo contrário, o reforça, pois a pessoa continuar existindo, ainda que numa forma rebaixada, é a contrapartida necessária para trazê-la de volta à Terra em um corpo físico. Por exemplo, certamente um dos motivos porque os saduceus não acreditavam na ressurreição era porque eles duvidavam da existência dos espíritos dos mortos no Seol. – Atos 23:8.

51) A Hebrew and English Lexicon Without Points:

“Como um S[ubstantivo] tem sido suposto que נפש [nephesh] significa a parte espiritual do homem, ou o que comumente chamamos de sua alma: devo confessar por mim mesmo que não consigo encontrar qualquer trecho [bíblico] onde ele tenha indubitavelmente esse significado. Gen. 35:18. 1 Reis 17:21, 22 e Sal. 16:10, pareceriam os mais adequados a esta significação. Mas não poderia נפש [nephesh] nestes três trechos ser mais adequadamente traduzido por fôlego, e no último como uma estrutura respiratória ou animal?– 6ª Edição, 1811, pp. 459, 460 (p. 436 na edição de 1823).

Se eu fosse responder ao autor essa pergunta que ele fez no final da citação, eu diria convictamente “não”, pois é muito mais natural aceitar a literalidade desse versículo bíblico (vide meu comentário nesta seção à obra nº 13). De qualquer modo, esse erudito não foi taxativo nessa pergunta e a fez apenas como uma possibilidade. O que é coerente com o fato dele também ter dito que o Seol não é uma sepultura, mas sim o lugar invisível e distante que se aproxima do conceito grego de Hades, e que para lá vão as pessoas que morreram.

Novamente, a mesma lógica. Se o mundo dos mortos fica em outra parte diferente e não neste mundo, mas mesmo assim quem morre vai para lá, então significa que é algo invisível ou imaterial que faz essa viagem. Ou seja, parte para essa região desconhecida. Exatamente o que Gênesis 35:18 diz sobre a néfesh no momento da morte do corpo, referente ao deslocamento dela para outro lugar. Por que todo esse temor em admitir que neste caso a néfesh assume outra acepção diferente da usual? Se tal palavra tem vários significados na Bíblia, a exemplo de sangue ou pessoa, por que não teria também o sentido de alma espiritual? Até porque isso está implícito quando néfesh se refere ao “ego” ou o “eu” que diz: “Não deixarás a minha alma no Seol” / “Não me deixarás no Seol” (Salmo 16:10). Ou seja, não a deixará no lugar invisível, inacessível e distante, conforme a definição de Seol do dicionário acima.

Para saber o que foi citado de outras obras utilizadas pelo autor do MB consulte a seção 8.

 

5. TEXTOS BÍBLICOS COM A IDEIA IMPLÍCITA DA ALMA INVISÍVEL DO HOMEM

- Nesta seção as citações bíblicas são da Tradução do Novo Mundo (1986), menos nos textos com outra indicação.

- Os colchetes em todas as citações, inclusive as bíblicas, foram acrescentados.

O que vimos nas seções precedentes é um exemplo apoteótico de como alguém pode destruir a própria tese que defende. Isto porque as obras utilizadas não servem para apoiar o materialismo “cristão”, significando aqui a crença na inexistência completa depois da morte e na possibilidade de um dia Deus criar uma réplica perfeita de quem já morreu e fazê-la viver com as lembranças do falecido.

De qualquer maneira, não importaria muito se todas essas referências bibliográficas contradissessem o autor do MB se a própria Bíblia não fizesse o mesmo. Por isso, o objetivo agora é verificar biblicamente alguns pontos já mencionados, antes de retomar as citações. Ainda que elas já sejam em si uma prova de que não há suporte bíblico para o aniquilacionismo, é interessante fazermos nossa própria verificação. Se um dia o “bereano” se convencer que sua tentativa de buscar apoio de muitos autores foi realmente um desastre, não restará outra opção senão se apegar à opinião de que o importante é que o aniquilacionismo tem algum fundamento bíblico, por mínimo que seja. Mas será este o caso? Não mesmo! Veja nos subtópicos a seguir.

a) A alma imaterial

Analisando-se o assunto apenas pela leitura direta das Escrituras Sagradas não é tão difícil constatar que acontece a mesma implosão dos argumentos aniquilacionistas apresentados pelo autor do MB. A começar pelo uso inflexível que ele faz da palavra “alma”, à qual atribui apenas dois significados: pessoa e vida. Embora ele tenha se contradito um pouco neste ponto, pois em seus primeiros textos ele dizia que alma significa somente “pessoa”. Ele teve que ampliar o significado para conseguir explicar os vários textos onde tal termo ocorre, seja em hebraico (nefesh) ou em grego (psykhé). Entretanto, a gama de acepções dessas duas palavras é maior do que a teimosia do “bereano” reconhece. Para começar, leia os textos a seguir:

“Toda alma que comer qualquer sangue, esta alma terá de ser decepada do seu povo”. – Levítico 7:17.

“Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue”. – Levítico 17:14.

“Apenas toma a firme resolução de não comer o sangue, porque o sangue é a alma e não deves comer a alma junto com a carne”. – Deuteronômio 12:23.

“Almejei-te com a minha alma durante a noite; sim, com o meu espírito dentro de mim estou à procura de ti”. – Isaías 26:9.

“O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra.... Apenas a sua própria carne, enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele, continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 22.

“Então ele disse: ‘Por favor, fica de pé sobre mim e entrega-me definitivamente à morte, pois se apoderou de mim a cãibra, porque toda a minha alma está ainda em mim’. De modo que fiquei de pé sobre ele e o entreguei definitivamente à morte”. – 2 Samuel 1:9, 10.

“E o resultado foi que, enquanto a sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni; mas o seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18; veja também 1 Reis 17:21-24.

Nota-se na leitura dos textos acima que três “almas” distintas são mencionadas, quais sejam:

Alma 1: o homem (conf. Gen. 2:7), no caso aqui o israelita que foi proibido de comer sangue.

Alma 2: o sangue que existe dentro da carne, em especial a consumida pelo homem.

Alma 3: a invisível que fica no homem em sua vida breve, mas que depois da morte sai do corpo e vai para outro lugar, permanecendo em existência. Daqui a pouco veremos mais detalhes sobre ela.

As três almas estão interligadas e a vida da “alma 1” (o homem) depende simultaneamente da atuação das outras duas. Isto pode ser representado pela fórmula abaixo:

Homem = alma 2 (sangue) x alma 3 (espiritual)

Atribuindo-se na segunda parte da equação “1” para presença atuante e “0” para ausência definitiva, temos os seguintes resultados:

a) Se no corpo circula o sangue e a alma invisível está atuando no corpo, o homem está vivo:

Homem = 1 (sangue) x 1 (espiritual) = 1

b) Se o corpo perde todo o sangue, o homem morre:

Homem = 0 (sangue) x 1 (espiritual) = 0

c) Se a alma imaterial sai definitivamente do corpo, o homem também falece:

Homem = 1 (sangue) x 0 (espiritual) = 0

Portanto, a ausência da “alma 1” ou da “alma 2” faz a “alma vivente” chamada “homem” deixar de existir. Naturalmente, na situação “b”, quando ocorre o colapso do sistema circulatório, a “alma 3” em seguida também deixa o corpo permanentemente, e o que sobra é apenas um cadáver.

A terceira situação acima (“c”) é bem exemplificada no caso daquelas pessoas que têm morte cerebral. Embora o corpo continue funcionando, com o sangue circulando normalmente dentro da carne, a presença no corpo da “alma 2” não é suficiente para que a pessoa continue vivendo, pois a “alma 3” já não está mais presente ou atuando no corpo. O que nos traz agora ao segundo ponto importante, que está ligado apenas à “alma 3”, que é a alma que interessa aqui. Quando ela sai do corpo depois da morte, para onde ela vai?

b) A localização do Seol e sua relação com a alma invisível

A resposta a essa questão é um golpe fatal nas pretensões exegéticas de críticos a exemplo do autor do MB. E o motivo principal disto é o conceito correto de Seol, o mundo dos mortos, que equivale ao Hades dos gregos. Conforme diversas das obras citadas nas seções anteriores disseram, Seol é o nome que os hebreus davam a uma região que julgavam estar nas profundezas da Terra, para onde as pessoas desciam depois da morte. Essa distante localização do Seol foi mencionada em vários textos bíblicos, a exemplo desses a seguir:

“Eu te farei descer com os que estão na cova, ao povo de outrora, e te farei habitar a terra das profundezas”. – Ezequiel 26:20.

(Você conhece alguma cova de cemitério que dentro dela esteja todo um “povo de outrora”? Se existisse certamente seria uma cova bem grande...)

“Você já foi até as nascentes do mar, ou já passeou pelas obscuras profundezas do abismo? As portas da morte lhe foram mostradas? Você viu as portas das densas trevas?”. – Jó 38:16, 17, NVI.

(O Seol era tido como tão profundo que era retratado abaixo dos próprios oceanos: “Os mortos tremem de medo nas águas debaixo da terra”. – Jó 26:5, NTLH).

“E Jeová prosseguiu falando mais a Acaz, dizendo: ‘Pede para ti um sinal da parte de Jeová, teu Deus, fazendo-o tão profundo como o Seol ou fazendo-o tão alto como as regiões superiores’.”. – Isaías 7:10, 11.

“Acaso podes descobrir as coisas profundas de Deus, ou podes descobrir o próprio limite do Todo-poderoso? [A sabedoria dele] é mais alta do que o céu. Que podes tu conseguir? É mais profunda do que o Seol”. – Jó 11:7, 8.

(Se o Seol fosse uma mera sepultura, a comparação acima não faria sentido, pois alguns palmos debaixo do chão não representariam a imensidão da sabedoria de Deus).

O Seol é um lugar tão fisicamente inalcançável que só Deus sabe o que ocorre exatamente por lá:

“O SENHOR sabe o que acontece até mesmo no mundo dos mortos”. – Provérbios 15:11, NTLH.

Ao externar sua esperança de não ser deixado no Seol depois de sua morte, o salmista disse:

“Porque não deixarás a minha alma no Seol. Não permitirás que aquele que te é leal veja a cova”. – Salmos 16:10.

O que está de acordo com outros Salmos, a exemplo destes:

“De novo me farás reviver. Das profundezas da terra, de novo me levantarás”. – Salmo 71:20, PER.

“Porque a tua benevolência é grande para comigo e livraste a minha alma do Seol, do seu lugar mais baixo”. – Salmo 86:13.

Observação: no caso do segundo Salmo acima há um detalhe diferente, o salmista não estava se referindo à sua situação futura depois da morte, mas ao fato de naquele momento ter sido poupado dela. O que é irrelevante aqui, pois um dia ele acabou morrendo e indo mesmo para o Seol. Além do que ele também fez referência à profundidade do mundo dos mortos.

Uma das “soluções” encontradas pelos aniquilacionistas para contradizer a essência do que a Bíblia informa sobre o Seol é simbolizar os textos que o mencionam. Acham que eles são uma figura de linguagem para se referir à morte. De fato, em alguns momentos isso acontece e até obras de referência mencionam tal uso figurado. É o caso, por exemplo, quando o salmista agradece a Deus por ter sido livrado do Seol. É óbvio que ele está dizendo que se sentiu grato por não ter morrido (Salmo 86:13; compare com Provérbios 23:13 e 19:18). Porém esta é apenas uma aplicação do termo que não pode ser usada em outras situações, conforme foi exemplificado anteriormente. O que aconteceu com Corá e sua família após a fuga do Egito liderada por Moisés atesta que a profundidade mencionada na Bíblia sobre o Seol é realmente em sentido espacial e não algum tipo de simbolismo:

“E sucedeu que, assim que acabara de falar todas estas palavras, começou a partir-se o solo debaixo deles. E a terra passou a abrir a sua boca e a tragar tanto a eles como os da sua casa, e todo o gênero humano que pertencia a Corá, e todos os bens. Assim, tanto eles como todos os que lhes pertenciam desceram vivos ao Seol e a terra foi cobri-los, de modo que pereceram do meio da congregação”. – Números 16:28-34.

Perceba que o relato afirma que o Seol fica nas partes profundas do subsolo para onde o rebelde Corá e seus seguidores se precipitaram quando o chão se abriu, em um caso raro de pessoas que “foram” para o Seol sem passar antes pelo cemitério. Nem os pertences deles escaparam. Esse evento demonstra que na visão hebraica o Seol, além de profundo, é um amplo local de natureza coletiva. Naturalmente, em algum momento dessa “jornada” rumo às profundezas da Terra todos eles morreram e suas almas foram para o Seol pelo meio convencional da morte. As palavras relativas ao Seol dos que presenciaram a cena foram apenas um reflexo da crença que tinham sobre a localização física do mundo dos mortos. É claro que não teria como as referidas pessoas que foram tragadas pela terra irem para o Seol por tal fenda que se abriu sob seus pés. Porém esse acontecimento serve para ilustrar onde fica o Seol de acordo com a concepção israelita.

Ora, se o Seol era tido como uma parte inacessível nos compartimentos subterrâneos da Terra, e mesmo assim é dito que os mortos estão lá, então significa que não é o corpo físico que vai para tal região, pois ele é deixado muitos quilômetros acima, na superfície. Sendo assim o que vai para o Seol é algo imaterial, invisível ou espiritual. Portanto, a alma que o salmista diz que ficaria no Seol tem precisamente essa natureza não física! O que contradiz o argumento de alguns de que a alma que “abandona” o corpo depois da morte é simplesmente a vida, ainda que “alma”, às vezes, realmente apareça com tal acepção (ex.: Mt.16:25). A situação da morte cerebral, mencionada antes, também rechaça tal conclusão, pois o corpo continua vivo, porém a pessoa é considerada morta. De modo que as versões que traduzem “alma” por “vida” em Gênesis 35:18, sobre a morte de Raquel, não transmitem a ideia correta do texto, pois em tais Bíblias seria preciso entender o versículo de maneira figurada, já que a vida não sai do corpo, apenas deixa de existir. Talvez para evitar esse problema, muitas traduções omitiram completamente a palavra “alma” nesse texto e no lugar dela colocaram alguma frase que denota morte iminente. É o caso da Bíblia Vozes:

“Estando prestes a morrer, já agonizante, ela deu-lhe o nome de Benoni, mas o pai o chamou Benjamim”.

O que faz lembrar que outro fator sobre o qual é preciso estar atento é que não é necessário haver no texto a palavra “alma” para que o conceito dela esteja presente no argumento. Quando o salmista disse que Deus o traria das profundezas da Terra para o fazer viver novamente, qual ser humano, ele não usou tal palavra (Salmo 71:20). O mesmo ocorre em outros textos bíblicos, a exemplo de Jó:

“Quem dera que me escondesses no Seol, que me mantivesses secreto até que a tua ira recuasse, que me fixasses um limite de tempo e te lembrasses de mim! Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, até vir a minha substituição. Tu chamarás e eu mesmo te responderei”. – Jó 14:13-15.

O “me” e o “eu” do texto acima é precisamente essa alma que não seria deixada no Seol, ainda que não seja a “alma vivente” de corpo físico que antes vivia na Terra. Isso combina com o fato de algumas traduções da Bíblia omitirem a palavra “alma” em diversos textos, deixando a leitura de acordo com a linguagem moderna, como é o caso de um dos salmos supracitados:

“Porque não me abandonarás na morada dos mortos, nem deixarás teu fiel ver o fosso”. – Salmo 16:10, BEV.

Veja que o “me” da versão acima entrou no lugar da expressão original “minha alma”. Logo, são usos equivalentes dentro da maneira hebraica de pensar. O que nos remete à esperança cristã de vida imediata depois da morte, expressa da seguinte maneira:

“É justo despertar-vos com as minhas admoestações, enquanto [eu] estou nesta tenda* terrena, sabendo que em breve hei de despojar-me dela. . . Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, BJ.

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e [eu] ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, BJ.

O “eu” dos versículos acima pode ser compreendido por “minha alma”. Ou seja: ‘enquanto minha alma estiver nesta tenda’ e ‘o desejo da minha alma é partir e estar com Cristo’. Sendo assim, vemos presente em tais versículos a mesma noção de uma alma que está no corpo, mas que se ausenta dele depois da morte. É por isso que a Zondervan Encyclopedia (citação nº 21) disse o seguinte:

“É impossível isolar a discussão sobre a psyche da compreensão do NT do estado intermediário e do estado final de todos os cristãos, que demandam uma ressurreição do corpo e uma reunião do corpo e da alma. A natureza do estado intermediário é sugerida na declaração de Jesus em Mateus 10.28, porém mais específica é 2 Coríntios 5.1-10, onde Paulo descreve o conflito espiritual dos cristãos sobre a possibilidade de permanecer ‘vestido’, porém separado de Cristo, ou estar espiritualmente ‘nu’, mas permanecer na presença de Cristo. Tanto Cristo, quanto Paulo, afirmam que a alma, o ego [o “eu”, self, em inglês], pode existir, e de fato existe, independentemente do corpo, embora não de uma maneira normal”.

* “Tenda”, ou “tabernáculo”, refere-se ao corpo físico, o que denota um estado temporário semelhante à cena comum que havia no mundo antigo de um residente forasteiro desfazendo sua barraca a fim de se mudar para outro lugar. Isso está de acordo com a palavra “partida” também usada por Pedro, que é a tradução do grego exodon, que significa “êxodo”. Ou seja, o apóstolo se referia a uma mudança de domicílio, tal como o Êxodo dos antigos hebreus, porém sem o corpo carnal (“tenda”), que seria deixado na Terra. A mesma palavra grega foi utilizada no episódio da transfiguração para se referir à partida de Cristo depois de sua morte e ressurreição.

Conforme visto em obras cristãs do século 2 em diante, os cristãos antigos mantiveram tal esperança de vida imediata depois da morte. Abaixo dois exemplos:

“[Os falecidos Inácio, Rufo e Zózimo] já estão no lugar que lhes é devido, junto ao Senhor”. – Carta aos Filipenses, Policarpo de Esmirna (69-155 d.C.).

“Estamos convencidos de que quando formos removidos da vida atual viveremos outra vida”. – Um Apelo aos Cristãos, Atenágoras de Atenas (133-190 d.C.).

Tanto Policarpo, que foi discípulo do apóstolo João, quanto Atenágoras disseram que a ressurreição para a vida eterna consistirá em juntar novamente a alma com o corpo (veja na seção 6). Sendo assim, aquele texto de Mateus que os aniquilacionistas menosprezam ou propõem interpretações mirabolantes realmente está dizendo aquilo que ele diz:

“Irmão entregará irmão à morte... não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:21, 28a.

Essa alma mencionada em Mateus é a “alma 3” da análise feita anteriormente, a alma que deixa o corpo depois que ele morre. E note que é justamente assim que o livro de Apocalipse descreve os cristãos que foram mortos por pessoas ímpias. Veja:

“Quando abriu o quinto selo, vi sob o altar as almas dos que haviam sido assassinados por causa da palavra de Deus e do testemunho que haviam dado. Gritavam com voz potente: Senhor santo e veraz, quando julgarás os habitantes da terra e vingarás nosso sangue?”. – Apocalipse 6:9, 10, PER.

“E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus”. – Apocalipse 20:4.

O autor do MB apresentou um excelente exemplo da complicação que é acreditar em uma existência imediata após a morte, porém se recusando a chamar de “alma” a parte do homem que continua viva. Trata-se do livro “A Teologia do Apóstolo Paulo” (citação nº 59), de Herman Ridderbos, que está comentado na seção 8. Lá você poderá constatar como Ridderbos se complica sem necessidade ao abordar o mesmíssimo texto de 2 Coríntios 5:1-10 explicado pela Zondervan Encyclopedia. Pior ainda faz o nosso autor “bereano”, pois além de não entender os textos bíblicos em questão, ainda faz uso inadequado de tais obras.

c) Mais textos que deixam subentendida a existência contínua

Veja a seguir outros textos que deixam implícita a existência consciente depois da morte, porém sem mencionar a “alma”:

“Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9.

“Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia”. – 1 Tessalonicenses 4:14, BJ.

(Veja uma consideração sobre o texto acima no meu comentário à citação nº 63).

“Mas agora [Abraão, Isaque, Jacó e outros] desejam uma pátria melhor, isto é, a celeste. Por isso Deus não se dedigna de chamar-se o Deus deles, porque lhes preparou uma cidade”. – Hebreus 11:16, AN.

(Estar o verbo no tempo presente indica que os personagens mencionados acima estão vivos, conforme diz o texto a seguir de Lucas. Embora seja exatamente assim que esteja no original, algumas Bíblias trazem o verbo no pretérito. Saiba o motivo disso lendo o capítulo 3 do meu livro “Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma”).

“Pois quando [Moisés] descreve como Deus lhe apareceu na sarça ardente, ele fala de Deus como ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó’. Ele não é Deus de mortos, mas de vivos, pois para ele todos vivem”. – Lucas 20: 37, 38, NBV.

(O que está de acordo com outra afirmação de Jesus: “Todo aquele que vive e crê em mim não morrerá jamais”. – João 11:26, TEB).

“Assim disse Jeová: ‘Ouve-se uma voz em Ramá, lamentação e choro amargo; Raquel chorando por seus filhos. Negou-se a ser consolada por causa dos seus filhos, porque eles já não existem.’ Assim disse Jeová [a Raquel]: ‘Retém a tua voz do choro e teus olhos das lágrimas, pois há uma recompensa pela tua atividade’, é a pronunciação de Jeová, ‘e certamente retornarão da terra do inimigo’. ‘E existe esperança para o teu futuro’, é a pronunciação de Jeová”. – Jeremias 31:15-17.

(O texto acima se refere ao cativeiro dos judeus, que causou sofrimento e morte aos descendentes de Raquel, que já estava morta há séculos).

“Disse-me, porém, o SENHOR: Ainda que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim, meu coração não se inclinaria para este povo; lança-os de diante de mim, e saiam”. – Jeremias 15:1, ARA.

(Moisés e Samuel já tinham morrido há muito tempo quando as palavras acima foram escritas).

“E depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus. Eu o verei com os meus próprios olhos; eu mesmo, e não outro!”. – Jó 19:26, 27, NVI.

(Devido a uma inconsistência no hebraico original, algumas Bíblias apresentam esse texto de Jó com sentidos diferentes do que foi apresentado acima. Ainda que esta versão seja a que está mais de acordo com o cenário bíblico, naturalmente, para evitar que mais um texto da Bíblia fique contra o aniquilacionismo, o autor do MB rejeitou essa versão em sua crítica, e optou por outra considerada possível. Para mais detalhes sobre esse versículo veja a nota da página 130 do meu outro livro, mencionado anteriormente).

Se dobre todo joelho dos no céu, e dos na terra, e dos debaixo do chão, e toda língua reconheça abertamente que Jesus Cristo é Senhor”. – Filipenses 2:10, 11.

Felizes os mortos que morrem em união com o Senhor”. – Apocalipse 14:13.

(Como se nota, os mortos podem não apenas demonstrar reverência pela autoridade de Jesus, mas também estarem felizes se estiverem em união com ele. A expressão “debaixo do chão” é uma referência direta ao Seol, conforme explicou Stewart Salmond, um dos eruditos citados pelo autor do MB. Realmente não faria sentido supor que um cadáver se ajoelharia e usaria sua língua para dizer alguma coisa, no caso dos que ainda têm algum aspecto físico, pois muitos já viraram pó).

“Jesus respondeu [ao malfeitor arrependido na cruz]: Eu afirmo a você que isto é verdade: hoje você estará comigo no paraíso”. – Lucas 23:43, NTLH.

(Para uma consideração a respeito da pontuação correta do texto acima de Lucas, leia o apêndice A7 do meu outro livro supramencionado).

d) A existência após a morte sob outros enfoques

Há outros textos que descrevem a existência depois da morte com a palavra “espírito”, que era usada na época apostólica de forma intercambiável com “alma”, como se fossem sinônimos:

“Tivemos como educadores nossos pais terrenos e lucramos disso um bom proveito, com mais razão não havemos de nos sujeitar ao pai dos espíritos e receber dele a vida?.... Mas vós vos aproximastes da montanha de Sião e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e das miríades de anjos em reunião festiva, e da assembleia dos primogênitos, cujos nomes estão inscritos nos céus, e de Deus, o juiz de todos e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:9, 22, 23, TEB.

“Com efeito, também Cristo morreu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de vos conduzir a Deus. Morto na carne, foi vivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão, a saber, aos que foram incrédulos outrora, nos dias de Noé, quando Deus, em sua longanimidade, contemporizava com eles, enquanto Noé construía a arca, na qual poucas pessoas, isto é, oito, foram salvas por meio da água”. – 1 Pedro 3:18, 19, BJ.

“Estas pessoas prestarão contas àquele que está pronto para julgar os viventes e os mortos. Com este objetivo se declararam as boas novas também aos mortos, para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:5, 6.

E ainda há os textos que retratam atividade consciente no Seol:

“Sob a terra, as sombras tremem, as águas e seus habitantes; o Xeol patenteia-se diante dele, e sem véu está o Abadon” – Jó 26:5,6, MD.

(Uma nota de rodapé da Bíblia acima diz sobre as sombras: “Trata-se dos mortos do Xeol”).

“O homem que se desvia do caminho da prudência, na assembleia das sombras repousará [Ou: “assembleia das almas”, conforme PER]”. – Provérbios 21:16, BJ.

“Nas profundezas, o Xeol se agita por causa de ti, para vir ao teu encontro; para receber-te despertou os mortos, todos os potentados da terra, fez erguerem-se dos seus tronos [no Xeol] todos os reis das nações”. – Isaías 14:9-11, 14, 15, BJ, texto sobre a morte do rei de Babilônia.

“Por que não passei a morrer desde a madre? Por que não saí do próprio ventre, expirando então?.... Pois agora eu já estaria deitado para ter sossego; então dormiria; estaria descansando com reis e conselheiros da terra, os que constroem para si lugares desolados, ou com príncipes que têm ouro, os que enchem as suas casas de prata”. – Jó 3:11, 13-15.

Despertai e cantai, vós os que habitais o pó, porque teu orvalho será orvalho luminoso, e a terra dará à luz sombras”. – Isaías 26:19, BJ.

“Os principais homens dos poderosos falarão do meio do Seol até mesmo a ele, com os seus ajudantes... E não se deitarão com os poderosos, caindo dentre os incircuncisos, que desceram ao Seol com as suas armas de guerra? ”. – Ezequiel 32:21, 22, 27, texto sobre a morte do rei do Egito e outros.

(Descansar também é uma atividade. O Seol, na visão hebraica, é uma terra escura e por isso seus habitantes são sonolentos, porém podem despertar quando bem querem. As descrições bíblicas também sugerem que, além dos que estão lá possuírem a aparência de seus anteriores corpos físicos, também estão com eles cópias dos objetos que antes utilizavam. Seria então uma reprodução sombria do cenário terrestre).

“O rico também morreu, e foi sepultado. No Seol, ergueu os olhos, estando em tormentos, e viu Abraão de longe, e Lázaro no seu seio [de Abraão]. Ele clamou e disse: ‘.... estou em angústia nestas chamas’.”. – Lucas 16:19-23, HNV.

e) Os dois eventos marcantes que atestam a continuidade depois da morte

Por fim, os dois relatos bíblicos que descrevem o encontro de seres humanos com pessoas que já morreram atestam que os mortos estão vivos em outro lugar, em especial os do povo de Deus, que são poupados das aflições do Seol. O mais emblemático deles sem dúvida é o episódio da transfiguração. Perceba a tamanha naturalidade dos apóstolos quando se depararam com Jesus conversando com Elias e Moisés numa cena reluzente e extraordinária:

“Jesus tomou a Pedro, e a Tiago, e a João, e os levou a sós a um alto monte.... Apareceu-lhes também Elias com Moisés, e estes estavam conversando com Jesus. E, como resposta, Pedro disse a Jesus: ‘Rabi, é excelente que estejamos aqui; armemos, pois, três tendas, uma para ti, e uma para Moisés, e uma para Elias’.”. – Marcos 9:2-5.

O relato paralelo de Lucas informa que o assunto sobre o qual conversavam era a morte de Jesus e seu retorno para o céu (Lucas 9:31). Por tratar-se de uma visão, provavelmente Moisés e Elias não estavam realmente ali, em sentido físico, por isso Jesus deu a entender que não fazia sentido a oferta dos apóstolos para que os dois passassem a noite em tendas. Uma visão pode ser a projeção em um local de imagens de pessoas ou objetos que estão, na verdade, em outro lugar. Temos em nossa casa um exemplo, ainda que não de natureza espiritual. A televisão. Através dela é possível ver pessoas que estão, por exemplo, do outro lado do mundo. E as televisões com recursos de teleconferência permitem não só que vejamos pessoas que estão em outra localidade distante, mas também que conversemos com elas. É claro que a visão da transfiguração deve ter sido algo muito mais realista. Mais perfeita que um holograma desses que vemos em filmes de ficção científica. Por isso os apóstolos não duvidaram da realidade tangível da cena. – Compare com Atos 10:1-8; 12:6-11; 16:9, 10; 18:9.

Mas, independentemente da técnica divina que proporcionou esse encontro, está muito evidente que em nenhum momento os apóstolos duvidaram que ali realmente estivessem Moisés e Elias. Será que um aniquilacionista teria essa mesma reação caso se deparasse com pessoas falecidas em roupas cintilantes querendo conversar sobre algum assunto? Certamente que não. Provavelmente acharia que o Diabo estava a lhe pregar uma peça, e sairia correndo desesperado.

O outro episódio que demonstra que os personagens bíblicos jamais acreditaram que a morte resulta na inexistência de quem morreu, mas sim que os mortos ficam apenas confinados em outro lugar inacessível, mas ainda conscientes, é o encontro do falecido profeta Samuel com o rei Saul, que é descrito na Bíblia da seguinte maneira:

“A mulher perguntou: ‘A quem devo evocar?’ Ele respondeu: ‘Evoca-me Samuel’. A mulher viu Samuel e deu um grande grito.... O rei lhe disse: ‘Não tenhas medo. Que é que viste?’ A mulher respondeu a Saul: ‘Eu vi um deus que subia da terra’. Disse-lhe então: ‘Que aparência tem ele?’ Ela respondeu: ‘É um velho que vem subindo. Está envolto num manto’. Saul reconheceu então que era Samuel. Inclinou-se com a face por terra e se prostrou. Samuel disse a Saul: ‘Por que me perturbaste, fazendo-me subir?”. – 1 Samuel 28:11-15, TEB.

Veja mais detalhes sobre o relato acima no apêndice C.

f) A possibilidade de sair do próprio do corpo e voltar

Uma situação excepcional é a alma sair temporariamente do próprio corpo e se fazer presente em outro lugar. A Bíblia dá a entender essa possibilidade, em referência a uma experiência pela qual passou o apóstolo Paulo, ao ser “arrebatado” para o terceiro céu, o paraíso de Deus. Mais uma vez Paulo... Justamente o apóstolo que em suas cartas mencionou por mais de uma vez o ausentar-se do corpo para ir estar com Cristo. Isto com certeza não é coincidência. Diz o relato:

“Conheço um homem em união com Cristo, o qual, há quatorze anos — quer no corpo, não sei, quer fora do corpo, não sei; Deus sabe — foi arrebatado como tal até o terceiro céu. Sim, conheço a tal homem — quer no corpo, quer à parte do corpo, não sei, Deus sabe — que foi arrebatado para o paraíso e ouviu palavras inefáveis, as quais não são lícitas ao homem falar”. – 2 Coríntios 12:2-4.

Se tal subida para o terceiro céu se deu fora do corpo físico de Paulo, que é o mais provável, obviamente foi sua parte espiritual que se desprendeu e foi para a realidade celeste. Se o apóstolo mencionou essa possibilidade é porque ele realmente acreditava nela, embora não fosse algo comum de acontecer. Além de tratar-se de uma informação incidental, não há na Bíblia nenhum esclarecimento sobre como esse fenômeno ocorre. Mas é razoável concluir que ele é uma realidade espiritual como tantas outras sobre as quais temos apenas uma vaga ideia. Algumas das visões que diversos profetas tiveram podem também ter acontecido dessa mesma maneira, a exemplo das que o apóstolo João teve ao escrever o livro de Apocalipse. Por exemplo, sobre uma dessas visões ele disse:

“Imediatamente, fui arrebatado em espírito; no céu havia um trono, e nesse trono estava sentado um Ser. E quem estava sentado assemelhava-se pelo aspecto a uma pedra de jaspe e de sardônica. Um halo, semelhante à esmeralda, nimbava o trono”. – Apocalipse 4:2,3; AM.

Algumas versões bíblicas dão a entender que o “espírito” mencionado acima é o Espírito Santo, o que significaria que João foi arrebatado ao céu pelo poder do Espírito (o que também é verdade). No entanto, entender que João estava se referindo ao próprio espírito é bastante natural. Neste caso, “espírito” toma emprestado o sentido de “alma”. Como já foi dito, na época do Novo Testamento era muito comum intercambiar essas duas palavras ao se referir à vida fora do corpo, como se elas significassem a mesma coisa. Embora a Bíblia faça distinção entre os dois termos, ela não explica exatamente porque eles são diferentes. Mas uma coisa é certa, ambos significam algo invisível dentro da natureza humana. (Leia mais sobre isso na seção 6).

Atualmente, experiências fora do corpo são bastante relatadas por quem estuda assuntos espiritualistas ou alega ter a capacidade de sair do corpo. Eles chamam esse fenômeno por vários nomes, a exemplo de “desdobramento” ou “viagem astral”. Segundo dizem, quando a alma se descola do corpo aparece um cordão energético, chamado “fio de prata”, que sai da testa do corpo e fica permanentemente ligado à nuca da alma. Se isto for mesmo verdade, explicaria então porque a alma pode se ausentar temporariamente do corpo e mesmo assim a pessoa humana continuar viva. A conexão entre o físico e o espiritual seria assim mantida quando a alma sai do corpo. Além disso, eles também dizem que todos nós saímos do corpo durante o sono, porém não nos recordamos disso, sendo que tais experiências podem se misturar com os próprios sonhos. Isto faz lembrar o que o profeta Daniel vivenciou enquanto dormia:

“No primeiro ano de Belsazar, rei de Babilônia, o próprio Daniel teve um sonho e visões da sua cabeça, sobre a sua cama. Naquele tempo ele anotou o próprio sonho. Fez o relato completo dos assuntos... ‘Eu estava observando até que se colocaram uns tronos e o Antigo de Dias se assentou. Sua vestimenta era branca como a neve e o cabelo de sua cabeça era como pura lã. Seu trono era chamas de fogo... Mil vezes mil lhe ministravam e dez mil vezes dez mil ficavam de pé logo diante dele. Assentou-se o Tribunal e abriram-se livros... Continuei observando nas visões da noite e eis que aconteceu que chegou com as nuvens dos céus alguém semelhante a um filho de homem; e ele obteve acesso ao Antigo de Dias, e fizeram-no chegar perto perante Este. E foi-lhe dado domínio, e dignidade, e um reino, para que todos os povos, grupos nacionais e línguas o servissem. Seu domínio é um domínio de duração indefinida, que não passará, e seu reino é um que não será arruinado”. – Daniel 1:1,9,11.

Alguém poderá dizer que essas coisas são exclusivas de videntes e profetas da Antiguidade (1 Sam. 9:9), porém dois textos de Jó parecem indicar que, afinal, tais fenômenos espirituais não acontecem apenas com um grupo seleto de pessoas, e muito menos restritos a uma distante época do passado:

“Em meio a sonhos perturbadores da noite, quando cai sono profundo sobre os homens, temor e tremor se apoderaram de mim e fizeram estremecer todos os meus ossos. Um espírito roçou o meu rosto, e os pêlos do meu corpo se arrepiaram. Ele parou, mas não pude identificá-lo. Um vulto se pôs diante dos meus olhos, e ouvi uma voz suave, que dizia: ‘Poderá algum mortal ser mais justo que Deus? Poderá algum homem ser mais puro que o seu Criador?’.”. – Jó 4:13-17, NTLH.

“Porque Deus fala uma vez e duas vezes — embora não se repare nisso — num sonho, numa visão da noite, quando profundo sono cai sobre os homens durante os cochilos sobre a cama”. – Jó 33:14,15.

Isto combina perfeitamente com o que Daniel passou, ainda que de maneira mais intensa e claramente profética, para fins de registro na Bíblia.

De qualquer maneira, quer tais eventos possam acontecer naturalmente ou apenas desencadeados pela atuação divina, ter a Bíblia os mencionado demonstra que a pessoa humana não está reduzida apenas a aspectos materiais e que existe uma parte espiritual que pode se conectar com outros mundos ou situações extrafísicas. O que vem apenas a reforçar que nossa natureza não é apenas material, mas também espiritual. Além disso, demonstra que a Bíblia não é um livro árido nesse tipo de assunto, conforme deseja o preconceito de algumas pessoas, especialmente os que abraçaram o materialismo “cristão”. – Compare com 1 Samuel 19:18-24.

g) Definitivamente a Bíblia não ensina o aniquilacionismo

Pelo que foi visto até aqui, está mais do que claro que a Bíblia não ensina o aniquilacionismo e é um ledo engano do autor do MB pensar o contrário. A Palavra de Deus indica que o homem possui uma alma que sobrevive à morte, pois essa ideia está implícita em diversos textos, a exemplo dos que foram aqui citados. É claro que o autor do MB lança mão de determinados argumentos “bíblicos” que podem até convencer os que desconhecem informações do tipo das apresentadas neste meu texto. No entanto, na maioria das vezes tais raciocínios não passam de distorções de alguns textos bíblicos ou de leituras que desconsideram o “contexto exegético” deles. Veja quais são alguns desses entendimentos errôneos na seção 5 do meu artigo “O que a Bíblia realmente ensina sobre a morte”.

Uma informação errada que foi recentemente apresentada está na citação nº 60, que traz a opinião de que um cadáver em uma sepultura pode ser chamado de “alma” porque ainda tem os traços característicos de uma pessoa, mas quando ele se decompõe a alma finalmente deixa de existir. Ao que parece esta foi uma tentativa do autor do MB de explicar porque a Bíblia diz que a alma fica no Seol depois da morte. Ou seja, é um ajuste na “exegese” que ele vinha apresentando de que o fim da vida é forçosamente o fim da alma. Com essa nova “explicação” essa lacuna foi preenchida... Veja a que ponto chega alguém que não quer aceitar determinadas passagens bíblicas da maneira que deveria. Justamente um suposto defensor das afirmações “positivas” da Bíblia. Leiamos novamente o quão positiva foi a esperança de ressurreição dos salmistas, e em que contexto espacial:

“Não deixarás a minha alma no Seol”. – Salmos 16:10.

Das profundezas da terra, de novo me levantarás”. – Salmo 71:20, PER.

O que está de acordo com aquilo que Jesus disse:

“Assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do enorme peixe, assim estará também o Filho do homem três dias e três noites no coração da terra”. – Mateus 12:40.

A enciclopédia bíblica das Testemunhas de Jeová informou que “no coração da terra” significa “no centro da terra”, ou seja, nas profundezas dela (Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 1, p. 556). Corpo algum de quem quer que seja jamais desceu para essa região e depois foi trazido de volta à superfície. Mas a alma de Jesus Cristo sim, que não só retornou, mas foi glorificada na ressurreição e em seguida ascendeu ao mais alto dos céus:

“(Que significa ‘subiu’, senão que desceu às profundezas da terra?) Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima dos céus para plenificar o universo”. – Efésios 4:10, PER.

Conforme visto na Enciclopédia Americana (citação nº 14) e na Enciclopédia do Judaísmo (citação nº 39), o céu e o Seol são os limites do universo hebreu, e Cristo foi o único que se fez presente em todo ele (Céu-Terra-Seol). – Compare com Eclesiástico 24:1-10 e Filipenses 2:10, 11.

O texto do Salmo 16:10 foi aplicado profeticamente à ressurreição de Jesus Cristo, porém o corpo de Jesus sequer foi enterrado (Atos 2:22-28). Ficou depositado em uma câmara mortuária chamada de sepulcro, que poderia estar acima do nível do solo ou um pouco abaixo. De uma forma ou de outra, o corpo dele não esteve na profundidade que a Bíblia informa que o Seol está. Isto não é possível nem mesmo em um sepultamento convencional, onde o morto é deixado debaixo da areia.

Portanto, não importa se o corpo de quem morre desaparece completamente ou venha a ser até mesmo incinerado, como acontece nas cremações. A alma do falecido descerá invariavelmente para o Seol / Hades, caso Deus não a leve para o céu. A esperança de ressurreição apresentada nos Salmos não está limitada nem ao tempo de decomposição da matéria, nem ao espaço referente a uma mera sepultura, que de profunda não tem nada, quando comparada ao mundo dos mortos.

Em complemento ao exame bíblico desta seção, também seria importante considerar como as informações que foram aqui apresentadas interagiram com outras em voga na época da igreja primitiva. Uma delas é a questão do dualismo alma-corpo, que frequentemente é objeto de críticas por parte daqueles que alegam não haver nenhuma substância espiritual no ser humano. A seção seguinte abordará esse ponto.

 

6. O REFLEXO DO DUALISMO CORPO-ALMA NA COMUNIDADE CRISTÃ PRIMITIVA

- Nesta seção as citações bíblicas são da Tradução do Novo Mundo (1986), exceto nos textos com outra indicação.

De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, dualismo refere-se a “qualquer sistema, doutrina ou teoria que admite a existência de dois princípios necessários, mas opostos”. Essa definição se adequa perfeitamente ao dualismo platônico corpo-alma, pois o mesmo diz que o homem precisa da alma e do corpo para viver, porém a alma se opõe ao corpo em natureza e desejo, e quer livrar-se dele o quanto antes (mais detalhes no apêndice A). Será que esse ponto de vista, ou algo parecido, está presente no Novo Testamento em relação à natureza formativa do homem?

a) A distinção cristã entre alma e corpo

Antes de responder a pergunta anterior, é apropriado relembrar alguns textos bíblicos que demonstram que corpo e alma são realmente elementos distintos. Embora isto seja admitido implicitamente em muitos dos textos que foram vistos na seção 5, em referência à alma “nº 3”, existem determinadas passagens bíblicas que são mais específicas, a quase totalidade delas no Novo Testamento. O controverso texto (para os aniquilacionistas) de Mateus 10:28 é um ótimo ponto de partida para essa análise, pois ele diz:

“O que eu vos digo na escuridão, dizei na luz; e o que ouvis sussurrado, pregai dos altos das casas. E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:27, 28.

Trazendo o que Jesus falou para a prática, quando ele disse que os homens podiam matar apenas o corpo, obviamente esse “corpo” é a pessoa viva que os assassinos julgariam ter matado, e que em seguida seria enterrado. Mas se em tal ato assassino a alma também não morria, então significa que ela é outra coisa distinta do corpo, que permanece viva de maneira permanente a menos que o próprio Deus ponha fim a ela, pois ele é o único com o poder necessário para isso. Portanto, em sentido restrito a alma é imortal. Esta ideia já estava implicitamente presente em toda história do povo hebreu, porém ao chegar à época do Novo Testamento se tornou mais explícita e definida, conforme demonstram os textos judaicos e cristãos abaixo:

“A vida dos justos está nas mãos de Deus, nenhum tormento os atingirá. Aos olhos dos insensatos pareceram mortos; sua partida foi tida como uma desgraça, sua viagem para longe de nós como um aniquilamento, mas eles estão em paz. Aos olhos humanos pareciam cumprir uma pena, mas sua esperança estava cheia de imortalidade”. – Sabedoria 3:1-4, BJ, c. 50 a.C. [ou séc. I, conf. outra estimativa].

“Pois sei que logo terei de deixar este corpo mortal, como o nosso Senhor Jesus Cristo me disse claramente. Portanto, farei tudo o que puder para que, depois da minha morte, vocês lembrem sempre dessas coisas.”. – 2 Pedro 1:13-15, NTLH, c. 64 d.C.

“Tão logo ele a convenceu através deste juramento que não havia motivo para temor, ele pediu que ela fizesse subir a alma de Samuel... a alma de Samuel perguntou a ele o motivo de tê-lo perturbado e o feito subir. . .”. – Antiguidades Judaicas 6:327, de Flávio Josefo, c. 94 d.C.

“E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus”. – Apocalipse 20:4, c. 96 d.C.

“A alma invisível é guardada pelo corpo visível... A alma imortal vive em uma tenda mortal, e os cristãos vivem quais residentes forasteiros em um mundo corruptível, buscando alcançar uma morada incorruptível nos céus”. – Matetes a Diogneto, cap. 6, c. 125 d.C.

(O escritor acima disse que foi discípulo dos apóstolos. Nota-se que ele compara o corpo a uma tenda, indicando assim que a vida no corpo mortal é provisória e que ela se transfere para outro lugar depois da morte).

“E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou”. – Justino, o Mártir, em Diálogo com Trifão, cap. 105, c. 153 d.C., colchetes acrescentados.

(Os relatos de Josefo e Justino são sobre o aparecimento do falecido profeta Samuel ao rei Saul).

“Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo”. – Policarpo de Esmirna, discípulo do apóstolo João, c. 155 d.C.

“A alma humana consiste em muitas partes, e não é simples; ela é composta, de modo a se manifestar através do corpo; pois nem ela poderia aparecer por si mesma sem o corpo, nem a carne ressuscitar sem a alma... O laço da carne é a alma. Onde a alma fica é a carne. Tal é a natureza da constituição do homem”. – Discurso aos Gregos, cap. 15, de Taciano, c. 160 d.C.

“Finalmente, também não é possível dizer alguma injustiça em relação ao próprio homem que ressuscita. Este, de fato, é constituído de alma e corpo, e não sofre injustiça nem na alma, nem no corpo. . . . esperamos também firmemente a permanência na incorrupção... quem nô-la garante de modo absolutamente infalível no desígnio de nosso Criador, segundo o qual fez o homem de alma imortal e de corpo, dotou-o de inteligência e lei ingênita para a sua salvação e para a guarda dos preceitos que ele lhe dera, convenientes com uma vida moderada e razoável”. – A Ressurreição dos Mortos, caps. 10 e 13, Atenágoras de Atenas, c. 180 d.C., tradução de Ivo Storniolo e Euclides M. Balancin..

“Porém, embora [o corpo] seja dissolvido no tempo determinado, por causa da desobediência primitiva, ele é colocado, por assim dizer, no cadinho da terra, para ser reformado novamente. Não como este corpo corruptível, mas puro, e não mais sujeito a decadência, de modo que a cada corpo sua própria alma será restaurada”. – Fragmento 12 de Irineu de Lyon, discípulo de Policarpo, c. 185 d.C.

Portanto, vemos que todos esses escritores concordaram com a realidade apresentada por Jesus de que a morte significa o fim do corpo, mas não da alma. Além disso, há outros textos que também fazem distinção entre alma e corpo:

“Parai de estar ansiosos pelas vossas almas, quanto a que haveis de comer ou quanto a que haveis de beber, ou pelos vossos corpos, quanto a que haveis de vestir. Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?” – Mateus 6:25.

“A terra de certo homem rico produziu bem... De modo que ele disse: ‘Farei o seguinte: Derrubarei os meus celeiros e construirei maiores, e ali ajuntarei todos os meus cereais e todas as minhas coisas boas; e direi à minha alma: “Alma, tens muitas coisas boas acumuladas para muitos anos; folga, come, bebe, regala-te.” ’ Mas Deus disse-lhe: ‘Desarrazoado, esta noite te reclamarão a tua alma. Quem terá então as coisas que armazenaste?’.”. – Lucas 12:13-21.

(A alma se compraz dos prazeres da vida através do corpo, sem ele os mesmos não podem ser aproveitados).

“Amado, oro para que em todas as coisas estejas prosperando e tenhas boa saúde, assim como a tua alma está prosperando”. – 3 João 2.

(Naturalmente, os votos de saúde desejados ao interlocutor referem-se ao corpo, que foi então comparado à prosperidade da alma).

“Até mesmo a minha carne residirá em esperança; porque não deixarás a minha alma no Hades”. – Atos 2:27.

(Carne é uma referência ao corpo que fica na sepultura, ao passo que a alma vai para o Hades. Esta é uma citação direta do Salmo 16:10, visto na seção 5).

“Um moço chamado Êutico, que estava sentado na janela, adormecendo profundamente enquanto Paulo prolongava mais o seu discurso, vencido pelo sono caiu do terceiro andar abaixo, e foi levantado morto. Descendo Paulo, debruçou-se sobre ele e, abraçando-o, disse: Não façais alvoroço; pois a sua alma está nele. Então subiu, partiu o pão e comeu, e falou-lhes largamente até o romper do dia; e assim se retirou”. – Atos 20:9-11, SBB.

(Conforme mencionado por Jesus em Mateus 10:28, a perda da vida é a morte do corpo, então quando Paulo disse que a alma de Êutico ainda estava nele, obviamente ele quis dizer “ainda está no corpo dele”).

De modo que está muito claro que o Novo Testamento realmente ensina que o homem é formado de alma e de corpo. Por isso os cristãos antigos seguiram essa linha de pensamento, como pode ser visto adicionalmente nos exemplos abaixo:

“Quem, então, é o homem que é tão fraco para evitar roubar, ou para evitar mentir, ou para evitar atos de devassidão, ou para evitar o ódio e a decepção? Mas não! Todas estas coisas estão sob o controle da mente do homem; e não dependem da força do corpo, mas da vontade da alma. Pois mesmo que um homem seja pobre, enfermo e velho, e incapacitado em seus membros, ele pode evitar fazer todas essas coisas”. – O livro das leis de vários países, de Bardesanes, c. 200 d.C.

“[Para Basilides] a salvação pertence somente à alma, pois o corpo é por natureza sujeito à corrupção”. – Contra as Heresias, Livro I, 24:5, de Irineu de Lyon, c. 180 d.C., colchetes acrescentados.

“O amor dos irmãos em Trôade vos saúda... Que o Senhor Jesus Cristo os honre, em quem eles esperam, em carne e alma, e fé, e amor, e concórdia! Despeço-me em Cristo Jesus, nossa esperança comum”. – Carta aos Filadelfianos, cap. 11, Inácio de Antioquia, c. 110 d.C.

(Inácio foi discípulo de Paulo e de Pedro. Ele também pode ter sido discípulo de João, juntamente com Policarpo, de quem era amigo).

“Os jovens também sejam irrepreensíveis em todas as coisas... que sejam apartados das concupiscências que há no mundo, porque ‘toda concupiscência guerreia contra o espírito’; e ‘nem os fornicadores, nem os efeminados, nem os que abusam de si mesmos com a humanidade, herdarão o reino de Deus’, nem aqueles que fazem as coisas inconsistentes e impróprias”. – Epístola aos Filipenses, cap. 5, Policarpo de Esmirna, c. 110 d.C.

“E olhemos firmemente para o Pai e Criador do universo, e nos unamos a Seus poderosos e extraordinariamente grandes dons e benefícios de paz. Contemplemo-lo com nosso entendimento e olhemos com os olhos de nossa alma para a Sua vontade longânime. Vamos refletir o quão livre da ira Ele é para com toda a Sua criação”. – Carta aos Coríntios, cap. 19, Clemente de Roma, c. 96 d.C.

Nota-se que Clemente faz referência não aos olhos físicos do corpo, mas a olhos espirituais, que podem contemplar as maravilhas de Deus de outra maneira. O que demonstra que existe uma alma imaterial dentro do corpo, que foi chamado por Inácio de “carne” (compare Romanos 6:6 com o 8:3, e veja adicionalmente Gálatas 5:24). Já Policarpo menciona a concupiscência, que é a satisfação exagerada de desejos sexuais, ou seja, atitudes próprias do corpo que se opõem ao espírito. O “espírito” aqui funciona como sinônimo de “alma”. O motivo disto será explicado mais adiante. E com respeito à informação dada por Irineu, ele acreditava que o homem é formado por corpo e alma, por isso mencionou os dois separadamente. Entretanto, a opinião de Basilides era uma heresia, visto que ele achava que a salvação é somente para a alma, quando sabemos que na ressurreição a salvação será para ambos, tanto a alma quanto o corpo. Por fim, Bardesanes diz que as ações do corpo são comandadas pela alma, ou pelo menos deveriam, indicando assim que corpo e alma são partes distintas do homem.

Curiosidade

“Portanto, se alguém de vós tiver falta de sabedoria, persista ele em pedi-la a Deus, pois ele dá generosamente a todos, e sem censurar; e ser-lhe-á dada. Mas, persista ele em pedir com fé, em nada duvidando, pois quem duvida é semelhante a uma onda do mar, impelida pelo vento e agitada. De fato, não suponha tal homem que há de receber algo de Jeová; ele é homem indeciso, instável em todos os seus caminhos”. – Tiago 1:5-8.

A palavra “indeciso” é a tradução de dípsykhos, que significa “de duas almas” em grego, uma crítica ante ao fato de que o homem tem apenas uma alma, e não duas. Quem é indeciso é como se tivesse dupla personalidade, ou duas almas.

Em textos traduzidos do grego há diversas palavras que carregam consigo a palavra “alma”, porém isso não aparece para o leitor, como é o caso da palavra “magnanimidade”, que significa literalmente “grandeza de alma” (megalopsykhía). O mesmo ocorre com a palavra émpsykha, normalmente traduzida por “ser vivo”, mas que significa literalmente “com a alma nele” ou “almado”.

b) O conflito entre o corpo e a alma

Mas o que dizer da oposição entre alma e corpo? Certamente ela também existe, conforme vemos nos textos bíblicos a seguir:

“Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11.

(Nota-se que as palavras acima de Pedro seguem a mesma linha de raciocínio vista carta de Policarpo aos Filipenses. “Desejos carnais” é uma referência à carne, ou corpo. Ver apêndice E).

“Quando quero fazer o que é direito, está presente em mim aquilo que é mau. Eu realmente me deleito na lei de Deus segundo o homem que sou no íntimo, mas observo em meus membros outra lei guerreando contra a lei da minha mente e levando-me cativo à lei do pecado que está nos meus membros”. – Romanos 7:21-25.

“Pois, nós sabemos que, se a nossa casa terrestre, esta tenda, se dissolver, havemos de ter um edifício da parte de Deus, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus. Pois gememos deveras nesta casa de moradia, desejando seriamente revestir-nos da nossa, provinda do céu, para que, revestindo-nos dela realmente, não sejamos achados nus. De fato, nós, os que estamos nesta tenda, gememos, acabrunhados; porque queremos, não despir-nos dela, mas revestir-nos da outra, para que aquilo que é mortal seja tragado pela vida”. – 2 Coríntios 5:1-5.

(Nos dois últimos textos supracitados, o “eu”, “nós” e “homem que sou no íntimo” referem-se à própria alma, conforme foi explicado na seção 5).

Aqui começam a surgir as diferenças em relação ao dualismo grego. Embora haja oposição entre a alma e o corpo, isto só acontece devido à pecaminosidade existente no corpo. Lembre-se também que na vida eterna, depois do julgamento final, o corpo do cristão será aperfeiçoado e transformado em um corpo glorioso. Mas enquanto isso não acontece o corpo está em luta constante contra a alma. Vemos na carta de Pedro que é o corpo que briga com a alma. Mesmo assim a alma não odeia o corpo. Deste modo, é o corpo que odeia a alma. Esta é uma diferença sutil, porém fundamental, pois o sentido do “ódio” é invertido quando comparamos com o dualismo platônico. Para os gregos é a alma que odeia o corpo, conforme está explicado no apêndice A. Logo, embora saibamos que nosso corpo nem sempre segue o que nossa mente deseja e com isso nos causa sofrimento, mesmo assim cuidamos bem dele e o amamos. Odiar o corpo não é um sentimento cristão, como está implícito nas palavras seguintes de Paulo:

“Nenhum homem jamais odiou a sua própria carne; mas ele a alimenta e acalenta, assim como também o Cristo faz com a congregação”. – Efésio 5:29.

Mas alguém poderá contestar essa visão lembrando que Paulo também disse que ‘surrava o corpo dele e o conduzia como escravo’ (1 Coríntios 9:27). Isto certamente é apenas uma metáfora para se referir à autodisciplina, pois, afinal, é preciso que a alma (o “eu”) assuma as rédeas da vida e não se entregue a todo e qualquer tipo de desejo errado para o qual o corpo a conduz. Paulo não estava pregando a autoflagelação e o rigor excessivo contra o corpo, pois senão ele estaria se contradizendo. O que ele disse em referência a determinado sistema religioso reforça tal visão equilibrada:

“Estas mesmas coisas [leis religiosas desnecessárias], deveras, têm aparência de sabedoria numa forma de adoração imposta a si próprio e em humildade [fingida], no tratamento severo do corpo; mas, não são de valor algum em combater a satisfação da carne”. – Colossenses 2:20-23, colchetes acrescentados.

Leia no apêndice E outros textos bíblicos que demonstram que no Novo Testamento “corpo” é sinônimo de “carne”, de modo que essas duas palavras podem ser utilizadas para se referir à parte física do homem que está em conflito com a espiritual.

Neste ponto já estamos aptos para responder a pergunta feita no início: o Novo Testamento ensina o dualismo corpo-alma? Incontestavelmente a resposta é sim! Porém não é o mesmo dualismo grego. É um dualismo moderado que leva em consideração o contexto geral da Bíblia, que diz que o homem é uma unidade formada por alma, corpo e espírito, e que os três só se separam devido à morte que surgiu por causa do pecado. Se o homem não tivesse se rebelado contra a ordem divina, jamais haveria a separação dos elementos constituintes do ser humano. (Veja uma abordagem detalhada sobre a rebelião no Éden lendo o texto “Onde ficava o Jardim do Éden?”). O que nos faz lembrar um último detalhe a ser ponderado: o espírito.

c) O enfoque tricotômico e a sinonímia entre as palavras “alma” e “espírito”

No dualismo onde a natureza carnal se opõe à natureza espiritual, na Bíblia esta última se desdobra em duas, a saber, alma e espírito. De modo que o homem não seria formado apenas por corpo e alma, mas por corpo, espírito e alma. Há duas passagens bíblicas que fazem alusão a essa formação tricotômica:

“Que em todo respeito sejam preservados sãos o espírito, e a alma, e o corpo de vós [irmãos], dum modo inculpe, na presença de nosso Senhor Jesus Cristo”. – 1 Tessalonicenses 2:10.

“A palavra de Deus é viva e exerce poder, e é mais afiada do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão da alma e do espírito, e das juntas e da sua medula, e é capaz de discernir os pensamentos e as intenções do coração”. – Hebreus 4:11, 12.

‘Juntas e medula’ é uma referência ao corpo. Várias explicações costumam ser dadas por teólogos para explicar o motivo de espírito ser algo diferente de alma, embora ambos tenham natureza espiritual. No entanto, visto que em toda a Bíblia há uma gama muito ampla de aplicações que são feitas desses termos, é difícil chegar a uma conclusão definitiva da diferença entre eles.

Se considerarmos apenas Gênesis 2:7 poder-se-á concluir que alma é apenas o ser humano com um corpo que é dotado de respiração (“espírito”). Se lermos outros textos que mencionam a morte ou a esperança de ressurreição, veremos que a alma é algo que desce para o Seol e o espírito alguma coisa que vai para o céu, retornando a Deus, o seu originador. Embora ainda se perceba em alguns desses versículos uma ligação com a descrição de Gênesis, vemos que os contornos desses termos já não são os mesmos do início da Bíblia. E ao chegar à época do Novo Testamento tais descrições ganham sentidos ainda mais inovadores, como é o caso de almas serem retratas em Apocalipse como estando no céu, embora o destino delas fosse antes o Hades ou Seol. Se a literatura judaica que antecedeu à escrita do Novo Testamento for considerada, aí é que vemos uma completa sinonímia no uso dos termos “alma” e “espírito”. O livro apócrifo de Enoque é um exemplo clássico:

“Naqueles dias os anjos descerão aos lugares de esconderijo, e reunirão em um lugar todos os que tem ajudado no crime.... Ai de vós, pecadores; pois com as palavras de vossas bocas, e com a obra de vossas mãos, tendes agido impiamente; na chama de um fogo ardente sereis queimados.... Quando suas almas descerem ao receptáculo dos mortos [o Seol], suas más obras se tornarão seu grande tormento.... e em chama que queimará até o grande julgamento”. – 1 Enoque 21:5; 99:1, 7; 103:4, 5, tradução de Elson C. Ferreira, de 2003, colchetes acrescentados.

“Então Rafael, um dos santos anjos que estava comigo, respondeu e disse: ‘Estes são os lugares deleitosos onde os espíritos, as almas dos mortos, serão reunidos.... Então inquiri de Rafael, o anjo que estava comigo, e disse: ‘Que espírito é aquele, cuja voz alcança o céu, e acusa?’ Ele respondeu, dizendo: ‘Este é o espírito de Abel o qual foi morto por Caim’. ”. – 1 Enoque 22:1-9.

Como se vê, os escritores naquele tempo não se preocuparam mais com o rigor antes visto na Bíblia Hebraica, no uso das palavras “alma” e “espírito”. O Novo Testamento seguiu parcialmente a mesma linha da literatura intertestamentária, conforme algumas das obras citadas pelo autor do MB disseram e também como a consideração da seção 5 demonstrou. Certamente um dos motivos porque “alma” e “espírito” passaram a ser sinônimos um do outro é porque ambos possuem natureza espiritual. O escritor cristão Taciano disse algo que toca nessa confluência:

“Reconhecemos duas variedades de espírito, uma das quais é chamada de alma, mas a outra é maior que a alma, uma imagem e semelhança de Deus: ambas existiam nos primeiros homens, que em certo sentido poderiam ser materiais, e em outro superior à matéria”. – Discurso aos Gregos, cap. 12, de Taciano.

Logo em seguida, no capítulo 13, Taciano diz que a origem do espírito é de cima, ao passo que a alma é de baixo. O que parece ser uma referência ao modelo criativo hebraico, cuja protodescrição está em Gênesis 2:7. Combinando a informação bíblica com o que disse Taciano, é possível chegar à conclusão que a alma é um ente imaterial criado em associação com algo de natureza celeste, que em seguida é posto dentro de um corpo, passando a se manifestar em sentido físico, ou seja, uma alma que passa a viver na Terra (“alma vivente”). Quando o pecado entrou no mundo, o corpo perdeu a perspectiva de existir continuamente, e com a morte dele a alma retorna para a realidade invisível.

Mas, enfim. O importante é saber que o homem é uma unidade formada por corpo, alma e espírito, seja lá quais forem as diferenças destes dois últimos, e que depois da ressurreição dos mortos esses três elementos jamais serão separados novamente uns dos outros. Não é nenhum absurdo, conforme querem os aniquilacionistas, dizer que o homem possui três partes constitutivas. E para simplificar o nosso discurso, não há problema em dizer que o homem é uma unidade formada por corpo e alma. O espírito está subentendido nessa divisão dicotômica, que é meramente didática e combina com o dualismo apresentado no Novo Testamento. Essas terminologias também não contradizem a unidade humana, e muito menos uma parte do homem continuar viva ao passo que seu corpo é provisoriamente descartado. A título de comparação, o corpo é formado de várias partes e mesmo assim é um só corpo. Se alguém perde, por exemplo, os membros inferiores é possível continuar vivendo, porém de uma maneira limitada. Algo semelhante acontece na morte, pois a existência continuada da alma possui limitações que só serão sanadas depois da ressurreição dos mortos.

d) Tentativas de contradizer o ensino cristão sobre a alma e o corpo

É claro que os aniquilacionistas, ao menos os que se arriscam em estudar um pouco mais este assunto, tentarão a todo custo dar outro entendimento aos textos bíblicos aqui citados, uma vez que é muito claro o dualismo que eles apresentam. O autor do MB reproduziu no site dele um texto que é bem representativo do materialismo “cristão” contra o dualismo bíblico. O texto já começa dando o veredicto sobre se o referido dualismo está presente ou não no Novo Testamento:

“De modo que a questão é: Até que ponto o sentido dualístico dessas importantes palavras gregas [alma, espírito, corpo e coração] se refletiu nos escritos do Novo Testamento? Surpreendentemente, conforme veremos neste capítulo, o sentido e o uso dualístico desses termos estão ausentes no Novo Testamento. Mesmo aquelas passagens que parecem ser dualísticas ao contrastarem a carne e o espírito, num exame mais atento revelam um entendimento holístico da natureza humana. A carne e o espírito não são colocados como duas partes distintas e opostas da natureza humana, e sim como dois diferentes tipos de estilo de vida: o centralizado no homem versus o centralizado em Deus”. – Imortalidade ou Ressurreição?, de Samuele Bacchiocchi, colchetes acrescentados.

Bem mais surpreendente é uma declaração como esta acima destacada. Se você leu o que foi apresentado até aqui, o que acha? Embora a alma e o corpo realmente conduzam a dois estilos de vida diferentes, isto só é assim porque também existem dois elementos diferentes envolvidos e que agem de maneira oposta ou antagônica. Se não fosse assim não haveria luta nem conflito, e seria apenas uma questão de escolha racional entre duas opções.

De qualquer maneira, o materialismo defendido pelos aniquilacionistas é a grande mola propulsora que empurra o andamento do referido texto de Samuele Bacchiocchi. Na prática, o argumento dele significa que não existe nada de verdadeiramente espiritual na constituição do homem, e que “alma” e “espírito” são meras figuras de linguagem para descrever comportamentos ou se referir a aspectos da vida humana. Afinal, se a pessoa é apenas uma máquina biológica em funcionamento, quando ela deixar de funcionar não existe nada dela que se transfira para outro lugar. É o fim total e imediato.

De modo que, na visão materialista, nenhum espírito de Jesus saiu realmente da cruz para o Pai, e muito menos sua alma foi deixada no Hades (o “coração da terra”) para ser retirada de lá “três” dias depois. A Bíblia seria então um mero romance com recursos estilísticos peculiares, a exemplo de chamar os mortos no Seol de “sombras”, que se percebem e são percebidas, de ameaçar os ímpios com os sofrimentos eternos da Geena ardente, ou dizer que as almas de cristãos assassinados estão no céu, ao lado do trono de Deus. Ter Jesus dito aos mártires em potencial exatamente isso, e com precisão dicotômica e cirúrgica, de que os homens matariam apenas os seus corpos e não suas almas, é algo de somenos importância, pois o cenário obrigatoriamente deve estar ‘ausente de dualismo’...

Mas o que realmente ocorre é que o texto Bacchiocchi contradiz o que os cristãos sempre acreditaram, conforme atesta indubitavelmente a historiografia cristã. Ele lança mão de interpretações particulares com esse intuito. A mais mirabolante delas é, sem dúvida, a que ele apresentou sobre Mateus 10:28, a respeito da preservação da alma depois da morte:

“Na discussão precedente vimos que Cristo ampliou o sentido da alma-psychê para denotar não somente a vida física, mas também a vida eterna ganha por aqueles que estão dispostos a assumir um compromisso sacrificial com ele. Se este texto for lido à luz do sentido ampliado dado por Cristo à alma, o significado da declaração será: ‘Não temais aqueles que podem trazer vossa existência terrena (corpo-soma) ao fim, mas não podem eliminar vossa vida eterna em Deus; e sim temais o Deus que é capaz de destruir vosso ser integral eternamente’.”

Neste caso, o que Jesus realmente queria dizer foi:

“Não temais os que matam a vida de vocês agora, mas não podem matar a vida eterna que um dia vocês vão receber. Antes temam Aquele que pode destruir tanto a vida atual quanto a vida eterna na Geena”.

Sugiro que leia esse texto de Mateus diretamente na Bíblia, inclusive os versículos circundantes, e teste sua capacidade cognitiva, para saber se você entenderá o que está acima. Se não entender, de duas uma. Ou o adventista Bacchiocchi tinha uma mente iluminada por Deus para descobrir que Jesus disse uma coisa, mas estava pensando em outra, ou então esse entendimento alternativo não têm absolutamente nada a ver com a realidade.

Eu apostaria na segunda hipótese. Até porque a primeira ocasiona problemas insolúveis, a exemplo de como conciliar com o fato de que a Geena eterna para a qual tanto a alma quanto o corpo podem ser mandados era acreditada como sendo bem real, tanto por Jesus quanto pelos discípulos. Pelo menos é isso o que os livros canônicos mostram. Ninguém antigamente achava que tal Geena era apenas um simbolismo. Mas na releitura acima este entendimento figurado é obrigatório, pois é a única maneira de entender como “a vida atual” e a “vida eterna futura” podem ser lançadas ambas dentro da “Geena”, ainda que o eventual condenado não tenha em nenhum momento a posse das duas coisas ao mesmo tempo, pois elas são mutuamente excludentes.

O outro problema é que a Bíblia diz que os injustos serão ressuscitados para receberem o castigo do “fogo eterno” (Geena). Portanto, um evento futuro. No entanto, na visão aniquilacionista quando morre uma pessoa completamente má e que voluntariamente rejeitou a Deus, ela já está simbolicamente na Geena. Ou seja, ficará na inexistência para sempre. Deste modo ela recebe o julgamento por antecipação e jamais será ressuscitada, contradizendo assim os textos que dizem que haverá uma ressurreição tanto de justos quanto de injustos:

“Muitos daqueles que dormem no pó da terra despertarão, uns para uma vida eterna, outros para a ignomínia, a infâmia eterna”. – Daniel 12:2, AM.

“Não fiquem admirados com isto, pois está chegando a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal ressuscitarão para serem condenados”. – João 5:28,29, NVI.

“Eu tenho esperança para com Deus, esperança que estes mesmos homens também alimentam, de que há de haver uma ressurreição tanto de justos como de injustos”. – Atos 24:15.

“Então ele dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Malditos, apartem-se de mim para o fogo eterno, preparado para o diabo e os seus anjos.... E estes irão para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna”. – Mateus 25:41, 46, NVI.

Tais advertências combinam com outra que foi dada pelo apóstolo Paulo:

“Haverá furor e ira, tribulação e aflição sobre a alma de cada homem que fizer o que é prejudicial, primeiro do judeu, e também do grego; mas glória, e honra, e paz para todo aquele que fizer o que é bom, primeiro para o judeu, e também para o grego. Pois, com Deus não há parcialidade”. – Romanos 2:8-11.

Alguns, a exemplo das Testemunhas “de” Jeová, tentam contornar esse problema por dizer que os ímpios que serão ressuscitados são os que nunca tiveram oportunidade de conhecer a Deus, deste modo terão a chance de obter a vida eterna. Mas isso também entra em conflito com a Bíblia, pois além dela não dar essa explicação, ela diz claramente nos textos acima que os injustos serão ressuscitados com o objetivo de serem condenados e não para terem uma oportunidade de salvação. O que demonstra que eles estão vivos em algum lugar, pois se a punição eterna fosse a inexistência e eles já não existissem, não faria sentido ressuscitá-los só para serem informados que seriam aniquilados novamente. Bastava que os deixassem do jeito que já estariam. Mas se eles forem que nem presos em uma cela (Hades), aguardando julgamento pelas grandes maldades que praticaram, as profecias supracitadas passam a ter mais sentido.

Alguém também poderá argumentar que se os iníquos já estão nas chamas do Hades também não faria sentido ressuscitá-los só para serem mandados de volta para o sofrimento. Mas o fato é que a Bíblia indica que será assim, independentemente dos motivos. De qualquer maneira, há o seguinte detalhe: aparentemente a punição que haverá depois do julgamento será pior que a anterior, pois Jesus disse que não será apenas a alma que será lançada na Geena, mas também o corpo (ressuscitado). Ou seja, as angústias serão impingidas ao “homem inteiro”, e não apenas à sua alma. Conforme disse a obra nº 1, citada pelo autor do MB, “o tormento que aguarda os perdidos terá elementos de sofrimento adaptados ao aspecto material, bem como à parte espiritual de nossa natureza”.

Também é importante mencionar que não existe um único escrito patrístico (obras cristãs do século 2 em diante) que apresente a interpretação de Bacchiocchi. Pelo contrário, conforme exemplificado anteriormente, sempre que esse tema vem à tona, os cristãos antigos dizem que a alma é distinta do corpo, que ela sobrevive à morte e que na ressurreição a alma é juntada novamente ao corpo. Havia apenas alguma divergência sobre se a alma pode ser chamada de imortal ou não. O motivo não é porque eles tivessem alguma dúvida de que a alma continua existindo, mas porque sabiam que essa continuidade não é o que os gregos chamavam de imortalidade da alma, conforme pode ser visto melhor no apêndice A. O escritor Taciano, o mesmo que disse que a alma tem natureza espiritual, resumiu a diferença entre a crença cristã e a grega da seguinte maneira:

“A alma não é em si mesma imortal, ó gregos, mas mortal. No entanto, é possível que ela não morra. Se, de fato, não conhece a verdade ela morre e se dissolve com o corpo, mas ressurge finalmente no fim do mundo com o corpo, recebendo a morte por castigo na imortalidade. Mas, novamente, se ela adquire o conhecimento de Deus, ela não morre, embora por algum tempo seja dissolvida... a alma não preserva o espírito, mas é preservada por ele... mas a alma ignorante é escuridão. Por isso, se continua solitária, vai para baixo em direção à matéria e morre com a carne; mas, se entra em união com o Espírito Divino, já não está desamparada, mas ascende às regiões para onde o Espírito a guia: porque a morada do espírito está acima, mas a origem da alma é de baixo”. – Discurso aos Gregos, cap. 13, de Taciano.

Nota-se implicitamente nas palavras de Taciano alusão ao conceito hebraico de morte, que dizia que o sepultamento do corpo é acompanhado da descida da pessoa para o Seol, porém na forma de uma “sombra” que continuaria sua existência na escuridão do mundo subterrâneo. Esta é a morte da alma de acordo com as antigas nações semíticas, inclusive a Assíria, onde Taciano nasceu. Em contraste com tal cenário, os cristãos, que receberam o penhor do Espírito, nutriram a expectativa de irem imediatamente para a presença de Cristo depois da morte, nas regiões celestiais. O que Taciano explicou acima parece ser uma descrição precisa dessas duas situações distintas e opostas, além de ter aludido aos ímpios que também serão ressuscitados para fins de julgamento eterno.

Justino, o mestre cristão de Taciano, também não achava correto que a alma fosse chamada de imortal, embora acreditasse que ela não morre, como deixou claro ao reconhecer a veracidade do episódio de Endor. Ao dar sua opinião sobre a ideia de imortalidade, Justino levou em consideração que para os gregos ser a alma imortal significa que ela não teve começo nem terá fim (o que está entre aspas simples é a fala do “homem velho”, com quem Justino estava falando):

“Há outros que, tendo suposto que a alma é imortal e imaterial, acreditam que, embora tenham cometido o mal, não sofrerão castigo (pois o que é imaterial é insensível), e que a alma, em conseqüência de sua imortalidade, não precisa de nada de Deus. . . . ‘[A alma] nem deveria ser chamada de imortal; pois, se é imortal, é claramente não gerada’. De acordo com os assim chamados platonistas ela é imortal e não gerada. ‘Então as almas não são imortais?’ Não, desde que o mundo apareceu a nós para sermos gerados”. – Diálogo com Trifão, Caps. 1 e 5, Justino de Roma, colchetes acrescentados.

Além de ter dito que a alma de Samuel voltou da morte para falar com Saul, Justino também comentou o texto de Mateus 10:28.* Veja o que ele escreveu:

“E [Jesus] disse mais: ‘Não temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais podem fazer; temei antes aquele que, depois da morte, pode lançar alma e corpo no inferno’. Deve-se saber que o inferno [Geena] é o lugar onde serão castigados os que tiverem vivido iniquamente e não acreditaram que acontecerão essas coisas ensinadas por Deus, através de Cristo”. – Primeira Apologia 19:7, Justino de Roma, c. 150 d.C., colchetes acrescentados.

* Justino misturou a fraseologia de Mateus 10:28 com o texto paralelo do evangelista Lucas: “Além disso, eu vos digo, meus amigos: Não temais os que matam o corpo e depois disso não podem fazer mais nada. Mas, eu vos indicarei quem é para temer: Temei aquele que, depois de matar, tem autoridade para lançar na Geena” (Lucas 12:4, 5). Alguns aniquilacionistas, a exemplo do próprio autor do MB, gostam da versão de Lucas porque ela não menciona o corpo e a alma, como se fosse um ponto a favor do aniquilacionismo. Na verdade, pode ser bem o contrário disso. Segundo dizem, Lucas fez sua versão do Evangelho pensando especialmente nas pessoas das nações (não judeus), que poderiam conhecer o ensino de Platão sobre a alma. Tanto Lucas quanto Justino deliberadamente omitiram a afirmação “não podem matar a alma”, que aparece em Mateus 10:28. Talvez eles tenham feito isso porque não queriam que os leitores gregos achassem que o Cristianismo concorda com o ensino platônico sobre a imortalidade da alma.

Já Irineu de Lyon, o “neto” do apóstolo João, explicou que a existência contínua da alma depois da morte não é o tipo de imortalidade usufruída por Deus:

“O Senhor ensinou com grande plenitude que as almas não só continuam a existir, não passando de corpo em corpo, mas que conservam a mesma forma que o corpo tinha... na narrativa registrada a respeito do homem rico e de Lázaro que encontrou repouso no seio de Abraão... o rico conheceu Lázaro depois da morte, e Abraão da mesma maneira, e que cada uma dessas pessoas continuou em sua própria posição... Por estas coisas, então, é claramente declarado que as almas continuam a existir e que não passam de corpo a corpo, que possuem a forma de um homem, para que possam ser reconhecidos e retêm na memória as coisas deste mundo... Mas... só Deus, que é Senhor de todos, é sem princípio e sem fim, sendo verdadeiramente e para sempre o mesmo, e sempre permanecendo o mesmo Ser imutável... [As outras coisas] perduram e prolongam sua existência em uma longa série de épocas, de acordo com a vontade de Deus, seu Criador... então também qualquer um que pense assim a respeito das almas e dos espíritos e, de fato, respeitando todas as coisas criadas, não se desviará de maneira alguma, uma vez que todas as coisas que foram feitas tiveram um começo quando foram formadas, mas perduraram enquanto Deus quisesse que elas tivessem uma existência e uma continuidade... Mas como o corpo animal certamente não é a alma, mas tem comunhão com a alma, conforme Deus se agrada; assim a própria alma não é a vida, mas participa daquela vida que Deus lhe concedeu. Portanto, também a palavra profética declara do primeiro homem formado: ‘Ele se tornou alma vivente’ [Gênesis 2:7], ensinando-nos que pela participação da vida a alma se tornou viva; de modo que a alma, e a vida que possui, devem ser entendidas como sendo existências separadas. Quando Deus, portanto, concede vida e duração perpétua, acontece que mesmo as almas que não existiam anteriormente deveriam doravante perdurar para sempre, uma vez que Deus quer que elas existam e continuem existindo. Pois a vontade de Deus deve governar e governar em todas as coisas, enquanto todas as outras coisas que dão lugar a Ele, estão sujeitas e devotadas ao Seu serviço. Até agora, deixei-me falar sobre a criação e a duração contínua da alma”. – Contra as Heresias, Livro II, 34:1-4, Irineu de Lyon, discípulo de Policarpo, que por sua vez foi discípulo do apóstolo João, c. 180 d.C., colchetes acrescentados.

De modo que está muito claro que as afirmações dos cristãos antigos destroem a hipótese da “alma ampliada” com o significado de vida eterna futura. Outro exemplo, para concluir, é o cristão que foi na juventude aluno do apóstolo João, o cristão Policarpo. Ele disse que a ressurreição consistirá na “vida eterna da alma e do corpo”. Certamente ele não quis dizer “vida eterna da ‘vida eterna futura’ e do corpo”...

Portanto, não há como fugir da realidade que o Novo Testamento apresenta sobre a natureza físico-espiritual do homem. Tal concepção se irradiou desde o século 1 em diante. E isso nada tem a ver com influência do dualismo grego, mesmo havendo o ponto em comum de que tanto cristãos quanto platônicos acreditavam que a alma continua viva depois da morte, além do que os cristãos se valeram depois de pontos aproveitáveis da filosofia grega, a exemplo da linguagem, que já estava um pouco presente no Novo Testamento.

Antes de retomar a consideração sobre as referências citadas pelo autor do MB, é preciso que você saiba que ainda existem outros fatores que impedem os autores de obras sérias de referência advogarem o aniquilacionismo, principalmente aqueles que não aderiram a esse movimento contemporâneo que faz a teologia flertar com o materialismo e as ciências naturais. Embora a desculpa predominante seja a “platofobia” e uma suposta aderência total ao pensamento hebraico, os verdadeiros motivos se escondem abaixo da superfície aparente do discurso, quer seus promotores se apercebam disso ou não. A seção seguinte poderá ser útil para descortinar essa realidade oculta.

 

7. MATERIALISMO “CRISTÃO”, IMORTALIDADE CONDICIONAL E “SONO” DA ALMA

[Materialismo é o] dogma muito perigoso segundo o qual alguns filósofos, indignos de tal nome, pretendem que tudo é matéria, negando a imortalidade da alma.

Dictionnaire de Trévoux, publicado em 1752 (Larousse, 2004).

Um dos argumentos ‘ad hominem’ ao qual [os imortalistas] apelam é classificar os que rejeitam o conceito da ‘sobrevivência da alma após a morte’ como ‘materialistas’. Embora esta também seja uma acusação grave, não há aqui a intenção de analisar as razões que levariam alguém a fazê-la. Até porque isto nem é necessário... quem responderá por uma acusação falsa é a pessoa que a fez, não aqueles contra quem ela é dirigida.

Autor do site “Mentes Bereanas”.

Os que advogam o aniquilacionismo ou o materialismo “cristão” normalmente não gostam de tais classificações e preferem dizer que defendem a “imortalidade condicional” ou o “sono da alma”. A razão é que as palavras “aniquilacionistas” e “materialistas” possuem uma conotação muito negativa. Embora seja exatamente isso o que eles são, sentem-se ofendidos de serem chamados assim e protestam contra os que insistem em fazê-lo. Para entender bem os motivos dessa reclamação, e ponderar sobre se ela poderia ser acatada, é importante conhecer primeiro o conceito de materialismo e sua evolução histórica, além de analisar alguns pontos relacionados. O objetivo desta seção é fazer justamente isso.

- Os negritos e colchetes nas citações são meus, exceto se houver outra indicação.

a) Materialismo – uma crença rara na Antiguidade

O dicionário citado no início é uma obra jesuíta do século XVIII publicada em um momento que o materialismo estava ganhando força, mas ainda encontrava muita resistência por parte da intelectualidade, realidade que se inverteu na época atual. Sobre essa radical mudança de postura filosófica, diz o seguinte estudo:

“A grande preocupação dos materialistas do século XVIII foi a de estabelecer a unidade material do mundo e por isso combater, sem tréguas, o dualismo corpo-alma do pensamento cristão... os filósofos levaram tão longe quanto possível a negação dos valores religiosos tradicionais e a afirmação das virtualidades humanas: graças à ciência, os homens seriam capazes de obter, acerca deles mesmos e do mundo, suficiente conhecimento para criarem condições de vida mais feliz. No conjunto, os materialistas franceses do século XVIII rejeitaram tanto o deísmo como o panteísmo. São ateus. E, na história das idéias, a sua originalidade repousa, em grande parte, no ateísmo militante”. – O Materialismo Radical de Holbach e a Química Moderna, de Robson Jorge de Araújo, dissertação de mestrado, 2006, UFMG, pp. 41, 42.

Mas o que se entende por materialismo? Embora esta palavra seja corriqueiramente associada ao apego exagerado ao dinheiro e aos bens materiais, aqui o significado é outro. Trata-se do entendimento segundo o qual toda realidade que existe no universo é apenas material, e o que se costuma chamar de “alma” no ser humano nada mais é do que a consciência gerada pela organização dessa matéria no cérebro. Deste modo, a morte resultaria no fim tanto do corpo quanto da alma. Isto é o que se chama mais especificamente de monismo material. Conforme visto na citação nº 45 (Enciclopédia Britânica), essa concepção praticamente não existia no mundo antigo, pois todos os povos tinham crenças de vida após a morte, variando apenas nos detalhes como tal fenômeno de sobrevivência aconteceria.

Quando se admite a possibilidade de combinar algum tipo de conceito religioso com o materialismo, ele é mais comumente chamado de naturalismo. Por exemplo, ainda que os naturalistas geralmente optem pelo ateísmo* ou o gnosticismo, nada impede que alguns deles creiam também no panteísmo (Deus é a natureza) ou no teísmo (se Deus existe e criou tudo, ele não interfere em sua criação e nem está presente nela). Um ateu naturalista pode até mesmo acreditar que o homem possui uma alma que se separa do corpo após a morte, ainda que tal ponto de vista não seja comum entre os ateus. E outro enfoque mais recente do materialismo é chamá-lo de fisicalismo, pois, além de matéria sólida, o universo é composto de partículas, ondas e campos de várias naturezas. As obras a seguir resumem a história toda da seguinte maneira:

“No materialismo, concebe-se que a matéria é desprovida de alma ou de uma racionalidade intrínseca. Além disso, não haveria uma finalidade ou propósito na natureza. Isso resulta numa valorização da causação eficiente, e na concepção de mundo conhecida como ‘mecanicismo’. Dois grandes problemas do materialismo, desde sua origem entre os atomistas gregos, têm sido explicar a perfeição da vida e explicar a alma”. – O Dogmatismo Científico de Tradição Materialista, de Osvaldo Pessoa Jr., publicado em Estudos de História e Filosofia das Ciências, 2006, de Cibelle Celestino Silva (org.), Livraria da Física Editora, p. 44 (4 do pdf).

“Acolhendo a afirmação de Hegel, segundo a qual ‘os cristãos desperdiçam no céu a energia destinada à terra’, Feuerbach e principalmente Marx combateram a crença na vida após a morte, sob o pretexto de que aliena o compromisso terreno. À ideia de uma sobrevivência pessoal em Deus, se substitui uma ideia de sobrevivência na espécie e na sociedade do futuro”. – A resposta cristã ao secularismo, de Raniero Cantalamessa, 2010, Sermões da Casa Pontifícia.

“Uma condição necessária para respaldar o naturalismo é a admissão sem reservas de um conjunto de premissas fundamentais. A primeira dessas premissas é que a única realidade que existe na natureza é a matéria. Desse ponto de vista, existir nada mais é do que fazer parte da caixa selada. Ou seja, existir é poder ser observado empiricamente, investigado, estudado e sistematizado pelos métodos científicos utilizados nas ciências naturais. Se houver algo fora da caixa, não é natureza e, por isso, não pode ser considerado uma realidade existente”. – Além da matéria: alguns contrapontos cristãos ao naturalismo, Revista Teologia Brasileira, 2014, versão on line.

* O ateísmo tem sido classificado em três tipos: (1) prático, quando se refere apenas a atitudes, (2) teórico negativo, quando Deus é excluído para explicar a existência do universo e (3) teórico positivo, quando nega completamente a existência de Deus e de qualquer realidade que não seja a física. – Grande Enciclopédia Barsa, Editorial Planeta, edição digital, 2002, verbete “Ateísmo”.

Os primeiros registros do materialismo na Antiguidade dos quais se têm notícia são de poucos séculos antes de Cristo, que foram apresentados em duas vertentes, sendo a segunda provavelmente influenciada pela primeira:

1) Materialismo indiano (século VI a.C.): conhecido por nomes a exemplo de lokayta e carvaka, foi combatido pelo budismo e especula-se que chegou à Índia através de sumérios que migraram para lá, antes da invasão indo-europeia no século XV a.C.

2) Atomismo greco-romano (séculos V-I a.C.): criado por Leucipo e desenvolvido por Demócrito, transformou-se em uma escola filosófica sob os auspícios de Epicuro e foi difundido no mundo romano por Lucrécio.

No caso do materialismo indiano, houve uma tendência a se combater rituais religiosos fúnebres, pois ele seguia a lógica de que nada existiria depois da morte. Ele também valorizava os prazeres físicos e sensuais, sentimento ecoado na máxima dos epicureus: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos”. Mas os seguidores de Epicuro diziam que a busca pelos prazeres devia ser moderada. O materialismo deles consistia em achar que a alma é uma entidade física formada por átomos que se desintegra quando o indivíduo morre. Por isso eles incentivavam as pessoas que não temessem a morte, pois se a alma é apenas algo material os mortos não têm nenhuma sensação e estão na completa inexistência.

A partir do século XVII o materialismo ganhou feições religiosas devido a determinadas pessoas que queriam se valer de alguns de seus argumentos, porém sem abrir mão da crença em Deus e dos valores metafísicos da religião a que pertenciam. A denominação técnica que foi utilizada para se referir a essa nova abordagem é “filosofia mecânica”. Seus defensores eram basicamente filósofos religiosos que se dedicavam a algum ramo científico. Posteriormente o Iluminismo alterou o curso desse materialismo “cristão”, e o aspecto religioso foi gradualmente abandonado pelos autores naturalistas, como foi o caso de Thomas Hobbes, que em seu livro Leviatã disse: “O que não é material não é real”. Estava assim pavimentado o caminho para o que viria em seguida: o darwinismo e o marxismo, cuja simbiose excluiu Aquele que ainda persistia no cenário científico: o Criador (conforme vimos na seção 1). Mas antes disso a Igreja Católica estimulou o desenvolvimento da filosofia mecânica, considerando a matéria em movimento como resultado da ação primeira de Deus e não apenas de mecanismos dela própria.

Sobrepujando o deísmo, que ainda considerava a existência de um Deus Criador, porém completamente ausente de sua criação, o ateísmo voltou a triunfar no enfoque materialista dos cientistas. Um dos primeiros estudiosos modernos que abraçou completamente o ateísmo foi o médico Julien de la Méttrie, que em sua obra “O Homem Máquina” (1748) disse que o pensamento nada mais é do que uma consequência da organização dos mecanismos físicos do corpo. Outro ateu materialista que ficou bastante conhecido foi o barão Paul von Holbach (1723-1789). Outros expoentes que seguiram mais ou menos na mesma linha foram Denis Diderot, John Toland, David Hartley e Joseph Priestley.

Mas foi somente a partir de 1830 que o materialismo ateu começou a se firmar nas ciências naturais, a fim de expurgar de seus proponentes a noção de Deus. E isto aconteceu inicialmente devido à escola alemã e suas universidades dedicadas à fisiologia, que contribuíram para o declínio do idealismo de Kant. (Não deve ser coincidência, então, que vem justamente da Alemanha algumas das principais obras teológicas que destoam de pontos espirituais ensinados há séculos na ortodoxia cristã). E ainda houve uma força prévia neste sentido que acabou por se somar a esse conjunto de movimentos em prol da negação daquilo que é espiritual dentro da matéria: a Reforma Protestante, protagonizada coincidentemente por um alemão, Martinho Lutero. Isto porque, quando cristãos passaram a ler a Bíblia sem a orientação da Igreja, inevitavelmente alguns entendimentos errôneos surgiram, dentre eles a novidade do aniquilacionismo materialista de verve religiosa. Por isso praticamente todos os nomes que abraçaram a “imortalidade condicional” e que são lembrados pelos aniquilacionistas são da época da Reforma em diante. Logo, embora não fosse a intenção de Lutero, a combinação dos acontecimentos resultantes do seu reformismo confluiu para o surgimento desse novo materialismo “cristão”.

A situação se agravou ainda mais a partir do vácuo deixado pela filosofia mecânica, quando ela foi praticamente abandonada e substituída pelo “materialismo dialético” (e ateu) preconizado por Karl Marx, que se tornou a visão padrão da ciência contemporânea em conexão com o fisicalismo. Sobre esse período diz a Enciclopédia Barsa:

“A partir de meados do século XIX, o ateísmo se tornou mais explícito e militante. O alemão Ludwig Feuerbach subverteu a dialética hegeliana, concedendo primazia à sensação frente à razão. Paralelamente, inverteu a relação Deus-homem. Não foi Deus que criou o homem a sua imagem e semelhança; foi o homem que projetou suas melhores qualidades sobre a tela do conceito de Deus. Em suas teses sobre Feuerbach, Marx criticou o fato de que a filosofia se tivesse limitado a interpretar o mundo, em vez de tratar de modificá-lo. O estudo da história levou Marx à conclusão de que as estruturas sociais vão sendo construídas como muros protetores para evitar a mudança das relações de produção: a religião é o ópio, o consolo adormecedor do povo. Nietzsche, sob uma postura mais existencialista, não proclamou a inexistência de Deus, mas sua morte nas mãos dos homens, o que provocaria uma mudança de valores que prepararia a chegada do super-homem”. – Grande Enciclopédia Barsa, Editorial Planeta, edição digital, 2002, verbete “Ateísmo”.

Esse fortalecimento do ateísmo no século XIX veio em boa hora para o materialismo alemão, pois ele já estava sofrendo um declínio devido às investidas dos positivistas e adeptos de Kant. Mas com a leitura que Marx fez do evolucionismo de Charles Darwin e sua intensa divulgação impressa, o destino da ciência não foi outro senão o materialismo ateu. Sendo assim, os novos aniquilacionistas passaram a ser os únicos que se apegam ao materialismo religioso, no que diz respeito à não existência da alma no corpo e a consequente rejeição do conceito de continuidade depois da morte.

Por fim, é necessário ressaltar que existe uma abordagem chamada de “materialismo cristão” que nada tem a ver com a opinião de que o homem não possui uma alma que sobrevive à morte do corpo. Essa outra conceituação é a que foi proposta por Josemaría Escrivã, fundador da Opus Dei, que visa exaltar a união do divino com o humano, do físico com o espiritual, a fim de combater o errado sentimento de que as bênçãos e ações de Deus se restringem apenas a realidades invisíveis e celestes. Tal enfoque de Escrivã não é o que eu venho chamando aqui de “materialismo ‘cristão’ ”. O materialismo a que me refiro é apenas o conceito de que a morte do corpo resulta na extinção completa da pessoa, não havendo, portanto, uma alma espiritual, conforme pensam os ateus e também os novos aniquilacionistas,* porém com a diferença que para estes últimos Deus um dia poderá criar uma cópia perfeita da pessoa que deixou de existir, crença que será comentada no item seguinte.

* Conforme eu mencionei na primeira seção, a ortodoxia considera que aniquilacionistas são aqueles que negam que as almas dos maus serão atormentadas para sempre depois do Juízo Final, e creem que, ao invés disso, elas serão aniquiladas e erradicadas da existência. Os primeiros cristãos que defenderam tal ponto de vista não eram materialistas, pois acreditavam que depois da morte a alma continua viva no Hades, aguardando o julgamento futuro. Deste modo, para fazer uma distinção entre esse antigo conceito de aniquilacionismo e o atual, que prega a extinção total depois da morte, eu chamei os seus defensores de “novos aniquilacionistas”.

b) As implicações indesejáveis do materialismo “cristão”

Existem alguns fatores que podem ser alegados pelos novos aniquilacionistas a fim de credenciar o seu materialismo religioso. Primeiramente eles acreditam em Deus e que Ele criou tudo o que existe no universo. Deste modo, quando usam as informações das ciências naturais para explicar realidades físicas, eles não se submetem ao ateísmo de muitos cientistas, segundo os quais a vida é obra do acaso. Também não aceitam o darwinismo. Além disso, estão convictos da existência de um lugar celestial onde criaturas espirituais vivem. Ainda que tais posicionamentos sejam pontos positivos, eles não equacionam alguns problemas sérios da crença aniquilacionista. Veja a seguir os principais deles.

Analisando-se o materialismo sob o aspecto somente científico, ele não consegue responder de maneira convincente como a matéria poderia ser responsável sozinha por realidades intangíveis:

“No entanto, há pelo menos um problema para o qual o materialismo não encontrou resposta, o chamado ‘problema dos qualia’: como explicar a natureza das sensações que percebemos subjetivamente? Como explicar a azulidão do azul? A fragrância de uma flor de jasmim? Os sentimentos associados a uma lembrança nostálgica? Se a natureza dos impulsos nervosos em nosso cérebro é a mesma, por que cores e sons nos parecem tão diferentes? Note que esta questão é diferente do problema de encontrar os ‘correlatos cerebrais’ da percepção do azul: poderíamos determinar a sequência completa dos disparos neurais associados à percepção de um ponto luminoso azul em um fundo escuro, mas mesmo assim não saberíamos explicar porque a sensação produzida é de ‘azulidão’.” – O Dogmatismo Científico de Tradição Materialista, de Osvaldo Pessoa Jr., publicado em Estudos de História e Filosofia das Ciências, 2006, de Cibelle Celestino Silva (org.), Livraria da Física Editora, p. 51 (11 do pdf).

E não menos importantes são as diversas experiências de pessoas que retornaram de um estado de morte clínica e relataram experiências que não podem ser explicadas pela ciência convencional, sendo tão somente relatadas. Um exemplo recente foi a de um menino americano de 5 anos que foi dado como morto e depois que a equipe médica conseguiu trazê-lo de volta ele relatou aos pais que havia falado com a irmãzinha dele “que não nasceu e não tinha nome”, pois, ao que parece, ela estava na sala do hospital.* Isto chocou os pais da criança, pois ele era filho único, mas a mãe dele tinha tido um aborto espontâneo no começo da primeira gravidez, porém os pais nunca haviam comentado isso com o garoto.

* Uma objeção dos que não creem na sobrevivência da alma é que Lázaro não relatou nada sobre isso depois que Jesus o ressuscitou. No entanto, existem três motivos prováveis: (1) ele resolveu não falar, (2) se falou, os escritores bíblicos preferiram não registrar ou então (3) não foi capaz de lembrar. Eu prefiro crer nesta última hipótese. Possivelmente os que foram ressuscitados tiveram a memória apagada quanto ao que viram fora do corpo. Outro detalhe é que, de acordo com os espiritualistas, nem sempre a alma adquire consciência imediatamente depois da morte, pois ela pode passar um breve período dormindo, em continuidade à perda de consciência quando ainda estava no corpo. Isto explicaria o motivo de não serem todas as pessoas que morreram momentaneamente se lembrarem de alguma coisa dessa experiência.

Também deve ser levado em consideração que espíritos que alegam ser de pessoas falecidas realmente entram em contato com seres humanos, mesmo sem serem convocados. Embora a experiência tenha demonstrado que a maior parte dos relatos sobre esses fenômenos sejam farsas ou fruto de charlatanismo, alguns casos foram realmente comprovados por pessoas isentas, conforme a Barsa também comenta:

“Muitos cientistas pesquisaram e reconheceram a autenticidade dos fenômenos espíritas. Na Inglaterra, os mais importantes foram Frederick William Henry Myers, fundador da Sociedade para a Pesquisa Psíquica; os físicos William Crookes e Oliver Lodge e o biólogo Alfred Russell Wallace. Na França, além de Kardec, destacaram-se Camille Flammarion e o fisiólogo Charles Richet; na Itália, o criminólogo Cesare Lombroso e o astrônomo Giovanni Schiaparelli; na Alemanha, o astrofísico Karl Friedrich Zöllner e o médico Albert von Schrenck-Notzing”. – Grande Enciclopédia Barsa, Editorial Planeta, edição digital, verbete “Espiritismo”.

Naturalmente, a tendência de muitas pessoas é dizer que tais ocorrências são obras de demônios. Até mesmo cristãos tradicionais costumam pensar assim, e não somente os aniquilacionistas. Ainda que tal embuste maligno realmente possa acontecer, é sempre bom lembrar que a Bíblia não coloca a situação nessa perspectiva. Até mesmo as passagens do Antigo Testamento que vedam a consulta aos mortos não dizem isso. Aliás, bastariam umas poucas palavras na Bíblia para atestar acima de qualquer dúvida de que os referidos espíritos são todos agentes do mal, tais como estas: “Os mortos não existem mais, e os espíritos que aparecem são sempre demônios”. Mas, ao invés de dar uma advertência desse tipo, a Bíblia tem dois relatos sobre falecidos que voltaram para falar com gente deste mundo... E a própria proibição de consultar os mortos é uma admissão tácita de que eles existem quais seres conscientes, pois quem não existe não pode ser consultado. A combinação desses fatores descarta qualquer possibilidade de ser verdade a explicação de que a comunicação com criaturas espirituais é sempre demonismo.

Como se nota, o conflito do materialismo “cristão” com aquilo que a Bíblia realmente apresenta sobre a natureza dual do homem não é o único problema com o qual seus defensores têm de lidar. O próprio materialismo científico e ateu não tem explicações satisfatórias para explicar a existência da consciência, dos fenômenos paranormais e dos valores morais que só o ser humano possui. Além disso, quando o materialismo é adaptado para a versão dos novos aniquilacionistas, sérias implicações resultam do conceito deles sobre ressurreição. Isto porque as pessoas trazidas novamente à vida seriam, na realidade, cópias perfeitas de quem já morreu, tanto na aparência quanto nas conexões cerebrais. Isto seria possível porque ‘Deus se lembra de cada detalhe de nós, incluindo todos os nossos anos de lembranças e as coisas que passamos na vida’ (A Sentinela, 1º de julho de 2003, p. 17). Essa explicação deles ignora aqueles fatores mencionados pelo físico Osvaldo Pessoa Jr. Note mais alguns detalhes de como eles descrevem tal tipo de ressurreição:

“Ao ressuscitar um humano dentre os mortos para a vida na terra, Deus pode facilmente reconstruir, com diferentes átomos, as células do corpo com a mesma estrutura e disposição genéticas. Pode, efetivamente, imprimir nesse corpo os caracteres adicionais que a pessoa adquiriu durante seu período de vida [tais como as lembranças das experiências vividas e as características de personalidade]. Isto é tão simples para Deus quanto é para o homem registrar e reproduzir imagens e sons eletronicamente por meio do vídeo-teipe”. – Despertai!, 8 de fevereiro de 1976, p. 29.

“Na ressurreição será reativado o padrão de vida da pessoa, o qual Deus retém na memória. Ela será restaurada…. tendo a mesma personalidade e recordações que tinha ao morrer”. – A Sentinela, 15 de outubro de 1996, p. 6.

“... a destruição de um computador não necessariamente significa o fim permanente de uma equação ou de um programa armazenado nele. A mesma equação ou programa pode ser colocado em outro computador e ser utilizado ali, ‘se o matemático assim desejar’. O professor MacKay continuou: ‘A ciência mecanística do cérebro não parece assim colocar nenhuma objeção à esperança de vida eterna expressa na [Bíblia], com sua característica ênfase na “ressurreição.” ’ Se um humano morreu, o Criador tem condições de mais tarde trazê-lo de volta à vida... a morte de uma pessoa não seria nenhuma barreira a ela ser trazida de volta à vida num novo corpo, ‘se o Criador assim desejar’.” – Existe um Criador Que Se Importa com Você? (1998), Torre de Vigia, pp. 181-183.

Portanto, para os aniquilacionistas a ressurreição nada mais é do que uma transferência de informações (genéticas e cerebrais) de um corpo para outro. E enquanto isso não acontece, elas ficam guardadas na mente de Deus, como se fossem um gigantesco back up de computador. Quando o grande dia chegar, Deus simplesmente criará uma cópia perfeita (ou melhorada) do corpo que o solo decompôs e, mediante um download sem precedentes, vai transferir para o cérebro vazio do novo corpo todas as recordações e traços cognitivos da pessoa que outrora viveu. Certamente seria algo grandioso que só Deus é capaz de fazer. Entretanto, dissipando qualquer paixão religiosa sobre isso, e analisando-se friamente o que realmente significa essa “ressurreição”, não é muito difícil concluir que esse processo trata-se, na verdade, de algo que lembra uma superclonagem, que copia não somente características físicas, mas também padrões mentais.

Alguma dúvida que é exatamente o que foi dito no parágrafo anterior que as publicações supracitadas das testemunhas “de” Jeová estão dizendo? Acredito que não. Mesmo assim, note a seguir a reação do autor do MB depois que eu mencionei em outro texto tal “ressurreição” materialista (que não é ensinada na Bíblia, que isto fique bem claro):

“Tentar fazer qualquer associação disso [o conceito de clonagem] com [a] ressurreição não faz o menor sentido, já que, como se verá muitas vezes ao longo deste artigo, no conceito hebraico bíblico não existe maneira de se ‘dividir’ uma pessoa, de maneira que ela possa ser ‘implantada’ em dois corpos diferentes. Uma pessoa (‘alma’), é indissociável de seu corpo, seja ele físico ou espiritual... E isso não é tudo. O mais curioso é que numa das publicações [do Adelmo Medeiros] onde aparece essa argumentação, a responsabilidade ainda foi lançada sobre os chamados ‘aniquilacionistas’, como se a fonte original desse raciocínio tivesse sido eles! É realmente difícil imaginar quem poderia ter sido o ‘aniquilacionista’ que mostrou tanta ‘criatividade’! Até onde sabemos, esse tipo de elaboração – ou mesmo algo que sequer lembre isso – não consta em qualquer obra erudita que já tenhamos lido, nem jamais foi ensinado por qualquer religião classificada pejorativamente como ‘aniquilacionista materialista’. O único lugar onde vimos isso foi nessas mensagens e publicações mencionadas... estes procedimentos deploráveis colocam em dúvida qualquer alegação de ‘respeito a Deus’, ‘respeito à Bíblia’ ou, no mínimo, respeito à inteligência dos leitores. Sem falar que atesta o grau de obstinação a que se pode chegar, no esforço de desqualificar o ensino bíblico da ressurreição e inserir dentro das Escrituras conceitos originários da filosofia grega”.

É, ao que parece inteligência realmente tem algo a ver com isso... Nada justifica o alvoroço dessas palavras do autor do MB. É uma indignação completamente vazia e despropositada. Basicamente pelos seguintes motivos:

1) Foram sim pessoas que aderiram ao aniquilacionismo que explicaram que para elas os ressuscitados serão cópias perfeitas de quem já viveu, conforme está descrito nas publicações citadas da Torre de Vigia (editora das “Testemunhas de Jeová”). É claro que elas não enfatizam que se trata de uma cópia e nem chamam o processo de “clonagem”, mas quem não for um analfabeto funcional perceberá facilmente nas referidas citações que é disso que elas estão falando. Elas chegam ao ponto de comparar o ressuscitado a uma fita de videocassete ou a um programa de computador!

2) Chamar atenção para o que realmente significa “na prática” o tipo de ressurreição que os aniquilacionistas acreditam não é, de modo algum, desrespeitar a Deus ou a Bíblia. Primeiro porque a Palavra de Deus não descreve a ressurreição da maneira que foi vista nas publicações das testemunhas “de” Jeová. Segundo porque não existe um registro sequer na antiga literatura cristã de alguém que tenha defendido a ressurreição conforme o entendimento aniquilacionista materialista, ou sequer algo próximo disso!

3) Sem perceber, o autor do MB se contradiz ao dizer que pelo “conceito hebraico bíblico não existe maneira de se ‘dividir’ uma pessoa, de maneira que ela possa ser ‘implantada’ em dois corpos diferentes”. Será que esse homem não percebeu ainda que a ressurreição na qual ele acredita é exatamente isso? A única diferença é que Deus não implanta a pessoa em dois corpos, mas em apenas um, pois as impressões e características do primeiro corpo são adquiridas pela pessoa a partir de seu nascimento até o dia da morte. E apenas um corpo (no futuro) receberá as características do original por um processo de transferência de informações executado por Deus.

4) E se ele realmente tem tanto respeito assim por publicações eruditas, e cita trechos delas para “apoiar” o que acredita, por que ele não dá atenção ao que essas mesmas publicações dizem que contradizem sua crença? É o caso, por exemplo, daquela que disse: “Seja qual for o ponto de vista que se tenha a respeito do desenvolvimento da doutrina da imortalidade da alma no Antigo Testamento dificilmente haverá dúvida que é completamente assumido no Novo Testamento que as almas dos homens, bons e maus, sobrevivem à morte”.

Como se sabe, um dos textos mais lembrados que atesta o que foi dito no último ponto acima é aquele onde Jesus consola os cristãos que seriam assassinados:

“Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:28a.

Ninguém, absolutamente ninguém, nos séculos iniciais do Cristianismo entendeu esse texto de uma maneira diferente do que ele literalmente está dizendo. Abaixo um exemplo:

“Não é porque sabemos que a separação da alma dos membros do corpo e a dissolução das suas partes não interrompem a continuidade da vida que devemos desanimar da ressurreição. . . . deve haver uma ressurreição dos corpos mortos, mesmo que inteiramente dissolvidos, e os mesmos homens devem ser formados de novo, uma vez que a lei da natureza ordena o fim não de modo absoluto... Mas é impossível que os mesmos homens sejam reconstituídos a menos que os mesmos corpos sejam restaurados às mesmas almas”. – Sobre a ressurreição dos mortos, Atenágoras de Atenas, caps. 16 e 25, c. 180 d.C.

Em suma, a morte significa o fim apenas do corpo físico, pois a alma (ou consciência) da pessoa continua existindo em outro tipo de corpo (etéreo, imaterial ou espiritual) e aguarda em algum lugar o dia que receberá novamente um corpo físico, porém glorificado para viver tanto no céu quanto na Terra. Esta era a crença dos primeiros cristãos.

Portanto, está muito claro quem realmente está sendo obstinado e se esforçando para desqualificar o ensino bíblico da ressurreição, o verdadeiro ensino bíblico, além de querer importar para dentro da Bíblia um conceito estranho que durante séculos foi entretido apenas por ateus e descrentes. Este é um detalhe que também pode incomodar bastante os atuais defensores do materialismo “cristão”.

Ainda com respeito ao ponto “3” (“ressurreição” de clones), basta um simples exercício de imaginação para notar que existe algo errado com a explicação aniquilacionista. Seria apenas por uma questão ética e de cronograma que Deus esperaria a pessoa original morrer para criar uma cópia dela e implantar no novo cérebro formado as lembranças de suas experiências vividas e traços de personalidade. Mas em termos de poder, Deus poderia fazer isso a qualquer momento, antes mesmo da pessoa falecer, gerando assim um paradoxo, pois duas pessoas iguais passariam a existir, embora as experiências diferentes que o “clone” teria a partir de sua criação viessem a torná-lo aos poucos outra pessoa. Existe um filme em que é possível visualizar essa situação e certa vez eu fiz referência a ele, a fim de que os meus leitores vissem a ressurreição materialista “na prática”. Depois que viu isso o autor do MB reagiu com a indignação de sempre e a típica linguagem “tejoteana”:

Reiteramos que qualquer conversa desse cunho não é – nem jamais será – considerada ou aceita por nós, nem por qualquer cristão que respeita a Bíblia como Palavra de Deus, que valoriza a provisão divina da ressurreição dos mortos... e, acima de tudo, que tem temor salutar ao seu Provisor divino. Infelizmente, porém, esse tipo de brincadeira com um ensino cristão fundamental – e é este mesmo o termo correto: uma brincadeira, e das mais infantis – pode se tornar muito mais séria do que já é. Talvez o pior argumento que já vimos relacionado com este assunto é um que apareceu em outra publicação... como uma espécie de ‘apêndice’ do mesmo raciocínio foi aventada a hipótese de Deus ‘implantar’ uma mesma pessoa em dois corpos diferentes, causando graves transtornos com este procedimento... Deve-se considerar a hipótese de Ele fazer uma trapalhada desse tipo inadvertidamente? ... devemos entender, então, que Deus causaria tal transtorno deliberadamente, porque Ele simplesmente ‘resolveu’ fazer isso?... Pode-se de direito chamar isso de ‘respeito’ à Pessoa dele?”. – O negrito é do autor do MB.

É óbvio que se a ressurreição bíblica fosse o que os aniquilacionistas pensam, e não o que os cristãos primitivos acreditavam, Deus jamais ressuscitaria a pessoa antes mesmo dela morrer (se Ele fizesse isto seria uma duplicação e não uma “ressurreição”). O cenário que apresentei é apenas uma abstração, para estimular o raciocínio. Surpreende o autor do MB não saber fazer essa distinção, e bradar palavras de protesto como se eu tivesse dito que Deus vai fazer isso, ao invés de que Deus faria se quisesse. Além do mais, por que o autor do MB considera aceitável um procedimento em momentos diferentes do tempo, porém um absurdo se fosse feito na mesma data? O argumento de que Deus não causaria esse transtorno, e por isso espera o corpo original morrer, não anula a conclusão apresentada.

Realmente eu não sei o que acontece com a cabeça do nosso crítico “bereano”, mas suspeito que o comportamento agressivo dele nada mais é do que uma reação irracional de quem foi ferido. No caso por alguém demonstrar que uma crença que ele julgava acima de qualquer suspeita não passa de uma ideia materialista, que pode ser refutada só pela lógica e o raciocínio. Ao que parece o argumento apresentado mexeu com ele. Esta é a provável razão dele lançar mão de palavras ofensivas ao invés de ponderar o que leu. De modo que quem está ‘escorregando pela ladeira’ nesse assunto é o autor do MB e não os que tentam explicar de várias maneiras os motivos do aniquilacionismo ser um erro doutrinário.

Não resta dúvida que Deus tem a capacidade de memorizar todas as lembranças e características de qualquer pessoa que morreu. Mas isto não contradiz o fato que, pelo viés materialista, a pessoa que morre é extinta e deixa de existir para sempre, uma vez que criar um novo corpo vivo e fazer um download das informações necessárias que estão na mente de Deus para o cérebro vazio do novo corpo não o torna a mesma pessoa que morreu, pois mesmo depois de concluído tal processo a mente de Deus continuaria com as mesmas informações do falecido, e por isso Deus poderia criar quantas cópias quisesse da pessoa original e todas elas acreditariam ser a mesma pessoa que viveu em épocas passadas. Por exemplo, se Deus criasse dez Terras e colocasse em cada uma delas todas as pessoas que morreram, mediante esse tipo de ressurreição, todos os habitantes desses mundos acreditariam tratar-se dos que viveram em nosso planeta. Por isso é necessária a existência contínua do ser para que ele continue sendo sempre ele. Nem que seja de maneira anormal e sem todas as características humanas, como é o caso da alma invisível que vai para o Hades depois da morte do corpo, ou mesmo para o céu.

A dinâmica da vida, morte e ressurreição conforme o cenário apresentado na Bíblia não se refere um ato divino de transferência de informações de um corpo para outro após um grandíssimo lapso de tempo, mas no deslocamento espacial da pessoa de um lugar para outro, e em três etapas. A própria vinda do Filho de Deus do céu para a Terra dá uma ideia de como isso acontece. Ele já existia nos domínios celestes antes de ser o homem Jesus. Não foi necessária uma “ressurreição” materialista “ao contrário” para ele deixar de ser um espírito para se tornar um ser humano. Ou seja, ele não precisou morrer lá no céu para Deus recriá-lo no ventre de Maria com base em informações gravadas em Sua mente. (Neste caso, o que seria feito do corpo celeste original de Jesus?) Mas, ao invés disso, o próprio espírito de Jesus foi transferido literalmente, ausentando-se do céu e fazendo-se presente na Terra. Algo semelhante aconteceu com o retorno dele para o mundo espiritual. Depois que Jesus morreu o espírito dele foi para o Hades, e no terceiro dia ressuscitou (reapareceu em nosso mundo), voltando para o corpo novamente, que não chegou a se decompor. Por isso Jesus pôde mostrar as feridas da cruz para o incrédulo Tomé. E quarenta dias depois ele foi para o céu ante o olhar atento de seus seguidores.

O derradeiro inconveniente para os que aderiram ao materialismo “cristão” é que tal posicionamento não passa de uma submissão inconsciente a movimentos “científicos” e revolucionários que nos últimos dois séculos desfiguraram a herança cristã da igreja primitiva, especialmente no Ocidente. Não crer que existe alguma coisa de natureza espiritual no corpo e que ele é regido apenas por mecanismos físicos explicados pela ciência é um reflexo inconteste dessa capitulação diante dos promotores dessa nova maneira entender o ser humano. Desde que chegaram à conclusão que Deus não é necessário para a felicidade e para o desenvolvimento da humanidade, e que a verdade está contida nas obras de homens a exemplo de Charles Darwin e Karl Marx, as pessoas ficaram à mercê desse padrão filosófico materialista. E as mais enganadas nesse processo de dominação intelectual são as que acham que não estão sob a égide desse novo sistema de crenças e valores, que não se limita apenas às aspectos religiosos e científicos. Os aniquilacionistas também fazem parte desse rol de pessoas ludibriadas, mesmo que não percebam ou admitam isso. Note, por exemplo, a maneira materialista como as “Testemunhas de Jeová” explicaram a informação bíblica de que quando a pessoa morre sai um espírito dela:

“Quando o coração cessa de pulsar, o sangue cessa de circular a nutrição e o oxigênio (proveniente da respiração) para as células do corpo. Todavia, as células não perecem de imediato. É por isso que é possível reavivar algumas pessoas cuja respiração e batimentos cardíacos tenham cessado. A morte absoluta advém com o desaparecimento da força de vida, ou espírito de vida, das células corpóreas. – Sal. 104:29”. – Despertai!, 08/09/80, p. 10.

Vemos que eles pegam informações tiradas da ciência moderna, que estão essencialmente corretas do ponto de vista físico, e aplicam a um texto que menciona algo de natureza espiritual. O “espírito” presente no ser humano seria então apenas o princípio de funcionamento das células corpóreas. Em outras palavras, eles simbolizaram o que a Bíblia claramente apresenta como sendo literal, quando ela se refere à movimentação de espíritos de um lugar para outro:

“Se escondes a tua face, ficam perturbados. Se lhes tiras o espírito, expiram e retornam ao seu pó. Se envias teu espírito, são criados; e fazes nova a face do solo”. – Salmo 104:29, 30, TNM.

“Então o pó retorna à terra, assim como veio a ser, e o próprio espírito retorna ao verdadeiro Deus que o deu”. – Eclesiastes 12:7, ibid.

“Mas ele a tomou pela mão e disse [à menina morta]: ‘Menina, levante-se!’ O espírito dela voltou, e ela se levantou imediatamente. Então Jesus lhes ordenou que lhe dessem de comer”. – Lucas 8:54, 55, NVI.

“[Na cruz] Jesus deu então um grande brado e disse: Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito. E, dizendo isso, expirou”. – Lucas 23:46, AM.

c) O condicionalismo, o “sono da alma” e o surgimento tardio do materialismo “cristão”

Conforme dito no início, os aniquilacionistas se sentem mais confortáveis quando são chamados de “condicionalistas”. Dizem que acreditam na vida eterna depois da morte, mas somente no futuro, se a pessoa for recriada por Deus na ressurreição. Se isto não acontecer não há vida eterna e o falecido já se encontra na inexistência perpétua. Não há julgamento final. Esse entendimento, porém, contradiz a Bíblia, pois ela diz que tantos os justos quanto os injustos serão ressuscitados, e só depois estes últimos irão para a Geena ardente. – Daniel 12:2; Atos 24:15; Mateus 10:28; 25:41, 46.

De qualquer modo, esse discurso da imortalidade condicional aplaca a consciência dos aniquilacionistas, ainda que seja um mero “efeito placebo”, pois os problemas relacionados ao materialismo permanecem. É tanto que um dos autores adventistas que o autor do MB gosta, tendo inclusive traduzido e publicado um trabalho inteiro dele, disse o seguinte:

“Embora muitos condicionalistas não gostem da palavra ‘aniquilação’, esta palavra descreve com precisão o que eles acreditam que será o destino final dos que não se arrependerem de seus pecados”. – A Doutrina da Imortalidade na Igreja Primitiva (2015), de John Roller, p. 7, publicação disponível no website Mentes Bereanas (MB).

Nota-se que alguns detalhes passam despercebidos nesse comentário de Roller. O primeiro deles é que, na visão desse autor, a aniquilação ou inexistência já é hoje uma realidade para todas as pessoas que morreram. A “ressurreição” futura não elimina esse fato. O segundo é que para algumas pessoas (os pecadores impenitentes) o destino delas é atual e não futuro, devido à suposta extinção universal de quem morre. Por isso a expressão “destino final” pode fazer o leitor desavisado concluir erroneamente que Roller está dizendo que o destino de todos ainda é uma questão em aberto

E ainda há um aspecto normalmente ignorado sobre o conceito de imortalidade condicional. Na verdade, todos os cristãos primitivos eram condicionalistas, mas não de acordo com o ponto de vista dos adventistas ou das testemunhas “de” Jeová. Para a igreja primitiva a alma permanecia viva no Hades, entretanto, sua ressurreição corporal só resultaria na vida eterna de felicidade e glória se Deus assim desejasse. Em outras palavras, a pessoa precisa ser digna disso, por ter fé em Jesus e demonstrar um comportamento condizente com tal fé. Os que não forem dignos dessa restauração serão ‘jogados na escuridão lá fora, onde haverá choro e ranger de dentes’ (Mateus 8:11, 12). Para constatar que tal cenário sempre foi a expectativa dos cristãos nem é preciso retroagir muito no tempo a fim de verificar o que disseram os autores que foram discípulos diretos dos apóstolos. Até mesmo se analisarmos o que escreveram aqueles cristãos antigos que os aniquilacionistas acusam hoje de terem sido corrompidos pelo platonismo, veremos que eles não achavam que a alma é imortal por natureza (indestrutível, sem princípio e sempre eterna), ainda que acreditassem que ela permanece viva em outro lugar. Por exemplo, note o que Orígenes escreveu a respeito desse ponto:

“Além disso, além do que já dissemos, afirmando que se Deus desejasse qualquer coisa que não fosse desejável seria destrutivo à Sua existência como Deidade, acrescentaremos outra: se o homem, de acordo com a perversidade de sua natureza, desejasse qualquer coisa que fosse abominável, Deus não poderia concedê-la... Ele é a fonte de tudo o que é bom. E reconhecemos que Ele é capaz de proporcionar uma vida imortal para a alma. E que Ele possui não apenas o ‘poder’, mas o ‘desejo’.”. – Contra Celso, Livro V, cap. 24.

Se Orígenes acreditasse que a alma é imortal de acordo com o conceito platônico, dificilmente ele teria feito a afirmação destacada em negrito. Sim, a alma só receberá o selo da imortalidade depois da ressurreição do corpo. Orígenes sabia disso e por esse motivo ele apresentou opiniões semelhantes em outros lugares, a exemplo da seguinte crítica aos seguidores de Platão:

“Eles também são conquistados por vãs esperanças, os que aceitaram a doutrina de Pitágoras e Platão em relação à alma, ao afirmar que sua natureza é ascender à abóbada do céu e ao espaço supercelestial para contemplar as vistas que são observadas pelos abençoados espectadores de cima”. – Contra Celso, Livro III, cap. 80.

Sendo assim, rigorosamente falando, não há nenhum problema em dizer que a imortalidade está condicionada à vontade de Deus, contanto que se use esse argumento da maneira correta, conforme os primeiros cristãos acreditavam e não de acordo com o que os aniquilacionistas dizem hoje em dia. E a confusão que estes fazem não fica só nisso. Um problema semelhante ocorre quando analisamos mais detidamente outro argumento escapista bastante utilizado por eles, que parece amenizar as implicações negativas do materialismo (mas só parece): o “sono” da alma.

O primeiro fato que não deve passar despercebido ao leitor é que a Bíblia não apresenta o conceito de “sono da alma” e nem tampouco tal expressão. Isto é importante, uma vez que os aniquilacionistas também dizem que não se deve crer na “imortalidade da alma” porque não há esta combinação de palavras na Bíblia, embora a ideia esteja implícita em vários momentos. Se o mesmo critério fosse utilizado para determinar se o ensino sobre o sono da alma é bíblico, ele já poderia ser imediatamente descartado. Mesmo assim, admitamos que possa se inferir tal conceito de algum lugar da Bíblia. Se este fosse o caso, será que se tornaria algo a favor do aniquilacionismo?

Como acontece no caso do condicionalismo, há duas maneiras de entender a expressão “sono da alma”, sendo que uma delas rechaça o ideal do materialismo “cristão”. Hoje em dia quando um aniquilacionista menciona que a alma fica dormindo depois que a pessoa morre, ele está dizendo, na verdade, que não acredita que há efetivamente uma alma dormindo em algum lugar. A expressão tem sentido figurado e se refere a algo que não existe mais, pois a morte é considerada como a aniquilação total e irreversível, a não ser que Deus recrie a pessoa. Por outro lado, se alguém acredita que o homem possui uma a alma e que ela continua viva depois da morte do corpo, porém em um sono profundo, esse conceito de sono da alma não terá relação com o primeiro, pois, como acontece em um sono físico essa alma poderia até sonhar ou acordar eventualmente, para depois voltar a dormir de novo.

Há evidências de que alguns dos “famosos condicionalistas do passado” que são hoje lembrados não eram aniquilacionistas, mas nutriam o segundo ponto de vista acima mencionado sobre o sono da alma. É o caso do próprio Martinho Lutero, que aparentemente possuía tal crença. Note o que ele disse sobre isso:

“Mas eu não me atrevo a afirmar que isto é verdade para todas as almas em geral, por causa do êxtase de Paulo e a ascensão de Elias e de Moisés (que certamente não apareceram como fantasmas no monte Tabor). Quem sabe como Deus lida com as almas que partiram? Não poderia da mesma maneira fazê-las dormir e acordar (ou enquanto ele deseja [que elas durmam]), assim como ele submete ao sono aqueles que vivem na carne? E novamente, aquela passagem de Lucas 16, concernente a Abraão e Lázaro, mesmo que não force o conceito de uma universal [capacidade de sentir], ainda assim atribui uma capacidade de sentir a Abraão e Lázaro, e é difícil deturpar esta passagem para que ela se refira ao Dia do Julgamento”. – Carta de Lutero enviada a Nicholas von Amsdorf.

“Eu penso o mesmo sobre as almas condenadas; algumas podem sentir as punições imediatamente após a morte, mas outras podem ser poupadas das [punições] até aquele Dia [do Julgamento]. Pois o farrista [o rico da parábola] confessa que está sendo torturado; e o Salmo diz: ‘O mal irá se encontrar com o homem injusto quando ele perece’. Você talvez também atribua isto ou ao Dia do Julgamento ou à angústia passageira da morte física. Então, minha opinião seria que isto é incerto. É mais provável, entretanto, que, com algumas exceções, todas [as almas que partiram] dormem sem possuir qualquer capacidade de sentir. Considere agora quem eram os ‘espíritos em prisão’ a quem Cristo pregou, como Pedro escreve: Não poderiam eles também dormir até o Dia [do Julgamento]? E ainda quando Judas diz a respeito dos Sodomitas que eles sofrem a dor do fogo eterno ele está falando de um fogo presente”. – Luther’s Works 48:360-361.

“Visto que é certo que as almas estão vivas e estão em paz, que tipo de vida ou descanso é este? Bem, esta é uma questão muito elevada e muito difícil para sermos capazes de defini-la, pois Deus não quis que nós soubéssemos sobre isto nesta vida. Assim é suficiente para nós sabermos que as almas não saem de seus corpos para o perigo de torturas e punições do inferno, mas que foi preparado para elas um quarto onde elas podem dormir em paz. No entanto, há uma diferença entre o sono ou descanso desta vida e aqueles da vida futura... Mas a alma não dorme da mesma maneira. Ela está desperta. Ela experimenta visões e os discursos dos anjos de Deus”. – Luther’s Works 4:313.

Como se nota claramente, Lutero não acreditava que a alma deixa de existir depois da morte. O sono que, porventura, ela passasse era encarado por ele de maneira literal e não como uma figura de linguagem. Por isso a alma, em seu sono, podia ter visões e conversar com anjos, algo que é possível acontecer até mesmo antes da morte, quando dormimos (Jó 33:14,15). O que faz lembrar as seguintes passagens bíblicas:

“Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem [na morte], para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança. . . . Ele [Jesus] morreu por nós para que, quer estejamos acordados quer dormindo [na morte], vivamos unidos a ele. Por isso, exortem-se e edifiquem-se uns aos outros, como de fato vocês estão fazendo” – 1 Tessalonicenses 4:13, 14, 5:1-11, NVI.

“Vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que mantinham. Clamaram com uma grande voz: Até quando, Senhor, santo e verdadeiro, deixas de julgar os que habitam sobre a terra e deles vingar o nosso sangue? A cada um deles foi dada uma vestidura branca; e foi-lhes dito que repousassem ainda por um pouco de tempo até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos, que deviam ser mortos como eles o foram”. – Apocalipse 6:9-11, SBB.

Logo, percebe-se que acreditar que a alma está dormindo e enxergar esse entendimento na Bíblia não resulta em uma abertura para a crença aniquilacionista, pois, quer dormindo ou acordada, uma alma viva continua existindo fora do corpo físico depois da morte. De modo que se esse fator for levado em consideração, muito provavelmente a lista de condicionalistas materialistas que os adventistas e outros gostam de citar será grandemente reduzida. E o fato mais relevante que sobrará é que o aniquilacionismo ganhou impulso somente com os adventistas e russelitas do século 19. Quanto aos que viveram antes dessa época seria preciso investigar caso a caso, e nem sempre é fácil fazer isso. De qualquer maneira, é incontestável que os membros da igreja cristã primitiva não abraçaram o aniquilacionismo materialista e esta crença só veio a ser “cristianizada” mais recentemente, em algum momento dos últimos 5 ou 6 séculos. E mesmo assim por grupos minoritários. Não obstante o impacto dessa triste realidade (para os aniquilacionistas), note o que o autor do MB disse sobre o referido posicionamento de Lutero sobre a alma depois da morte:

“O que Lutero jamais falou foi alguma coisa sobre ‘sono do corpo’. O conceito mantido por ele era o do ‘sono da alma’. O máximo que alguns promotores da ‘imortalidade da alma’ conseguem dizer hoje, para tentar neutralizar todas essas declarações de Lutero é que ele ‘não dogmatizou’ o assunto e abriu certas ‘exceções’. Isto é, obviamente, verdade. Aliás, até os mais ardorosos condicionalistas reconhecem que Lutero nem sempre foi consistente em suas declarações. Por-se a discutir o estilo de Lutero, porém, não ajuda em nada. Além de isso não anular as declarações, ainda serve para mostrar que a postura dele era bem melhor que a dos líderes católicos da época, que além de dogmatizarem a posição deles, ainda fomentaram (por decreto) a perseguição contra qualquer ‘herege detestável’ que se atrevesse a contestar as ‘verdades’ deles”. – Artigo “Aderência às Escrituras ou ‘Mentalidade Aniquilacionista’ ”?, negritos do autor do MB.

Primeiramente, acho muito difícil que o autor do MB tenha lido todas as obras de Lutero a fim de afirmar com tamanha segurança que ele nunca falou nada sobre “sono do corpo”. De qualquer maneira isso não importa. O que realmente aconteceu não é nada que sirva aos interesses do nosso crítico “bereano”. O verdadeiro motivo porque Lutero ‘não foi consistente’, ‘não dogmatizou’ e ‘abriu exceções’ é que ele acreditava que a alma continua viva depois da morte, embora a espera dela até o dia da ressurreição do corpo fosse provavelmente descansando. Se há de se falar que Lutero não foi dogmático é justamente naquilo que contradiz o ideal aniquilacionista, ou seja, a opinião aparentemente vacilante dele certamente era porque ele não tinha certeza de que o tal sono da alma é realmente um fato. A única convicção sobre esse ponto que Lutero tinha é que não há aniquilacionismo e a alma permanece depois que o corpo morre. Por isso ele também afirmou o seguinte:

“E isto deve ser cuidadosamente percebido, pois é verdade divina que Abraão está vivendo, servindo a Deus e reinando com Ele”. – Luther’s Works 5:74.

E respondendo à pergunta-título desse artigo do autor do MB, certamente a resposta é mentalidade aniquilacionista. Pois, conforme visto na carta de Paulo aos Tessalonincenses, os que “dormem” continuam vivos com o Senhor. O que está de acordo com outras declarações de Paulo como quando, por exemplo, ele disse que quando se ausentasse do corpo depois da morte iria para a presença de Jesus. – 2 Coríntios 5:1-10.

Finalmente, conforme já visto, o materialismo é uma opinião que encontrou poucos ouvidos receptivos no passado, e só atualmente se tornou mais aceito, devido à influência dos cientistas naturalistas ou de pensadores políticos ateus. Essa rejeição pode ser percebida até mesmo na história da igreja primitiva. Após o término da escrita do Novo Testamento, de tudo que a literatura cristã produziu, desde o primeiro texto até o último, não há discursos ou apologias contra seitas que pregaram o aniquilacionismo materialista. Isto é uma prova de que esse conceito jamais existiu entre os que antigamente professavam o Cristianismo. Como já foi mencionado, só existe uma exceção nesse cenário de silêncio, que aconteceu somente no século III. Algumas pessoas de uma comunidade cristã na Arábia passaram a acreditar que a alma morre junto com o corpo, de maneira semelhante ao que os aniquilacionistas de hoje acreditam. Orígenes foi enviado para lá a fim de demovê-los dessa ideia. Eusébio de Cesareia relata o episódio da seguinte maneira:

“Surgiram outros na Arábia apresentando uma doutrina estranha à verdade. Eles disseram que durante o tempo presente a alma humana morre e perece com o corpo, mas que, no momento da ressurreição, eles serão revividos juntos. E naquele tempo também um sínodo de tamanho considerável se reuniu [para considerar o caso], e Orígenes foi novamente convidado para lá. Falou publicamente sobre a questão com tanta eficácia que aqueles que haviam caído nesse erro mudaram de opinião”. – História Eclesiástica, Livro VI, cap. 37.

O resultado desse sínodo demonstra que esse acontecimento foi apenas uma exceção no panorama bem estabelecido naquela época sobre a crença na alma, sem nenhuma repercussão no cristianismo histórico. O sucesso de Orígenes em dirimir o problema evidencia a profunda inconsistência do materialismo “cristão” quando analisado sob o ponto de vista bíblico. Isto provavelmente foi o que fez os ouvintes de Orígenes levarem em consideração a explicação dele. Atitude bem diferente dos atuais aniquilacionistas.

Sempre que ideias que tocam no entendimento materialista eram mencionadas em antigas obras cristãs, elas eram apresentadas de forma bastante depreciativa. Veja abaixo um exemplo:

“Pois ou a morte é a total extinção da vida, a alma sendo dissolvida e corrompida junto com o corpo, ou a alma permanece por si mesma, incapaz de dissolução, de dispersão, de corrupção, enquanto o corpo é corrompido e dissolvido, não mais retendo a lembrança de ações passadas, nem o sentido do que experimentou em conexão com a alma. Se a vida dos homens deve ser completamente extinguida... nenhum julgamento [haverá] sobre aqueles que viveram [uma vida] na virtude ou no vício... e o enxame de absurdos que dela derivam, e o que é o cume desta iniquidade: o ateísmo. Mas se o corpo fosse corrompido e cada uma das partículas dissolvidas passasse para o seu elemento parente, contudo a alma permanecesse por si mesma como imortal*, nem nessa suposição haveria julgamento sobre a alma, pois haveria um ausência de equidade... a equidade está faltando ao julgamento, se o ser que praticava a justiça ou a iniquidade não é preservado na existência, pois o que praticava cada uma das coisas na vida em que o julgamento é passado era o homem, não a alma por si só”. – Sobre a ressurreição dos mortos, Atenágoras de Atenas, cap. 20, colchetes acrescentados, c. 180 d.C.

* Nota-se que Atenágoras rejeita tacitamente a visão de Platão sobre a imortalidade da alma e ao mesmo tempo afirma que ela sobrevive à morte. O que demonstra que os dois pontos de vista não são equivalentes.

Como se percebe, não é de hoje que os cristãos atrelam o materialismo ao ateísmo. Desde os tempos antigos as pessoas intuem essa relação entre os dois conceitos. O materialismo e o Cristianismo sempre foram mutuamente exclusivos. Um não pode existir dentro do outro. Portanto, é um contrassenso o que os aniquilacionistas tentam fazer hoje em dia, ao misturarem as duas coisas. A crença deles sobre esse assunto não faz parte do Cristianismo original, e jamais eles vão encontrar qualquer prova documental na antiga literatura cristã que contradiga essa realidade.

d) A estabilidade do ensino cristão sobre a alma ao longo dos séculos tem um motivo adicional

É bastante óbvio que o motivo principal dos cristãos sempre terem acreditado na imortalidade da alma (em sentido restrito, conforme já explicado) é que a Bíblia mostra claramente tal ensino, ainda que não possua a expressão “imortalidade da alma”. Textos a exemplo daquela afirmação de Jesus de que as pessoas matam somente o corpo, mas não a alma, ou da parábola do rico e Lázaro conduzem ao entendimento de que há realmente uma sobrevivência depois da morte, ainda que com limitações e sem desconsiderar a ressurreição do corpo. Os aniquilacionistas negam essa verdade porque propõem reinterpretações de tais versículos bíblicos e desconsideram o fato de que na igreja primitiva elas nunca foram cogitadas. Sem falar que se esquecem, ou nem sabem, que o Novo Testamento nasceu da Igreja e não o contrário (veja o apêndice G). Então é razoável supor que é a Igreja que tem o entendimento correto sobre esse assunto. Mas afora isso, há outra razão porque os cristãos sempre tiveram essa crença em toda a história do Cristianismo, salvo exceções recentes.

A tese muito popular entre os aniquilacionistas de que o Cristianismo antigo foi corrompido pela filosofia grega ignora as declarações de Jesus a respeito dos discípulos que ele deixaria na Terra até o fim dos tempos:

“Agora eu vos digo: Tu és Pedro, e sobre esta rocha edificarei a minha comunidade, e as portas do submundo [o Hades] nunca poderão dominá-la”. – Mateus 16:18, NJB.

“Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi. Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo”. – Mateus 28:20, CBC.

Infere-se dessas palavras que Jesus Cristo não deixaria os seus seguidores à própria sorte e que as comunidades cristãs que surgissem estariam fundadas numa estrutura firme e sob a supervisão atenta de Jesus até que ele voltasse. Quer muitos cristãos de hoje gostem disso ou não, a Igreja Católica é a única que se encaixa nesse perfil de estabilidade mais que milenar. E certamente não é por acaso que foi somente ela que manteve inalterado durante os últimos 20 séculos a essência do entendimento sobre a alma, ainda que o discurso monista de teólogos contemporâneos também tenha aparecido em algumas obras católicas. Já as demais religiões cristãs nem sempre conseguiram isso de maneira uniforme e consistente. E certamente não com a mesma duração, pois durante os primeiros séculos só havia a Igreja Católica.*

* A denominação “católica” (que significa “holística” ou “universal”) começou a ser utilizada no início do século II para se referir à igreja, e por um discípulo direto dos apóstolos. Com o tempo essa designação se consolidou e passou a distinguir a igreja de movimentos heréticos que se apresentavam como cristãos.

Embora seja natural que mudanças importantes ocorram, e até nisso a Igreja Católica é ótimo exemplo, o Cristianismo não poderia ser tão influenciado pelos gregos ao ponto de ficar completamente desfigurado. Se isso tivesse realmente acontecido significaria que as coisas não saíram conforme o previsto por Jesus. E o pior, esse desvirtuamento, que seria a própria morte do Cristianismo original, teria acontecido praticamente debaixo das barbas dos apóstolos, pois os registros mais antigos disponíveis de cristãos próximos da era apostólica dão conta de que eles acreditavam que o homem é formado por corpo e alma, e que esta última continua viva depois da morte, sendo que a ressurreição consiste em juntar essas duas partes novamente, restaurando a integração corporal de antes. Isso está exemplificado nas obras dos Pais da Igreja apresentadas na seção 6 e na explicação do apêndice F sobre o monismo bíblico. Dentre esses cristãos estão inclusive homens que foram ensinados diretamente pelos apóstolos.

Portanto, o mais sóbrio e coerente é admitir que o elo doutrinal que uniu os cristãos do primeiro e os do segundo século jamais foi rompido. E isso se manteve até os dias hoje, mesmo que tenha havido mudança em alguns assuntos (mas não nesse sobre a sobrevivência da alma). É por essa razão que os conceitos apresentados sobre a alma na literatura Patrística geralmente estão corretos e confirmam o entendimento que se tem atualmente de determinados textos a exemplo de Mateus 10:28. Não admitir isso é negar a realidade sobre a transmissão do antigo legado cristão para as gerações posteriores.

Se os aniquilacionistas refletissem sobre tudo isso eles não atribuiriam falsidade ao que sempre foi crido como verdadeiro pelos cristãos e abandonariam a crença aniquilacionista, que de cristã não tem nada. Mas, infelizmente, a maioria deles não possui o conhecimento necessário para ponderar bem a situação, e os poucos que conhecem melhor o assunto, a exemplo do autor do MB, foram dominados por uma teimosia atroz e irracional.

E com relação à reclamação que fazem sobre serem chamados de aniquilacionistas ou materialistas acredito que esta seção demonstrou que tais classificações são justas e apropriadas. É um estigma que em si já demonstra que eles estão errados, pois não querem aceitar o que realmente são.

 

8. AS DEMAIS OBRAS CITADAS E A RECORRÊNCIA DOS ERROS COMETIDOS

Se o autor do MB continuasse a citar somente trabalhos sérios e isentos, não importaria o quanto ele engrossasse o rol de publicações apresentadas. O problema seria sempre o mesmo. Ou seja, em sua maioria textos citados completamente à margem da intenção de seus autores, devido aqueles cinco erros em ação, os que eu comentei na seção 4. Entretanto, ao ampliar o número de citações, ele incluiu algumas obras bastante tendenciosas ou então claramente aniquilacionistas, como é o caso de um livro adventista chamado “Imortalidade ou Ressurreição?”.

O objetivo desta seção é analisar o que foi citado pelo autor do MB da 52ª obra em diante, inclusive as que são questionáveis em termos de erudição e seriedade, porém não da maneira que eu fiz nas seções 2, 3 e 4, pois ficaria repetitivo e demasiadamente longo. Por isso, em muitas citações não adentrarei em outras informações apresentadas pelos autores e vou me restringir apenas ao que está citado. Ir além disso necessitaria fazer um exame mais minucioso das obras como aquele que eu fiz na seção 2, na maioria dos casos. O quadro que emergiu até aqui demonstra que não há necessidade de vasculhar muito o que cada autor escreveu, pois já está mais do que evidente o uso inadequado de tais referências pelo “bereano”.

Apenas para relembrar, os cinco erros cometidos pelo autor do MB e seus pares são os seguintes:

Erro 1 – Não entender as críticas contra o conceito de imortalidade da alma

Erro 2 – Deslocar o centro da discussão para se esquivar da ideia primária (conf. Mateus 10:28)

Erro 3 – Usar de maneira errônea o enfoque da Bíblia hebraica sobre o termo “alma” (nefesh)

Erro 4 – Ignorar o que comentaristas disseram sobre o mundo dos mortos

Erro 5 – Valer-se de peculiaridades de cada autor ou de teorias formuladas por teólogos liberais

Quem estiver lendo a versão on line deste livro e quiser saber mais detalhes de cada um desses cinco erros basta clicar no link desejado. Retorne a esta parte do texto usando a seta de voltar do seu navegador. O erro nº 2 é mais de motivação do que propriamente de citação inadequada. Ele está indiretamente presente em muitos dos trechos citados, porém só o indicarei se houver uma menção direta do confronto “sobrevivência da alma após a morte” versus “imortalidade inerente da alma”, que tecnicamente são coisas diferentes, conforme está explicado nos apêndices A e F.

Eu indicarei com o número 5 as citações de livros ou periódicos cujos autores são notoriamente aniquilacionistas, ou muito próximos disso, embora nestes casos não seja propriamente uma peculiaridade autoral, mas a própria essência da obra. Assim evita a criação de uma sexta categoria. Quando eu destaquei os cinco erros eu ainda não tinha examinado todas as publicações e achava que o autor do MB citaria apenas referências imparciais e que não fossem tendenciosas ao aniquilacionismo, ou mesmo abertamente defensoras desse ensinamento. No início ele fez isso, mas depois mudou um pouco o rumo de sua “pesquisa”.

– Os negritos abaixo são do autor do MB, e os destaques em azul são meus, além de alguns destaques em amarelo e colchetes ocasionais, usados com números para indicar alguma sequência de raciocínio.

– As citações poderão ser encurtadas, porém mantendo-se os trechos que interessam.

– Para ir à lista de publicações citadas clique no título numerado da obra.

– As citações bíblicas nos meus comentários são da Tradução do Novo Mundo (1986), exceto nos textos com outra indicação ou link que remete para um site externo.

52. Theologische Realenzyklopädie (1977-2004)

“A recepção da teoria de Platão sobre a imortalidade da alma por meio da teologia e das declarações doutrinais da igreja assegurou-lhe uma influência esmagadora na história anterior do cristianismo. Esta influência ainda é tão forte que para muitos ela eclipsa a esperança bíblica da ressurreição da pessoa inteira e confunde o núcleo da mensagem cristã sobre a vida após a morte com a doutrina platônica. Porém, os reformadores reconheceram que esta doutrina da imortalidade é de origem filosófica e não bíblica”.

Theologische Realenzyklopädie (Enciclopédia Teológica), Fundação Walter de Gruyter, GmbH & Co. KG, Alemanha, 1977-2004, Vol. 36, p. 394.

ERROS: 1 e 3.

Comentário: certamente a teoria de Platão sobre a imortalidade da alma é de origem filosófica e não bíblica. Porém, não obstante o que se conclua da comunicação que houve entre a doutrina cristã da imortalidade com a ideia de Platão, em nenhum momento a crença de que uma alma sobrevive à morte dependeu de uma eventual teologia adaptada à linguagem platônica. Sim, o que aconteceu foi mais isto ao invés de uma “recepção” do que Platão pensava, conforme revela um rápido passeio nos escritos dele. Por isso os protestantes não são aniquilacionistas, e nem o eram Martinho Lutero e os demais reformadores. Além disso, o entendimento “imortalista” deles não era desculpa para imposição de poder e jamais dependeu de Platão. E nem tampouco o ensino da igreja primitiva sobre a vida após a morte estava relacionado a tais coisas. Para mais detalhes sobre o pensamento dos reformadores sobre o que é a alma, leia o capítulo 1 do meu livro “Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma”.

53. The Oxford Dictionary of the Christian Church (1997)

Platão e outros gregos insistiam nas limitações que a matéria impunha à alma. O corpo era um impedimento, até mesmo uma prisão, da qual a morte traria a libertação da alma para uma existência mais completa. . . . Essas concepções filosóficas da imortalidade estavam comumente restritas a poucos. Nos primeiros tempos, o pensamento hebraico sobre o mundo vindouro dificilmente ia além da concepção de uma existência muito sombria [ou irreal] no Seol. No judaísmo pré-cristão posterior, desenvolveu-se um maior senso da realidade da vida futura, em parte através da reflexão sobre o problema do sofrimento, em parte pelo ardente desejo de uma comunhão permanente com Deus, em parte pela reformulação da expectativa messiânica. A esperança judaica tornou-se cada vez mais ligada à crença na ressurreição do corpo, especialmente entre os escritores apocalípticos. Especialmente fora da Palestina, o judaísmo tomou emprestado extensivamente do pensamento grego; no Livro da Sabedoria, por exemplo, a doutrina da imortalidade tem uma forte inclinação platônica... A ideia de uma distinção entre a alma, o princípio imaterial da vida e inteligência, e o corpo é de grande antiguidade, embora só gradualmente tenha sido expressa com alguma precisão. O pensamento hebraico fez pouco desta distinção, e praticamente não há ensinamento específico algum sobre o assunto na Bíblia além de um pressuposto subjacente de alguma forma de vida após a morte... a ideia platônica... [é que] a alma imortal é o verdadeiro eu, preso por um tempo num corpo estranho...”.

The Oxford Dictionary of the Christian Church, Oxford University Press, New York, USA, 1957; 3ª Edição, F. L. Cross e E. A. Livingstone (eds.), 1997, pp. 822, 1520, 1521.

ERROS: 1, 3 e 4.

Comentário:

Esse acréscimo da palavra “irreal” feito pelo autor do MB, que destaquei em vermelho, desvirtua o verdadeiro entendimento na Bíblia sobre a existência dos mortos no Seol, que jamais foi encarada como fantasia ou mito. Os seres do Seol eram considerados reais, de maneira semelhante ao que se cria em diversas nações do mundo antigo. A prática da necromancia que ninguém conseguiu banir completamente de Israel atesta isso, justamente porque os personagens bíblicos acreditavam na existência literal das criaturas debilitadas do Seol, as “sombras”. Uma parte da nação seguia a ordem mosaica de não tentar consultar tais seres invisíveis, outra parte fazia pouco caso dessa lei. Porém ambos os grupos acreditavam na existência literal dos mortos nas profundezas da Terra. Ao acrescentar os referidos colchetes, ou o autor do MB demonstra de maneira patente o seu entendimento errado, ou age de má-fé ao tentar inserir um entendimento que não foi a intenção de quem escreveu o comentário citado. De qualquer maneira, para não ficar dúvida quanto a isso, esse mesmo dicionário diz no verbete “Seol” (p. 1494) que esse lugar é a morada dos espíritos dos mortos.

A existência no Seol até poderia ser chamada de algo que não é verdadeira vida, devido ao cenário sombrio de tal lugar. Não seria, portanto, uma vida real, mas não no sentido de que não há pessoas reais e conscientes de si no mundo subterrâneo, e sim porque experimentam uma existência rebaixada, que pouco lembra o que usufruíam na Terra. O próprio dicionário deixa isso claro no trecho selecionado pelo autor do MB ao dizer que havia um pressuposto pouco desenvolvido pelos hebreus de uma existência continuada depois da morte. Quando o dicionário afirma que a Bíblia hebraica faz pouca distinção entre corpo e alma imaterial significa que ela faz sim tal distinção, porém em pequena escala, quando comparada a outras literaturas antigas, a exemplo da grega. Qual é a dificuldade de enxergar essas informações em tal referência bibliográfica? A meu ver nenhuma. Neste caso reforça-se a possibilidade de aplicação errônea proposital.

Este dicionário também contém várias outras informações importantes, a exemplo de que o paraíso mencionado em Lucas 23:43 é o estado intermediário dos justos antes da Ressurreição ou um lugar espiritual abençoado equivalente ao céu, sendo que com este sentido aparece em 2 Cor. 12:4 e Apocalipse 2:7 (verbete “Paraíso”, p. 1218). Também informa, conforme foi citado na seção 1, que o conceito de aniquilacionismo jamais foi ensinado na igreja primitiva e que ele apareceu somente de maneira esporádica, sendo Arnóbio de Sica o primeiro representante dessa corrente de pensamento (verbete “Imortalidade condicional”, p. 393). Mas isso em termos ortodoxos, pois Arnóbio só não acreditava que a alma fosse imortal no sentido absoluto, mas achava que ela sobrevive à morte. Não é o aniquilacionismo materialista, segundo o qual não existe mais alma depois que o corpo morre.

54. Evangelisches Kirchenlexikon (2001)

“Todos os cristãos creem na imortalidade, entendida como uma ressurreição final para a vida eterna. A maioria tem defendido que a imortalidade inclui também a contínua existência da alma ou pessoa entre a morte e a ressurreição. Porém, quase todos os detalhes desta confissão geral e sua base bíblica foram contestados. O debate foi alimentado pelo desenvolvimento de crenças sobre a vida após a morte dentro da própria Bíblia e a variedade da linguagem em que elas são expressas. A Bíblia Hebraica não apresenta a alma humana (nepeš) ou o espírito (rûah) como uma substância imortal, e na maior parte encara os mortos como fantasmas no Seol, o submundo escuro e sonolento... Os saduceus enfatizaram a dissipação da vida no Seol e às vezes adotaram o materialismo grego, que negava totalmente a vida após a morte. Outros... influenciados por Platão... enfatizaram a imortalidade da alma em vez da ressurreição física do corpo. Os fariseus abraçaram ambos, o Seol e os textos sobre ressurreição do AT, afirmando um estado intermediário, uma futura ressurreição corporal na vinda do Messias e imortalidade em seu reino”.

Evangelisches Kirchenlexikon, E. Fahlbusch, J. M. Lochman, J. Mbiti, J. Pelikan, Lukas Vischer, G. W. Bromiley and D. Barret, Göttingen, Germany, 1986. (Em inglês: English as Encyclopedia of Christianity, Wm. B., Eerdmans Publishing Company, 2001, p. 668).

Veja a continuação do trecho acima:

O N[ovo] T[estamento] desenvolve uma posição mais parecida com a dos fariseus (ver Atos 23:6-8). Enquanto seu maior estresse é a ressurreição do corpo, que é explicitamente identificado como ‘imortal’ (ver 1 Coríntios 15:53-54), também prevê a comunhão pessoal com Cristo imediatamente após a morte (Lucas 23:43, 46; 2 Coríntios 5:1-10, Filipenses 1:20-24). Ele usa ‘alma’ (psyche) e ‘espírito’ (pneuma) em sentidos amplamente sinônimos, não-técnicos e não os descreve explicitamente como ‘imortais’. Com base nessa leitura da Escritura, a maioria dos cristãos entendeu a imortalidade como ‘vida eterna’, um dom de Deus para o crente individual que é dado já nesta vida (João 6:47), continua após a morte em um ‘estado intermediário’ até a ressurreição corporal e permanece para sempre com Deus em seu reino eterno, o novo céu e a nova terra... A outra visão minoritária é implicitamente materialista. Encontra-se principalmente entre os anabatistas do século XVI e as seitas posteriores, como os adventistas do sétimo dia. Sustentado na Inglaterra por Thomas Hobbes e John Milton, ganhou popularidade entre os intelectuais no século XX. Ela sustenta que uma pessoa não pode existir sem um corpo e nega a imortalidade da alma. Assim, ela exclui o estado intermediário, embora possa falar de ‘sono da alma’, e atribui a imortalidade apenas à ressurreição do corpo na segunda vinda de Cristo. Nega que o AT antevisa uma vida após a morte e que o NT ensina um estado intermediário. Ela sustenta que a visão majoritária cristã resulta principalmente do platonismo, não da Bíblia. Tanto os platonistas quanto às minorias materialistas concordam em sua maioria que a ressurreição ocorrerá no retorno de Cristo”. – The Encyclopedia of Christianity, Wm. B., Eerdmans Publishing Company, 2001, Vol. 2, pp. 668-670.

ERROS: 1 e 4.

Posteriormente, o autor do MB também incluiu a continuação do trecho que eu indiquei.

Comentário:

Dentro da intenção do autor do MB, o trecho que ele transcreveu transmite uma ideia completamente enganosa, diferente da que a obra realmente apresenta. Quando ela diz que todos os cristãos creem na imortalidade, dentre eles não estão os que acham que a morte resulta na completa inexistência (materialismo). Esta é uma opinião sectária não amparada nas Escrituras Sagradas. Em geral, os cristãos mencionados nesse trecho acham que quem morre vai para o Hades, que na antiga visão hebraica não é uma verdadeira vida, e de maneira consciente aguarda em tal lugar a ressurreição do corpo. Ou então, ao morrer, a pessoa é levada imediatamente para a vida no céu, antes da ressurreição geral dos mortos, mediante a qual até os ímpios serão ressuscitados, para serem julgados e lançados na Geena ardente. Lá sofrerão eternamente, de maneira física e espiritual. Todos esses aspectos estão relacionados à antiga crença cristã na imortalidade.

Os outros problemas nessa citação do autor do MB são aqueles mais corriqueiros, que estão sempre presentes no uso inadequado que ele faz de tais obras. Essa daí afirma tão claramente quanto a luz do dia que a morte não implica na inexistência, e que a própria Bíblia menciona isso em alguns momentos, porém tais palavras não surtem qualquer efeito na mente do nosso “pesquisador bereano”. E quanto à referência ao platonismo não é preciso explicar mais nada. É o erro nº 1 em ação... A propósito, ter o apóstolo Paulo mencionado que a morte implica na ida imediata do cristão para o céu e que o destino geral dos mortos é o mundo subterrâneo está em perfeita sintonia com o fato de que ele foi fariseu. Ou seja, ele sempre aceitou o conceito bíblico de ‘Seol e os textos sobre ressurreição do AT’. – Filipenses 1:21-23; 1 Coríntios 5:5; Efésios 4:9; Filipenses 2:9-11; Romanos 10:6, 7; compare com Mateus 12:40.

Por eu ter indicado a continuação da citação que fez, o autor do MB achou melhor incluí-la também. Mas, para tentar se safar, ele destacou em negrito a parte que fala sobre a ressurreição do corpo físico. Destacar esse pormenor é irrelevante, pois não é nenhuma novidade, conforme já visto em diversos momentos deste trabalho, que o selo da imortalidade só será dado ao ser humano depois da ressurreição geral dos mortos. Isto não anula o fato da alma espiritual continuar viva depois da morte do corpo (Mateus 10:28). O destino final de cada pessoa só será definido depois da ressurreição e do subsequente julgamento, com base em atos desta vida. É assim que os primitivos cristãos acreditavam, como revela não só a Bíblia, mas também toda literatura antiga posterior. A essa altura o autor do MB já devia ter se dado conta dessas coisas...

Por fim, quando alguém contesta algo não significa necessariamente que o ponto contestado seja falso. Contestar é apenas se opor a uma crença ou a um fato tido como verdadeiro por outros. Qualquer um pode contestar o que quiser. Alguns cristãos terem contestado a crença no estado intermediário é algo completamente sem importância. E mais ainda é a contestação dos que não acreditam na existência contínua e defendem o materialismo “cristão”, um conceito que é natimorto em si mesmo, visto que não é fundamentado na Bíblia e é apenas uma tendência moderna travestida de cristã.

55. Holman Bible Dictionary (1991)

Alma. A existência vital de um ser humano. A palavra hebraica nephesh é um termo-chave do Antigo Testamento (755 vezes) que se refere aos seres humanos... Na Bíblia, uma pessoa é uma unidade. Corpo e alma ou espírito não são termos opostos, e sim termos que se complementam uns aos outros para descrever aspectos da pessoa inseparável completa... Essa imagem holística de uma pessoa é mantida também no Novo Testamento... A alma designa a vida física... A alma significa o ser humano inteiro... em sua vida física que necessita de comida e roupas (Mateus 6:25)... Uma pessoa não tem alma. Uma pessoa é uma alma viva (Gênesis 2:7)... Alma designa os sentimentos, os desejos e a vontade dos seres humanos... A alma também conhece emoções positivas... Jamais nestes casos o sentido se refere a apenas uma parte do ser humano... A alma designa a pessoa humana... A vida é o bem supremo quando é vivida de acordo com as intenções de Deus e não esgotada na busca de bens materiais e culturais (Marcos 8:34-37). Esta vida é mais forte do que a morte e não pode ser destruída por seres humanos (Mateus 10:28). Porém, a alma não representa uma parte divina, imortal, imorredoura do ser humano após a morte, como os gregos frequentemente pensaram. Assim, Paulo evita a palavra alma em conexão com a vida eterna. Há uma continuidade entre a vida terrena e a ressuscitada que não reside nas capacidades ou na natureza dos humanos mortais. Encontra-se unicamente no poder do Espírito de Deus (1 Coríntios 15:44). Segundo a Bíblia, um ser humano existe como uma unidade inteira e permanece também como uma pessoa inteira na mão de Deus após a morte. Uma pessoa não é vista em momento algum como uma alma desincorporada”. – Verbete “Alma”.

Imortalidade. A qualidade ou estado de ser isento de morte. No verdadeiro sentido da palavra, só Deus é imortal... Assim, a vida eterna não é nossa porque temos o poder inerente de viver para sempre; a vida eterna e a imortalidade são nossas somente porque Deus decide concedê-las a nós. Na maioria das vezes, recebemos imortalidade após a morte. Aqueles que escaparam da morte – Enoque (Gênesis 5:24) e Elias (2 Reis 2:10-11) – fizeram isso tão somente pelo poder de Deus e não por algum poder inerente que eles tinham de viver para sempre. . . . Em suas aparições pós-ressurreição Jesus tinha um corpo que era de natureza tanto espiritual ... como física... [O apóstolo Paulo] não reconhece verdade alguma na ideia grega de uma separação de corpo e alma... Um corpo da ressurreição e a vida no reino consumado de Deus caracterizarão a ressurreição daqueles que seguem a Cristo”. – Verbetes “Imortalidade” e “Ressurreição”.

Holman Bible Dictionary, Holman Bible Publishers, Nashville, TN, USA, 1991 (versão on line).

ERROS: 1 e 3.

Comentário: na visão grega a alma não possui corpo, e alguns filósofos chegaram a pensar que ela assumia a forma de uma esfera. Isto difere na concepção judaico-cristã, pois ainda que as “sombras” no Seol / Hades não sejam feitas de matéria física, está implícita a ideia de que elas têm uma aparência semelhante à que tinham quando viviam na Terra, a ponto de se reconhecerem e serem reconhecidas, como foi o caso da recepção que deram no Seol ao rei de Babilônia (Isaías 14:9-15). Conforme está bem claro nas explicações acima, não há aniquilação automática depois da morte, seja porque a parte imaterial do homem vai para o Seol / Hades, seja porque ele é levado ao céu para usufruir uma vida plena, mas sem ainda interagir diretamente com as coisas da Terra. Isto acontecerá somente depois do Julgamento Final. Ressalte-se, porém, que, embora a obra acima não advogue o aniquilacionismo, estritamente falando há uma inconsistência em uma parte do trecho citado, que destaquei em vermelho. Se a alma designa somente a vida física, os homens então têm o poder de matá-la, mesmo que ela tenha vivido somente para Deus. Mas o que Jesus falou em Mateus 10:28 vai além do aspecto físico e terreno.

56. Expository Dictionary of Bible Words (1985)

“Assim, ‘alma’ no AT não indica alguma parte imaterial dos seres humanos que continua após a morte. Nepeš significa essencialmente a vida como ela é experimentada exclusivamente por seres pessoais... O significado básico de psykhe’ é estabelecido por sua correspondente no AT [nepeš], em vez de por seu significado na cultura grega”.

Expository Dictionary of Bible Words [Dicionário Expositivo de Palavras Bíblicas], Lawrence O. Richards, Zondervan Publishing House, Grand Rapids, MI, EUA, 1985, p. 576.

Veja a continuação do trecho acima:

“Tal como muitos termos bíblicos, o significado básico de psykhe’ é estabelecido por sua correspondente no AT, em vez de por seu significado na cultura grega. ‘Alma’ refere-se à vida pessoal, a pessoa interior. Dos seus mais de cem usos do N[ovo] T[estamento], a psique é representada pela N[ew] I[nternational] V[ersion] como ‘alma (s)’ apenas vinte e cinco vezes... Embora haja muita sobreposição nos usos do NT de psique e pneuma (espírito), parece também haver algumas áreas de distinção. Muitas vezes o foco dos contextos em que esses termos aparecem se sobrepõe. Assim, ambos são usados para falar da existência pessoal, da vida após a morte, das emoções, do propósito e da pessoa em si (o ‘eu’). Mas psique também é usada para se referir à vida física e ao crescimento espiritual, enquanto pneuma está associado distintamente com respiração, adoração, compreensão, atitude ou disposição de alguém e poder espiritual”. – Greek Word Studies: Soul.

ERROS: 1 e 3.

Posteriormente, o autor do MB também incluiu a continuação do trecho que eu indiquei.

Comentário:

Quando o autor do MB resolveu incluir a continuação do trecho, é porque ele acha que não representa nenhum problema para o aniquilacionismo a palavra psyché (ou outras com a mesma ideia) ser usada também para se referir à vida após a morte (ex.: Apocalipse 20:4). Certamente ele pensa que a “vida após a morte” mencionada pelo escritor se refere somente à ressurreição futura. Ou seja, não seria uma vida imediatamente após a morte. Mas em um momento desconhecido no futuro. Porém isso implicaria inevitavelmente em uma completa extinção da pessoa, conforme explicado em outros momentos deste trabalho, sendo que tal conceito materialista é rechaçado pela franca maioria dos eruditos citados pelo autor do MB.

57. The Authority of the Bible (1929)

“Os profetas nada sabem sobre qualquer vida, além da atual... Só um livro tão fortemente helenizado como a Sabedoria de Salomão inculca alguma coisa como a doutrina platônica da imortalidade da alma. O Novo Testamento está cheio da certeza da vida eterna. Realmente não há qualquer discussão sobre a imortalidade como uma teoria filosófica. O argumento de Paulo sobre a ressurreição que estamos acostumados a ler no sepultamento dos mortos [1 Cor. 15:12-58] não é nada convincente, se partirmos da suposição de que ele estava tentando provar a imortalidade da alma. Na verdade não é sobre isso que ele está falando. As premissas dele são as do Judaísmo da época: que um homem morto está realmente morto e perdido, a menos e até que Deus o faça viver novamente por um ato de poder criativo, e que este milagre ocorrerá quando a Nova Era começar. Sob estas premissas, o fato de que Jesus estivera morto e estava vivo forneceu uma prova de que havia chegado a era do milagre, na qual todos os que Deus julgasse dignos haveriam de receber dele a vida sobrenatural...”.

The Authority of the Bible [A Autoridade da Bíblia], Charles Harold Dodd, Harper & Brothers Publishers, Nova Iorque e Londres, 1929, pp. 205, 206.

Veja a seguir a continuação do trecho acima e a retomada do argumento mais adiante:

“... Em um sentido escolástico, o argumento faz sentido, embora opere com concepções estranhas para nós. Mas está por trás disso uma convicção, baseada na experiência religiosa mediada por Cristo, de que não há agora nenhuma barreira absoluta entre este mundo de trabalho e a ordem eterna. A nova perspectiva não é limitada pelo robusto ‘mundo atual’ dos profetas, e, no entanto, difere do pessimista ‘outro mundo’ apocalíptico. Quando Paulo teve seu primitivo fanatismo escatológico, viu que os valores naturais deste mundo, como os da família, do trabalho e da ordem política, permanecem para o cristão; Mas, entretanto, sua vida real está ‘escondida com Cristo em Deus’ e enquanto vive ‘na carne’ já está ‘nos lugares celestiais com Cristo Jesus’. Em outras palavras, ele tem a experiência dos valores eternos em um mundo de espaço e tempo.

“Para o autor do Quarto Evangelho, o quadro escatológico da convicção quase se dissolveu. Ele afirma que conhecer a Deus como Ele é conhecido em Cristo, através da participação na qualidade divina e na atividade do amor, é a vida eterna. Esta é, em substância, a posição de praticamente todos os escritores do Novo Testamento. Para as pessoas que alcançaram essa posição, a sobrevivência pessoal não precisa de nenhuma prova, nem é uma hipótese exigida pela tentativa de justificar os caminhos de Deus aos homens diante dos assustadores fatos da nossa mortalidade. Filosoficamente, toda a questão ainda está aberta à especulação, e o pensamento cristão, após o Novo Testamento, freqüentemente usou, de forma bastante justificada, a concepção platônica e outras sobre a imortalidade da alma como sendo formas intelectuais de sua fé. Mas a perspectiva do Novo Testamento é, em si mesma, uma libertação do medo incapacitante da morte corporal, que torna possível pensar nela com uma calma clareza mental, sem ser perturbada por essa depreciação mórbida desta vida, que é muitas vezes o preço pago por uma afirmação enfática da vida futura...”. – pp. 206, 207.

“Por outro lado, a vida interior do Judaísmo foi ampliada e enriquecida pelo contato com o mundo mais amplo. A fé de Zaratustra, as filosofias de Platão e Zenão, o misticismo do Egito, ajudaram a moldar o pensamento do judaísmo tardio, mas de tal modo que essas influências externas são completamente assimiladas e transmutadas pelo poder inerente da religião de Jeová . É sem dúvida em parte como resultado desses contatos mais amplos que neste período a concepção de um mundo espiritual e uma vida futura começa a fazer parte do pensamento judaico - em parte, mas talvez mais como resultado dos golpes que a nação sofreu. A dura experiência revelou a insuficiência do robusto ‘mundo atual’ da religião hebraica clássica. O judaísmo começa a reconhecer que o homem deve encontrar-se em casa em outro mundo ao lado deste mundo do tempo e do espaço, se sua comunhão com Deus é segura e real”. – p. 247.

ERROS: 1 e 4.

Comentário:

Em outras palavras, a morte não significa o fim da existência, mas a vida imediata com Cristo no caso dos que o seguem, que é um belo contraste com a expectativa mórbida de um mundo sombrio concebido pelo hebraísmo clássico. A morte é o fim do homem apenas qual ser humano de carne e osso, que depende de oxigênio para viver. Mas isso não anula sua existência espiritual depois que o corpo físico deixa de funcionar. Nenhum homem em sua inteireza é imortal. Esta é uma dádiva que, de acordo com a Bíblia, será dada apenas no futuro, depois da ressurreição dos mortos.

Atente também que o Judaísmo tardio que o autor do livro mencionou não se refere apenas ao que havia algumas décadas antes de Cristo. Também inclui o período em que os últimos livros do Antigo Testamento foram escritos. Existe relativo consenso que as expectativas de vida espiritual e satisfatória depois da morte e a subsequente ressurreição do corpo foram resultado direto da influência religiosa de povos com os quais os judeus se misturaram durante o exílio babilônico e depois.

Certa vez, em conversas particulares que mantínhamos, o autor do MB externou o sentimento de que a Bíblia é uma obra hermética e que tem pouco a ver com a religiosidade de sua época. Que ele vem fazendo citações bem deficientes dessas referências bibliográficas não há a menor dúvida, entretanto, será que essa coleta de informações que ele fez serviu ao menos para abrir-lhe os olhos, em relação ao pressuposto idílico que ele tinha sobre o processo de escrita dos textos que um dia foram reunidos para formar a Bíblia Sagrada? – Compare com 2 Crônicas 35:20-27.

58. Paulus, Ontwerp van zijn theologie (1966)

Em Paulo, psychē não é – segundo o modo greco-helenista – o homem imortal, distinto do sōma e nem denota o espiritual como sendo distinto do material. De um modo geral, psychē significa a vida natural do homem (cf. Rm 11.3; 16.4; 1Ts 2.8 – dar a própria “alma”, ou seja, a vida ... Psychē e físico significam nesse caso claramente a vida natural e terrena, que não tem subsistência em si, mas encontra-se sujeita à morte e à destruição;... Paulo fala de pneuma num sentido muito parecido com psyche, pelo menos na medida em que se refere ao espírito humano e não ao Espírito de Deus dado aos ... não há nenhum traço do espírito como um princípio divino supra-sensual inerente ao homem... No mesmo sentido de ‘uma só alma’, etc., o apóstolo fala de ‘um só espírito’ (Fp 1.27), ‘comunhão no Espírito’ (Fp 2.1, et al). Não significa nada além do homem em sua existência natural interior. Portanto, quando é dito em 1 Tessalonicenses 5.23 “o vosso espírito, alma e corpo, sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor...” é bem provável que não deva-se pensar aqui numa representação tricótoma, na qual as três partes podem ser claramente distinguidas entre si dentro do homem e na qual o pneuma denota uma área mais elevada da vida e separada do psyche... Paulo fala do homem interior não apenas de uma única maneira. Para isso, usa a palavra ‘alma’, bem como ‘espírito’ sem que seja sempre possível distinguir entre elas num sentido técnico”.

Paulus, Ontwerp van zijn theologie, Herman Ridderbos, Kampen, Netherlands, 1966 (Paul: An Outline of His Theology. Translator: John Richard de Witt., Eerdmans Company, Grand Rapids, MI, USA, 1975). Edição em português “A Teologia do Apóstolo Paulo”, editora Cultura Cristã, 2004, pp. 128, 129.

ERROS: 1 e 5.

Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Caso continue vivendo no corpo, terei fruto do meu trabalho. E já não sei o que escolher! Estou pressionado dos dois lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é muito melhor; contudo, é mais necessário, por causa de vocês, que eu permaneça no corpo.

Filipenses 1:21-23

Sabemos que, se for destruída a temporária habitação terrena em que vivemos, temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna nos céus, não construída por mãos humanas. Enquanto isso, gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação celestial, porque, estando vestidos, não seremos encontrados nus. Pois, enquanto estamos nesta casa, gememos e nos angustiamos, porque não queremos ser despidos, mas revestidos da nossa habitação celestial, para que aquilo que é mortal seja absorvido pela vida. Foi Deus que nos preparou para esse propósito, dando-nos o Espírito como garantia do que está por vir. Portanto, temos sempre confiança e sabemos que, enquanto estamos no corpo, estamos longe do Senhor. Porque vivemos por fé, e não pelo que vemos. Temos, pois, confiança e preferimos estar ausentes do corpo e habitar com o Senhor. Por isso, temos o propósito de lhe agradar, quer estejamos no corpo, quer o deixemos. Pois todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo, para que cada um receba de acordo com as obras praticadas por meio do corpo, quer sejam boas quer sejam más.

2 Coríntios 5:1-10

Veja a seguir o que Herman Ridderbos disse sobre a situação do crente depois da morte, em referência aos dois textos bíblicos acima (A Teologia do Apóstolo Paulo, editora Cultura Cristã, 2004, pp. 560-569, seção 75: “Morte Antes da Volta de Cristo. O ‘Estado Intermediário’.”):

“Antes de irmos mais adiante com a expectativa de Paulo quanto ao futuro em geral, também devemos dar atenção aqui à questão tratada com freqüência nos últimos anos, quanto a haver um lugar nessa expectativa para o chamado estado intermediário entre a morte e a ressurreição... Na seção anterior, vimos que... Paulo prefere falar dessa morte como ‘dormir’*... De fato, foi colocada a pergunta quanto a se, com essa descrição da condição dos crentes falecidos antes da vinda de Cristo, também pensa-se num sono no qual cessam toda a atividade e consciência e do qual só se desperta na ressurreição... As palavras ‘estar com Cristo’ denotam... o que significa morrer para Paulo. Ele emprega uma expressão semelhante em 1 Tessalonicenses 4.17: ‘encontro com o Senhor’. Nessa passagem, porém, refere-se à existência dos crentes depois da volta de Cristo, isto é, depois da ressurreição e união com aqueles que ainda estão vivos nessa ocasião. Em Filipenses 1.23, no entanto, o sentido parece ser outro, a saber, uma transição que ocorre na morte e, desse modo, não será possível considerar uma pressuposição tácita da ressurreição...”.

* Ridderbos informa na nota 23 que referir-se à morte como sendo um sono é apenas um eufemismo que era muito utilizado no mundo antigo, inclusive em escritos extrabíblicos. Ou seja, trata-se tão somente de uma comparação do falecimento do corpo com o ato de dormir. Veja o verbete “Morte” da Enciclopédia Americana (obra nº 9). Há quem discorde que este uso seja realmente um eufemismo, visto que esta figura de linguagem serve para suavizar algo que tem sentido ruim ou negativo, e a morte do crente é algo bom, uma vez que ele fica em paz ou descansa. No entanto, é preciso lembrar que a primeira impressão que se tem da morte é causada pelo corpo inerte que irá se decompor. Algo certamente terrível e indesejável. De modo que dizer que quem morreu está dormindo torna-se um eufemismo para amenizar a realidade da morte física.

“Estar com Cristo, portanto, denota a condição dos crentes imediatamente depois de sua morte... essa concepção, na qual ‘habitar com o Senhor’ significa o estado intermediário (que se concretiza quando o corpo ‘se desfizer’), parece altamente recomendável. Em primeiro lugar, essas expressões são menos apropriadas para indicar a transição deste corpo para o corpo de ressurreição. Menciona-se deixar o corpo (v. 8) - não passar a ocupar um outro corpo, mas ‘habitar com o Senhor’... Se esta exegese é correta, como acreditamos que seja, então, de fato, fala-se sobre o estado intermediário em 2 Coríntios 5.8 e isso, verdadeiramente, como ‘habitar no Senhor’... Se, dentro da estrutura da pregação de Paulo não existe, desse modo, qualquer dúvida sobre a realidade dos crentes estarem com Cristo imediatamente depois da morte, já a resposta para a questão do significado que deve ser atribuído a essa realidade, e qual o lugar que ocupa na salvação como um todo proclamada por Paulo, é muito mais difícil**... toda a esperança concentra-se na ressurreição e não na morte, a morte antes da ressurreição pode ser causa de grande tristeza e espanto para a Igreja.. No entanto, isso não significa que só é possível falar dos crentes falecidos antes da ressurreição em termos de morte e não vida... É a partir desse ponto de vista de absoluta abrangência dos crentes pertencerem a Cristo, de sua comunhão com ele e sua inclusão nele, que também devemos entender o fato dos crentes estarem com Cristo imediatamente depois de sua morte (Fp 1.23), bem como depois da ressurreição (1 Ts 4.17; 5.10). Contudo, aquilo que vem em primeiro lugar na ordem cronológica não é o que vem primeiro na ordem da fé, não sendo, por causa disso, menos real ou essencial... nada nos separará do amor de Cristo (Rm 8.35, 38ss). Como ele declara explicitamente nessa passagem, essa realidade também é válida para a morte. Ela não trará qualquer separação entre Cristo e nós. Esse fato pressupõe a continuidade não apenas do amor, mas também do objeto do amor”.

** Ridderbos também diz na nota 33: “Essa ideia [de ir imediatamente para a presença de Cristo depois da morte] vai muito além da concepção mencionada na nota 32. Parte do pressuposto de que, em nosso texto, toda a idéia de vinda de Cristo e ressurreição do corpo foi abandonada e em seu lugar aparece a concepção da existência glorificada contínua das almas no céu. Nisso, se revelaria um ‘desenvolvimento’ da escatologia paulina rumo ao pensamento grego. De acordo especialmente com alguns dos exegetas ‘liberais’ mais antigos, mas também com W. K. Knox, St. Paul and the Church of the Gentiles, 1939, pp. 128ss; com outra opinião, W. D. Davies, Paul and Rabbinic Judaism, pp. 308-332. Este último fala de uma ‘justaposição de duas idéias diferentes’ em Paulo. A primeira seria representada por 1 Coríntios 15. Nessa passagem é mencionada a ressurreição do corpo na vinda de Cristo. Por outro lado, 2 Coríntios 5 falaria do corpo celeste que é concedido aos crentes imediatamente depois da morte. Davies acredita que ambas as representações remetem de volta às idéias parecidas no judaísmo e de que esta última, em Paulo, não teria origem, deste modo, diretamente no pensamento grego...”. – colchetes acrescentados; leia também a nota 29.

Para mais informações relacionadas consulte a seção 6 e o apêndice A.

Comentário:

Embora esteja bastante claro que Herman Ridderbos não defende a inexistência depois da morte, ele foi um daqueles teólogos que se posicionaram radicalmente contra expressar a esperança cristã de vida eterna em termos que lembrem o pensamento grego, ainda que essa “aproximação” esteja presente no Novo Testamento. O resultado é que Ridderbos chamou para si uma dificuldade desnecessária, pois de um lado ele aparentemente queria que “alma” tivesse uma única acepção, no caso, a vida natural do corpo físico, mas por outro defendeu a crença cristã de que a morte resulta na ida imediata para o céu, antes mesmo da ressurreição geral dos mortos. Ele deixa esse conflito patente em alguns momentos, a exemplo da nota 33. Até mesmo o reconhecimento dele de que a Bíblia realmente ensina a continuidade depois da morte só aparece depois de muitos circunlóquios, que vai deixando o leitor em dúvida sobre o que o autor realmente pensa sobre o assunto.

Ridderbos diz que há continuidade da vida após a morte, porém, segundo ele, isso é algo de difícil compreensão, uma vez que a pessoa ainda não recebeu o corpo glorificado da ressurreição. Mas essa dificuldade só veio à tona porque ele não quis reconhecer na linguagem de Paulo o fato simples de que o homem tem uma alma e que esta alma sobrevive à morte do corpo físico, ainda que tal sobrevivência seja uma ideia adjacente à visão bíblica mais comum da palavra “alma”. A meu ver, todo esse pudor na escolha das palavras, devido ao temor de se aproximar do conceito grego, não tem qualquer justificativa razoável. Os teólogos “imortalistas” que sofrem dessa “gregofobia” são os que caíram parcialmente na conversa daqueles teólogos liberais a exemplo de Oscar Cullmann, conforme Ratzinger mencionou em seu livro, citado no item 5 da seção 4.

Não há porque dificultar o entendimento a respeito do estado intermediário, quer ele se passe no céu, quer no Hades. Jesus foi muito claro ao dizer que todo aquele que vive e exerce fé nele, nunca, jamais morrerá (João 11:25, 26). Entenda-se aqui a morte no sentido hebraico, ou seja, uma existência sombria em um lugar estranho. E não aniquilação total, porque esta não existe a menos que Deus determine. Por isso os mortos podem ser levantados, isto é, trazidos de volta para este mundo. E quando advertiu os cristãos sobre os que morreriam às mãos de inimigos, Jesus também foi muito enfático ao dizer que os homens podem matar apenas o corpo, mas não a alma (Mateus 10:28). E é justamente assim que os mártires cristãos são retratados no céu, ‘Vi as almas dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus’ (Apocalipse 6:9, 10). Se na Bíblia “alma” se referisse somente ao corpo físico que está vivo, conforme Ridderbos aparentemente acreditava, tais textos não fariam sentido. Ou será que alguém tem alguma dúvida que quando um assassino tira a vida de um cristão ele não está matando essa “alma”, isto é, a própria pessoa? E isto de modo algum significa que a pessoa simplesmente ‘ficou na mente de Deus’ e que por isso Ele pode recriá-la no futuro. Mas sim que ela continua existindo efetivamente em outra realidade, conforme Jesus e o livro de Apocalipse aludiram.

De modo que não se trata de dar abertura à filosofia grega, ainda que haja um ponto básico de contato, pois a própria Bíblia indica que o homem possui algo que sobrevive de forma consciente à morte. Acho um pouco paranoico os que creem na sobrevivência depois da morte evitarem usar a palavra “alma” para se referir a essa realidade, para depois terem que construir um labirinto de argumentos para explicar a crença bíblica de uma vida imediata dos que morreram. Especialmente porque essa linguagem “imortalista” foi um desenvolvimento natural na historiografia cristã. Lembre-se que, conforme demonstra a literatura patrística, os cristãos antigos não faziam nenhuma cerimônia para usar esse termo (“alma”), como foi o caso de Justino. Conforme visto na seção 6, embora Justino tenha dito aos gregos que não é apropriado chamar a alma de imortal, em outro momento ele escreveu que ‘a alma de Samuel voltou para falar com Saul’ no episódio de Endor, e afirmou que isso é uma prova de que a alma fica viva depois da morte, ainda que ela não seja imortal no sentido grego. Ou seja, pré-existente, indestrutível e menosprezadora do corpo.

Portanto, é possível manter uma “distância segura” da doutrina grega sobre a imortalidade da alma, mas sem abrir mão da linguagem adequada para se referir à sobrevivência espiritual do momento da morte até a ressurreição do corpo, ainda que tais maneiras de se expressar não estejam tão presentes no Novo Testamento. Isto talvez seja assim justamente porque os escritores bíblicos queriam evitar que a mensagem deles se confundisse com o pensamento grego, e também porque eles mantiveram relativa aderência à maneira hebraica de pensar.

59. The Theology of Paul The Apostle (1998)

“Paulo usa psyche apenas 13 vezes, 4 delas em Romanos. Isso se encontra em notável contraste com o uso regular do termo no grego clássico e de nefesh no AT (756 vezes). Como em tantos outros aspectos, aparece clara aqui a diferença entre a antropologia hebraica e a grega. Pois no uso do grego clássico a psyche é ‘o núcleo essencial do homem que pode ser separado do seu corpo e não participa da dissolução do corpo’. Aqui está a origem do conceito de ‘imortalidade da alma’, como existência contínua de uma parte interior, oculta da pessoa humana após a morte. No pensamento hebraico, ao contrário, nefesh denota toda a pessoa, o ‘nefesh vivo’ de Gn 2,7. [Nota: “BDB, nefesh 4. Notável aqui é o fato de que nefesh pode ser usado em relação a uma pessoa morta pouco após a morte, enquanto o cadáver ainda tem as características distintivas da pessoa (Ver Jacob, TDNT 9.620-21)”]... O uso de Paulo reflete claramente a mortalidade hebraica típica. Psyche denotando a pessoa é clara em muitas passagens. Em outros lugares o sentido desloca-se para ‘vida’, ou psyche como foco da vitalidade humana... A inferência imediata que se pode razoavelmente tirar é que para Paulo o evangelho não trata de espiritualidade inata esperando por libertação, mas do Espírito divino que age a partir de fora sobre a pessoa e nela. Mais pertinente ao assunto, o espírito é evidentemente aquela dimensão da pessoa humana por meio da qual ela se relaciona mais diretamente com Deus... Houve mesmo uma opinião persistente de que para Paulo o espírito humano é apenas uma manifestação do Espírito divino. Isso poderia bem refletir a influência do pensamento hebraico. E embora isso não fosse incompatível com a antropologia estóica (e posteriormente gnóstica) em particular... Isso reflete as origens dos dois termos [psyche e pneuma] no uso grego e hebraico, mas no uso desenvolvido de Paulo a influência é predominantemente da antropologia hebraica... Mas no intervalo entre o uso mais antigo e Paulo tornou-se mais clara uma distinção, com pneuma denotando mais a dimensão do ser humano direcionada para Deus, psyche mais limitada à força vital em si... para Paulo o ser humano é mais que ‘alma’... A lição [de Paulo] seria a de advertir-nos contra a idéia de que a psyche pode revelar tudo o que há de importante sobre a vida interior de uma pessoa. Paulo, mais uma vez em linha com a herança judaica... A vida humana culmina na morte, seja como vitória do pecado e da morte, seja como derrota e destruição do pecado e da morte. Com exceção de uns poucos favorecidos (só Enoc e Elias nos vêm à mente) o processo tinha que ser realizado totalmente. O fato da morte do próprio Jesus deixara isso claro: se ele morreu, então ninguém podia escapar da morte. A ressurreição de Jesus era tão central para o evangelho porque a boa nova incluía o fato e a promessa do triunfo sobre a morte”. – colchetes acrescentados.

Sobre 2 Coríntios 5:1-5 (“se a nossa morada terrestre, esta tenda, for destruída...”):

“A passagem, evidentemente, é o clímax de unidade maior de exposição (2Cor 4,16-5,5). Contem grande número de questões não resolvidas de exegese, particularmente em 5,2-4. Mas sua função mais óbvia é expressar a confiança de Paulo (4,16) de que o presente processo de decadência (‘natureza exterior’) e renovação (‘natureza interior’) culminará na transformação no corpo de ressurreição (4,17- 5,4), da qual o Espírito já é a primeira prestação e a garantia (5,5). Portanto, na sua afirmação básica, a esperança é a mesma de 1Cor 15,53-54, embora aqui a ressurreição apareça sob a imagem de vestir outra veste (2Cor 5,2.4). [NOTA: “Apesar de N. Walter, ‘Hellenistische Eschatologie bei Paulus? Zu 2 Kor. 5.1-10’, ThQ 176 (1996) 53-64, a ausência de soma (‘corpo’) em 2Cor 5,1-5 (contrastar 1Cor 15,35- 44) não tem significação, como confirma o texto posterior de Rm 8,11.23. Ver também Penna, ‘The Apostle’s Suffering: Anthropology and Eschatology in 2 Corinthians 4.7-5.10’, Paul 1.232-58 (particularmente 246-54), que nota a ausência de qualquer referencia a ‘alma’, indicando que qualquer eco de uma concepção helenística mais dualista dificilmente é mais que isso; e acima §3.2”]... Se devemos falar de desenvolvimento no pensamento de Paulo — Paulo agora pensando num ‘estado intermediário’ (entre morte e parusia), quando anteriormente esperava estar vivo na parusia (1Cor 15,51-52) — é questão discutível. Tudo o que precisamos notar é a possibilidade de que Paulo pensava num estado intermediário (‘nus’, ‘despojados’, 5,3-4) em que o gemer causado pela tensão já-ainda não (Rm 8,23) poderia continuar além da morte e até a parusia (2Cor 5,2.4). Mas, de qualquer maneira, Paulo pensa num estado incompleto no processo da salvação, que só pode ser resolvido pelo novo corpo de ressurreição. [Nota: “Daqui a impossibilidade de traduzir a esperança de Paulo numa crença ‘na imortalidade da alma’; ver também O. Cullmann, Immortallity of the Soul or Resurrection of the Dead? The Witness of the New Testament [Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? – O Testemunho do Novo Testamento] (Londres: Epworth, 1958)”]”.

The Theology of Paul The Apostle, de James D. G. Dunn, 1998, Eerdmans, citado da versão em português “A Teologia do Apóstolo Paulo”, Editora Paulus, 2003, pp. 109-111, 552-555.

ERROS: 1, 2, 3 e 5.

Comentário:

Em outras palavras, o autor diz que Paulo realmente podia estar se referindo a um estado intermediário, ao dizer que estaria imediatamente com Cristo depois da morte, porém não entende como isso se daria, uma vez que aparentemente também atribui sentido único à palavra “alma” e ignora seu uso adjacente relacionado ao “eu”, que é o próprio indivíduo que sai do corpo e vai para Cristo, seja “nu” (sem um novo corpo) ou “vestido” (com o corpo glorificado). Segundo o autor, seja lá como acontece a possível ida para o céu depois da morte, é um “estado incompleto no processo de salvação”. E é mesmo, pois ainda fica faltando a ressurreição do corpo físico, aquele que habilitará a pessoa a viver tanto no mundo terrestre quanto no celestial.

No tocante a essa questão de sair do corpo, note o que James Dunn disse a respeito de uma experiência vivida pelo apóstolo Paulo:

“Portanto, o quadro parece bastante claro. Paulo compartilhava da crença comum de que havia vários céus; ele mesmo tinha experimentado uma viagem celeste até o terceiro céu (2Cor 12,2-4). Mais relevante para o nosso caso, ele compartilhava do que também era crença comum, isto é, que os céus inferiores eram povoados por vários poderes hostis ou que os poderes celestes hostis montavam uma espécie de barreira para impedir o acesso aos céus superiores (o paraíso estava no terceiro céu — 2Cor 12,3). Se isso significava que também dificultavam ou até podiam impedir o acesso a Deus (cf. Rm 8,38-39), então a coisa era realmente grave”. – ibid., p. 145.

Um detalhe, porém, que Dunn não mencionou é que Paulo diz que tal viagem pode ter acontecido fora do corpo (2 Cor. 12:2). De modo que, de acordo com o apóstolo, mesmo antes da morte do corpo físico é possível sair dele e ir para outro lugar, ainda que “nu”. Ou seja, sem um corpo tangível que se faça presente no local para onde se vai nessa “viagem astral”, no caso de Paulo no terceiro céu, o Paraíso de Deus. Logo, temos aqui mais uma informação que mostra a impossibilidade de se desvincular do conceito de existência fora do corpo nos escritos de Paulo, conforme querem os aniquilacionistas materialistas, que se valem inadequadamente de algumas peculiaridades presentes em obras teológicas no intuito talvez de dar alguma credibilidade ao que defendem.

A propósito, vemos que Dunn menciona um dos responsáveis por essa “cortina de fumaça” na teologia da alma, o Oscar Cullmann. Não é todo autor “imortalista” que menciona uma de suas “fontes de inspiração” nessa cruzada contra a ideia grega de imortalidade da alma, que foi adaptada ao conceito cristão de que o homem possui uma alma que sobrevive à morte.

Portanto, mais uma citação que apresenta um raciocínio redundante que, no final das contas, não prova coisa alguma em relação à morte significar a inexistência total.

60. Essentials of Christian Theology (2003)

“O que dizer da morte? É a morte apenas uma mancha na usualmente boa criação de Deus? Ou a morte tem um significado teológico positivo?... Em sua própria maneira a morte torna-se um dom da graça divina; ela marca o ponto em que as consequências para o pecado chegam ao fim. Não há sofrimento na sepultura. A morte é a porta que Deus fechou sobre o mal e o sofrimento dentro de sua criação... precisamos enfatizar a totalidade da morte. A Bíblia afirma severamente que nós, seres humanos, somos mortais. Nós realmente morremos e deixamos de existir. Não há salvação por uma heróica almatomia [separação da alma]. A compreensão do pecado com a qual estamos lidando é que o pecado é um vírus que consome a totalidade da existência humana, não deixando órgão algum, seja físico ou espiritual, sem ser infectado. A morte resultante significa extinção total. Curiosamente, isso parece aproximar-se do modelo do naturalismo científico.73 A morte, teologicamente entendida, põe fim a tudo o que somos e temos neste lado da mortalidade. Ele põe fim a todo o mal. Ele também põe fim a tudo o que é bom, mortalmente bom. Nós não possuímos uma alma intrinsecamente boa, imortal, que está de alguma forma isenta da doença do pecado, de maneira que ela possa simplesmente largar o corpo como uma ostra descascada e ir para um plano celestial de almas desencarnadas. E certamente não há espaço para uma alma má e imortal que similarmente saia do corpo para que sua existência perversa continue eternamente. Quem quer e o que quer que sejamos, morre total e completamente. A morte simboliza esse fim, a terminação...

“O resultado da história de Adão e Eva se aplica a Jesus. O messias nasce mortal e morre como um mortal, e ele sabe disso. A morte para Jesus é o fim. No Getsêmani ele está “muito angustiado e perturbado”... A imagem que Paulo usa é a de uma semente plantada no chão... No entanto, a fim de evitar qualquer possível má interpretação em termos de almatomia, ele explora a aparência como que morta da semente típica por dizer: ‘O que você semeia não vem à vida a menos que morra’ (1 Coríntios 15:36). Esta analogia é delicada. Paulo deseja afirmar continuidade e descontinuidade entre as realidades presente e futura... Este é o ponto que Paulo está estabelecendo: uma semente morta é semeada, mas o que é colhido é nova vida... Ser ressuscitado ‘imperecível’, seja isso aplicável a Jesus ou a nós, é ser ressuscitado para a vida eterna. O corpo de alguém não seria ressuscitado para o propósito de simplesmente retornar à sua labuta diária. Doxa, que em referência aos corpos celestes geralmente significa ‘brilho’, significa aqui que somos criados em ‘honra’... É teologicamente importante dar atenção especial ao contraste entre os corpos terrestre e espiritual. Paulo não descreve o corpo terrestre morto como um ‘corpo de carne’ (soma sarkikon). Literalmente, este é o corpo com alma que nós associaríamos com a tradição filosófica grega. Este conceito de um ser humano era comumente conhecido entre os judeus de língua grega como Paulo. O importante é isto: Para Paulo, a alma morre. Como se fosse para salientar isso, Paulo diz que não é a psyche [“alma”] que encontramos na ressurreição, é o soma [corpo]. O corpo ressuscitado é um ‘corpo espiritual’ que levanta para a nova criação, no reino de Deus.

“... A ressurreição num corpo espiritual só pode ocorrer no advento do eschaton, o ‘tempo do fim’. Se não houver transformação cósmica, então não há ressurreição, e se não há ressurreição, nossa fé é em vão e de todas as pessoas somos os mais dignos de pena (1Cor. 15:14, 19)... Os teólogos podem se alegrar com o que a ciência nos diz sobre o passado. Todavia, este não é o caso sobre o futuro. A segunda lei da termodinâmica, também conhecida como entropia, levanta questões para a escatologia cristã. Esta lei afirma que a energia flui em apenas uma direção, do quente para o frio, e não o contrário. A entropia é o nível de desordem no universo, e a segunda lei declara que a entropia, em geral, está sempre aumentando. Se a grande explosão lá no início foi o momento mais quente na história do cosmos, então o futuro que contemplamos é um de entropia incrementada, de dissipação em equilíbrio. O que isto significa é que o universo está destinado a congelar-se saindo da existência. Ainda que ao longo do caminho a gravidade faça com que ele desmorone em outra densa bola de fogo e venha a explodir novamente, o cosmos atual ainda chegará ao fim. Seja ele congelado ou queimado, o futuro da vida em nosso mundo não é infinito. Assim como os indivíduos, o cosmos como um todo está destinado à morte. Pelo menos, esta é a profecia científica dos cosmólogos. Será que esta profecia se parece com a anunciada pela escatologia cristã? Não. A entropia e a escatologia parecem estar em conflito direto. A escatologia cristã não profetiza um futuro distante em equilíbrio que tenha esquecido o seu passado. Em vez disso, ela agora contempla vagamente por meio de um espelho um futuro brilhante, o futuro da nova criação prometida por Deus na ressurreição pascoal de Jesus...”

Essentials of Christian Theology, [Essenciais de Teologia Cristã], William C. Placher (Ed.), Westminster John Knox Press, Louisville, KY, USA, 2003, pp. 350-355, seção “Para onde iremos?”.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Os trechos acima tocam em aspectos que vão além da questão sobre se o homem tem ou não um alma que sobrevive à morte. Visto que não é o objetivo deste livro, não há necessidade de comentá-los. Ressalto apenas que é preciso distinguir o máximo possível as realidades físicas das espirituais, e parece que o pastor luterano Ted Peters, o autor do texto acima, não foi tão criterioso nesse respeito. Seria preciso analisar a obra dele mais detidamente para averiguar isso. O ponto mais importante, porém, o autor do MB comentou acertadamente em uma nota que está indicada na citação:

“No mais, não há realmente motivo para os cristãos crentes na Bíblia se perturbarem desnecessariamente com hipóteses sobre a dissolução do universo criado por Deus. Ainda que, numa hipótese extrema, a teoria da ‘Grande Explosão‘ – e tudo o mais que os cosmólogos da atualidade afirmam – fosse comprovado como verdadeiro, isto não afetaria em nada a esperança cristã relacionada com a ‘recriação‘ e a ‘vida eterna‘, será que afetaria?”

Para uma consideração referente à destruição entrópica do universo físico e a possível relação disso com informações bíblicas, queira ler a página 324 em diante do capítulo 23 do meu livro “Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma”.

De qualquer maneira, Ted Peters não é aniquilacionista, pelo menos não um convencional. Digo isto porque vemos um traço de aniquilacionismo em suas palavras, ao dizer que o homem não possui nada de espiritual que escapa da morte. A não ser que ele tenha pensado em “morte” no sentido hebraico, que significa uma existência sombria no Seol que afeta negativamente até mesmo a parte imaterial do homem. Ou seja, tanto a alma quanto o corpo sofrem as conseqüências. Se foi isso, então o que Peters explicou está em perfeito acordo com a realidade humana, que realmente é finita e marcada pela mortalidade. Aliás, tudo é assim no universo físico. Daí o problema que a questão entrópica traz para os que se apegam talvez em demasia ao aspecto material e não conseguem enxergar nele nada de espiritual e transcendente. Mas, enfim, mesmo não aceitando a visão dualista da teologia cristã ortodoxa, Peters acredita que depois da morte o cristão continua existindo continuamente, e de maneira completa. Sobre outro texto que ele escreveu chamado “Resurrection of the Very Embodied Soul?”, uma resenha disse o seguinte:

“A promessa cristã aponta para uma transformação escatológica - uma nova criação - a ser operada por Deus. Peters segue Wolfhart Pannenberg em conectar a ressurreição ao ato escatológico de Deus em que o tempo é levado para a eternidade, e em que Deus fornece a identidade pessoal contínua, mesmo quando nossos corpos se desintegram”.

É uma ideia semelhante àquela da “kairosfera” comentada na citação nº 16 (Christian Doctrine), que considera a disruptura do tempo na realidade divina, onde o cristão já recebe de imediato a vida prometida, mesmo que na linha do tempo terrestre ela ainda não tenha acontecido. Ou seja, mais um malabarismo mental para não contradizer textos bíblicos sobre a existência continuada, já que Ted Peters é um dos que rejeitam todo conceito que lembre o dualismo platônico. Veja que no referido artigo, Peters afirmou:

“O que é levantado é a pessoa inteira inclusiva de nossos vários aspectos: corpo, alma, e tudo mais. Isso não proíbe a afirmação da existência de uma alma humana. O que proíbe é a noção de uma alma incorpórea permanente que sustenta a essência da identidade de uma pessoa. Teologicamente, seria um erro pensar a alma como nossa verdadeira pessoa, tornando assim o corpo um apêndice desnecessário ou uma prisão para buscar escapar. Seria um erro pensar na alma como tendo uma capacidade interna de imortalidade que pode contornar a necessidade de um ato divino de ressurreição”. – “Resurrection of the Very Embodied Soul,” artigo escrito para a conferência The Mind/Brain Problem: Scientific Perspectives on Divine Action, patrocinada pelo Observatório do Vaticano e pelo Centro para Teologia e Ciências Naturais, Krakow, Polônia, 21-27/junho, 1998. Neuro Science and the Person, editado por Robert John Russell, Nancey Murphy, Theo Meyering e Michael Arbib. Vatican State: and Berkeley: Vatican Observatory and CTNS, 1999, p. 323.

Conforme visto exaustivamente no decorrer deste livro, o conceito da Bíblia hebraica é que a pessoa continua existindo depois da morte, porém de uma maneira limitada e aguardando a ressurreição do corpo físico. O que significa que o estado da alma fora do corpo físico é temporário e não permanente. O antagonismo de Peters, por sua vez, tem como foco os conceitos gregos de que a alma desencarnada não tem corpo, é o verdadeiro “eu”, é eterna por natureza e que o corpo humano é uma parte má que devia mesmo ser descartada. Nenhum desses conceitos está de acordo com as descrições bíblicas, pois nelas está implicitamente indicado que na aparência a alma que vai para o Seol / Hades é uma “fotocópia” do corpo físico que tinha, ou seja, tem um tipo de corpo, mesmo não sendo realmente um corpo físico e nem o corpo glorificado que receberá na ressurreição, que terá características físicas do outrora corpo que tinha. Só a partir desse momento futuro, quando as características humanas plenas são restauradas, é que a vida eterna planejada por Deus será posta em andamento da maneira perfeita. Em suma, um cenário bem diferente da visão grega.

Outro aspecto importante a destacar é que essa obra citada pelo autor do MB possui vários autores, e ela apresenta as informações bíblicas corretas a respeito da existência depois da morte e a escatologia associada. Por exemplo, o próprio Ted Peters, ao comentar sobre o “Inferno” disse:

“É a morada dos réprobos, os amaldiçoados. Há duas concepções de inferno sobrepostas no Novo Testamento. O Hades, que é a tradução da Septuaginta para o hebraico Sheol, se refere à morada sombria do mundo subterrâneo para onde originalmente se pensava que todos os mortos iam, tanto bons quanto maus (Sl. 89:48; Mt. 11:23). O segundo conceito é a Gehena, para onde vão apenas os maus. Tanto João Batista quando Jesus advertiram sobre as ameaças da Gehena como sendo um lugar onde arde um fogo eterno e inextinguível (Mt. 5:22; 13:42)”. – Essentials of Christian Theology, p. 359; veja também o que William Placher disse na página 330.

Portanto, Peters sabe perfeitamente o que a Bíblia realmente ensina sobre esse assunto, mesmo que ele não acredite realmente em tais conceitos bíblicos.

61. Philosophy of Plotinus (1918)

“Os que simpatizam com este movimento anti-helênico [referindo-se a críticos da filosofia grega] provavelmente não acolheriam os meus incentivos para lerem Plotino. Mas se eles fizessem isso entenderiam melhor a verdadeira continuidade entre a velha cultura e a nova religião e poderiam perceber a absoluta impossibilidade de extirpar o platonismo do cristianismo sem retalhar o cristianismo em pedaços. O Evangelho Galileu, como procedeu dos lábios de Cristo, sem dúvida não foi afetado pela filosofia grega; ele era essencialmente a consumação da religião profética judaica, mas a Igreja Católica desde o seu início foi formada por uma confluência de idéias religiosas judaicas e helênicas... O catolicismo, como diz Troeltsch, é a última conquista criativa da cultura clássica... Eu lamento que o alcance destas palestras não possa ser ampliado para incluir um levantamento do desenvolvimento do platonismo cristão... Isto é como traçar um pedigree de um pai apenas, pois o elemento helênico no Novo Testamento é geralmente quase ignorado”.

The Philosophy of Plotinus: The Gifford Lectures at St. Andrews, 1917-1918 [A Filosofia de Plotino: Palestras Gifford em St. Andrews, 1917-1918], William Ralph Inge, Longmans, Green e Co., Londres, Vol. 1, 1918 (republicado em 2014), pp. 13, 14.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Essa combinação de dois dos cinco erros possui um enfoque que não tinha sido apresentado até agora. Vemos aqui um “imortalista” cristão que foi ao outro extremo da discussão e aparentemente abraçou completamente o platonismo. Combinando tal citação com coisas que o autor do MB disse em uma nota (transcrita mais adiante), este último demonstrou que realmente não entende o que está dizendo ou finge não entender. Em outras palavras, ele afirmou que qualquer cristão “imortalista” que se preze deve admitir que a crença na sobrevivência da alma depois da morte se deve exclusivamente à filosofia grega, em especial o neoplatonismo.* E ainda insinuou que quem não reconhece isso é um hipócrita numa tentativa desastrada de mostrar que o Cristianismo não sofreu tal influência.

* O referido comentário do “bereano” também revela o quanto ele desconhece o que realmente os neoplatonistas ensinavam, pois se ele estivesse a par dos fatos saberia o motivo de ser praticamente impossível um cristão “imortalista” achar que baseia sua crença na filosofia de Plotino ao invés da Bíblia. O estudo a seguir, já recomendado anteriormente, é suficiente para constatar o abismo que há entre o neoplatonismo e a crença cristã sobre a alma que sobrevive à morte do corpo: “A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?” – Mateus 10:28.

Primeiramente, e o mais importante, é que o detalhamento que foi feito em todas as partes deste meu texto demonstra de maneira clara e inequívoca que é a Bíblia que ensina a crença de uma sobrevivência após a morte, antes da ressurreição. E os cristãos depois da escrita do Novo Testamento apenas seguiram essa linha de pensamento. O segundo ponto é que em nenhum momento foi negado o diálogo de cristãos posteriores com a filosofia grega. Isso realmente aconteceu. E essa comunicação pode ter começado timidamente com os próprios escritores bíblicos, como concluem alguns teólogos. No entanto, a intertextualidade com a filosofia grega que se vê em alguns escritos cristãos não foi o elemento originador do conceito que já havia antes, sobre vida após a morte. Assim como em outros assuntos, a Igreja apenas adaptou o que era possível da filosofia grega ao ensino cristão. Se isto foi certo ou errado, não vem ao caso. Mas o fato é que se não tivessem feito essa acomodação, mesmo assim a crença não aniquilacionista do povo de Deus teria permanecido.

Uma nota do autor do MB que acompanha essa citação revelou um conhecido efeito que o autoengano produz, qual seja: na falta de argumentos convincentes, pois todos já foram devidamente refutados, o negócio agora é acusar os que se opõem ao materialismo “cristão”. Parte dessa nota disse:

“Em seus persistentes esforços de neutralizar a consistência com que os dois Testamentos bíblicos apresentam claramente o ensino da ressurreição dos mortos – e não apresentam conceito algum de ‘sobrevivência da alma após a morte’, há imortalistas que tentam de tudo para induzir à ideia de que o conceito judaico da ressurreição foi proveniente de ‘influência estrangeira’, ao mesmo tempo em que fingem ignorar o amplo consenso erudito de que foi assim no caso do conceito da ‘imortalidade da alma’... Este é mais um procedimento no qual esses imortalistas não tem o mínimo apoio dos eruditos. Nem mesmo teólogos simpatizantes da filosofia platônica fazem essa tentativa desastrada de inverter a realidade... O ponto importante a se salientar com esta citação é que nem mesmo um promotor e confesso ‘admirador’ do neoplatonismo como Inge se atreveu a dizer que o ensino de Cristo foi influenciado minimamente por Platão... A verdade é simplesmente esta: Assim como havia acontecido com o Judaísmo pós-bíblico, o cristianismo pós-bíblico também foi influenciado, e muito, pela filosofia grega (principalmente a de Platão). Em vez de certos imortalistas ficarem tentando negar essa realidade, ou, como se diz popularmente, tentando ‘tapar o sol com a peneira’, seria uma postura bem mais coerente (e porque não dizer bem menos hipócrita) defender ‘sem pudor’ o neoplatonismo, como fez Inge”.

Nenhuma novidade nesse discurso ad hominem disfarçado e coletivizado. E com respeito à suposta hipocrisia* mencionada pelo autor do MB, não sei os demais “imortalistas”, mas em meu caso eu nunca tinha lido Platão e nada da filosofia grega até me convencer UNICAMENTE pela Bíblia que ela realmente ensina a existência contínua depois da morte. A quase totalidade do que eu expliquei aqui nas seções precedentes resulta primordialmente da minha leitura e estudo pessoal da Bíblia. Só depois que formei minha opinião é que li o Fédon de Platão pela primeira vez, e constatei o quão diferente é a imortalidade da alma que ele ensina em relação ao conceito bíblico de sobrevivência depois da morte. Felizmente também eu só passei a ler obras teológicas nesse mesmo momento (o máximo que eu fiz antes foi consultar dicionários de grego e hebraico). Se eu tivesse invertido a ordem dessas leituras é claro que eu também teria chegado à mesma opinião atual, porém ela não apresentaria a mesma consistência e robustez que o meu próprio caminho proporcionou, cujo ponto de partida foi um simples filme que vi no cinema, que me fez refletir seriamente sobre a “ressurreição” materialista na qual antes eu acreditava. Em seguida passei a ler a Bíblia sem os preconceitos de antes. Também decidi ler todas as obras patrísticas disponíveis dos séculos II e III, além de alguns apócrifos e parte da literatura rabínica. Foi um estudo bem completo e abrangente sobre esse assunto. O que está neste livro e nos demais textos que escrevi é apenas o resultado final de tudo isso.

* Posteriormente, depois que transformou o seu apêndice G em um artigo separado, o autor do MB retirou dessa nota a parte onde falava da ‘hipocrisia dos imortalistas’. No lugar da frase “e porque não dizer bem menos hipócrita” ele diz agora “e bem menos passível de críticas”. De qualquer maneira, o artigo original onde apareceu a nota tem outras acusações semelhantes a essa que foi excluída. Na verdade, ele reescreveu todo o trecho final, estando agora assim: “As tentativas de certos imortalistas de atenuar este fato são completamente inúteis. Eles simplesmente não conseguem convencer os que conhecem a realidade, por mais que tentem – aliás, não convencem nem a si próprios. Muitos hoje creem com sinceridade em conceitos tais como ‘alma imortal’ ou ‘espírito imortal’. O fator atenuante no caso de tais pessoas é que elas não estão a par de quão grande foi a influência platônica na versão do cristianismo com a qual porventura estejam envolvidas. Sem falar que estão completamente mal informadas acerca do que as Escrituras dizem sobre a natureza humana. Lamentável é a postura de certos indivíduos que estão muito bem a par destas duas coisas, e ficam tentando obstinadamente negá-las (ou atenuá-las), ou, pior ainda, tentando ‘obrigar’ a Bíblia a ensinar platonismo de qualquer maneira. No caso destes, seria uma postura bem mais coerente (e bem menos passível de críticas) defender ‘sem pudor’ o neoplatonismo, como fez Inge”. Caso você tenha lido as seções 5 e 6, você não ficou com a impressão de que o autor do MB parece estar falando dele mesmo nesta crítica, tirando a parte do platonismo? E nota-se também que ele agora alega saber o que se passa na mente dos “imortalistas”, sendo esta mais uma evidência contra eles...

Mas o que espanta mesmo nessas declarações do autor do MB não são as ofensas que ele endereça aos “imortalistas”, mas é ele afirmar, e ao que parece sem nenhuma dor na consciência, que a Bíblia apoia indubitavelmente aquilo em que ele acredita. Isso é a prova de que a leitura de muitas obras teológicas não resulta necessariamente em sabedoria e conhecimento acurado, pois a esta altura ele já devia ao menos ter baixado um pouco o tom daquilo que fala, pois claramente a realidade bíblica não é a que ele está vendendo no que escreve. No entanto, os preconceitos dele continuam falando mais alto e ignorando que, de uma maneira geral, as obras eruditas que ele citou indiscriminadamente em seu texto atestam o fato insofismável que a crença aniquilacionista não é bíblica. Onde a cabeça dele está, afinal, para não perceber isso?

E falando em ofensas, existe um aniquilacionista chamado Lucas Banzoli que talvez seja o melhor exemplo que existe de alguém que produz textos muito mal fundamentados em prol do materialismo “cristão”. Como se isso fosse pouco, ele também é o escritor mais agressivo que eu conheço. Veja abaixo um exemplo (há vários outros):

“Mas embora todos os estudiosos de respeito sejam suficientemente honestos para admitir o óbvio (que Justino era aniquilacionista), o astronauta católico vai continuar ensinando aos seus leitores burros e desinformados que Justino era ‘um imortalista’, primeiro porque ele não é estudioso de nada, e segundo porque não tem honestidade suficiente para admitir o óbvio, quando esse óbvio é contrário a uma doutrina pagã da igreja pagã a que ele serve”. – Os Pais da Igreja contra a imortalidade da alma, de Lucas Banzoli.

“Astronauta católico” é um apologista cristão com quem Banzoli travou alguns debates. Como se diz no linguajar popular, “seria cômico se não fosse trágico”... A começar pelo título da matéria, que evidencia um exemplo mais-que-perfeito de alguém completamente alienado do verdadeiro conteúdo da literatura Patrística, pois ela atesta justamente o contrário do que foi dito por Banzoli. Certamente ele não viu, antes de escrever o seu artigo, a parte onde Justino disse que ter a alma de Samuel aparecido para Saul é uma prova de que as almas sobrevivem à morte. Conforme visto na seção 6, a oposição de Justino era contra o conceito grego de imortalidade, e não contra a crença de que a alma permanece viva depois da morte. Por alguma razão, a distinção entre esses dois entendimentos está além do alcance cognitivo dos religiosos materialistas. Pelo menos Banzoli tem uma vantagem em relação aos escritores “mortalistas” em geral. Ele identifica sua crença como sendo aniquilacionismo mesmo, e não possui nenhum melindre em relação a tal classificação.

O motivo de eu estar mencionando esse outro crítico aniquilacionista é apenas para demonstrar o que acontece quando alguém reúne aleatoriamente uma quantidade enorme de informações, e munido de uma ideia pré-concebida sai atirando para todos os lados. E nesse esforço alucinado de provar que está certo, sobram ofensas para os interlocutores que apresentam informações de qualidade. Ainda que o autor do MB não baixe tanto assim o nível ao acusar cristãos “imortalistas”, em ambos os casos isso demonstra que tal comportamento é recorrente. Não que “imortalistas”, às vezes, também não percam as estribeiras, porém tenho percebido que isso é mais comum entre aniquilacionistas.

62. The Concept of the Soul in Plato and in Early Judeo-Christian Thought (1958)

“O objetivo desta tese é estudar dois grandes conceitos históricos da alma e mostrá-los como estando, não só em marcante contraste entre si, como também em forte oposição entre si... Eles representam dois mundos religiosos e éticos inteiramente diferentes; contudo, entraram em contato um com o outro, misturaram-se livremente e influenciaram-se mutuamente... Alguns dos primeiros Pais da Igreja viram a tremenda distinção entre o conceito platônico da alma e o conceito judaico-cristão primitivo e expressaram forte oposição à invasão do conceito platônico da ‘alma’ na vida e nos ensinamentos da comunidade cristã primitiva. Todavia, estes homens foram substituídos por outros Pais da Igreja que usaram a filosofia platônica para interpretar a teologia cristã na Igreja Cristã primitiva, um processo que ainda está em andamento nesta era moderna... O uso frequente do termo ‘alma’ e os muitos usos filosóficos de Platão para ela, indica sua importância para o pensamento platônico. De fato, este estudo revela que a metafísica, a ética e a epistemologia de Platão se baseiam diretamente em sua definição de psuche... Com base num estudo cuidadoso de todas as 754 ocorrências de nephesh no Antigo Testamento, o leitor observa que alma deve ser definida pelos seguintes termos: (1) Como sendo um ser movente e um organismo vivo, criado por Deus. Isso está em contraste direto com a alma platônica incriada, auto-movente e não organizada. (2) Como sendo a mais elevada criação de Deus – o homem inteiro. Todos os organismos vivos e moventes são almas, mas o organismo mais elevado criado por Deus é o homem. Fala-se deste homem criado, a ‘alma’, como sendo criado como uma entidade complexa, composta, racional, e organizada, em contraste direto com a alma platônica, simples, não composta e não organizada. O cânon do Antigo Testamento também define a alma, por meio do uso, como sendo um substância material, mortal e destrutível por natureza, mas também como uma candidata à ressurreição e à vida eterna. Isso está em contraste direto com a alma imaterial, imortal, indestrutível de Platão. A ideia de uma ressurreição corporal de vida eterna, por um ato de Deus, é também algo completamente alheio ao pensamento platônico... Das 111 vezes que psuche é usada no Novo Testamento, ela é traduzida como ‘alma’ apenas quarenta vezes. No caso das setenta e uma vezes restantes, o leitor do idioma moderno é mantido desinformado que a palavra que ele está lendo é a palavra grega psuche... Como se pode ver facilmente, a definição de ‘alma’ no Antigo e no Novo Testamento é a mesma e em forte oposição à alma platônica...

“Nos escritos dos primeiros Pais da Igreja, nos primeiros dois séculos da era cristã, encontramos forte oposição ao conceito platônico de ‘alma’ à medida em que ele tentava se infiltrar na teologia da igreja cristã primitiva. Eles resistiam à filosofia platônica da alma como sendo subversiva à própria essência do cristianismo, com sua doutrina da imortalidade natural da alma, em comparação com a crença cristã da mortalidade de cada alma, e sendo cada alma necessitada de uma ressurreição corporal a fim de obter a vida eterna. Palavras e frases que entraram em uso comum posteriormente na história da igreja cristã, não foram usados pelos mais primitivos Pais da Igreja. Referimo-nos a termos familiares tais como ‘a alma imortal’, ‘o homem imortal’, ‘a alma que não morre’, ‘o ser imortal’, ‘o pecado e a miséria sem fim’, ‘o tormento infindável’, ‘a morte que nunca morre’, e outras expressões tão familiares que claramente têm suas raízes no pensamento platônico. Muitos pensam que a doutrina platônica da imortalidade natural da alma entrou natural e facilmente nos ensinamentos e na teologia da igreja cristã primitiva, mas isso não é assim, pois a oposição foi grande, em primeiro lugar por parte dos primeiros Pais da Igreja, cuja aguda perspicácia enxergou que isso era subversivo às doutrinas básicas da Igreja Cristã e que sua filosofia pertencia a um mundo religioso e ético completamente diferente. O principal meio para a entrada do platonismo no cristianismo, foi através dos volumosos escritos e a grande pregação do bispo de Hipona, Aurélio Agostinho, no quarto século. Agostinho tomou a doutrina de Platão sobre a imortalidade inerente da alma, desligou-a da metempsicose e da transmigração e conseguiu para a doutrina essa credibilidade geral que ela tem mantido até hoje.

“Este estudo também mostrou que a ideia da imortalidade natural da alma é completamente alheia ao uso de nephesh e psuche na Bíblia. Aqui se lê que a alma foi criada do pó por seu Criador e retorna ao pó por ocasião de sua morte... Não só a ressurreição, mas a ressurreição do corpo para a vida eterna, é central para os ensinamentos da fé cristã. O pensamento de uma ressurreição corporal para a vida eterna é completamente alheio e desnecessário ao pensamento platônico. É neste ponto que os dois grandes conceitos de ‘alma’ se encontram e se separam para sempre”.

The Concept of the Soul in Plato and in Early Judeo-Christian Thought [O Conceito de Alma em Platão e na Concepção Judaico-Cristã Primitiva], de Lester I. Newman, Universidade de Boston, Boston, MA, EUA, 1958, resumo on line.

ERROS: 1, 2 e 3.

Comentário:

No geral, um texto bem escrito e claramente bem referenciado, como é próprio de um trabalho acadêmico. No entanto, o autor peca nos trechos destacados em vermelho. Ele erra mesmo. Certamente não foi por motivos escusos ou preconceito de algum tipo. Ele simplesmente não deve ter tido tempo para averiguar todas as fontes que são necessárias numa análise dessa envergadura. Textos acadêmicos são bastante trabalhosos de escrever, bem mais do que um texto quase informal como este meu, publicado originalmente em um website pessoal. Na universidade eu já ajudei na elaboração de textos científicos, quando trabalhava com projetos de pesquisa, e sei o quanto é desgastante redigi-los, pois o autor não se preocupa apenas com o conteúdo, mas também com a forma de apresentação, sem falar do prazo geralmente curto que se tem para concluir. Mas, enfim, vamos ao que interessa aqui!

Primeiramente, se Lester Newman tivesse lido o que os Pais da Igreja do século 2 escreveram, aqueles que tiveram ligação direta ou indireta com os apóstolos, ele teria se dado conta de que as afirmações que eu destaquei em vermelho estão completamente erradas. Mas ele deve ser perdoado, pois ler e estudar todo esse material seria um trabalho descomunal e que demandaria muito tempo, pelo menos lá em 1958, a data em que essa tese foi escrita, quando não havia Internet para acelerar a pesquisa. O que antes levava meses, hoje se faz em poucos dias. (Algo me diz que não demora e o autor do MB vai aparecer com um trabalho semelhante mais recente... Se isto acontecer provavelmente o seu autor terá tido mais cuidado com determinadas declarações). Newman disse que o momento crítico para a infiltração do platonismo foi o século 4 d.C. Sendo assim, os escritos de antes dessa data representam ainda o pensamento cristão “original”. Seria isso? Bem, vamos descontar aí mais um século, para termos uma margem maior de segurança. O que é que os cristãos do século 2 realmente disseram e em que acreditavam? Veja você mesmo:

“E olhemos firmemente para o Pai e Criador do universo, e nos unamos a Seus poderosos e extraordinariamente grandes dons e benefícios de paz. Contemplemo-lo com nosso entendimento e olhemos com os olhos de nossa alma para a Sua vontade longânime. Vamos refletir o quão livre da ira Ele é para com toda a Sua criação”. – Carta aos Coríntios, cap. 19, Clemente de Roma, c. 96 d.C.

“O amor dos irmãos em Trôade vos saúda... Que o Senhor Jesus Cristo os honre, em quem eles esperam, em carne e alma, e fé, e amor, e concórdia! Despeço-me em Cristo Jesus, nossa esperança comum”. – Carta aos Filadelfianos, cap. 11, Inácio de Antioquia, c. 110 d.C.

“A alma invisível é guardada pelo corpo visível... A alma imortal vive em uma tenda mortal, e os cristãos vivem quais residentes forasteiros em um mundo corruptível, buscando alcançar uma morada incorruptível nos céus”. – Matetes a Diogneto, cap. 6, c. 125 d.C.

“E [Jesus] disse mais: ‘Não temais aqueles que vos matam e depois disso nada mais podem fazer; temei antes aquele que, depois da morte, pode lançar alma e corpo no inferno’. Deve-se saber que o inferno [Geena] é o lugar onde serão castigados os que tiverem vivido iniquamente e não acreditaram que acontecerão essas coisas ensinadas por Deus, através de Cristo”. – Primeira Apologia 19:7, Justino de Roma, c. 150 d.C., colchetes acrescentados.

“E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou”. – Diálogo com Trifão, cap. 105, Justino de Roma, c. 153 d.C., colchetes acrescentados.

“Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo”. – Policarpo de Esmirna, discípulo do apóstolo João, c. 155 d.C.

“Reconhecemos duas variedades de espírito, uma das quais é chamada de alma, mas a outra é maior que a alma, uma imagem e semelhança de Deus: ambas existiam nos primeiros homens, que em certo sentido poderiam ser materiais, e em outro superior à matéria... A alma humana consiste em muitas partes, e não é simples; ela é composta, de modo a se manifestar através do corpo; pois nem ela poderia aparecer por si mesma sem o corpo, nem a carne ressuscitar sem a alma”. – Discurso aos Gregos, caps. 12 e 15, de Taciano, c. 160 d.C.

“Finalmente, também não é possível dizer alguma injustiça em relação ao próprio homem que ressuscita. Este, de fato, é constituído de alma e corpo, e não sofre injustiça nem na alma, nem no corpo. . . . esperamos também firmemente a permanência na incorrupção... quem nô-la garante de modo absolutamente infalível no desígnio de nosso Criador, segundo o qual fez o homem de alma imortal e de corpo, dotou-o de inteligência e lei ingênita para a sua salvação e para a guarda dos preceitos que ele lhe dera, convenientes com uma vida moderada e razoável”. – A Ressurreição dos Mortos, caps. 10 e 13, Atenágoras de Atenas, c. 180 d.C.

“O Senhor ensinou com grande plenitude que as almas não só continuam a existir... mas que conservam a mesma forma que o corpo tinha... na narrativa registrada a respeito do homem rico e de Lázaro que encontrou repouso no seio de Abraão... o rico conheceu Lázaro depois da morte, e Abraão da mesma maneira... Por estas coisas, então, é claramente declarado que as almas continuam a existir... Mas... só Deus, que é Senhor de todos, é sem princípio e sem fim, sendo verdadeiramente e para sempre o mesmo, e sempre permanecendo o mesmo Ser imutável... [As outras coisas] perduram e prolongam sua existência em uma longa série de épocas, de acordo com a vontade de Deus, seu Criador... então também qualquer um que pense assim a respeito das almas e dos espíritos e, de fato, respeitando todas as coisas criadas, não se desviará de maneira alguma... Mas como o corpo animal certamente não é a alma, mas tem comunhão com a alma, conforme Deus se agrada; assim a própria alma não é a vida, mas participa daquela vida que Deus lhe concedeu. Portanto, também a palavra profética declara do primeiro homem formado: ‘Ele se tornou alma vivente’ [Gênesis 2:7], ensinando-nos que pela participação da vida a alma se tornou viva; de modo que a alma, e a vida que possui, devem ser entendidas como sendo existências separadas. Quando Deus, portanto, concede vida e duração perpétua, acontece que mesmo as almas que não existiam anteriormente deveriam doravante perdurar para sempre, uma vez que Deus quer que elas existam e continuem existindo”. – Contra as Heresias, Livro II, 34:1-4, Irineu de Lyon, discípulo de Policarpo, que por sua vez foi discípulo do apóstolo João, c. 180 d.C., colchetes acrescentados.

Para uma consideração detalhada da carta de Matetes a Diogneto, queira ler o capítulo 21 do meu livro “Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma”, pp. 249-273. Quanto aos demais autores, consulte a seção 6 e o apêndice D, onde há um detalhamento dessas informações, além de outros textos bíblicos e patrísticos.

Alguma dúvida que nos pontos destacados houve falta de acurácia na tese de Newman? Acredito que não. As declarações dos primeiros “Pais da Igreja”, inclusive as do “filho” e as do “neto” do apóstolo João, deixam claro que na visão deles, a palavra “alma” não se refere somente ao que os antigos hebreus chamavam de “alma vivente”, ou seja, uma pessoa de carne e osso que respira oxigênio neste mundo. Para os cristãos antigos há uma alma invisível que habita no corpo humano e que é distinta deste, pois sobrevive à morte. Conforme foi visto na seção 7, de acordo com Eusébio de Cesareia (263-339 d.C.), foi somente no século 3 que alguns cristãos na Arábia surgiram com “uma doutrina alheia à verdade”, segundo a qual ‘a alma morre juntamente com o corpo e revive na ressurreição’, porém esse movimento não prosperou, pois Orígenes foi enviado para reajustar o entendimento daqueles irmãos árabes e eles aceitaram a explicação dele, desistindo assim daquilo que poderia ter sido mais uma heresia a ser combatida pelos Pais da Igreja. – História Eclesiástica (2002), ed. Novo Século, p. 141; Ecclesiastical History (1850), tradução de Christian Frederick Crusé, pp. 253, 254.

Portanto, onde está Platão nas afirmações nada duvidosas dos cristãos antigos acima citados? Ele passou longe delas. Então, está claro que a hipótese defendida por Newman não foi confirmada, pelo menos não nesse momento do tempo (século 2). Na verdade, esses Pais da Igreja fizeram várias acusações diretas contra o platonismo, conforme o próprio Newman mencionou. Sim, os mesmos que afirmaram que a alma ‘sobrevive à morte’ e é ‘imortal’, quando comparada ao corpo. Como entender esse aparente conflito?

De novo... Para os gregos antigos, a alma é imortal porque não foi criada, sempre existiu, e assim permanecerá pela eternidade. Além disso, ela se opõe ao corpo e o odeia. Quer livrar-se dele para ir de maneira totalmente incorpórea para o mundo das ideias, e se fundir com a alma do universo. Ela não quer saber mais de corpo carnal e prefere viver imaterialmente e sem forma para sempre. Tudo isso contradiz o conceito judaico-cristão, especialmente o relacionado à ressurreição que, conforme Policarpo e Atenágoras explicaram, consiste em reunir novamente a alma e o corpo, para nunca mais se separarem, formando assim a unidade eterna originalmente intencionada pelo Criador.

Outra coisa. É um tremendo engano essa história de que os cristãos do século 1 e os judeus antes do exílio não tinham ideia de que uma parte do homem sobrevive continuamente depois da morte. Isso é um mito propagado pelos aniquilacionistas. No caso dos cristãos primitivos não há a menor dúvida que eles realmente acreditavam nessa continuidade. Já os hebreus é preciso mais atenção às páginas da Bíblia para perceber isso, porém o conceito também está lá, conforme visto com detalhes na seção 5. O diferencial dos cristãos é que essa crença foi apresentada mais explicitamente, o que demonstra que o uso que faziam da palavra “alma” já não era exatamente o mesmo de períodos anteriores. Certamente eles continuaram usando a acepção hebraica, porém em paralelo com o conceito de alma invisível. Na verdade os dois enfoques estão interligados, uma vez que a alma carnal chamada homem é apenas uma manifestação física da alma invisível. Recomendo a leitura da referida seção para mais detalhes e também do apêndice A.

Note agora os seguintes textos:

“Não fiquem admirados com isto, pois está chegando a hora em que todos os que estiverem nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão; os que fizeram o bem ressuscitarão para a vida, e os que fizeram o mal ressuscitarão para serem condenados”. – João 5:28,29, NVI.

“Então ele dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Malditos, apartem-se de mim para o fogo eterno, preparado para o diabo e os seus anjos.... E estes irão para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna”. – Mateus 25:41, 46, NVI.

“E, se o teu olho te fizer tropeçar, lança-o fora; melhor te é entrares com um olho no reino de Deus, do que seres com os dois olhos lançado na Geena, onde o seu gusano não morre e o fogo não se extingue”. – Marcos 9:43-48.

“E o Diabo que os desencaminhava foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde já estavam tanto a fera como o falso profeta; e serão atormentados dia e noite, para todo o sempre”. – Apocalipse 20:10.

Portanto, como se vê, a ideia de “tormento infindável” é bastante visível no Novo Testamento, e nada tem a ver com Platão.

Para concluir, gostaria apenas de comentar dois trechos de uma nota que o autor do MB incluiu na citação desse trabalho de Newman:

“Basicamente, a tese comprova – além de qualquer contestação razoável – que não existe maneira de conciliar a filosofia platônica com o conceito da natureza humana apresentado nas Escrituras. Qualquer ‘simbiose’ destes conceitos é impossível, já que eles têm bases completamente diferentes. Naturalmente, reconhecemos que qualquer pessoa é livre para crer e defender o que quiser, incluindo os conceitos relacionados com a ‘imortalidade inerente da alma. Porém, se tal pessoa realmente examinou o assunto com um nível razoável de profundidade, ela deverá necessária e coerentemente reconhecer que tais conceitos não têm base bíblica. Toda e qualquer tentativa de insinuar o contrário está em contradição direta com todas as evidências apresentadas por uma grande proporção de eruditos bíblicos... nem mesmo estes [filósofos cristãos da Era Moderna] endossaram que tais conceitos da filosofia grega se fazem presentes no evangelho de Cristo. E todos concordaram prontamente que o platonismo realmente influenciou fortemente a teologia cristã posterior (não a apostólica, bem entendido). E tal influência se traduziu precisamente na adoção gradual do conceito da imortalidade inerente da ‘alma’. Porém, enfatizamos mais uma vez: Tal ideia nunca foi o conceito hebraico, e sim o de filósofos e religiosos de outras nações, circunvizinhas deles. Estudos como o de Lester só fazem aumentar o peso da evidência que leva a esta conclusão: A ideia de ‘vida após a morte’ no conceito hebraico e cristão primitivo, conforme pode ser inferida por qualquer estudo abrangente das Escrituras (e é atestada pela erudição cristã), está relacionada exclusivamente com a esperança da ressurreição dos mortos”. – colchetes acrescentados.

Eu quero crer que o autor do MB disse essas coisas por pura ignorância ou inocência, para não me sentir obrigado a achar que ele age de maneira insidiosa. O que está dito acima é uma misturada e tanto de pontos comuns e conflitantes de dois sistemas, o cristão e o platônico. Basicamente é o seguinte:

1) Em nenhum momento a filosofia platônica é necessária para entender o conceito de alma espiritual no texto bíblico. O que os “Pais da Igreja” disseram, e que foi detalhado na seção 6, atesta isso acima de qualquer dúvida. Se houve a tal simbiose foi lá na frente, com Agostinho.

2) O conceito (grego) de imortalidade inerente da alma é diferente da esperança cristã de sobrevivência imediata depois da morte. Praticamente uma coisa não tem nada a ver com a outra, a não ser pelo fato de que em ambos acredita-se na sobrevivência da alma. Vide novamente o que os Pais disseram e compare com o que os filósofos gregos ensinaram. De modo que, deixando os conceitos em seus devidos lugares, realmente o platonismo não tem base bíblica! Porém isso não significa que não temos uma alma que continua viva depois da morte.

3) Quem é aqui que insinuou o contrário? Isto é, que o Novo Testamento ensina o platonismo? De modo que eu me pergunto novamente: onde, afinal, o autor do MB está com a cabeça ao cometer erros de avaliação tão primários? Ou toda essa conversa dúbia seria proposital?

4) E o que será que ele entende por “teologia cristã posterior” e não apostólica? O trabalho acadêmico que ele citou e elogiou sugere que a literatura imediatamente depois do tempo dos apóstolos está isenta de erro nesse assunto. O que é natural, não só porque ela está muito próxima da era apostólica, mas também em virtude de pelo menos dois daqueles Pais da Igreja terem conhecido pessoalmente alguns dos apóstolos. De uma forma ou de outra, embora a esperança da ressurreição seja a mais importante para os cristãos, o próprio Novo Testamento informa claramente que mesmo antes dela acontecer não existe aniquilação depois da morte, e que a pessoa (alma) deixa o corpo, conforme já vimos nos textos a seguir.

“Pois sei que logo terei de deixar este corpo mortal, como o nosso Senhor Jesus Cristo me disse claramente. Portanto, farei tudo o que puder para que, depois da minha morte, vocês lembrem sempre dessas coisas.”. – 2 Pedro 1:13-15, NTLH.

“Sabemos que, se for destruída a temporária habitação terrena em que vivemos, temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna nos céus... Portanto, temos sempre confiança e sabemos que, enquanto estamos no corpo, estamos longe do Senhor. Porque vivemos por fé, e não pelo que vemos. Temos, pois, confiança e preferimos estar ausentes do corpo e habitar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:1-10.

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, BJ.

“Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia”. – 1 Tessalonicenses 4:14, BJ.

Outra leitura possível do último texto acima é que ele se refere à ressurreição dos que dormem na morte: “Se cremos que Jesus morreu e ressurgiu, cremos também que Deus trará, mediante Jesus e juntamente com ele, aqueles que nele dormiram”. Mesmo assim o conceito de que a alma permanece viva depois da morte fica mantido, pois Paulo disse o seguinte sobre os que “dormem”: “Ele morreu por nós para que, quer estejamos acordados quer dormindo, vivamos unidos a ele” (1 Tessalonicenses 4:14; 5:10, NVI). “Dormir” pode ser considerado um eufemismo e não deve ser interpretado literalmente. ‘Dormir em Cristo’ em referência à morte significa estar com ele. Por isso, em sua vinda, Jesus poderá trazer consigo as almas que já estão em sua companhia e ressuscitá-las em corpos físicos gloriosos, que também serão dados aos cristãos que então estiverem vivos na Terra, que em seguida serão arrebatados e assim todos se ‘encontrarão com o Senhor nos ares’ (1 Tessalonicenses 4:17). O texto a seguir apresenta um cenário semelhante:

“Quando abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que mantinham. Clamaram com uma grande voz: Até quando, Senhor, santo e verdadeiro, deixas de julgar os que habitam sobre a terra e deles vingar o nosso sangue? A cada um deles foi dada uma vestidura branca; e foi-lhes dito que repousassem ainda por um pouco de tempo até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos, que deviam ser mortos como eles o foram”. – Apocalipse 6:9-11, SBB.

Concordemente, os cristãos do século 2 mantiveram a mesmíssima expectativa apresentada no Novo Testamento:

“[Os falecidos Inácio, Rufo e Zózimo] já estão no lugar que lhes é devido, junto ao Senhor”. – Policarpo de Esmirna (69-155 d.C.), colchetes acrescentados.

“Estamos convencidos de que quando formos removidos da vida atual viveremos outra vida”. – Atenágoras de Atenas (133-190 d.C.).

Onde está, então, a suposta aderência intransigente do autor do MB à Bíblia e ao Cristianismo primitivo? Uma vez que ele luta constantemente contra o sentido cristalino dos textos acima, ao que parece não existe aderência alguma, mas apenas um apego emocional a um conceito que muito preza. A nota dele prossegue:

“Obviamente, reconhecemos que nem todos compartilharão esta conclusão. E é claro que estamos também a par da argumentação de eruditos imortalistas de renome, que os levaram a conclusões que diferem desta. E não falta disposição de nossa parte para examinar os argumentos deles. Porém – é preciso que se enfatize – tal disposição refere-se unicamente a argumentação de nível. Uma coisa é um erudito imortalista apresentar uma exposição exegética séria, atendo-se às questões, sem qualquer outra preocupação. Se, porém, um debatedor qualquer dá evidência de uma disposição contrária a esta, tentando o tempo todo direcionar infantilmente a questão para os indivíduos envolvidos, isso não só depõe contra qualquer exposição dele, como o torna imerecedor de atenção. No caso duma exposição como essa de Lester, por exemplo, um erudito cristão sério se ateria corretamente às evidências bíblicas que ele apresentou, e qualquer contra-argumento seria totalmente exegético. Dificilmente a preocupação primária desse erudito seria apressar-se em fazer levantamento da biografia de Lester (para averiguar, por exemplo, se ele por acaso teria estado associado com alguma religião ‘aniquilacionista materialista’, para depois usar isso como meio de ‘desqualificar’ a exposição dele). Nem esse erudito faria observações depreciativas sobre as credenciais acadêmicas do autor, ou tentaria lançar dúvidas sobre a qualidade de seu cristianismo ou sua fidelidade às Escrituras. Infelizmente, em nossa experiência com essa discussão sobre a natureza humana temos visto muitos exemplos desse tipo de postura. Estes são os ‘argumentos’ que certos imortalistas costumeiramente apresentam. Além de isso depor contra o indivíduo que procede desta forma, ainda reduz a força e o mérito de qualquer contra-argumentação bíblica séria que ele poderia apresentar”.

Será que ele está mesmo a par de todas as informações pertinentes e necessárias? Espero que não, e que tudo o que ele escreveu até agora não passe de um grande mal-entendido. Caso contrário, haveria possibilidade dele estar sendo desonesto consigo mesmo. É bastante irrelevante essa reclamação acima, de que aspectos adjacentes relacionados a quem defende um assunto não deveriam ser mencionados, e que o expositor deveria apresentar seus argumentos apenas com o estilo formal de um trabalho acadêmico. Por que digo isso? Porque as dezenas de obras que ele citou seguem mais ou menos essa linha e mesmo assim ele não aprendeu o que deveria, conforme vimos na seção 3, e continua repetindo velhos erros.

Mas, enfim, essa reação dele é antiga e se refere a quando, por exemplo, eu menciono que determinados escritores citados por ele são adventistas. Ao fazer isso não estou querendo desmerecer o Cristianismo de ninguém, conforme o autor do MB também me acusa indiretamente, até porque estou bastante convencido que um dia todos nós nos encontraremos lá por cima e essas diferenças não existirão mais. Se só assim eles se convencerão da realidade espiritual, que seja! Eles não são indignos só por não acreditam nisso agora. Quando eu identifico de pronto uma fonte adventista é apenas para alertar que aquele escritor fará de tudo para encontrar evidências bibliográficas favoráveis ao que acredita, em muitos casos aprendido desde a infância. Às vezes a formação religiosa é muito mais forte que qualquer prova textual. Sem falar que, pelo menos neste assunto, é muito baixa a qualidade do material retirado de fontes adventistas, mesmo quando apresentado com todos os aspectos acadêmicos que o autor do MB prefere. Por exemplo, um adventista que ele cita, e em alta conta, diz em uma tese de doutorado que Justino, Matetes e Irineu de Lyon eram aniquilacionistas! Como levar a sério um trabalho desse tipo que apresenta informações claramente erradas? (Releia o que esses Pais da Igreja disseram nas citações supracitadas). De modo que a principal utilidade da referida tese foi apenas proporcionar o título de doutor para alguém. Não serve para um exame correto e imparcial da Literatura Patrística. Porém são em trabalhos assim que o autor do MB se apoia, que cometem o erro “nº 2” e outros.

Evidências sólidas falam por si só, não importando muito a maneira que são apresentadas, contanto que seja de uma forma coerente e não haja ofensas ou agressões a eventuais pessoas referenciadas. Além disso, é preciso recapitular a minha escolha por usar neste caso o tratamento ad hominem. As críticas do autor do MB estão repletas de insinuações inadequadas contra mim e quando ele começou a escrevê-las ele foi bem específico ao dizer que meus textos seriam peças desonestas com o objetivo de enganar leitores. Como um texto não existe sem seu autor, obviamente eu fui acusado indiretamente de desonestidade. No entanto, além de eu já ter provado cabalmente que isso não procede, o autor do MB se sente desculpado, pois, afinal, não fica me acusando diretamente. Ou seja, por não mencionar o interlocutor se sente à vontade para tecer críticas mordazes, ainda que apresentadas em um formato “de nível”. Da minha parte, eu prefiro não usar esse tipo de subterfúgio e já nominar a quem é de direito, embora, na verdade, eu nem goste disso, pois acho melhor me ater somente ao assunto tratado, sem referência alguma a eventuais antagonistas, conforme eu fiz no meu texto sobre o jardim do Éden. Aqui só não acontece o mesmo devido ao que expliquei acima.

Portanto, não há razão para melindres. O autor do MB está confundindo as coisas. Ele tem muito o que rever em suas declarações. Agora, se ele não quer enxergar os fatos expostos já é outra história. Quando alguém entra nessa zona não há mais o que fazer. Só Deus pode tirá-lo de lá.

63. Biblical and Classical Views of Personality (1958)

“O que acontece com o israelita quando ele morre? Qual é o seu destino final? A morte é encarada como uma forma de vida fraca. O homem se torna uma mera sombra de seu antigo eu. Há uma relativa fraqueza por parte dos mortos em comparação com a vitalidade do estado dos vivos. É precisamente por isso que o israelita ansiava por uma longa vida. Isto era um sinal do favor do Senhor. ‘Em suma, o conceito israelita normal, que domina a concepção do homem no Antigo Testamento, é que estar doente no corpo ou em fraqueza de circunstância é experimentar o poder desintegrador da morte e ser levado por Iavé aos portões do Seol; mas gozar de boa saúde e prosperidade material é ser permitido andar com Ele em plenitude de vida’. Portanto, não é bem apropriado dizer que o israelita não tinha qualquer concepção de vida após a morte. Ele tinha uma. A vida após a morte era fraqueza e falta de vitalidade. Isto está muito longe da ideia da indestrutibilidade de uma alma imortal que deixa o corpo na morte para desfrutar da felicidade perpétua.

“É fácil ver como surgiu a confusão sobre o pensamento de Paulo acerca do corpo e da alma. As pessoas vêem a palavra sarx usada neste último sentido [o físico], e a identificam com o corpo físico. Paulo, como um bom hebreu, jamais poderia dizer que qualquer coisa que Deus tinha feito era intrinsecamente má. Neste uso da palavra sarx ainda vemos a mesma unidade da personalidade. A personalidade se pôs contra Deus. O conflito no homem entre espírito e sarx é um conflito moral e não um choque metafísico... Paulo não declara em sua doutrina da ressurreição que a alma e o corpo se separam. Ele afirma que o corpo físico é transformado em um corpo espiritual, o corpo mortal é transformado em um corpo imortal (1 Coríntios 15: 42-49). Em outras palavras, o homem como um todo não se divide em duas ou três partes na morte com algumas continuando e outras deixando de existir. O homem como uma personalidade completa continua a sua existência. O homem não é um dualismo metafísico, mas uma unidade e esta unidade não é quebrada pela morte. A unidade é mudada de física para espiritual, e Paulo admite, que este é um mistério. O ponto importante para nossa consideração é que o homem não possui uma alma indestrutível que sobrevive à morte, enquanto o corpo destrutível perece. É a sarx ou a alienação que morre, não o soma ou a personalidade. Não há uma imortalidade da alma, e sim a ressurreição do corpo”.

Biblical and Classical Views of Personality [Os Conceitos Bíblico e Clássico da Personalidade], tese de mestrado, de Dana Prom Smith, Universidade do Arizona, EUA, 1958, pp. 12-17.

ERROS: 4 e 5.

Comentário:

Em outras palavras, não existe aniquilacionismo. Ou a pessoa desce ao Seol para experimentar uma existência triste e limitada, ou vai por inteiro ao céu usufruir a vida com Cristo. Será que é difícil perceber que é isso o que o autor citado está dizendo? Acho que não. No entanto, parece que ele era um daqueles cristãos “platofóbicos” que buscou outra maneira de explicar a vida imediata depois da morte, ainda que isso implique em determinadas falhas exegéticas. Por exemplo, Dana Smith não levou em conta que admitir que existe uma alma que sobrevive à morte é uma crença que sempre existiu no Cristianismo e de maneira independente de Platão, conforme apresentado na literatura cristã primitiva (vide comentário da citação nº 62). Além disso, há algumas inconsistências e um erro claro de interpretação, que destaquei em vermelho, quais sejam:

1) Paulo, de fato, não poderia declarar que na ressurreição “a alma e o corpo se separam”, pois o que acontece é exatamente o contrário, a alma e o corpo se juntam, conforme explicado pelos discípulos diretos dos apóstolos (Pais Apostólicos) ou seus sucessores (Pais Apologistas), os assim chamados “Pais da Igreja”.

2) Se Dana Smith estava falando sobre a ressurreição, também não vem ao caso dizer que o homem “não se divide em duas ou três partes na morte com algumas continuando e outras deixando de existir”, pois, conforme já visto exaustivamente, Paulo deixou claro que antes mesmo da ressurreição do corpo glorioso acontecer, ele e os cristãos deixariam o corpo pecaminoso para irem estar com Cristo. Não há maneira razoável de escapar de tais afirmações, a fim de defender crenças aniquilacionistas. – 2 Coríntios 5:1-10; Filipenses 1:21-23.

3) Essa mistura que Smith faz de dois conceitos distintos (vida imediata após a morte e ressurreição do corpo) também gera outro problema. Todos sabem que a ressurreição geral dos mortos consistirá no ressurgimento do corpo físico, ainda que melhorado. Então que sentido faz dizer que a ressurreição consiste na ‘mudança física para a espiritual’? Embora a explicação de Paulo sobre a ressurreição mencione também essa mudança, o que pode gerar igualmente alguma confusão, a diferença é que Paulo apresentou a expectativa de uma vida junto a Cristo antes mesmo da ressurreição do corpo acontecer, cenário que aparentemente não foi considerado por Smith.*

4) Smith também não esclarece de maneira precisa o conceito de imortalidade da alma. A alma pode ser chamada de imortal não porque ela seja indestrutível, conforme os gregos achavam, mas porque ela permanece viva depois da morte. E se for da vontade de Deus, o único verdadeiramente imortal, essa alma ficará viva para sempre. Ou seja, nunca terá experimentado a morte. O que, na prática, a torna imortal.

5) Por fim, não há nenhum problema em equiparar “carne” com “corpo”, ainda que o primeiro termo costume ser mais usado para enfatizar o corpo pecaminoso. Ambas as palavras são apresentadas com sentido negativo ou positivo, pois são intercambiáveis. Por isso Paulo, ao se referir a um problema de saúde, disse que tinha um “espinho na carne” (2 Coríntios 12:7), ou seja, no corpo dele. Para mais detalhes, consulte o apêndice E.

* Esse discurso de que a vida após a morte e a ressurreição fazem parte de um mistério dentro da escatologia tem também uma razão de ser dentro da própria Bíblia, pois ela não explica o assunto de maneira completa. Mas do muito que já se escreveu baseado nos textos bíblicos envolvidos, pode-se chegar com razoável segurança à seguinte conclusão: depois da morte, a alma vai para o Hades ou para o céu, e o corpo se decompõe. A permanência dela nesses lugares não é sem um corpo, conforme pensavam os gregos. Há textos bíblicos que indicam que depois da morte as pessoas ficam com a mesma aparência terrestre, de modo que elas podem se reconhecer onde estão. No entanto, o corpo que possuem ainda não é o corpo espiritual glorificado que a pessoa receberá na ressurreição, que será um corpo físico semelhante ao que a alma tinha antes, porém sem a marca do pecado e com a capacidade de se transmutar para a forma espiritual quando bem quiser, e vice-versa, conforme Jesus fez em suas aparições depois de ressuscitado. Nem o homem na Terra nem a alma no Hades possuem essa capacidade. Será então dessa forma que corpo físico é semeado para depois ressurgir qual corpo espiritual (corpo + alma). De fato, um corpo físico-espiritual, no sentido de que pode se manifestar em duas formas diferentes.

E com respeito ao sentimento dos hebreus sobre a morte, Dana Smith apresenta um motivo adicional porque mesmo crendo na existência contínua no Seol, eles não a encaravam como verdadeira vida:

“O homem no Antigo Testamento não é considerado isoladamente, assim como a experiência dos hebreus dos ventos do deserto moldou seu pensamento, então sua vida no deserto, viajando de oásis a oásis, sempre vivendo perto no limite da vida e da extinção, moldaram o pensamento deles, do homem na sociedade. Para eles, o homem como indivíduo não existia. Ser cortado do grupo significava extinção, isto é, ser um indivíduo significa que você literalmente morreria. A vida, se fosse para ser mantida em tudo, tinha que ser mantida dentro do clã ou do grupo. Um dos meios de execução para os crimes era expulsar o nômade do grupo, ‘fora da terra dos vivos’.”. – ibid, p. 10.

Em suma, eles achavam não somente que ficariam fracos e debilitados, feito “sombras”, mas também que, por serem privados da convivência da nação, não poderiam mais se sentir pertencentes à ‘terra de vivos’. Tal situação podia acontecer antes mesmo de morrerem fisicamente, conforme explicou Smith.

Portanto, mais uma obra que não serve para sustentar ideias materialistas ou defender o aniquilacionismo. O autor dela não advoga a extinção de quem morre, mesmo tendo aderido a essa moda da visão “holística” sobre a formação do homem, que ganhou força no século 20, inclusive entre teólogos “imortalistas”. Ressalte-se também que esse movimento, que visa romper com todo e qualquer definição teológica que lembre o platonismo, é uma ofensa direta à crença dos apóstolos e seus sucessores diretos ou indiretos (Pais Apostólicos ou Apologistas), pois tanto o Novo Testamento quanto a literatura imediatamente posterior indicam que o conceito monista dos cristãos antigos era moderado, pois fizeram clara distinção entre o corpo e a alma, informando também que esta última não morre junto com o corpo. Além disso, conforme as citações dos escritos patrísticos apresentadas no meu comentário à obra nº 62, os cristãos do século 2 também continuaram a usar as palavras “corpo” e “carne” de modo intercambiável, ao contrastarem a parte física do homem com a espiritual, dicotomia que só se manifesta efetivamente depois da morte, pois antes disso o homem é uma unidade com suas duas partes constitutivas, a material e a imaterial. Sendo que a alma invisível só é intangível quando está no corpo humano. Quando ela se faz presente no mundo espiritual ela adquire materialidade corporal de alguma espécie, com interação tátil e sensações. – Mateus 10:28,29; Apocalipse 6:9-11; Lucas 16: 19-31; Isaías 14:9-15.

64. The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge (1853-1868):

“[Há] falhas e imperfeições radicais dos melhores ensinamentos de Platão... suas conseqüentes ideias errôneas de sua cura por meio de sucessivas transmigrações na terra e dores prolongadas no purgatório e por meio da filosofia... natureza refratária da matéria, a qual deve, portanto, ser eliminada pela mortificação corporal e pela morte do corpo sem uma ressurreição, antes que a alma possa chegar à sua perfeição; a total incapacidade dele de conceber expiação, o livre perdão, graça regeneradora e salvação para as massas, a fortiori [com mais razão] para o principal dos pecadores; a dúvida e a incerteza de seus melhores ensinamentos religiosos, especialmente sobre a vida futura... a maior parte dos filósofos das escolas neoplatônicas e ecléticas que entraram em contato com o cristianismo seguiram seu caminho em indiferença, negligência ou desprezo pela religião do nazareno crucificado. Porém, não poucos dos seguidores de Platão descobriram um elemento conveniente e um tanto similar na eminente espiritualidade das doutrinas cristãs... tornaram-se alguns dos mais ilustres Pais e Doutores da igreja primitiva. E muitos dos primeiros cristãos, por sua vez, encontraram atrações peculiares nas doutrinas de Platão, e as usaram como armas para a defesa e a extensão do cristianismo, ou fundiram as verdades do cristianismo num molde platônico. As doutrinas do Logos e da Trindade receberam sua forma dos Pais gregos, que, se não treinados nas escolas, foram muito influenciados, direta ou indiretamente, pela filosofia platônica, particularmente na sua forma judaico-alexandrina. Que erros e corrupções se introduziram na Igreja a partir desta fonte não se pode negar. Mas, da mesma fonte se derivaram não pequenos acréscimos, tanto ao seu número como à sua força. Entre os mais ilustres dos Pais mais ou menos platônicos, pode-se citar Justino, o Mártir [100-165 d.C.], Atenágoras [133-190 d.C.], Teófilo [?-183 d.C.], Ireneu [130-202 d.C.], Hipólito [170-235 d.C.], Clemente de Alexandria [150-215 d.C.], Orígenes [185-254 d.C.], Minúcio Félix [?-260 d.C.], Eusébio [263-339 d.C.], Metódio [250-311 d.C.], Basílio [330-379 d.C.], Gregório de Nissa [335-394 d.C.] e S. Agostinho [354-430 d.C.]”.

The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge [Nova Enciclopédia de Conhecimento Religioso de Schaff-Herzog], 1911; Realenzyklopädie für protestantische Theologie und Kirche (1853-1868), Vol. 9, p. 41, colchetes acrescentados.

ERRO: 5.

Comentário:

Vamos fazer uma comparação extrema… Se uma pessoa escreve um livro contra o nazismo, qual é a possibilidade dela ser “mais ou menos nazista”? Algo semelhante está sendo dito nessa obra acima. Vimos que Justino combateu o platonismo em seus escritos. O mesmo fez Irineu, o “neto” do apóstolo João. Quão absurdo seria se alguém chegasse para eles e dissesse que eles eram “mais ou menos platônicos”! Por outro lado, embora ambos fossem contra o conceito grego de imortalidade da alma, eles defenderam a crença, que existe desde o primeiro século, de que para o cristão a morte não causa a extinção da vida. Mesmo antes da ressurreição do corpo o fiel é recebido por Cristo. Já os ímpios e infiéis experimentam a morte, porém no sentido hebraico (“sombras” tristes no Seol) ou na perspectiva neotestamentária ampliada (sofrimentos temporários no Hades). Continuam existindo, mas numa condição extremamente rebaixada e com provações. Ou seja, não são aniquilados.

De qualquer modo, vimos que outros Pais da Igreja que não foram mencionados também entabularam discursos que seriam classificados pelos cristãos “platofóbicos” como produtos do platonismo. Vejamos novamente:

“E olhemos firmemente para o Pai e Criador do universo... Contemplemo-lo com nosso entendimento e olhemos com os olhos de nossa alma para a Sua vontade longânime”. – Carta aos Coríntios, cap. 19, Clemente de Roma, c. 96 d.C.

“Que o Senhor Jesus Cristo os honre, em quem eles esperam, em carne e alma, e fé, e amor, e concórdia! Despeço-me em Cristo Jesus, nossa esperança comum”. – Carta aos Filadelfianos, cap. 11, Inácio de Antioquia, c. 110 d.C.

A alma invisível é guardada pelo corpo visível... A alma imortal vive em uma tenda mortal”. – Matetes a Diogneto, cap. 6, c. 125 d.C.

(Lembrando que a alma é imortal apenas em relação ao corpo, não é imortal de eternidade a eternidade, conforme pensavam os gregos, nem tampouco absolutamente indestrutível, pois Deus tem o poder de destruí-la).

“Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo”. – Policarpo de Esmirna, discípulo do apóstolo João, c. 155 d.C.

“[Uma das] variedades de espírito... é chamada de alma... A alma não é em si mesma imortal, ó gregos, mas mortal. No entanto, é possível que ela não morra.... se entra em união com o Espírito Divino, já não está desamparada, mas ascende às regiões para onde o Espírito a guia: porque a morada do espírito está acima, mas a origem da alma é de baixo.... [A alma] é composta, de modo a se manifestar através do corpo; pois nem ela poderia aparecer por si mesma sem o corpo, nem a carne ressuscitar sem a alma”. – Discurso aos Gregos, caps. 12, 13 e 15, de Taciano, c. 160 d.C.

Naturalmente, é preciso estabelecer algum tipo de teoria para contradizer o cenário acima apresentado, de que o homem é formado de corpo e alma, e que esta é invisível, sendo juntada novamente ao corpo na ressurreição. Sem falar das várias referências que os primeiros Pais da Igreja fizeram ao tormento e castigo dos ímpios. Como atribuí-las a Platão se até isso é apresentado no Novo Testamento e de maneira ainda mais vívida do que nos escritos patrísticos?

“Então ele dirá aos que estiverem à sua esquerda: ‘Malditos, apartem-se de mim para o fogo eterno, preparado para o diabo e os seus anjos”. – Mateus 25:41, 46, NVI.

“E, se o teu olho te fizer tropeçar, lança-o fora; melhor te é entrares com um olho no reino de Deus, do que seres com os dois olhos lançado na Geena, onde o seu gusano não morre e o fogo não se extingue”. – Marcos 9:43-48.

“Então aconteceu que o mendigo morreu e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. O homem rico também morreu e foi enterrado. E, estando em tormentos, no Hades, ele levantou os olhos e viu Abraão de longe... e disse: ‘Pai Abraão tenha piedade de mim... pois estou atormentado nessas chamas’.” – Lucas 16: 19-31, NKJV.

“E o Diabo que os desencaminhava foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde já estavam tanto a fera como o falso profeta; e serão atormentados dia e noite, para todo o sempre”. – Apocalipse 20:10.

Não há um único escrito cristão antigo que informe que os escritores bíblicos encaravam as descrições acima como meros simbolismos. Se forem simbolismos, os autores dessas palavras não foram informados disso. Por isso todos os cristãos que apareceram em seguida os seguiram na opinião de que a morte não resulta em aniquilação nem para os bons, nem para os maus.

Há uma alma que sobrevive à morte, não importando se essa parte sobrevivente era ou não chamada de alma pelos primeiros cristãos. O sentido geral de psykhé carrega consigo esse sentido, do “eu” que habita o corpo, ou seja, a própria pessoa. A mesma ideia está no hebraico, a exemplo de quando Jó disse que aguardaria com expectativa no Seol a chamada de Deus caso Ele o mandasse para lá. Quando Paulo dizia ‘eu deixarei este corpo para ir estar com Cristo’ era exatamente isto o que ele estava querendo dizer. Não há necessidade de formular interpretações para explicar tais declarações. Elas são o que são e acabou. É muito incoerente querer reformular tudo isso em prol de uma ideia que guarda semelhança com o materialismo ateu! O que explicaria alguns cristãos se apegarem a uma coisa dessas? É algo tão incompreensível que muitos dos teólogos “monistas” que não querem usar o conceito de alma invisível dão um jeito de explicar a vida contínua depois da morte de outras maneiras, através de um labirinto de argumentos, por meio de teorias inovadoras ou simplesmente por afirmarem que é um mistério. Tudo para não abrir mão da fé que existe desde as origens do Cristianismo de se estar com o Senhor antes da ressurreição, e também para não serem chamados de aniquilacionistas.

É comum estes últimos insinuarem que os “imortalistas” não são honestos diante das evidências bíblicas e, por conseguinte, sem humildade para admitir que estão errados. Tais insinuações são um “bumerangue”, pois vêm e voltam. Tenho percebido que a realidade é exatamente o contrário. As evidências acima apresentadas afiançam a minha opinião. É claro que elas são irrelevantes para os aniquilacionistas, uma vez que a imaginação deles é muito fértil para elaborar teorias que contradigam a Bíblia e os cristãos antigos. É o caso daquela que diz que a “alma” mencionada pelo Senhor Jesus no texto abaixo é “a vida eterna futura”:

“Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena”. – Mateus 10:28, 29, AM.

Se você, leitor, se apercebe disso que estou dizendo, você tem alguma dúvida que se a afirmação acima tivesse saído da pena de algum Pai da Igreja os aniquilacionistas não o acusariam prontamente, dizendo que foi mais um dos influenciados pelo platonismo? Se sua resposta for não, entendeu a questão.

E falando em teoria, o autor do MB se deu conta que nem os mais antigos Pais da Igreja, os sucessores diretos ou indiretos dos apóstolos, podem ser usados para apoiar o aniquilacionimo, ainda que no site dele haja uma tese adventista que ensina o oposto. Devido a essa impossibilidade de usá-los ele já aderiu a uma teoria baseada em declarações dos apóstolos Paulo, Pedro e João sobre falsos mestres que introduziriam ensinos errados na igreja, homens que foram classificados de várias maneiras pelos apóstolos, a exemplo de “anticristos”, “enganadores”, “malévolos”, “deturpadores” etc. Veja mais detalhes no apêndice D. Ainda que, na maioria dos casos, os apóstolos não tenham dito que falsidades seriam essas, quando exatamente elas surgiriam na corrente do tempo e nem o alcance que teriam, o autor do MB já determinou que essas previsões já se cumpriram nos sucessores dos apóstolos. Disse ele em uma nota que acompanha a citação:

“O processo de erosão do evangelho ganhou força logo depois que todos esses apóstolos originais haviam falecido. E, o que é mais importante, as corrupções não se limitaram a qualquer ‘assunto de somenos importância’ no âmbito da fé cristã. De jeito nenhum. Envolveu justamente conceitos fundamentais para a fé cristã, tais como a natureza de Deus, a natureza humana, o relacionamento do homem com Deus e a questão do destino humano após a morte. Foram precisamente estas as doutrinas corrompidas pela invasão dos conceitos filosóficos pagãos e ‘muitos’ caíram em toda essa conversa. É esta a realidade que havia sido predita pelos apóstolos, e é atestada pelos eruditos cristãos credenciados, que sabem muito bem do que estão falando. É inútil qualquer tentativa de negá-la, quer gostemos disso, quer não”.

Como se nota, essa mania que os aniquilacionistas têm de acusar as pessoas que não crêem no materialismo “cristão” não se limita apenas a indivíduos de nosso tempo. Os do passado também são alvos disso, ainda que estes tenham demonstrado uma devoção cristã exemplar, ao ponto de alguns terem sido martirizadas, a exemplo de Policarpo, o discípulo do apóstolo João, e Justino, daí o sobrenome “Mártir”. Além disso, vemos que o autor do MB divide a responsabilidade da suposição que fez com “eruditos cristãos credenciados”.

Seria bom que ele estudasse a história dos Pais da Igreja do século 2 para reavaliar se a acusação que faz é justa e coerente com a trajetória do Cristianismo primitivo. Na esteira dessas acusações, eu tenho certeza que se todos aqueles textos “inconvenientes” do Novo Testamento estivessem em obras patrísticas, ao invés de na Bíblia, a exemplo da parábola do rico e Lázaro ou da promessa de se estar no paraíso no mesmo dia da morte, os aniquilacionistas não fariam a menor cerimônia em atribuir tais declarações à alegada corrupção introduzida na infância do Cristianismo pelos que foram encarregados de cuidar da igreja de Cristo. Nem se dariam ao trabalho de encontrar explicações alternativas para adequar as referidas informações de existência contínua à crença de extinção depois da morte. Além disso, eles também se esquecem que a preservação tanto dos textos bíblicos quanto dos patrísticos foi resultado direto do trabalho dos supostos cristãos apóstatas, bem como a decisão do que faria ou não parte do Novo Testamento. Veja mais sobre isto no apêndice G.

Assim fica difícil e é preciso muita paciência...

65. The Christian Element in Plato and the Platonic Philosophy (1861)

“Platão se manteve na alta consideração da antiga Igreja Cristã, especialmente enquanto os Pais da Igreja Grega foram peculiarmente os formadores e líderes da teologia. Isso foi induzido, em parte pelo costume da época de derivar a instrução filosófica principalmente de Platão, e eles se apegaram a ele em preferência a qualquer outro, em parte por convicção, porque encontraram nele mais elementos cristãos do que em Aristóteles... Foi especialmente Clemente de Alexandria, que procurou derivar o verdadeiro e o belo na filosofia grega... Ele foi um resoluto platonista, embora se chamasse de eclético. Seus escritos estão cheios de citações de Platão, e de comparações entre doutrinas platônicas e cristãs... Seu pensamento platonico-cristão... Clemente legou ao seu espiritualizado e fértil discípulo, Orígenes [185-254 d.C.], a quem também o platonismo veio de outra fonte, a saber, de Amônio Sacas, seu instrutor de filosofia. Há, de fato, em Orígenes uns poucos trechos únicos do que nos outros Pais da Igreja, em que ele menciona o cristianismo de Platão com elogio, ele muitas vezes sai mesmo em oposição decidida a ele... Sua platonização é vista menos nos detalhes do que em todo o seu ensinamento, que é visceralmente entremeado com ideias platônicas, e em parte originou-se delas... Houve, em geral, na antiguidade cristã, uma grande e resoluta disposição de trazer Platão para dentro do círculo do Evangelho, e representar seu ensinamento como semelhante ao evangélico”.

Das Christliche im Plato und in der platonischen Philosophie entwickelt und hervorgehoben [O Cristão em Platão e a Filosofia Platônica Desenvolvida e Enfatizada], de Constantin Ackermann, Hamburgo, Alemanha, 1835 (Em inglês: The Christian Element in Plato and the Platonic Philosophy [O Elemento Cristão em Platão e a Filosofia Platônica]. Traduzido do alemão por Samuel Ralph Asbury, 1861), trechos do capítulo 1, pp. 17-29.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Ainda que, no geral, o que está dito nessa citação seja verdade, ela peca em alguns pormenores. Por isso é preciso fazer pelo menos duas ressalvas, com as quais estão familiarizados os que já leram integralmente a literatura patrística entre os séculos I e III.

Primeiramente, a consideração que os primeiros autores cristãos tinham por Platão não era tão grande assim, porque mesmo que tecessem algum elogio a ele, ou aproveitassem algo do que ele ensinou, escreviam com relativa frequência contra pontos essenciais do platonismo, a exemplo da imortalidade absoluta da alma ou da reencarnação. Para o caso de você nunca ter lido o que membros da antiga igreja escreveram, recomendo outra vez o texto “O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?”. Verá que ele é muito mais esclarecedor do que ficar lendo sobre tais escritos em obras de referência, pois a maior parte do material apresentado nesse texto é, na verdade, uma coletânea do que foi escrito pelos Pais da Igreja. Ler diretamente o que eles ensinaram é incomparavelmente melhor do que ficar lendo comentários de terceiros, especialmente se quem comenta forem aniquilacionistas, pois normalmente eles conhecem muito pouco desse assunto. E mesmo quando uma referência é escrita por um pesquisador sério, determinados detalhes ou nuances não serão percebidos. É o que acontece na citação da obra acima.

Em segundo lugar, sobre a intimidade que havia entre os cristãos e o platonismo, esse autor também exagerou o quanto Orígenes apreciava Platão. Se Ackermann estivesse falando de Gregório de Nazianzo (329-390) ou Agostinho de Hipona (354-430) o cenário que apresentou estaria mais próximo da realidade. Mas no caso de Orígenes a integração com a filosofia grega não foi tão ampla. De qualquer modo, em qualquer uma das duas épocas sempre houve significativas diferenças entre o ensino cristão e a filosofia dos gregos, e o Cristianismo só se valeu daquilo que realmente era aproveitável, e mesmo assim dificilmente algum cristão daquele tempo diria que a nascente filosofia cristã tinha o mesmo valor que o ensino apostólico. Sempre houve pontos inegociáveis lastreados na Bíblia Sagrada.

De qualquer maneira, nada do que foi dito nesse livro indica que foi herança do platonismo a crença de que uma alma sobrevive de forma consciente à morte do corpo. Nenhum autor de qualidade e que tenha realmente lido todos os pais da Igreja dos séculos iniciais jamais afirmará tal coisa, pois somente a leitura dessa biblioteca antiga deixará patente que os cristãos desde o início acreditavam na existência dessa alma invisível que não deixa de existir, mesmo que não a considerassem imortal de acordo com a acepção grega.

66. Imortalidade ou Ressurreição? - Uma Abordagem Bíblica... (2007)

Trechos das páginas 170 a 181:

‘Partir e estar com Cristo’... é uma declaração da relação que existe e continua entre o crente e Cristo através da morte, não uma declaração da ‘condição’ do corpo e da alma entre a morte e a ressurreição... não é interrompido pela morte porque o crente que dorme em Cristo não tem consciência da passagem do tempo... ‘O desejo de Paulo de “partir e estar com Cristo” não reflete o desejo de um íntimo “entre nous” [experiência entre nós] no céu, porque a frase está integralmente relacionada com a redenção cósmica no final dos tempos.’ A dimensão corporativa e cósmica da experiência ‘com Cristo’ é claramente evidente na mesma epístola aos Filipenses... ‘Habitar com o Senhor’. Em 2 Coríntios 5:1-10, Paulo expressa novamente a esperança de estar com Cristo usando várias metáforas marcantes... Infelizmente, muitos intérpretes estão ansiosos para derivar deste trecho, assim como no de Filipenses 1:22-23, definições antropológicas, cronológicas ou cosmológicas precisas da vida após a morte. Todavia, tais preocupações estão muito distantes de Paulo, que está usando a linguagem poética da fé para expressar suas esperanças e temores em relação à vida atual e futura, em vez da linguagem lógica da ciência para explicar a vida após a morte... A falha em reconhecer que Paulo está falando sobre duas modalidades diferentes de existência e não sobre o estado do corpo ou da alma após a morte, levou a especulações desnecessárias e equivocadas sobre a vida após a morte. Um bom exemplo é a afirmação de Robert Peterson: ‘Paulo confirma o ensinamento de Jesus quando ele contrasta estar “no corpo” e “ausente do Senhor” com estar “ausente do corpo e habitar com o Senhor”.’ (2 Cor. 5:6, 8). Ele pressupõe que a natureza humana é composta de aspectos materiais e imateriais”.

Esta interpretação é sem fundamento, porque nem Jesus nem Paulo estão preocupados em definir a natureza humana ontologicamente, isto é, em termos de seus componentes materiais ou imateriais. Em vez disso, a preocupação deles é definir a natureza humana de forma ética e relacional... , em termos de desobediência e obediência, pecado e justiça, mortalidade e imortalidade. Esta é a preocupação de Paulo em 2 Coríntios 5:1-9, onde ele fala dos modos terrestre e celestial de existência em relação a Deus, e não da composição material ou imaterial da natureza humana antes e depois da morte...”.

“O último trechos que examinaremos é Apocalipse 6:9-11, que diz: ‘Quando ele abriu o quinto selo, vi debaixo do altar as almas daqueles que haviam sido mortos por causa da palavra de Deus e do testemunho que deram. Eles clamavam em alta voz: “Até quando, ó Soberano santo e verdadeiro, esperarás para julgar os habitantes da terra e vingar o nosso sangue?” ’... Este trecho é frequentemente citado para apoiar o conceito de que as ‘almas’ dos santos existem após a morte no céu como espíritos desencarnados e conscientes...Esta interpretação ignora que as imagens apocalípticas não se destinam a ser fotografias de realidades concretas, e sim representações simbólicas de realidades espirituais quase inimagináveis... O uso da palavra ‘almas – psychas’ neste trecho é ímpar no Novo Testamento, porque ela jamais é usada em referência a seres humanos no estado intermediário. A razão para seu uso aqui é sugerida pela morte desnatural dos mártires, cujo sangue foi derramado pela causa de Cristo. No sistema sacrificial do Antigo Testamento, o sangue dos animais era derramado na base do altar de ofertas (Lev. 4:7, 18, 25, 30). O sangue continha a alma (Lev 17:11) da vítima inocente que era oferecida como um sacrifício expiatório a Deus em favor dos pecadores penitentes. Assim, as almas dos mártires são vistas sob o altar significando que simbolicamente tinham sido sacrificadas sobre o altar e seu sangue foi derramado na base”.

“O conceito popular de hades como um lugar de tormento para os ímpios adentrou na Igreja Cristã e, finalmente, influenciou até os tradutores da Bíblia. Na Versão Rei Jaime, por exemplo, hades é traduzido por ‘inferno’ em vez de ‘sepultura’ em 10 das 11 ocorrências do termo. Esta tradução imprecisa induziu muitos cristãos desinformados a acreditar que, ao morrer, as almas dos ímpios são lançadas no fogo do inferno... Nosso estudo de todos os trechos bíblicos relevantes mostrou que o conceito do estado intermediário em que as almas dos salvos gozam da bem-aventurança do Paraíso, enquanto as dos não salvos sofrem os tormentos do inferno deriva, não das Escrituras, e sim do dualismo grego. É bem lamentável que, durante grande parte de sua história, o cristianismo tenha sido muito influenciado pelo conceito dualista grego da natureza humana, segundo o qual o corpo é mortal e a alma é imortal. A aceitação desta heresia terrível condicionou a interpretação das Escrituras e deu origem a uma série de outras heresias tais como o purgatório, o tormento eterno no inferno, a oração pelos mortos... É encorajador saber que hoje muitos eruditos de todas as persuasões religiosas estão lançando um ataque maciço contra o conceito dualista tradicional da natureza humana e algumas de suas heresias relacionadas. Só podemos esperar que esses esforços contribuam para recuperar o conceito bíblico holístico da natureza e do destino humanos, dissipando, assim, as trevas espirituais perpetradas por séculos de crenças supersticiosas”.

Immortality or Resurrection? A Biblical Study on Human Nature and Destiny, de Samuelle Bacchiocchi, Biblical Perspectives, EUA, 1997 (Em português: Imortalidade ou Ressurreição? - Uma Abordagem Bíblica Sobre a Natureza Humana e o Destino Eterno, UNASPRESS, São Paulo, Brasil, 2007), pp. 170-181.

ERRO: 5.

Comentário:

Muito poderia ser dito sobre esse livro de Samuelle Bacchiocchi, pois ele atesta o que frequentemente se vê quando um adventista escreve sobre esse assunto: uma exposição cheia de preconceitos contra o cristianismo primitivo, com frases de efeitos para impressionar o leitor e imprecisões exegéticas mais do que evidentes. No entanto, vou me restringir somente a alguns pontos, que são suficientes para o leitor confirmar que tais erros realmente existem e perceber que é um enorme desperdício de tempo ler obras adventistas que combatem o ensino cristão (ortodoxo) sobre a alma. As palavras destacadas em vermelho já dão a dica sobre os problemas que há somente nesse trecho citado.

O autor do MB já havia disponibilizado um resumo desse livro antes de publicar o seu rol de citações inadequadas de obras teológicas. Veja uma das coisas que ele disse sobre esse texto de Bacchiocchi:

“A tradicional visão dualística da natureza e destino humanos vem sofrendo ataques de diversos estudiosos da Bíblia, filósofos e cientistas, por ser considerada contrária às Escrituras, à razão e à ciência. Por meio deste livro, o autor ítalo-americano Samuele Bacchiocchi desafia os cristãos a retomarem o ensino bíblico de que o corpo e a alma são uma unidade indissolúvel, criada, redimida e por fim restaurada por Deus”.

Esta chamada menciona um fator muito importante, normalmente ignorado, que contribuiu para o surgimento do aniquilacionismo materialista na era contemporânea, e que é realmente o principal elemento no qual se fundamenta a teoria da extinção completa após a morte, ainda que no discurso oficial seus defensores aleguem que o motivo é a Bíblia. Trata-se do conceito científico da criatura humana, que dispensa qualquer coisa de natureza espiritual e justifica a vida, e a própria mente, como resultado da matéria em funcionamento. Para eles o ser humano é apenas uma máquina com prazo de validade e crer que ele possui uma alma espiritual seria apenas uma “crença supersticiosa”... Conforme vimos, Bacchiocchi realmente menciona a justificativa “científica” como motivo “adicional” para rejeitar o “imortalismo”.

Bacchiocchi era um desses escritores pretensiosos que acham que sabem mais sobre o Cristianismo antigo do que os cristãos que aprenderam diretamente dos apóstolos o ensino de Cristo. Isto porque nenhum destes, que foram os protagonistas originais dessa história, disse que aquilo que Jesus falou sobre a sobrevivência da alma em contraste com o corpo ou o tormento consciente de alguns depois da morte eram “metáforas marcantes” ou “linguagem poética”. Pelo contrário, todos os que tocaram nesses pontos afirmaram que o ensino de Jesus era literal mesmo. Além do mais, isso também demonstra que nutrir tais conceitos não foi de jeito nenhum uma introdução sorrateira numa época posterior ao primeiro século. Mas, de acordo com Bacchiocchi, quem acredita assim é um ‘intérprete ansioso’ e desconhece o que se passava na cabeça dos primitivos cristãos. Mas onde estão os autores até o século II que corroboram tal conclusão? Nenhum até hoje foi encontrado.

Dizer que a pessoa de fé vai imediatamente para a presença de Cristo porque o morto até a ressurreição ‘não tem consciência da passagem do tempo’ é forçar um entendimento não presente na intenção dos primitivos escritores cristãos. Pedro e Paulo quando manifestaram a esperança de irem para a presença de Deus depois que morressem não se referiam a isso. Um exame sério e verdadeiramente exegético do conteúdo bíblico atesta esse fato. Mas, para que não haja nenhuma dúvida que é assim mesmo, veja o que disse um cristão que conheceu pessoalmente os dois apóstolos:

“Mas para não nos determos em exemplos antigos, vamos aos mais recentes heróis espirituais. Tomemos os exemplos nobres fornecidos em nossa própria geração. Por inveja e ciúme, as maiores e mais justas colunas [da igreja] foram perseguidas e mortas. Coloquemos diante dos nossos olhos os ilustres apóstolos. Pedro, por causa de inveja injusta, não suportou nem um nem dois, mas muitos labores, e quando, por fim, sofreu o martírio, partiu para o lugar de glória que lhe era devido...”. – Carta aos Coríntios (c. 60-90 d.C.), Clemente de Roma, cap. 5.

Isso que Clemente disse é apenas a concretização da expectativa que Pedro nutriu, e que está registrada em uma de suas cartas:

“É justo despertar-vos com as minhas admoestações, enquanto estou nesta tenda terrena [o corpo], sabendo que em breve hei de despojar-me dela. . . Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, BJ.

Clemente continua:

“Por causa da inveja, Paulo também obteve a recompensa da perseverança, depois de ter sido sete vezes lançado em cativeiro, obrigado a fugir e apedrejado. Depois de pregar tanto no Oriente como no Ocidente, ganhou a ilustre reputação devido à sua fé, tendo ensinado a justiça ao mundo inteiro e chegado ao limite extremo do Ocidente e sofrido o martírio sob os magistrados. Assim foi removido do mundo, e entrou no lugar santo, tendo provado ser um exemplo impressionante de paciência”. – Carta aos Coríntios, Clemente de Roma, cap. 5.

Novamente, o que vemos aí é o cumprimento do que antes era apenas uma esperança de Paulo:

“Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9.

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, BJ.

Conforme está bem claro, os primeiros cristãos não achavam que ficariam milhares de anos em inexistência para só depois serem “recriados” e mandados para o lar celeste de Jesus Cristo. A ida era imediata, concomitantemente à existência dos outros cristãos que permaneceriam na Terra, conforme disseram sobre outro conhecido dos apóstolos, um discípulo de João chamado Policarpo de Esmirna:

“Pois, tendo [Policarpo] pacientemente superado o injusto governador, e assim adquirido a coroa da imortalidade, agora, com os apóstolos e todos os justos [no céu], glorificam alegremente a Deus, o Pai, e abençoa nosso Senhor Jesus Cristo, o Salvador de nossas almas, o Governador de nossos corpos, e o Pastor da Igreja Católica em todo o mundo”. – O Martírio de Policarpo, cap. 19, c. 155 d.C.

O próprio Jesus Cristo, em sua parábola do rico e Lázaro, demonstrou que a partida da pessoa depois da morte é imediata. O rico na ilustração foi para as chamas do Hades e Lázaro, carregado pelos anjos, para o Paraíso de Abraão. E ambos os personagens, em seus diálogos, se referem a pessoas de seu próprio tempo que continuavam vivas na Terra. A recompensa de Lázaro não se dá em um momento indeterminado no futuro quando mais ninguém de sua época existia. Tudo ocorre de maneira simultânea. – Lucas 16:19-31.

Pelo que foi demonstrado até aqui, quem é que realmente se mostrou ansioso para propor uma interpretação sem fundamento e apresentou algo muito distante do que se passava na cabeça de Paulo e outros cristãos antigos? É óbvio que foi Bacchiocchi. O que ele explicou é uma completa distorção do cenário doutrinal das primitivas comunidades cristãs. O mesmo fazem os que o seguem em suas interpretações anacrônicas que flertam com o materialismo científico. Todos eles é que são realmente desinformados ao acharem que estão corretos nesse ponto. As provas disto são definitivas e incontestáveis.

Outra passagem igualmente distorcida por Bacchiocchi é aquela de Apocalipse sobre as almas dos mártires estão no céu “sob o altar”. Só em haver a combinação das palavras “as almas dos”, em referência a quem morreu, indica o consagrado conceito cristão sobre o que acontece depois da morte. Se o escritor bíblico do livro da Revelação tivesse a mesma mentalidade de um adventista ou afim, ele jamais teria feito tal escolha de palavras. A “solução” encontrada por Bacchiocchi, ainda que criativa, não passa de uma interpretação que rompe com a concepção dos escritores cristãos mais antigos que se têm notícia.

Quando o texto bíblico menciona “altar” certamente tem mesmo a ver com o fato das referidas almas serem de cristãos inocentes que foram sacrificados na Terra. Mas daí a dizer que essas “almas” referem-se ao sangue só porque este é também chamado de “alma” na Bíblia é uma interpretação que provavelmente nunca houve na história do Cristianismo primitivo. Que a palavra alma em conexão com a morte não é o sangue se nota na descrição sobre a morte de Raquel, pois é dito que a alma dela estava partindo (Gênesis 35:18). O sangue não parte para lugar nenhum, pois fica no próprio corpo morto.

Ter Apocalipse muitos simbolismos não significa que determinadas situações que ele relata não existem realmente, ainda que os detalhes não correspondam sempre à realidade. É como acontece nas parábolas de Jesus. Mesmo que sejam ficção com alguma metáfora, elas se referem a situações reais e não são baseadas em crendices ou “crenças supersticiosas”. E se há uma passagem bíblica que poderia ser interpretada simbolicamente nos termos que Bacchiocchi propôs, porém com sentido contrário, é Gênesis 4:10, onde é dito que o sangue de Abel depois que foi assassinado por seu irmão clamava por Deus. Neste caso, poderia ser muito bem uma referência figurativa à verdadeira alma de Abel, que clamava a Deus depois que saiu do corpo, de maneira semelhante àquelas almas na visão de João que passaram pelo mesmo tipo de martírio. Esse tipo de representação não é incomum na Bíblia. É o caso, por exemplo, do texto que fala da sabedoria:

“Não está chamando a sabedoria e não está o discernimento emitindo a sua voz?... Ao lado dos portões, na boca da vila, no acesso das entradas ela continua a gritar alto: ‘A vós, ó homens, é que estou chamando... Eu mesma amo os que me amam... Meus frutos são melhores do que o ouro... O próprio Jeová me produziu como princípio do seu caminho, a mais antiga das suas realizações de há muito. Fui empossada desde tempo indefinido, desde o começo, desde tempos mais remotos do que a terra... Antes de serem assentados os próprios montes... Quando ele preparou os céus, eu estava lá... então vim a estar ao seu lado como mestre-de-obras... E agora, ó filhos, escutai-me; sim, felizes são os que guardam os próprios caminhos meus”. – Provérbios 8:1-32.

Muitos comentaristas cristãos chegaram à conclusão que a “sabedoria” mencionada nessa passagem é, na verdade, uma referência a Jesus Cristo, sobre quem o apóstolo Paulo disse: “Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus” (1 Coríntios 1:24, NVI). Portanto, é perfeitamente possível que a referência em Gênesis ao sangue de Abel, que clamou por ter sido assassinado, seja uma maneira simbólica de se referir à alma dele, o que estaria de acordo com a cena descrita em Apocalipse 6:9, caso se queira entendê-la como tendo relação com o sangue sacrificial que era derramado no altar terrestre israelita.

Por fim, quando lemos as afirmações de Bacchiocchi sobre o dualismo grego, que supostamente seria responsável pela crença na Geena ardente e da ida imediata de cristãos para o céu, notamos omissões que podem fazer o leitor desavisado (aqui sim!) concluir coisas que não são corretas. Primeiro porque, conforme já visto, a expectativa de recompensa imediata ou de sofrimento no Hades foi ensinada pelo próprio Cristo (Lucas 19:16-31; 23:43). Segundo, quando se diz que o conceito grego da imortalidade da alma deve se combatido, isto está correto dentro do contexto do primeiro período patrístico, conforme exemplificado nas obras de Justino:

“A ressurreição é a ressurreição da carne que morreu. Pois o espírito não morre. A alma está no corpo, e sem alma não pode viver. O corpo, quando a alma o abandona, já não é um ser vivo. Porque o corpo é a casa da alma, e a alma, a casa do espírito. Estes três, em todos aqueles que apreciam uma esperança sincera e uma fé inquestionável em Deus, serão salvos... [Se] o Salvador em todo o Evangelho mostra que há salvação para a carne, por que ainda toleramos esses argumentos incrédulos e perigosos, e não vemos que estamos retroagindo quando ouvimos um argumento tal como este: que a alma é imortal, mas o corpo mortal, e incapaz de ser revivido? Para isso, costumávamos ouvir Pitágoras e Platão, mesmo antes de termos aprendido a verdade. Se, então, o Salvador disse isso e proclamou a salvação somente à alma, que coisa nova, além do que ouvimos de Pitágoras, Platão e toda o seu pessoal, Ele nos trouxe?”. – Sobre a ressurreição dos Mortos, cap. 10, colchetes acrescentados.

“Mas há outros que, tendo suposto que a alma é imortal e imaterial, acreditam que, embora tenham cometido o mal, não sofrerão castigo (pois o que é imaterial é insensível), e que a alma, em conseqüência de sua imortalidade, não precisa de nada de Deus”. – Diálogo com Trifão, cap. 2.

O acima, porém, não significa que Justino achava que a alma não permanece viva depois da morte. Ele acreditava sim que ela se mantém de maneira consciente, pois a alma é a casa do espírito que não morre, conforme representado na gravura a seguir. Somente a casa da alma, o corpo, é desfeita. E mesmo assim de maneira provisória, pois o corpo é restaurado à alma na ressurreição. Alguns acham que isso acontece imediatamente depois da morte, sem prejuízo à ressurreição geral e futura dos mortos.

Por isso Justino disse que a alma de Samuel voltou do Hades para repreender o rei Saul, assim como tinha feito quando estava no corpo terrestre:

“Quando chegarmos ao fim da nossa vida [terrena], poderemos pedir o mesmo de Deus [que proteja nossas almas], aquele que é apto para impedir que qualquer vergonhoso anjo do mal leve nossas almas. E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou. E parece também que todas as almas de semelhantes homens justos e profetas estão [potencialmente] sujeitas ao domínio de tais poderes, conforme pode ser inferido de todos os fatos expostos no caso daquela bruxa”. – Diálogo com Trifão, cap. 105, colchetes acrescentados.

Quem lê as considerações de Bacchiocchi dificilmente se dará conta que o verdadeiro quadro antigo é o que acabou de ser demonstrado. Não perceberá que a oposição ao conceito grego de imortalidade nada tem a ver com a crença cristã de que a alma sobrevive à morte do corpo (Mateus 10:28). Dizer que tal sobrevivência não existe e que as claras referências a ela na Bíblia são apenas “metáforas marcantes” ou “linguagem poética” são afirmações ridículas que não encontram nenhum apoio na literatura primitiva ou em obras de referência totalmente honestas. Igualmente inútil é todo o palavreado acadêmico de Bacchiocchi, a exemplo de ontologia e visão holística da situação, pois isso não passa de embelezamento do que é muito feio, espiritualmente falando. Ele ainda se apropria de termos próprios do universo “imortalista”, a exemplo da expressão “estado intermediário”.

Portanto, está comprovado que a leitura de livros a exemplo desse de Bacchiocchi é um tempo que poderia ser melhor aproveitado de outras maneiras, pois eles servem apenas para promover incoerências teológicas que contradizem o Cristianismo primitivo e a própria Bíblia. Não se trata de preconceito contra o autor ou o tipo de cristianismo que ele praticava. Se quiser reforçar mais ainda o que corrobora essa conclusão, recomendo novamente o texto “O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?.

67. The SCM Press A-Z of Patristic Theology (2004)

“... a tradição intelectual cristã envolveu uma herança anterior bem misturada. Os dados bíblicos sobre a alma, e os das várias escolas filosóficas gregas, se acumularam em um conjunto de ensino muito diversificado. Os primeiros séculos da era patrística foram gastos tentando sintetizar grande parte desse conjunto de evidências. No Antigo Testamento, o conceito de alma é abordado de várias maneiras. Os textos frequentemente usam a palavra nephesh para descrever o sopro de vida em um ser humano, como essa força vital distintiva que Deus inspirou no barro para fazer uma criatura viva (Gênesis 2:7). Porém, mais comumente os escritores cristãos quiseram usar o termo espírito (grego: pneuma) para conotar este aspecto da força vital interna divinamente concedida, esse elemento que distingue um ser humano, digamos, dos animais. Este aspecto não é necessariamente evidente em grande parte da teologia hebraica primitiva, ou na maioria das referências do Novo Testamento à ‘alma’, que simplesmente a usam no formato bíblico para se referir à criatura, porém ele se tornou um aspecto notável nas reflexões cristãs posteriores que estavam sendo articuladas em um contexto de pensamento grego, o qual há muito tempo especulava sobre a composição interna da consciência humana. A distinção entre alma e espírito permaneceu sempre tênue na reflexão cristã... A alma, para Platão, era eterna e independente (pelo menos em seus aspectos superiores como to logistikon). De maneira diferente, o aristotelianismo, argumentava fortemente que a alma era uma parte fundamental da entelequia [essência] interna da natureza humana, e não uma centelha exterior à parte, presa dentro de uma forma material... Cada abordagem que as várias escolas deram à alma atraiu diferentes teólogos patrísticos. Platão deu uma forte ênfase à imortalidade inerente da alma. Inicialmente, muitos cristãos resistiram a isso como incompatível com a mensagem do evangelho, e o conceito de ‘imortalidade condicional’ da alma era o preferido, a saber, que Deus elevaria o ser humano à vida imortal (e não só a alma, mas o corpo também), se (e somente se) a criatura fosse obediente à aliança. Só depois do terceiro século foi que a pressuposição da imortalidade da alma veio a ser mais comumente aceita no mundo cristão. As figuras dominantes de Agostinho e Orígenes foram muito influentes para este desenvolvimento... [Justino] criticou a teoria da imortalidade platônica, argumentando que Deus criou as almas, elas não preexistiam eternamente, e que a alma seria imortal apenas por uma dádiva de Deus, não por causa de sua própria força vital (Diálogo com Trifo 4-5)”.

The SCM Press A-Z of Patristic Theology [A Teologia Patrística de A a Z – SCM Press], John Anthony McGuckin, ed., SCM Press, Inglaterra, 2004, pp. 316-318.

ERRO: 1.

Comentário:

Aqui temos outro exemplo que se o leitor não tiver em mente o verdadeiro contexto da era patrística, o que parece que é o caso do próprio autor do MB, ele entenderá outra coisa diferente do que está sendo dita. Primeiramente temos a referência sobre a evolução lingüística para se referir à natureza humana, e dentro do próprio Novo Testamento. A palavra “espírito” passou a funcionar como sinônimo de “alma”, algo que praticamente não ocorria na primeira parte da Bíblia. Em seguida vemos a afirmação de que os primeiros escritores patrísticos resistiram ao conceito grego sobre a alma. E isto é verdade! Visto que apenas acreditar na sobrevivência da alma depois da morte não equivale à concepção grega de imortalidade, que envolve muito mais coisas. As passagens de Clemente e Justino que foram citadas no comentário ao livro de Bacchiocchi confirmam isso. E elas estão em harmonia com o que disse um cristão que surgiu um pouco depois:

“E ninguém ache estranho que chamemos pelo nome de vida a continuação do ser que é interrompida pela morte e corrupção... esta palavra não tem apenas um significado, nem há apenas uma medida de continuidade, porque a natureza também das coisas que continuam não é uma só... esperamos a dissolução do corpo, como a sequela de uma vida de carência e corrupção, e depois disso esperamos uma continuação com a imortalidade, não colocando a nossa morte em um nível com a morte dos animais irracionais... Não é porque [sabemos que] a separação da alma dos membros do corpo e a dissolução das suas partes não interrompem a continuidade da vida que devemos desanimar da ressurreição... estamos convencidos de que quando formos removidos da vida atual viveremos outra vida melhor do que a presente, e celestial, não terrena... Deus não nos fez como ovelhas ou animais de carga, uma mera força de trabalho, e para que sejamos perecíveis e aniquilados”. – Sobre a ressurreição dos mortos, Atenágoras de Atenas, caps. 16 e 31.

Ou seja, mesmo acreditando que a alma sobrevive e que por isso ela pode ser chamada de imortal, os cristãos não achavam que ela é imortal de acordo com a opinião grega, pois ainda é necessário o corpo ser ressuscitado para que o homem finalmente adquira a plena imortalidade, e mesmo assim ela jamais será o tipo de imortalidade usufruída por Deus. É por conta dessas ponderações que nem todo cristão primitivo se sentia à vontade para chamar a alma humana de imortal. Foi o caso de Justino e Taciano. Atenágoras e Matetes já não viam nenhum problema. Mas o conceito em comum de todos é que a alma sobrevive à morte e um dia receberá a imortalidade físico-espiritual intencionada por Deus. Por isso Orígenes, mesmo sendo considerado um dos principais imortalistas antigos pelos aniquilacionistas de hoje, disse o seguinte:

“[Deus] é a fonte de tudo o que é bom. E reconhecemos que Ele é capaz de proporcionar uma vida imortal para a alma. E que Ele possui não apenas o ‘poder’, mas o ‘desejo’.” – Contra Celso, Livro V, cap. 24.

Logo, como se nota, o que realmente era crido nos tempos antigos tem pouca relação com aquilo que o autor do MB provavelmente pensou ao trazer para a sua lista esse livro sobre Patrologia. E certamente os seus autores não tiveram nenhuma intenção de apoiar ideias materialistas ou aniquilacionistas. Para confirmar isto, leia a explicação deles sobre o “Inferno”, a partir da página 160.

68. The Biblical Meaning of Man (1967)

“O homem é encarado na Bíblia como um todo. Não há divisão em corpo e alma, nem corpo, alma e espírito. O homem dividido contra si mesmo é puro platonismo; jamais é o pensamento da revelação. A dicotomia de corpo e alma tanto é proveniente como termina em corpo versus alma. O corpo concebido como a prisão da alma – um conceito que causou tanto mal à espiritualidade cristã – é platônico, não cristão, e certamente não hebraico”.

The Biblical Meaning of Man [O Significado Bíblico de Homem], de Dom Wulstan Mork, Bruce Publishing Company, Milwaukee, Wisconsin, EUA, 1967, p. 14.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Novamente, pelo viés puramente grego o comentário acima está correto. A existência da alma separada do corpo é um estado anormal que será revertido na ressurreição. Por isso a pessoa se torna novamente um ser humano completo depois dela. Não há antagonismo ao corpo físico, e nem ele é uma prisão da qual a alma quer se livrar para sempre, como diziam os filósofos gregos. É isso o que certamente Dom Mork tinha em mente ao fazer tais afirmações. Nesse livro ele também mostra que a ideia de sobrevivência à morte sempre esteve presente entre povo de Deus, desde a época dos antigos hebreus, porém foi ganhando novas nuances com o passar do tempo, desde o conceito de seres enfraquecidos no mundo subterrâneo até a esperança de uma vida plena mediante a ressurreição. Referindo-se ao último período desse processo de evolução doutrinal Mork disse:

“A crença de que a psychē é separável da sarx depois da morte e vive em um lugar de recompensa ou punição era amplamente aceita no tempo de Cristo. Podemos deduzir isto das palavras de Cristo em Mateus 10:28 e a passagem paralela de Lucas 12:4, 5. A história que ele contou do rico e o pedinte Lázaro depois de suas mortes é tipicamente hebraica do período (Lc 16:22-24). Primeiramente, cada um é enviado para um lugar de recompensa ou punição - uma crença comum da época - e então cada um deles é apresentado como uma pessoa e com um corpo. A história toda está na tradição da nephesh, os dois personagens não são de modo algum rephaim [‘sombras’]. Psychai separadas dos mortos são explicitamente mencionadas em Revelação (Apocalipse): ‘... vi debaixo do altar as almas [psychas] daqueles que haviam sido mortos por causa da palavra de Deus e do testemunho que deram’ (6:9); ‘... Vi as almas [psychas] dos que foram decapitados por causa do testemunho de Jesus e da palavra de Deus’ (20:4) Novamente, aqui as almas em questão dificilmente são aquelas entidades separadas da filosofia grega, ao invés disso possuem vozes e vestem roupas brancas. Podemos concluir destes textos, e das atitudes convictas que eles presumem, que a psychē depois da morte foi considerada uma pessoa, e ainda que separada da sarx-sōma, continuava tão relacionada a ela que continuou sendo apresentada como possuindo algum tipo de corpo”. – p. 50, acrescentado primeiro par de colchetes; os demais são do próprio autor.

Explicação simples, precisa e objetiva, típica de alguém que realmente entende do que está falando e não persegue o objetivo de contradizer o que sempre os cristãos acreditaram desde o tempo dos apóstolos. Apresenta a filosofia grega na perspectiva correta em relação ao ensino cristão, e não mistura as duas coisas de acordo com a conveniência do discurso. Bem diferente do que vimos naquele livro de Samuelle Bacchiocchi (obra nº 66).

69. Christianity: History, Belief, and Practice (2012)

“Os seres humanos aparentemente sempre tiveram alguma noção de uma duplicata sombria que sobrevive à morte do corpo. Porém, a ideia da alma como uma entidade mental, com qualidades intelectuais e morais, interagindo com um organismo físico, mas capaz de continuar depois da dissolução deste, deriva no pensamento ocidental de Platão e entrou no judaísmo aproximadamente ao longo do último século antes da Era Comum e daí no cristianismo. No pensamento judaico e cristão [essa ideia] tem existido em tensão com a ideia da ressurreição da pessoa concebida como uma unidade psicofísica indissolúvel. O pensamento cristão gradualmente se fixou num padrão que exigia essas duas ideias aparentemente divergentes. Na morte a alma é separada do corpo e existe em um estado desencarnado, consciente ou inconsciente. Mas, no futuro Dia do Julgamento as almas serão reencarnadas (seja em seus anteriores corpos terrenos, mas agora transfigurados, ou em novos corpos da ressurreição) e viverão eternamente no reino celestial... Platão, no Fédon, argumentou que a alma é intrinsecamente indestrutível. Destruir algo, incluindo o corpo, é desintegrá-lo em seus elementos constituintes; mas a alma, como uma entidade mental, não é composta de partes e é, portanto, uma unidade indissolúvel. Embora o conceito de Tomás de Aquino da alma como a ‘forma’ do corpo, tenha sido derivado de Aristóteles em vez de Platão, ele também argumentou em favor da indestrutibilidade dela... Muita análise filosófica moderna do conceito de mente é inóspita à ideia de imortalidade, pois equipara a vida mental com o funcionamento do cérebro físico. Impressionados pela evidência da dependência que a mente tem do cérebro, alguns pensadores cristãos têm se mostrado dispostos a aceitar o conceito – correspondente ao entendimento dos hebreus da antiguidade – do ser humano como uma unidade psicofísica indissolúvel, mas esses pensadores ainda mantêm uma crença na imortalidade, não com a mente sobrevivendo ao corpo, e sim como uma ressurreição ou recriação divina da totalidade corpo-mente vivente.

Christianity: History, Belief, and Practice, The Britannica Guide to Religion [Cristianismo: História, Crença e Prática, Manual de Religião da Enciclopédia Britânica], Matt Stefon, ed., Britannica Educational Publishing em associação com Rosen Educational Services, Nova Iorque, EUA, 2012, pp. 177, 178.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

A citação já inicia dizendo que não havia aniquilacionismo nos tempos antigos. Obviamente, conforme ficou claro em outras obras aqui citadas, os hebreus estavam também incluídos dentro dessa crença praticamente universal de sobrevivência após a morte, nem que fosse em alusão apenas a seres fantasmagóricos na escuridão, como, aliás, é a imagem que muitos fazem hoje em dia dos mortos. Será que isso já não seria suficiente para indicar que esse livro não serve para apoiar o que o autor do MB deseja? E, como se não bastasse, o trecho ainda informa que a descrença na existência de algo que sobrevive ao fim do corpo é típico do pensamento moderno, segundo o qual a vida nada mais é do que um corpo orgânico e seu cérebro em funcionamento. Uma vez que ele chega ao fim, a pessoa deixa de existir completamente.

E o conceito hebreu de unidade psicofísica indissolúvel naturalmente se refere ao ser humano que respira oxigênio, e não à parte invisível que sobrevive de acordo com a mesmíssima concepção hebraica dos velhos tempos. Se alguém acha que o ceticismo científico contemporâneo sobre o homem se tornar uma entidade espiritual depois da morte do corpo físico equivale ao que os hebreus primitivos acreditavam, certamente tal pessoa não estaria entre os cristãos antigos que, de acordo com o mesmo livro acima, nutriam a seguinte expectativa:

“O período entre a morte e a vinda do Reino ainda não constituía nenhum objeto de preocupação. Uma expectativa de que [os fiéis] entrariam para a felicidade ou perdição imediatamente depois da morte também é encontrada nas palavras de Jesus na cruz: ‘Hoje você estará comigo no Paraíso’ (Lucas 23:43)”. – pp. 124, 125, colchetes acrescentados.

70. Corpo e Alma (2003)

“ ‘Nem Jesus nem São Paulo dizem que a morte humana consiste na separação entre uma alma imortal e um corpo mortal. A tão conhecida distinção paulina entre ‘sarx’ (carne), ‘psykhé’ (alma) e ‘pneuma’ (espírito) não é mencionada nem aludida nos textos que falam da ressurreição dos mortos. Como foi, então, que surgiu e se tornou tradicional e quase canônica a concepção do homem como a união de uma alma e um corpo?... A ‘alma separada’ – a alma após a morte do corpo – existe numa situação ‘inconveniente’à sua natureza, e até mesmo ‘contra a natureza’. Sua condição no corpo é mais perfeita do que fora dele; ligada ao corpo ela é mais parecida com Deus, do que estando separada dele... Esta concepção estruturista da inteira realidade do homem leva necessariamente à ideia da ‘morte total’, ou Ganztod, como a chamam os atuais teólogos alemães. Ao morrer, o homem inteiro morre. Ante sua morte física, e mais além da permanência no mundo – fama, lembrança e afeto dos que nos amaram – a que se referia exclusivamente a sentença horaciana, todo homem pode dizer: omnis moriar [morrerei completamente]. Porém, após a morte física, um misterioso desígnio da sabedoria, do poder e da misericórdia infinita de Deus faz com que o homem que morreu, o homem inteiro, ressuscite a uma vida essencial e misteriosamente diferente da que neste mundo se mostrava como matéria, espaço e tempo. Mais além da materialidade, do caráter espacial e da temporalidade, o homem viverá de acordo com o que tinha sido sua vida no mundo. Nesta vida duradoura é que tem seu objeto apropriado a esperança do cristão. Portanto, depois de dizer esse radical ominis moriar, morrerei por inteiro, o cristão diz sobre si mesmo e pensa que todos os homens podem dizer: omnis resurgam, ressuscitarei por inteiro”.

Cuerpo y Alma, de Pedro Laín Entralgo, Espasa Calpe, Madri, Espanha, 1991 (Em português, Corpo e Alma, 2003 – Edições Almedina, Portugal), pp. 284, 286, 289.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

A editora que publica esse livro disse o seguinte sobre Pedro Laín Entralgo:

“Abandonou o dualismo antropológico alma/corpo ao mesmo tempo que continuou a rejeitar o monismo idealista ou materialista. Mostrando os limites do pensamento antropológico hoje vigente, tanto cristão como laico, procurou um terceiro caminho, que deu lugar ao que chamou uma ‘antropologia integradora’, ‘cosmológica, dinâmica e evolutiva’. Como crente sincero e intelectual honesto e exigente, defendeu, sem precisar de uma alma espiritual nem de uma intervenção divina especial, a compatibilidade entre duas afirmações cristãs essenciais sobre o homem - criado à imagem e semelhança de Deus e titular pela esperança de uma vida para lá da morte - e a concepção actual das ciências: o homem como resultado da evolução do cosmos. As críticas recebidas, concretamente de teólogos - à sua frente J. L.Ruiz de Pena -, que queriam manter a ideia tradicional da unidade substancial de alma-corpo, obrigaram-no a estudar mais minuciosamente a sua tese de uma concepção do corpo humano nem dualista nem materialista, mas ‘materista’. Desse esforço resultou Cuerpo e Alma”.

Nota-se que é mais um dos teólogos inovadores que rejeitam a linguagem grega, porém, em termos práticos continuam a acreditar na vida imediata após a morte. Mas não de uma alma cuja natureza pouco se sabe, mas do homem inteiro. A alcunha que alemães deram a essa visão é Ganztod (a morte total). Um periódico católico disse o seguinte sobre esse movimento, dentre outras coisas:

“Neste século o ‘éschaton’ voltou ao lugar teológico que lhe cabe... Em meio ao sopro renovador, surgiram torvelinhos e borrascas. Até furacão. No torvelinho de questões suscitadas, punham em debate a própria Ressurreição do Senhor e, de conseqüência, a nossa. Paulo VI, vigilante, de pé, sem medo, defendia a fé recebida dos Doze... Enquanto o Sucessor de Pedro enfrentava o erro fundamental desfigurador da Ressurreição, agregavam-se outros debates de diversos segmentos teológicos. Inclusive aquele dos teólogos da ressurreição na morte... A resposta que dão à questão assim formulada é a de que a ressurreição acontece no momento mesmo da morte. Na morte morre o homem todo. Morre inteiramente. Nada de alma imortal separada do corpo na morte e sujeita a juízo particular. Na morte acontecem o juízo final e a ressurreição. Na morte de cada um. E o que ressuscita não é o corpo é a ‘corporeidade’...

“A onda canceladora da imortalidade da alma avançou rápida e cresceu. Nós do povo nem percebemos o avanço. Fui despertado, comecei a dar-me conta, com atraso, quando há duas décadas percebi que a palavra alma estava sendo banida das traduções da Escritura, em diversos versículos nos quais sempre havia figurado.... Só avaliei a dimensão da tentativa de cancelamento do conceito cristão de alma, quando deparei com o texto litúrgico de uma Santa Missa por um amigo falecido (de corpo presente)...

“Os teólogos da ressurreição na morte entendem que não seria científico nem bíblico o esquema ‘corpo-alma’. O homem seria um ser uno. Uma unidade indivisível. Nada de alma imortal, separada do corpo na morte. Com a morte do corpo, morre inteiramente o homem. O esquema ‘corpo-alma’, integrante da doutrina da Igreja, teria sido infiltração de filosofia grega. Dualismo platônico. Platonismo. Dualismo. Que platonismo? Que dualismo?... Primeiro, pela fé da Igreja, o estado de sobrevivência da alma humana separada do corpo na morte não é definitivo. É intermédio, transitório, ordenado ao termo final da ressurreição. Por esse dado fundamental a antropologia cristã aparta-se abissalmente da antropologia platônica. Por sobre este aspecto decisivo, há também o dado de que o dualismo platônico considerava a alma como o verdadeiro homem, enquanto o corpo seria uma prisão detestável. Para o platonismo a ressurreição seria um retorno abominável ao cárcere. Confundiam, inclusive, ressuscitar com reviver...

“A realidade está aí. Negam muitos, com desenvoltura, um dado da fé recebida na origem. Não sei bem desde quando começou a instalar-se o fato. Mas, penso que foi na segunda metade deste século XX. Agora, nas últimas décadas, a questão assume espessura impressionante, em versões mais sofisticadas. Dizem os entendidos que essa atual pretensão tem predecessores salientes em Adolf Schlater (+1938) e Karl Stange, (+1959), teólogos protestantes. Apontam também Paul Althaus, outro teólogo protestante, que tratara a matéria anteriormente...

“Falei em assalto à fé. Para mim, pela rapidez e eficiência, com que essa tese permeou algumas estruturas da Igreja, desenha-se um assalto. Um assalto feito assim, por dentro, sem ruído, por tomadas de posições estratégicas, capilarizando as consciências, é mais eficiente do que qualquer agressão aberta. Grande parte do povo vai assimilando e, quando se der conta, já não se espantará nem oporá resistência. Não se falará mais em ‘alma’ e, obviamente, com o tempo, a fé na sua sobrevivência se extinguirá. Esse parece o plano. Mas, se esse é o plano, enganam-se. Há uma promessa do Senhor com a qual não contam. As portas do erro não prevalecerão. Restará sempre um pequeno resto, reduto do ‘sensus fidelium’, firme na fé apostólica.

“Sem mordência, verifico, em algumas obras, que teólogos da nova leitura começam a falar como vitoriosos e purificadores da fé. Consideram-se senhores da situação. Alcançaram posições relevantes. Conseguiram tomar alguns postos decisivos para sua estratégia. Deram certo cunho de cidadania à teoria da morte total (Ganztod). É o velho tanatopsiquismo voltando. Exemplo? O ‘Missale Romanum’, de 1970. Excluíram dele a palavra alma, no texto relativo às exéquias. Isso facilitou a impressão do folheto mencionado ao início. Mais. Imprimiram nele aquele prefácio ambíguo: ‘Senhor, para os que crêem em vós, a vida não é tirada, mas transformada. E desfeito o nosso corpo mortal, nos é dado, nos céus, um corpo imperecível’.

“A ambigüidade do texto é patente. Está em que sugere ser-nos dado um outro corpo imperecível, tão logo desfeito o corpo mortal. O texto foi reproduzido no Catecismo da Igreja Católica, mas num contexto em que se afirma a salvação da alma no estado de espera da futura ressurreição. Ali, naquele contexto, embora criticável sua inserção, não causa equívoco. Pelo contrário. Retira-lhe a ambigüidade. Entretanto, fora daquele contexto, funciona como uma cunha da nova escatologia. Confirma-se, aí, a estratégia do assalto por dentro...” – Uma questão atual de escatologia, Revista Cultura e Fé, n. 84/1999, versão on line.

A reflexão desse texto se justifica completamente, e recomendo que aqueles que se interessam pelo tema o leiam na íntegra. O que o autor menciona sobre a estratégia de envolver as pessoas na surdina, sem que elas percebam que estão sendo doutrinadas com opiniões que nos antigos tempos seriam rapidamente classificadas como heresia, é um comportamento dominante típico de nossa época, cuja base ideológica nasceu há mais de cem anos, no século 19, conforme vimos na seção 7.

Quando esses teólogos progressistas propõem suas teorias inovadoras o que eles conseguem com certeza não é purificar o Cristianismo, mas desfigurar a aparência do legado cristão deixado pelos apóstolos à igreja primitiva. “Ganztod”, “kairosfera”, “doutrina do não-eu”, “antropologia cosmológica e integradora”... Pouco importam estes nomes. O que mais me chama atenção na teoria por detrás deles é o fato de que nenhum de seus idealizadores quer ser aniquilacionista. Percebem que este posicionamento não seria de bom alvitre para quem afirma ser um cristão de verdade. Por isso, em sua “platofobia”, rejeitam a imortalidade da alma ao mesmo tempo em que encontram uma maneira de continuarem acreditando na sobrevivência imediata depois da morte.

Mas enfim. O importante mesmo que interessa à nossa discussão aqui não é esse panorama estranho trazido por essa nova teologia, mas o fato de que as coisas que Entralgo escreveu não têm relação com aquilo que o autor do MB gostaria. Entralgo se opunha ao aniquilacionismo, conforme menciona a seguinte tese de doutorado:

“Em seguida, ele considera que é e sempre será importante para o ser humano pensar sobre a morte e o que isso significa para todos. Laín considera fazer sua própria análise e reconciliar suas ideias e crenças sobre a morte, primeiro rejeitando o aniquilacionismo e depois propondo a crença do resurrecionismo que professa. Para Laín, é apenas uma crença, ou seja, um penúltimo conhecimento, incerto sobre algo misterioso para o que ele responde ao aceitar uma concepção religiosa... Laín se opõe às teses aniquilacionistas de autores a exemplo de Koestler ou materialistas do século XIX (Feuerbach, Vogt, Moleschott, Haeckel) ou do século XX como Feigl (fisicalismo), mas, na minha opinião, com menos argumentos do que em trabalhos posteriores. Ele apenas comenta que todos eles não conseguem dar uma explicação para o fato da história do culto aos mortos e a ânsia da imortalidade individual que parece que nos caracteriza desde os remotos tempos pré-históricos. Mas ele não levanta objeções a eles em sua abordagem”. – La idea de libertad en la antropología integradora de Pedro Laín Entralgo, de Carmen Cubel Masiá, Universidade de Valencia, pp. 338, 339.

Portanto, mais uma obra que vai para a categoria “parece, mas não é”...

71. The Pauline View of Man in Relation to its Judaic and Hellenistic Background (1956)

“... nephesh met em Num. 6:6 não se refere a um cadáver, mas significa que a alma ainda estava presente, apesar de a morte já ter ocorrido. Ele cita Jó 14:22: ‘Mas a sua carne sobre ele terá dor, e sua alma dentro dele pranteará’, para provar que a corrupção afetava tanto o corpo como a alma juntos... a nephesh poderia ‘entrar e sair do corpo à vontade’. Ele ressalta que a partida da alma de Raquel significava a morte (Gênesis 35:18) e o retorno da alma da criança (1 Reis 17:22) significava vida. Isto não pode ser contraditório, mas devemos ter cautela em inferir, com base nestas referências, uma noção dualista de corpo e alma que está em desacordo com a inclusividade fundamental que é a chave para a psicologia hebraica. Essas referências mostram que a nephesh pode deixar o corpo e retornar, mas ao lado delas devem ser postadas referências tais como Prov. 25:25 e 27:7, onde água e mel deleitam a alma, mostrando que corpo e alma estão inseparavelmente ligados. A única solução é que o Antigo Testamento não é inteiramente consistente em seu entendimento de nephesh. Ela é nutrida por meio do corpo, mas pode partir dele. Todavia, não se segue que a nephesh poderia levar uma existência independente fora do corpo. A partida da nephesh coincidia com a cessação da vida, o que significa que nephesh era a força vital. A vida incorpórea para a nephesh jamais foi visualizada. A morte afetava a alma (Núm. 23.10), tanto quanto o corpo, e se a nephesh aparece novamente no Seol, é apenas para uma existência inferior, e mesmo essa existência não é imaterial.

The Pauline View of Man in Relation to its Judaic and Hellenistic Background [O Conceito Paulino do Homem em Relação ao Seu Contexto Judaico e Helenístico], de Walter David Stacey, MacMillan & Co, Londres, Inglaterra, 1956, p. 88.

ERROS: 1, 3 e 4.

Comentário:

Em outras palavras, a Bíblia Hebraica diz em uma parte que a alma cessa com a morte, mas em outra afirma que ela sobrevive numa versão enfraquecida no Seol. E essa dupla explicação seria uma inconsistência das Escrituras. Aceitando-se, porém, a explicação cristã sobre o assunto essa aparente contradição desaparece: a parte invisível que continua existindo também pode ser chamada de “alma”, mesmo não sendo alma no sentido monista, pois não existe mais a capacidade da respiração, nem um corpo físico com sangue circulando nele. A pessoa passa a existir em outra realidade diferente da nossa. Mas se a identidade permanece a alma também subsiste.

Sobre a questão se a alma que vai para o Seol é imaterial ou não, caso a resposta seja de acordo com a percepção que temos hoje do assunto, certamente podemos chamá-la de imaterial, pois ela não é feita de matéria física. Entretanto, ela é constituída de alguma coisa que nos é desconhecida. Neste sentido ela tem alguma materialidade. Antes do período platônico os gregos tinham essa noção sobre os habitantes do Hades. Provavelmente os hebreus pensavam algo parecido. Ou seja, que as “sombras” têm alguma substância e se fosse possível ir até o mundo delas ainda vivo, daria talvez para vê-las e, quem sabe, até senti-las, como quem sente o efeito do vento ou da fumaça. Já os platonistas achavam que a alma é imaterial no pleno sentido da palavra, o que a tornaria apta para estar no mundo das ideias desprovida de qualquer tipo de corpo. No máximo teria a forma de uma esfera, e mesmo assim imaterial.

De qualquer maneira, está claro que a citação em apreço não está dizendo que o aniquilacionismo é bíblico. Ao contrário, ela diz que existe sim uma sobrevivência após a morte, não obstante o preciosismo dispensado ao antigo vocabulário dos hebreus sobre o assunto, que ignora a evolução que houve até a época de Jesus Cristo.

72. “The Biblical View of Man”, Indian Journal of Theology (1978)

“Deus criou o homem como um ser unitário; não há nele uma dicotomia de corpo e alma ou uma tricotomia de corpo, alma e espírito. Ele não é uma alma encarnada, e sim um corpo ou carne animada. Os termos antropológicos utilizados tanto no Antigo quanto no Novo Testamento apresentam os diferentes aspectos do homem... Não é que o homem tenha uma alma, mas o próprio homem é uma alma. Ela representa o homem inteiro como um ser vivo; em vários lugares significa vida... A ideia de que a carne se opõe ao espírito e é a causa do pecado é alheia ao Antigo Testamento... ‘O homem é um ser psicofísico e as funções psíquicas estão ligadas tão intimamente à sua natureza física que são todas situadas nos órgãos corporais os quais atraem eles próprios a vida da força vital que os anima.’... Esta natureza unitária do homem é preservada no Novo Testamento também. De acordo com os escritores evangélicos, Jesus Cristo é o homem verdadeiro cujo ser unitário não é destruído, nem mesmo na morte; S. Paulo também encara o homem como um ser unitário... A [palavra] alma é menos frequente no Novo Testamento (13 vezes), em comparação com sua frequência no Antigo Testamento (756 vezes). Por outro lado, a palavra espírito é usada aqui [no NT] com mais frequência (146 vezes). Não há provas de preexistência da alma no Novo Testamento. O Novo Testamento usa a alma no sentido do Antigo Testamento para designar o homem como um ser vivo (Mateus 10:28; 16:26; Lucas 9:56; 12:19 em diante, João 12:27). A existência da alma sem carne ou corpo é impossível.

The Biblical View of Man” [O Conceito Bíblico do Homem], de Gnana Robinson, Indian Journal of Theology [Revista Indiana de Teologia] 27.3-4, Julho-Dezembro de 1978, pp. 140-142.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Citação semelhante a tantas outras aqui já apresentadas. O conceito hebraico de alma realmente não é o que os filósofos gregos diziam sobre a alma. Para eles a alma foi criada em outro lugar, é superior, e passa apenas um tempo hospedada em vários corpos adquiridos de sucessivas encarnações. Depois que se depura de seus pecados por esse processo retorna ao lugar místico de onde veio originalmente.

Já na visão bíblica as partes constituintes do homem, a física (corpo) e a espiritual (alma e espírito) foram criadas simultaneamente para estarem sempre juntas, formando uma pessoa humana ou “alma vivente”, conforme a linguagem antiga. E esta última alma é a que recebe destaque no Antigo Testamento. A alma que está internamente ligada ao corpo vivo chamado “alma vivente” é apresentada mais de maneira subentendida (Jó 10:20-22) do que explícita (Jó 14:1, 22; Salmo 16:10), por um mero costume vocabular. No entanto, quando a época de Cristo chegou já estava devidamente esclarecido que essa parte interna e espiritual que subsiste depois da morte também pode ser chamada de alma (Mateus 10:28; Apocalipse 20:4). E depois da ressurreição geral dos mortos os três elementos estarão novamente juntos para sempre.

É o contexto descrito no parágrafo anterior que o autor desse livro deveria ter em mente quando também escreveu o seguinte:

“De acordo com o Antigo Testamento, o homem que vive de acordo com a vontade de Deus entra em uma comunhão com Deus que não pode ser quebrada nem mesmo pela morte (Jó 19:25-27; Sal. 16:10, 11; 73:26-28; Isa. 26:19; Dan. 12:2). Esta é a base teológica para a crença do homem na vida após a morte... O homem inteiro, seu espírito, alma e corpo, é mantido são e inocente para a consumação final do companheirismo com a consumação da segunda vinda de Cristo (1 Tes. 5:23); o corpo também compartilha dessa vida depois da morte, mas obviamente um corpo transformado (1 Cor. 15:35-49; Fil. 3:21).” – p. 148.

No entanto, visto que Gnana Robinson perguntou se há mesmo diferença entre o conceito bíblico e outras visões modernas a exemplo do marxismo ou do humanismo, e até recomendou um entendimento social da Bíblia (alinhado a ideais feministas), é provável que ele seja um dos que acreditam na vida imediata após a morte naquela realidade “sem tempo e espaço”, e paralelamente rejeita a crença do estado intermediário no qual o homem existe em uma versão incompleta e anormal.

Ou seja, imediatamente depois da morte o fiel já recebe tudo o que Deus determinou, sem prejuízo à futura ressurreição geral dos mortos. Isto estaria de acordo com a afirmação que Robinson fez sobre Jesus, de que ele era um ‘ser unitário que não foi destruído na morte’. Se não foi destruído, significa então que continuou a existir, sem necessidade de ser “recriado”. O único problema é como explicar o corpo que ficou no sepulcro e a profecia do próprio Jesus de que ele passaria três dias no “coração da terra” antes de ressuscitar (Mateus 12:40). Note que era a pessoa dele que iria para tal lugar profundo, e não o seu corpo. Essas dificuldades sempre ocorrem quando a teologia da igreja primitiva é desprezada em favor dessas ideias “inovadoras” de teólogos “progressistas” que dão abertura para ideologias espiritualmente perigosas.

Finalmente, perceba que Robinson disse que o “homem inteiro” é formado por corpo, alma e espírito. O que demonstra que a “alma vivente” chamada homem, de acordo com a linguagem hebraica, possui outra alma dentro dela. A única diferença aqui se restringe à teoria de que Deus não pode fazer que essa alma subsista provisoriamente separada do corpo, contrariando o que os primeiros cristãos acreditavam. Mesmo assim, não está claro se esse autor apoia realmente o aniquilacionismo. Seria preciso um exame mais detalhado das coisas que Robinson escreveu para identificar com segurança a crença dele sobre o que acontece depois da morte.

73. Christian Words and Christian Meanings (1955)

“Os filósofos gregos argumentavam que a dissolução que chamamos de morte não ocorre com nada além dos corpos, e que as almas dos homens são por sua própria constituição imortais. A palavra grega para ‘imortalidade’ ocorre apenas uma vez no Novo Testamento, e não pertence a ninguém a não ser o Rei dos Reis... A imortalidade da alma não faz parte do credo cristão, assim como não é parte da antropologia cristã dividir alma e corpo e restringir o verdadeiro homem, a essência da personalidade, à alma supostamente separável para a qual a encarnação é um aprisionamento... Jesus não ensinou doutrina alguma de vida eterna para almas desencarnadas, assim como nenhum judeu leal à fé de seus pais poderia ter aceitado ou mesmo compreendido isso. Mas a crença judaica era na ressurreição dos mortos no Último Dia. – pp. 148, 149.

“[Tradução do texto na folha de rosto: ‘Se é possível ‘traduzir’ a linguagem religiosa em não religiosa, eu não sei. Só tenho certeza de que não poderia fazê-lo por mim mesmo. Mas é possível e obrigatório que os cristãos de todas as épocas saibam e estejam prontos para dizer o que eles entendem pelas palavras que foram, talvez irrevogavelmente, consagradas ao uso cristão.’ – Do Prefácio.].

Christian Words and Christian Meanings [Palavras Cristãs e Significados Cristãos], de John Burnaby, Hodder e Stoughton, Londres, Inglaterra, 1955.

ERRO: 1.

Comentário:

E, de acordo com a mesma crença judaica, a ressurreição consistiria em deixar a alma e o corpo novamente juntos, pois o verdadeiro “eu” na concepção hebraica é o ser humano completo e não somente a parte que continua existindo, que os mais antigos achavam que viraria uma “sombra” no Seol, lugar que localizavam no “coração da terra”. Os gregos achavam o contrário, que a parte sobrevivente é o “eu” verdadeiro e o corpo que morre um suporte provisório e mau.

Mas o entendimento progressivo mostrou que as coisas não eram exatamente assim, pois, ao menos no caso dos fiéis, poderia haver uma vida satisfatória pouco tempo depois da morte (Lucas 23:39-43) e que a experiência sombria no mundo dos mortos estaria reservada apenas para os injustos (1 Tessalonicenses 5:5-7). Em ambos os casos a versão da pessoa que sobrevive passou a ser chamada abertamente de alma, sem a restrição lingüística que havia entre os primitivos hebreus. E uma das palavras que se tornaram consagradas no linguajar cristão é justamente “alma”, em referência ao ser que sobrevive à morte, quer o autor do livro acreditasse assim ou não. Além disso, o corpo físico passa por uma transformação na ressurreição, pois o objetivo final não é que a pessoa viva nesta Terra, mas no céu, também chamado de Paraíso de Deus. Só a partir desse momento que o homem recebe a imortalidade. Nenhuma dessas coisas fazia parte do que supunham os filósofos gregos. Então, o que foi dito na citação acima está essencialmente correto.

74. A Study of Hebrew Thought (1960)

“... devemos ter o cuidado de evitar interpretar o conceito hebraico de alma em termos do dualismo platônico. Visto que não reconheciam qualquer dicotomia corpo-alma, os hebreus não consideravam a alma como a coisa desencarnada que nós imaginamos ser. E é só porque nós a opomos ao ‘corpo’ que pensamos nela deste modo. Em hebraico, a alma é o homem. De fato, não devemos dizer que o homem tem uma alma, e sim que ele é uma alma; nem, conseqüentemente, que ele tem um corpo, e sim que ele é um corpo”.

Essai sur la pensée hébraïque [Ensaio Sobre o Pensamento Hebraico], de Claude Tresmontant, éd. O.E.I.L., Paris, França, 1953. (Título em inglês: A Study of Hebrew Thought [Um Estudo do Pensamento Hebraico], Nova Iorque: Desclee, 1960), pp. 94 da edição em inglês.

ERROS: 1 e 3.

Comentário:

Certamente, a visão platônica não corresponde à hebraica, conforme explicado em outros comentários. Mesmo assim, a Bíblia deixa claro que uma alma sobrevive à morte (Mateus 10:28), mesmo não sendo imortal da maneira que Platão pensava. De qualquer modo, o trecho acima nada diz a favor do aniquilacionismo.

75. How To Enjoy The Bible (1910)

“ ‘Ausente do Corpo’. — 2 Cor. 5... Esse assunto é a Ressurreição como nossa esperança abençoada em vista da morte de nosso homem exterior dia após dia. Como uma conclusão reconfortante, acrescenta-se isto: ‘Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus.’ Esta é uma das ‘coisas não vistas’, e que são ‘eternas’; para a qual e pela qual devemos ‘olhar’... É pouco menos do que um crime que alguém selecione certas palavras e enquadre-as numa frase, não só desconsiderando o escopo e o contexto, mas ignorando as outras palavras no versículo e cite as palavras ‘ausente do corpo e presente com o Senhor’ com a ideia de dispensar a esperança da Ressurreição (que é o assunto do trecho inteiro), como se ela fosse desnecessária; e como se a ‘presença com o Senhor’ fosse alcançável sem ela!... Fora a doutrina envolvida e, à parte o ensino da Tradição (verdadeiro ou falso), é uma fraude literária tratar dessa maneira as palavras que o Espírito Santo ensina... Para nós, a Palavra de Deus é a maior e mais importante de todas as suas obras. Se entendermos todas as Suas outras obras (o que ninguém faz ou pode fazer) e ainda não conhecermos Sua Palavra, nosso conhecimento não nos levará além do túmulo”.

How To Enjoy The Bible: or, The “Word” and “The Words” How To Study Them [Como Apreciar a Bíblia: ou, A “Palavra” e “As palavras” – Como Estudá-las], de Ethelbert William Bullinger, Londres: Eyre & Spottiswoode, Bible Warehouse Ltd., Paternoster Row, EG, 1910, pp. 223-226.

ERRO: 5.

Comentário:

Fraude literária é afirmar que os cristãos antigos dispensavam a crença na ressurreição só porque sabiam que estariam na presença de Cristo logo depois que morressem, se é que foi isso o que pensou o autor do livro acima. A ressurreição nunca saiu do escopo da esperança cristã. Reveja o meu comentário à obra nº 66.

E que o ausentar-se do corpo para estar em outro lugar não necessariamente refere-se à ressurreição do corpo físico, infere-se do que Paulo contou sobre ter estado, antes mesmo de sua morte, no paraíso de Deus. Paulo disse que tal experiência pode ter sido “fora do corpo” (2 Coríntios 12:1-7). Além do mais, conforme já visto, os cristãos mais antigos que se têm notícia, contemporâneos dos próprios apóstolos, disseram que Paulo depois que morreu já estava com Cristo, conforme a expectativa que nutriu enquanto era um homem mortal.

Ainda que o trecho citado pelo autor do MB não revele isso claramente, Ethelbert William Bullinger é um daqueles poucos casos (lamentáveis) de eruditos com formação sólida que aderiram ao aniquilacionismo, porém sem aceitar a alcunha que lhe era devida: o nome “aniquilacionista”. Ou seja, foi um dos que capitularam ante essa tendência na teologia que surgiu no século 19 e ganhou força no século seguinte.

Bullinger fez de tudo para contradizer os versículos que tradicionalmente são usados para provar a existência da alma invisível dentro do corpo humano. Por exemplo, ele achava que a ida de Paulo ao paraíso de Deus foi uma visão do futuro, quando o paraíso terrestre já estaria restaurado na Terra pelo Reino de Deus. O fato desse lugar também ter sido nomeado de “terceiro céu” pelo apóstolo, ao que parece era um detalhe de somenos importância para esse erudito... Aliás, ele acreditava que paraíso é só o terrestre e que o original foi destruído pelas águas do Dilúvio. Porém, conforme já foi bem demonstrado no texto “Onde ficava o Jardim do Éden?” tal ponto de vista está errado. Bullinger também dizia que Seol ou Hades é uma sepultura simbólica e coletiva para representar todos os que estão mortos e que a palavra “atormentar”, utilizada para se referir ao sofrimento eterno dos ímpios, tem a mesma etimologia da palavra atormentador, que em grego também significa “carcereiro”. De modo que serem os iníquos atormentados “para sempre” significaria apenas que eles ficarão em inexistência eterna. A aniquilação será o “carcereiro” deles. Para se esquivar da menção bíblica do tormento eterno, as “Testemunhas de Jeová” também dão uma explicação similar:

“Nas Escrituras, o tormento por fogo é relacionado com destruição e morte... Por conseguinte, os que são ‘atormentados para sempre’ (do gr.: basazo) no lago de fogo sofrem a ‘segunda morte’ da qual não há ressurreição. A palavra grega aparentada basanistés é traduzida por ‘carcereiro’ em Mateus 18:34. (RS, NM, ED; compare isso com o v 30.) Assim, os que são lançados no lago de fogo serão mantidos sob restrição, ou ‘encarcerados’ na morte por toda a eternidade”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, Vol. 2, p. 640, verbete “Lago de fogo”.

Além dessas interpretações de Bullinger não encontrarem nenhum respaldo em escritos cristãos da igreja primitiva, vemos uma definição no próprio dicionário que ele escreveu que contradiz claramente esse conceito de aniquilação completa. É sobre a palavra que Jesus, no relato evangélico, usou para dizer que a alma, mesmo sobrevivendo à morte do corpo, pode ser destruída por Deus (Mateus 10:28):

ἀπόλλυμι [apollumi], destruir completamente (forma mais forte de ὄλλυμι [ollumi], destruir). Homero a usa principalmente para morte na batalha, matar; perder completamente (o sujeito é o sofredor). O pensamento fundamental não é a aniquilação, mas a ruína, a perda (como a perda de ovelhas, Mat. x. 6; xv. 24, etc .; Luc. xv. 4, 6, o aprisco e o pastor perdidos; também o filho perdido, Lucas xv. 24) perecer, chegar a um fim (como o pão, John vi. 27, o ouro, 1 Ped. 7)”. – A Critical Lexicon and Concordance to the English and Greek New Testament (London: Longmans, Green, & Co., 1895), de Ethelbert W. Bullinger, p. 220.

Esta definição é basicamente a que aparece em diversos outros dicionários de grego. Ela fez com que vários comentaristas dissessem que a “destruição” mencionada em Mateus 10:28 é, na realidade, uma perdição da pessoa inteira, que com sua alma e corpo perecerá na Geena ardente (Inferno). Para eles, não significa aniquilação, mas inutilização do ser, que ficará para sempre em um estado consciente de sofrimento que não era a intenção original de Deus. E tal situação, obviamente, não pode ser chamada de vida. Se aquele estado sombrio que os antigos hebreus concebiam já não podia ser assim chamado, imagine uma situação aflitiva dessas!

76. The Pattern of New Testament Truth (1968)

Trechos das páginas 31 a 40:

“O conceito do Antigo Testamento sobre Deus, o homem e o mundo é muito diferente do dualismo grego... Por trás deste conceito do homem e o mundo está a teologia de Deus de que tanto o homem como o mundo são a criação de Deus, e a verdadeira vida do homem consiste em completa obediência e dependência de Deus. Isso pode e é ilustrado pelo conceito de vida do Antigo Testamento. Não há qualquer antítese entre a vida física e espiritual, entre as dimensões exterior e interior no homem, entre os reinos inferior e superior. A vida é encarada em sua totalidade como o pleno gozo de todos os dons de Deus. Algumas teologias cristãs considerariam isso crassamente materialista; mas uma profunda teologia está subjacente nisso... Por trás dessa compreensão da vida está uma teologia profunda. O homem compartilha com a natureza o fato da criaturalidade. Mas o homem se destaca de todas as outras criaturas por ter sido criado à imagem de Deus... Sob esta perspectiva, a salvação não significa libertação da criaturalidade, pois ela é um elemento essencial e permanente para o ser essencial do homem. Por esta razão, o Antigo Testamento jamais retrata a redenção final como uma fuga do mundo ou um escape da existência terrestre e corporal. A salvação não consiste em libertar a alma do seu engajamento no mundo material. Pelo contrário, a redenção final envolverá a redenção do homem inteiro e do mundo ao qual o homem pertence. Esta é a teologia por trás da doutrina da ressurreição corporal, que só começa a surgir no Antigo Testamento, mas que é claramente desenvolvida no Judaísmo e no Novo Testamento...”.

“O contraste entre os conceitos grego e hebraico de Deus e do mundo é reforçado ainda mais pela antropologia do Antigo Testamento. O homem hebraico não é como o homem grego – uma união de alma e corpo e, portanto, relacionada a dois mundos. Ele é carne animada pelo sopro de Deus (ruach), que é dessa maneira constituída como uma alma vivente (nephesh)... Se a nephesh é a vida do homem, pode-se dizer que ela parte na morte (Gen. 35:18; 1 Reis 17:21) ou retorna se uma pessoa revive (1 Reis 17:22). Se a nephesh representa o próprio homem, pode-se dizer que sua nephesh se afasta do mundo inferior ou do sheol na morte (Sal. 16:10; 30:3; 94:7). Todavia, o Antigo Testamento não concebe almas desencarnadas existentes no mundo inferior depois que partem do corpo, como fez Homero e outros escritores gregos antigos. O Antigo Testamento não vê almas no Sheol, e sim sombras (rephaim), que são uma espécie de réplica tênue do homem como criatura viva. Essas sombras não são de qualquer forma diferentes das almas de Homero no Hades, e ambas representam uma convicção comum da teologia natural, a saber, que a morte não é o fim da existência humana, mas que a vida em sua plenitude deve ser vida corporal... Os gregos, como vimos, passaram a acreditar que havia algo de divino sobre a alma e que esta deveria encontrar a libertação da existência corporal para alçar o seu voo às estrelas. O pensamento hebraico se desenvolveu de forma muito diferente...”.

No Antigo Testamento, a convicção de que, se os homens desfrutam de comunhão com Deus na vida, essa comunhão não poderia ser quebrada pela morte... Ao passo que tais declarações dificilmente nos fornecem material para uma doutrina do estado intermediário, elas expressam a convicção absoluta da ‘benção imperecível do homem que vive em Deus’. Elas não podem conceber que essa comunhão seja quebrada, nem mesmo pela morte. Conforme Martin-Achard diz: ‘Sem realmente se darem conta disso, os hassidins estão desgastando os portões do reino dos mortos, sem atingir a afirmação positiva da imortalidade ou ressurreição do crente... eles estão preparando o caminho para que as gerações futuras proclamem que a morte é Impotente contra os que vivem em comunhão com o Deus vivo.’ O judaísmo posterior desenvolveu a ideia de um estado intermediário e às vezes identificou os mortos como almas ou concebeu a alma como existindo após a morte. No entanto, a menos que haja influência grega, como na Sabedoria de Salomão (8:19), a existência contínua da alma no sheol não se deve a alguma qualidade intrínseca de imortalidade que ela compartilhe com Deus, e sim à convicção de que, como Deus é o Deus vivo e mestre tanto da vida como da morte, deve haver um destino abençoado para os indivíduos e para a nação. Quase sempre no judaísmo, a esperança individual encontra a sua realização na ressurreição corporal. Só em uns poucos lugares é que encontramos a ideia de uma imortalidade abençoada da alma no céu.”.

“O dualismo grego é o de dois mundos, o visível e o invisível... O homem pertence a ambos os mundos em virtude do fato de ele ser corpo e alma ou mente... O conceito hebraico não é um dualismo de dois mundos, e sim um dualismo religioso de Deus versus homem... O homem não é uma criatura bipartida do divino e humano, da alma e do corpo; em seu ser total ele é a criatura de Deus e continua sendo uma parte da criação... A salvação consiste na comunhão com Deus no meio da existência terrena e, finalmente, significará a redenção do homem inteiro junto com seu ambiente... Em suma, o conceito grego é que ‘Deus’ só pode ser conhecido pela fuga da alma do mundo e da história; o conceito hebraico é que Deus pode ser conhecido porque Ele invade a história para encontrar os homens na experiência histórica”.

Observação do autor do MB: “Com exceção destas notas 112 e 113, as demais notas de rodapé foram omitidas. Vale notar que todas as referências citadas pelo autor nestas duas notas, que apresentam a ‘alma existindo após a morte’, a ‘existência contínua da alma no Seol’ ou sua ‘imortalidade abençoada no céu’ são referências extrabíblicas, que foram claramente influenciadas pela filosofia grega. Essas ideias estão ausentes no cânon das Escrituras hebraicas”.

The Pattern of New Testament Truth [O Padrão da Verdade do Novo Testamento], de George Eldon Ladd, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Michigan, EUA, 1968, pp. 31-40.

ERROS: 1, 3 e 4.

Comentário:

Considerando o que foi destacado em azul, será que haveria alguma necessidade de comentar alguma coisa para demonstrar que esse livro não está advogando o aniquilacionismo? Acho que não. No entanto, visto que aparentemente o autor do MB não entendeu o que leu, não custa nada explicar. Pelo menos espero que este seja o caso. Certamente é melhor do que ter sido um ato de desonestidade.

A “teologia profunda” a que George Ladd fez referência tem justamente a ver com o fato de que, embora não costumassem chamar um homem morto de “alma”, os hebreus sabiam perfeitamente que a morte não significa a extinção completa. Um ponto fundamental em prol desse pensamento é o ser humano ter sido criado “à imagem de Deus” e ser “um pouco menor que os anjos”, sendo superior a todas as outras criaturas da Terra. Um ser com tamanhos predicados não poderia simplesmente deixar de existir com a morte. E, além disso, morrer não interromperia a comunhão dos fiéis com o Criador e eles continuariam vivendo para Deus, conforme Jesus disse sobre Abraão, Isaque e Jacó. – Gênesis 1:26; Salmo 8:5; Lucas 20:37-39.

Tal visão está relacionada à teologia natural que se vê nas nações em geral do mundo antigo, inclusive a grega. Na época de Homero eles acreditavam que o Hades é a habitação das almas dos mortos, versões tênues e enfraquecidas dos seres carnais que outrora viviam na Terra. Os hebreus acreditavam exatamente na mesma coisa. Ou seja, não existia conceito aniquilacionista. O único detalhe é que eles chamavam tais almas de “sombras”, pois para eles uma alma genuína tem que respirar. Conceito que também está presente na etimologia da palavra grega psyché (“alma”), embora os gregos não o vinculassem às almas do Hades. Entretanto, na prática, os conceitos hebraico e homérico são equivalentes. É isto o que Ladd quis dizer quando afirmou que ‘essas sombras no Seol não são diferentes das almas de Homero no Hades’. Por esta razão, segundo ele, há uma “existência contínua da alma no sheol”, embora não se deva ao tipo de imortalidade que filósofos gregos posteriores conceberam, que envolve a permanência temporária da alma no corpo e o consequente retorno dela para as esferas celestes. Na versão bíblica, as almas continuam existindo apenas porque Deus quer que seja assim. Não porque sejam imortais de eternidade a eternidade, nem tampouco indestrutíveis.

E concluindo, a história judaico-cristã mostra que aos poucos se desfez a antiga limitação psicológica e linguística dos hebreus de acharem que somente uma criatura carnal pode ser chamada de “alma”. As “sombras” poderiam ser também nominadas assim, pois elas preservam a identidade de quem morreu. Esta nova acepção desenvolveu-se no Judaísmo e no Novo Testamento. Por isso Ladd citou obras extrabíblicas judaicas para demonstrar melhor esse desenvolvimento doutrinal, pois tais fontes geralmente mostram esse ponto de maneira mais abundante que o Novo Testamento. Mas a mesma noção está também presente no texto canônico, em passagens a exemplo da parábola do rico e Lázaro ou daquela em que Jesus disse que os homens podem matar apenas o corpo e não a alma (Mateus 10:28; Lucas 16:19-31). Para que não haja dúvida que era mesmo isso o que Ladd tinha em mente, releia o que ele escreveu na obra nº 32, citada na seção 2. Dentre outras coisas, lá ele afirma que (1) a existência humana não termina com a morte, (2) que o espírito de quem morreu permanece vivo e que (3) os justos que morreram estão com Deus.

Não deixa de ser um pouco constrangedor ter que explicar o que determinados eruditos estão dizendo quando o autor do MB já deveria ter entendido por si só. É surpreendente como ele se apresenta como tendo uma compreensão ímpar dessas coisas, chegando ao ponto de acusar outros de serem ‘promotores de falsidades’ e baseados em “pesquisas deficientes”, quando ele próprio nos brinda com exemplos que fazem todas as acusações voltarem para ele...

77. El Hombre y Su Cuerpo (1973)

“Portanto, o homem não ‘tem’ psique e organismo, mas ‘é’ psico-orgânico, porque nem o corpo nem a psique tem cada um por si alguma existência independente; só o sistema tem isso. Por isso, penso que não se pode falar de uma psique sem corpo. Diga-se de passagem, que quando o cristianismo, por exemplo, fala de sobrevivência e imortalidade, quem sobrevive e é imortal não é a alma, e sim o homem, isto é, toda a substantividade humana.

El Hombre y Su Cuerpo [O Homem e Seu Corpo], de Xavier Zubiri, revista de medicina Asclepio, Nº 25, 1973, pp. 5-15; Reimpressão na Salesianum (Roma, Itália), nº 36, 1974, p. 481.

Nota do autor do MB:

“O exame geral das obras de Zubiri mostra que ele sustentou até o fim de sua vida essa unidade psico-orgânica dos seres humanos, que envolve a negação da existência de uma alma que sobreviva ao corpo. O que é especificamente humano não é possuir uma alma imortal, e sim ser uma pessoa. A morte significa a morte do ser humano em todas as suas dimensões. O ser humano é mortal na sua totalidade; não há alma imortal, e sim a ressurreição dos mortos. Na apresentação do livro póstumo de Zubiri, Sobre el Hombre [Sobre o Homem], o teólogo Ignacio Ellacuría comentou:

Zubiri terminou pensando e afirmando que a psyche [alma] ´é por natureza mortal e não imortal, de modo que com a morte acaba tudo no homem ou acaba o homem por inteiro.’ O que Zubiri sustentava, mas já como crente cristão e teólogo, é que também o homem inteiro ressuscita, se merecer esta graça ou receber tal graça de Deus pela promessa de Jesus.” (Grifos acrescentados.).

“Este entendimento está inteiramente de acordo com o testemunho dos dois Testamentos bíblicos e com os demais pronunciamentos citados ao longo deste artigo”.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Todas essas explicações “monistas” sobre a unidade do ser humano, cujas partes constituintes (a material e a imaterial) foram feitas para ficarem sempre juntas não representam nenhum problema para a teologia cristã ortodoxa, contanto que se admita que, por um ato excepcional, Deus faz com que a parte imaterial sobreviva depois que a física morre. Não obstante os protestos veementes de teólogos “progressistas”, não há nenhum problema da realidade ser assim, e a ressurreição consistir no refazimento da unidade desfeita, e enquanto isso não acontece a alma espiritual possuir um corpo com aparência humana. Os cristãos dos primeiros séculos acreditavam exatamente assim. Já os entendimentos inovadores que estão propondo hoje nunca foram vistos naquele tempo.

De qualquer maneira, vejamos o quanto do pensamento de Zubiri está realmente “de acordo com o testemunho dos dois Testamentos bíblicos”, conforme entende o autor do MB... Para começo de história, o trecho citado não está dizendo que existe aniquilacionismo. Pelo contrário, o autor afirma que o homem inteiro é imortal, e não apenas uma parte dele sobrevive à morte. Não é uma possessão futura. É algo presente. O “bereano” caiu novamente na mesma armadilha de supor que um autor é aniquilacionista por conta de determinadas declarações entendidas fora do contexto autoral da obra utilizada.

José Francisco Xavier Zubiri Apalategui foi um filósofo espanhol, também formado em teologia na cidade de Roma, tendo sido sacerdote católico por um tempo. Mesmo sendo alvo de fortes críticas por parte dos que não abrem mão da ortodoxia cristã e do legado primitivo dos apóstolos de Cristo, Zubiri é considerado um dos filósofos mais brilhantes do século 20, e é qual filósofo que ele é mais conhecido. Por isso sua teologia é puramente filosófica, sem compromisso com a teologia da Igreja. Em vida ele publicou pouco, e a maior parte de seu trabalho são obras póstumas publicadas por seus discípulos com base nos cursos e seminários que ele ministrava.

Zubiri pode ser considerado um autor completamente imortalista. Seu discurso é apenas contra o dualismo grego, ou seja, contra a ideia de uma alma imaterial que odeia o corpo físico e não tem características humanas quando vai para a esfera superior e inteligível. Ele não era contra a crença de vida imediata depois da morte. Para ele, a pessoa continua existindo quando morre e com todas as suas funções somáticas corporais. Mas Zubiri não fez esforço para explicar tal opinião. Pelo contrário. Ele costumava ser lacônico, deixando o tema envolto em mistério, como quando ele disse o seguinte devido à morte de um amigo dele:

“E a vida eterna não é, em minha opinião, uma vida diferente dessa, mas é a própria vida que essa vida é, porque viver não é fazer as coisas, mas possuir a si mesmo. E possuir-se em Deus é a única vida neste mundo, desde o nascimento e após a morte, para toda a eternidade. A eternidade não é a duração eterna, mas o modo da realidade, a realidade perene, a realidade eterna”. – La intersubjectividad en Xavier Zubiri, Editrice Pontificia Università Gregoriana, Roma, 2006, de J. Antunez Cid, p. 581.

Linguajar típico de um filósofo. São os discípulos de Zubiri, a exemplo do autor da obra nº 70 (Pedro Laín Entralgo), que esclarecem melhor que ele não era aniquilacionista. Ele era um daqueles que acreditam na ressurreição automática dos que têm fé (“ressurrecionismo”), sem dar muita importância ao fato de que a Bíblia informa que os ímpios também serão ressuscitados. Neste caso, seria um aniquilacionismo parcial, que só vale para uma parte da humanidade? Pelo visto não, pois na filosofia zubiriana a informação bíblica de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus é um aspecto importante para justificar a permanência eterna do homem inteiro, e não apenas uma parte espiritual dele. E nesta visão todos os homens estão de alguma maneira incluídos, mesmo aqueles que não têm fé. – Compare com João 11:26.

Dentro desse conceito de que o homem sobrevive à morte por inteiro, Zubiri criou um vocabulário com neologismos para explicar sua filosofia, com palavras a exemplo de “substantividade” e “suidade”. Também disse que o homem é composto de sistemas e subsistemas, e que a decomposição da parte orgânica (suidade) pela morte não desfaz a substantividade humana. Por ser a suidade transcendental ela permanece de alguma maneira. A pessoa continua sendo exatamente o que ela foi neste mundo, pois o homem é corpo espiritualizado e espírito corporificado. Na morte ‘se perde o corpo-psique de segundo nível, o nível da aparência, o nível fisico-químico, porém se conserva o corpo-psique de primeiro nível, o nível da substantividade humana’. Assim o homem “continua vivendo em um nível substantivo, ainda que em um nível substancial tenha experimentado a real destruição, a aniquilação, ou seja, tenha provado a morte”. Como se nota, a teologia filosófica de Zubiri é metafísica e nada tem a ver com o materialismo reducionista, mesmo que alguns chamem suas concepções de “realismo materialista”. São muitos os nomes e expressões utilizados para se referir a essa visão sui generis, que em parte é baseada em Aristóteles. Outro rótulo dado a ela é “teologia da libertação”. – Ibid., pp. 575-588.

A seguir mais declarações de seus discípulos ou comentaristas sobre tais conceitos e a relação deles com a escatologia tradicional:

“De acordo com Zubiri, em relação às conseqüências para a escatologia cristã da unidade psico-orgânica e a consequente sintetização do dogma da sobrevivência da substantividade, ‘o restante não é de fé’ (HC em Asclépio, 1973)... Talvez ele tenha mantido a subsistência de toda substantividade influenciado pela fé, embora o modo concreto permaneça inexplicável, interpretando que o magistério não exige uma doutrina antropológica concreta sobre a alma, mas a imortalidade da pessoa”. – Ibid., nota 289, p. 577.

Se o autor [Zubiri] pensasse que há aniquilação pessoal nos encontraríamos ante uma grave contradição. Esta contradição se estenderia às suas análises críticas do ser para a morte, com duração Bergsoniana e ao mesmo horizonte factual”. – Ibid., p. 582, colchetes acrescentados.

“Ruiz de la Pena pertence, por direito próprio, a um grupo de teólogos que deram um contributo decisivo à renovação da escatologia. A sua reflexão escatológica está marcada pela centralidade do evento pascal, o éschaton já presente na história mas ainda não consumado. Mas a par da centralidade cristológica  encontramos também a preocupação em reflectir as questões escatológicas a partir  de uma antropologia unitária. Recorde-se que este era o défice da escatologia tradicional, ao sustentar a situação de alma separada num estado intermédio  entre a morte e a ressurreição, aspecto que a renovação dos estudos escatológicos  procura superar. . .

“Zubiri substitui os conceitos de corpo e de alma pelos de organismo e psique. Estes indicam dois subsistemas parciais do sistema total que é o homem, ou dois momentos constitutivos do homem que se codeterminam, o momento físico-químico (o organismo) e o momento psíquico (a psique): ‘O homem não tem organismo “e” psique como se um dos termos fosse acrescentado ao outro; o homem “é” psico--orgânico, é uma substantividade psico-orgânica’. Segundo Ruiz e la Pena, ‘estamos perante uma teoria rigorosamente metafísica’, que ‘cobre com suma folga  os tão repetidamente mencionados mínimos antropológicos’. Por essas razões é ‘uma teoria apta para dar resposta à questão da relação entre a alma e o corpo. E sobre a mesma não deixa de expressar o seu próprio juízo de valor: ‘acaso a teoria mais consistente sobre o nosso tema’, ‘a proposta  mais original, a única nova proposta, surgida do campo católico’. Ruiz de la  Pena não esconde a sua simpatia quer pela proposta de J. Moltmann quer pela  de X. Zubiri, como modos de pensar a relação entre a alma e o corpo  de forma equilibrada e unitária, sem se ostentar uma supremacia da alma sobre o corpo e/ou uma subordinação deste àquela”. – A condição corpórea da pessoa em J. L. Ruiz de la Pena, Didaskalia, XXXIV, 2004, pp. 81, 109.

A minha opinião sobre Zubiri é que mesmo sendo ele um escritor consagrado no mundo da filosofia e estudado até em seminários católicos, ele não faz outra coisa senão engrossar as fileiras desse movimento moderno que tenta reescrever a teologia cristã e despreza quase que completamente o que era acreditado pelos antigos autores cristãos, em especial dos três primeiros séculos. De modo que se a intenção for conhecer melhor o assunto do ponto de vista bíblico, Zubiri não é uma leitura recomendada. De fato, se não fosse o Concílio Vaticano II, que praticamente aboliu a figura das heresias, talvez sua obra fosse considerada até herética e ele fosse excomungado (alguns dizem que ele foi, porém não achei uma confirmação oficial disso). Por outro lado, os que gostam de se perder nos labirintos da filosofia em busca de uma saída no final, talvez conclua que o zubirianismo tem alguma serventia. Neste caso, sugiro a leitura dos dois textos a seguir:

A ação criadora de Deus na teologia filosófica de Xavier Zubiri, de Samuel Fernando Rodrigues Dimas, Universidade Católica Portuguesa, CAURIENSIA, Vol. X (2015), pp. 489-505.

Conhecimento e Realidade em Santo Tomás e Xavier Zubiri, Synesis, v. 8, n. 2, p. 96-117, ago/dez. 2016, Universidade Católica de Petrópolis, de Joathas Soares Bello.

Portanto, mais uma obra que, nem de longe, poderia ser usada para apoiar o aniquilacionismo materialista. Os que acham o contrário cometem um retumbante equívoco, ainda que sejam vítimas da maneira um tanto obscura de Zubiri tratar o tema, que pode parecer esclarecedora apenas para uns poucos iniciados e íntimos da linguagem filosófica do eminente autor espanhol.

78. The Westminster Theological Wordbook of the Bible (2003)

Trechos das páginas 225 a 227:

‘Imortalidade’ é a tradução de dois substantivos que aparecem dez vezes no Novo Testamento: athanasia (‘imortalidade’), que ocorre três vezes e denota a imunidade da morte usufruída por Deus (1 Tim 6:16) e pelos crentes ressuscitados (1 Cor 15:53-54); e aphtharsia (‘incorruptibilidade’ ou ‘imperecibilidade’), que ocorre sete vezes e significa a imunidade à decadência que caracteriza a condição divina (1 Cor 15:42, 50, 53-54)... A imortalidade humana inerente, porém, é uma ideia alheia às Escrituras Judaicas, e não existe um termo equivalente no AT à athanasia (‘imortalidade’). Apenas Deus é ‘vivente’ (Deu. 5:26; Jos. 3:10; Sal. 42:2; 84:2, Jer. 10:10) e o possuidor da ‘vida’ (Sal. 36:9). Na verdade, no AT, assim como em toda a literatura antiga do Oriente Próximo, é a mortalidade dos humanos que os separa da deidade ou dos deuses. Embora se pense que alguns mortais cruzaram essa fronteira, e foram dessa maneira admitidos diretamente no mundo divino (por exemplo, Utnapishtim na Epopeia de Gilgamés; aparentemente também Enoque de Gênesis 5:24 e Elias de 2 Reis 2:3-12), tais casos foram considerados exceções e a imortalidade intrínseca aos humanos é rejeitada.

Foi só durante o período do Judaísmo do Segundo Templo (cerca de 200 AC – 120 DC), quando o conceito grego de imortalidade foi fundido com o conceito hebraico dos seres humanos que foram criados ‘à imagem de Deus’ (Gen. 1:27), que os judeus começaram a distinguir entre corpo e alma (1 Eno. 22:7; 102:5; Sab. 9:15; 2 Mac. 7:37; 14:38; Let. Aris. 139; 236; Josefo, Contra Apião 2.203) e a considerar a alma como inerentemente imortal (Josefo, A Guerra judaica 1.84; 2.154-55, 163; 6.46; 7.341-48; Antiguidades Judaicas 17.354; 18.14, 18). Alguns desses conceitos de imortalidade judaica foram revestidos em linguagem da ressurreição, outros em cenários astrais, outros em terminologia extraída de ideias sobre reencarnação e transmigração de almas, e ainda outros em formas de expressão antropológica tipicamente grega.

“Da mesma forma, um entendimento grego da imortalidade da alma é alheio ao NT. É só Deus que possui a vida em si mesmo (João 5:26; 6:57) e é inerentemente imortal (1 Tim. 6:16). Ele torna vivo por meio de seu espírito, e assim o seu espírito é chamado de ‘dador da vida’ (João 6:63; 1 Cor 15:45). Foram escritores cristãos do final do primeiro século e do segundo século que, tentando fazer o evangelho palatável para a mente grega e defendê-lo contra falsas acusações, retomaram a tese de que a alma humana (psyche) é intrinsecamente imortal (athanatos, ‘imortal’), comparando-a, por exemplo, com a fênix mitológica, um pássaro que a cada quinhentos anos morria, mas se reconstituía de seus restos materiais decompostos para continuar por mais um período de quinhentos anos, ad infinitum (1 Clemente 24-27; Justino, o Mártir, Primeira Apologia 44:9, Diálogo com Trifo 4:5; 124:4; Taciano, Discurso aos Gregos 13:1; 15:4; e a epístola anônima a Diogneto 6). E, embora estes primeiros apologistas usassem tais analogias para apoiar uma doutrina cristã da ressurreição, eles falharam em distinguir entre o ensino cristão sobre a imortalidade, que é dada aos crentes por Deus por ocasião de sua ressurreição e as crenças greco-romanas na imortalidade natural da alma.

. . . .

“Primeira aos Coríntios 15 coloca claramente a recepção da imortalidade no momento da ressurreição, pois justapõe a ressurreição e a imortalidade em frases tais como ‘que é levantado é imperecível’ (v. 42) e ‘os mortos serão levantados imperecíveis’ (v. 52). Isto não significa que os mortos serão ressuscitados, sendo assim vistos como já imortais, e sim que os mortos serão ressuscitados e dessa forma se tornarão imortais. Longe de já possuir a imortalidade, os crentes em Cristo Jesus são descritos como aqueles que ‘buscam’ a imortalidade (Rom 2:7) e a recebem no momento de sua ressurreição (1 Cor 15: 20-23, 42-53).

“Do ponto de vista cristão, as doutrinas da ‘imortalidade’ e da ‘ressurreição’ estão juntas. É um caso de ‘ressurreição para a imortalidade’ e ‘imortalidade por meio da ressurreição’ – ou, conforme expresso por Paulo e reformulado por Murray Harris, ‘levantado imortal’. Negar a ressurreição é negar a imortalidade, uma vez que a encarnação envolvida no evento da ressurreição é necessária para o gozo da existência significativa implícita pela imortalidade. Por outro lado, negar a imortalidade é negar a ressurreição, já que o fornecimento permanente da vida divina garantido pela imortalidade é necessário para sustentar ressurreição de vida das pessoas transformadas. Cada uma envolve a outra, de modo que escolher entre elas não só é desnecessário, como também impossível”.

The Westminster Theological Wordbook of the Bible [Vocabulário Teológico da Bíblia de Westminster], Donald E. Gowan, ed., Westminster John Knox Press, Louisville, Kentucky, EUA, 2003, pp. 225-227.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

As seguintes informações apresentadas no trecho citado estão totalmente corretas: (1) só Deus é imortal no pleno sentido da palavra, (2) a alma humana não é imortal conforme o conceito grego, (3) os humanos (gente de carne e osso) são todos mortais e (4) o homem só receberá a imortalidade no momento da ressurreição do corpo físico.

No entanto há outras afirmações que estão notoriamente erradas. A primeira que chama mais atenção é incluir os cristãos do final do século I naquele grupo que posteriormente procurou dialogar com a filosofia grega e transmitir a mensagem cristã de acordo com o que era mais familiar aos ouvidos greco-romanos (o que em si não é nenhum problema, visto que o objetivo era a conversão de pagãos). O ponto mais evidente dessa falha que o autor do texto comete é mencionar Clemente de Roma como sendo um dos tais que supostamente teria dado abertura indevida para a filosofia grega. Se existe uma obra patrística extremamente parecida em estilo aos escritos apostólicos é a carta de Clemente aos coríntios. Qualquer um pode lê-la e constatar isso.

E o pormenor de que Clemente fez uso de uma lenda popular até hoje, a da Fênix que ressurge das cinzas, é uma alusão à ressurreição do corpo físico, conforme o próprio autor do trecho reconhece, e não se refere à concepção grega de imortalidade da alma. Se Clemente tivesse mencionado o casulo ressequido no qual a lagarta se transforma em borboleta, aí sim ele estaria fazendo alusão à alma imaterial saindo do corpo e indo para a esfera superior, conforme pensavam os gregos. Por isso, depois que se referiu à Fênix, Clemente disse:

“Devemos, então, considerar grandioso e estranho o fato de o Criador operar a ressurreição de todos aqueles que lhe serviram santamente na confiança de uma boa fé, se ele ilustra até por um pássaro a grandeza de sua promessa? Lê-se em alguma parte: ‘Hás de me ressuscitar e eu te louvarei’. E: ‘Deitei-me e adormeci; levantei-me porque tu estás comigo’. E Jó adverte novamente: ‘Ressuscitarás minha carne que suportou todo esse sofrimento’.” – 1 Coríntios 26:1-3, de Clemente, Editora Paulus.

Alguns poderão tecer fortes críticas ao uso que Clemente e outros cristãos antigos fizeram desse mito, dentre os quais também fazem parte Tertuliano (A Ressurreição da Carne 13:3) e Orígenes (Contra Celso IV, 98). Mas apropriar-se da imagética da cultura clássica para representar algum ensino era algo comum naquele tempo. O que haveria de errado nisso? Além do mais, parece que uma informação está faltando nessa história para entendermos o motivo dela ter recebido crédito. Quando Orígenes a mencionou, por exemplo, não era ele que estava usando o mito para ensinar alguma coisa, mas o pagão Celso. Orígenes argumenta que ‘embora o relato seja verdadeiro’ Celso o utiliza de maneira errada. Pode ser que em uma data remota tenha havido algum fenômeno de ordem natural, envolvendo alguma ave, que acabou se transformando nessa lenda, à medida que o relato se espalhou de boca em boca. De qualquer modo, seja o que for que tenha acontecido, a referência ao mito é para representar a ressurreição da carne e não a imortalidade inerente da alma.

Uma análise do conteúdo da carta de Clemente também indica o provável motivo dele ter citado a fábula do pássaro que ressurge da morte. Além de usar isso como símbolo da ressurreição de Cristo, Clemente podia estar remetendo o leitor a um cenário de ciclos ao fim dos quais alguma coisa relevante acontece. E a conhecida história da Fênix se encaixa bem nessa ideia. Sobre essa possibilidade disse determinado comentarista:

“A carta de São Clemente Romano aos Coríntios também concretiza o tipo ideal weberiano de um grupo baseado na autoridade tradicional por ter uma visão cíclica da história com uma ideia subjacente de renovação. O trecho da Carta de São Clemente Romano aos Coríntios 20 citado acima mostra uma visão cíclica quando descreve a noite perpetuamente sucedendo ao dia e as estações continuamente abrindo espaço umas às outras. A renovação, implícita numa visão cíclica da história, torna-se evidente nas referências que Clemente faz aos ciclos da noite e do dia, da semeadura e da colheita e do mito da Fênix (capítulos 24-25)”. – Conflito em Roma, Ordem Social e Hierarquia no Cristianismo Primitivo, Edições Loyola, 1995, de James S. Jeffers, p. 200.

Outro fator relevante que pode explicar o motivo do autor do MB ter trazido para o seu rol de citações inadequadas o trecho em apreço é justamente esse de que os autores cristãos das últimas duas décadas do primeiro século já estariam pavimentando o caminho para a mítica corrupção do cristianismo primitivo pela filosofia grega. O entendimento mais aceito é que o diálogo do Cristianismo com o platonismo só aconteceu uns 3 séculos depois, e o autor do MB cita algumas referências que dizem isso. Por isso muitos aniquilacionistas nutrem a ilusão de que pelo menos alguns autores extrabíblicos dos séculos I e II, e talvez do III, ainda eram aniquilacionistas e teriam revelado isso em seus escritos. No entanto, à medida que eu fui demonstrando que isso não é verdade, especialmente no texto “O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?”, o autor do MB percebeu que era preciso recuar mais o suposto período em que a primitiva igreja foi dada “de mão beijada” para o platonismo. Daí ele achou essa referência que faz referência aos alegados corrompedores da fé já no primeiro século, pessoas que tiveram tratos com os apóstolos, como foi o caso de Clemente.

No entanto, essa nova teoria, que certamente encontrará poucos apoiadores e não passa de um ato de desespero, gera pelo menos dois problemas sobre os quais o autor do MB talvez não tenha refletido ainda. O primeiro é que o livro de Apocalipse, que provavelmente foi escrito depois dessa carta de Clemente contém trechos muito mais afeitos ao conceito grego, ao menos na aparência, do que a missiva desse discípulo dos apóstolos aos irmãos em Corinto. É o caso da passagem abaixo:

“Em seguida vi alguns tronos, e os que estavam sentados neles receberam o poder de julgar. Vi também as almas das pessoas que tinham sido degoladas porque haviam anunciado a mensagem de Deus e a verdade que Jesus revelou. Elas não tinham adorado o monstro nem a sua imagem, nem tinham recebido o seu sinal na testa ou na mão”. – Apocalipse 20:4, 5, NTLH; compare com Mateus 10:28.

Clemente sequer usou o termo “alma” nesse sentido de vida fora do corpo físico, ainda que haja referências indiretas à alma invisível. Ele utilizou essa palavra mais de acordo com o palato hebraico, que está mais presente no Novo Testamento. Abaixo um exemplo:

“Por isso terá multidões como herança e distribuirá os troféus dos poderosos pelo fato de sua alma ser entregue à morte e ele ter sido contado entre os ímpios”. – 1 Coríntios 16:13, de Clemente, Editora Paulus.

O segundo problema, e este eu considero ainda mais sério, é o seguinte: que tipo de cristianismo seria esse que os apóstolos ajudaram a criar que não teria solidez suficiente para manter pelo menos as pessoas que eles mesmos converteram na doutrina correta? Como é que Clemente, que foi ensinado diretamente pelo apóstolo Pedro e era amigo de Paulo, sendo citado em uma de suas cartas, não manteria íntegro o escopo doutrinário que aprendeu dos que conheceram a Jesus pessoalmente? Ainda mais ele, que se tornou o bispo da igreja de Roma (“papa”). Se realmente tivesse sido assim, o Cristianismo não passaria de uma ilusão e tudo aquilo que Jesus disse, sobre fundar sua igreja na rocha e que estaria com seus discípulos até a consumação dos séculos seria mentira, ou então nunca teria sido dito. Se é mesmo esta a ideia de Cristianismo primitivo que o autor do MB concebe, já está mais do que na hora dele refletir seriamente nas consequências dessa opinião...

E ainda falando na questão da imortalidade grega, o autor desse dicionário bíblico diz que os judeus do segundo templo fundiram o conceito grego com o hebraico. Isso também não foi algo errado e até beneficiou o ensino cristão, pois estava havendo claramente um desenvolvimento na doutrina, que se fez presente no próprio Novo Testamento, embora os aniquilacionistas e sua teimosia não queiram reconhecer isso e optem pelo tortuoso caminho das releituras, no qual só adentram porque determinadas afirmações “inconvenientes” estão no Novo Testamento. Se elas estivessem em escritos extrabíblicos certamente eles não fariam nenhum esforço para compreendê-las de outra maneira e jogariam tudo na conta da “corrupção causada pela filosofia grega”.

No entanto, o cenário descrito acima só é verdadeiro se considerarmos que o âmago do ensinamento grego sobre a alma foi rejeitado, e apenas se admitiu que a parte do homem que sobrevive à morte também pode ser chamada de alma. A crença em si de tal sobrevivência nunca dependeu dos gregos, conforme considerado minuciosamente neste trabalho e nas referências a que ele encaminha o leitor. Por isso, também é uma imprecisão da obra citada quando ela aparentemente diz que os judeus abraçaram totalmente o que dizia a doutrina grega. Ainda que alguns possam ter feito isso, de uma maneira geral não foi assim. E, com certeza, não na igreja primitiva.

De qualquer maneira, onde é que o trecho citado diz que existe aniquilacionismo? Em parte alguma. E isto é assim porque os autores dessa obra com certeza sabem que tal ponto de vista não é bíblico. Por isso fazem afirmações tais como esta:

“O céu também é chamado de paraíso (relacionado ao hebr. pardes, ‘parque, jardim’, Ecl 2:5) O grego paradeisos é usado na LXX para o jardim do Éden (Gênesis 2:8-10). Essa identificação levou mais tarde a literatura judaica e o N[ovo] T[estamento] a compreenderem o paraíso como uma coalescência do jardim do Éden e a morada dos justos que morreram (1-2 En.; 4 Esd.) Portanto, o céu é finalmente visto em termos de um novo Jardim do Éden (Ap 2:7), ao qual os justos são reunidos, aparentemente na morte (Lucas 23:43; 2 Coríntios 12: 4)”. – Verbete “Céu”, p. 202.

O trecho acima precisa apenas de duas correções: (1) o Jardim do Éden é o mesmo de sempre e (2) é realmente no momento da morte que os justos são levados para lá ou para um lugar similar, que a Bíblia chamou de “Seio de Abraão”. Não é apenas uma impressão tida na leitura de alguns versículos bíblicos.

79. The Standard Jewish Encyclopedia (1966)

IMORTALIDADE DA ALMA: Na religião, a crença direta em uma existência contínua após a morte; na filosofia, a ideia de que há uma parte da personalidade humana cuja eternidade pode ser comprovada ou, pelo menos, tornada aceitável para a razão. As religiões primitivas geralmente consideram a vida como inteira e indivisível; o conceito de uma vida pós-vida, portanto, refere-se à personalidade como um todo e não à ALMA no sentido mais limitado. Os mortos existem em uma condição de vitalidade reduzida; esse tipo de vida sombria no submundo era conhecido, por exemplo, entre os gregos (Hades) e os antigos hebreus (Seol). Quando o espírito de vida partia, o homem continua a existir na terra das sombras, mas ‘os mortos não louvam ao Senhor, nem os que descem ao silêncio’ (Salmos 115:17). Por outro lado, a alma é considerada uma substância imaterial, cuja relação com um determinado corpo é mais ou menos incidental. De acordo com esse conceito, a existência antes do nascimento e após a morte é uma questão de percurso e é a descida da alma até a matéria e o corpo mortal que requer explicação. A tarefa moral e religiosa da vida é, então, proteger a alma de perder sua pureza enquanto estiver no mundo material. Essas ideias já eram correntes no helenismo e aparecem como lugares comuns [ou: clichês] na literatura rabínica. Outra possibilidade dentro desta gama de ideias é a METEMPSICOSE. Ainda outra abordagem à imortalidade, preservando a concepção mais antiga da vida como uma totalidade de corpo e alma, manifesta-se na crença da RESSURREIÇÃO do corpo, que se tornou um artigo de fé no judaísmo e foi incorporado aos 13 Artigos de Maimônides. A combinação [ou: confusão] dos dois tipos de crença produziu o conceito judaico tradicional de um futuro onde as almas que partiram são recompensadas (paraíso, jardim do Éden, etc.) e os ímpios são punidos (inferno, Geena) por suas ações nesta vida até o grande Dia da Ressurreição quando o julgamento final será seguido por uma era completamente nova (olam-ha-ba).

ALMA: Todas as expressões bíblicas que denotam alma (nephesh, ruah, neshamah) entendem a vida como a animação do corpo e derivam de raízes que significam ‘vento’, ‘respiração’, etc. (confira Gên. 2:7); após a morte, há apenas uma existência sombria no submundo (seol). Só no último século AEC foi que o dualismo alma-corpo e o conceito de que a alma era uma substância independente que se juntava ao corpo ganhou credibilidade geral; a alma se origina no céu e desce para a terra, unindo-se a um corpo material no momento da concepção ou nascimento e perdendo a perfeição original. Esta dicotomia, plenamente desenvolvida na literatura helenística (Filo, etc.), também é aceita pelo Talmude, onde se diz que todas as almas existem desde a criação do mundo e são armazenadas no céu até que chegue o tempo de se juntarem a corpos destinados a elas. Os rabinos não igualavam simplesmente a alma e o corpo com o bom e o mal; é sempre a alma que peca e não o corpo. Na filosofia medieval, o principal problema relativo à alma era o da IMORTALIDADE. A tradição neoplatônica que presumiu uma substância da alma espiritual independente pôde conceber uma crença na imortalidade mais facilmente do que os filósofos aristotélicos para quem a alma era a ‘forma’ do corpo orgânico. Maimônides e outros judeus aristotélicos assumiram que apenas a parte da alma que o homem desenvolve por seus esforços intelectuais (o ‘intelecto adquirido’) é imortal; outros pensadores definiram a alma de modo a estender a imortalidade também aos não filósofos. Os cabalistas geralmente aceitaram a crença em METEMPSICOSE (gilgul). O desejo de se expressar o amor pelas almas que partiram e, se possível, melhorar sua sorte no futuro, deu origem (em grande parte sob influência não judaica) a vários ritos, sendo que alguns destes (por exemplo, YIZKOR, HASHKAVAH, KADDISH) tornaram-se características permanentes do serviço da sinagoga”. – .

The Standard Jewish Encyclopedia [Enciclopédia Judaica Padrão], Cecil Roth, ed., Doubleday & Company, Inc., Nova Iorque, EUA, 1959.

ERROS: 1, 3 e 4.

Comentário:

Mais um caso que a própria porção citada é suficiente para revelar que o autor dela não advoga o aniquilacionismo (veja destaques em azul), e que a crítica é aquela de sempre: o conceito da filosofia grega sobre a alma não é o mesmo que dizia o Cristianismo antigo, sendo que o único ponto importante em comum é que em ambos os casos se acredita na sobrevivência de uma alma invisível depois da morte do corpo (Mateus 10:28). E a citação também faz referência ao uso primitivo da palavra “alma” pelos hebreus, que quase sempre se referia aos seres vivos com circulação sanguínea e que respiram. Mas isto era apenas um enfoque típico daquela época, sem prejuízo ao entendimento que tinham a respeito de uma parte invisível do homem sobrevive à morte.

80. Only Human: Christian Reflections… (2005)

“Ao contrário da noção grega de que o corpo se decompõe enquanto o eu flutua para o céu, um entendimento bíblico (principalmente um judaico) não parece visualizar qualquer existência separável desse tipo entre corpo e alma ou espírito. Quando morremos, tudo em nós morre”.

Only Human: Christian Reflections on the Journey Toward Wholeness [Apenas Humano: Reflexões Cristãs sobre a Jornada Rumo à Totalidade], de David P. Gushee, San Francisco, EUA: Jossey-Bass, 2005, p. 49.

ERROS: 1, 3 e 5.

Comentário

O capítulo do qual a citação acima foi extraída se concentra em dois pontos. O primeiro é aquele pensamento grego de que o corpo é uma concha má na qual a alma (o verdadeiro eu) está passando apenas uma temporada. Conforme já considerado diversas vezes, o conceito hebreu não está de acordo com essa visão, pois valoriza o corpo qual parte integrante do ser humano e veículo de felicidade. A segunda ênfase é o homem qual ser unitário e indivisível, conforme está na moda destacar hoje em dia.

O objetivo principal de David Gushee é social e não teológico, pois ele é engajado em diversos movimentos que visam à melhoria da qualidade de vida das pessoas, especialmente de grupos minoritários vítimas de preconceito. Neste contexto, a teologia cristã sobre a alma invisível tem pouca utilidade, pois é a existência corporal neste mundo que protagoniza as situações nas quais Gushee se engajou. Por isso ele faz uso do discurso monista. No entanto, por conhecer a Bíblia hebraica, quando ele diz que na morte tudo no homem morre, provavelmente ele sabe que há duas consequências nesse acontecimento: (1) o corpo se decompõe na sepultura e (2) uma “sombra” (=alma) da pessoa vai para o Seol, aguardar a ressurreição do corpo, a fim de um dia ser uma pessoa completa novamente. A morte é assim do ponto de vista hebraico. Resta saber se Gushee acredita nesse ensinamento bíblico. A continuação do trecho citado pelo autor do MB não esclarece isso com segurança:

Se houver alguma continuação da existência depois da morte, terá de ser em um corpo reanimado ou recriado que Deus simplesmente decidiu tornar vivo novamente”. – pp. 49, 50.

Será que Gushee tem alguma dúvida que há mesmo uma continuação depois da morte? Se não tiver, o que ele pensa da ressurreição? Dar-se-á de maneira imediata, conforme parece pensar a maioria dos teólogos progressistas de hoje? Ou quem morreu se extingue e passa milhares de anos na inexistência completa? Quem quiser saber o que ele realmente acredita, basta perguntar. O email está disponível no site dele.

81. Death and the Afterlife in the New Testament (2006)

“Nossa única fonte para a antropologia israelita referente à vida e à morte é o AT. O pensamento grego não influenciou fortemente o pensamento hebraico ou judaico até o período helenístico. Para o antigo Israel, a nep̄es parece combinar funções das palavras gregas thymos (sensação intensa) e da psyche (o ser interior) dos vivos. Nep̄es jamais significa a alma. A antropologia israelita, de acordo com Jan Bremmer, era ‘estritamente unitária e permaneceu assim até o primeiro século DC, quando a crença grega em uma alma imortal começou a ganhar terreno na Palestina e na Diáspora’. Não é surpresa que dois judeus helenizados, Josefo e Filo, sejam os primeiros a demonstrar esta transição.

Death and the Afterlife in the New Testament [A Morte e a Vida Após a Morte no Novo Testamento], de Jaime Clark-Soles, T & T Clark, Nova Iorque e Londres, 2006, pp. 14.

ERROS: 1 e 3.

Comentário:

Ao dizer que o pensamento grego, em épocas mais antigas, não influenciou fortemente a maneira hebraica de pensar sobre a morte, o autor desse livro está admitindo que houve alguma influência, por mínima que fosse. De fato, muitos autores dizem que desde o exílio babilônico determinadas crenças religiosas dos israelitas começaram a mudar. Certamente com permissão de Deus, pois fazia parte do processo de evolução que houve até o tempo de Cristo. Antes mesmo disso, a concepção de Seol, qual lugar subterrâneo das almas dos mortos (“sombras”), era equivalente ao Hades grego.

E quando diz que nefesh ‘não significa alma’, o autor também está recepcionando o conceito de alma espiritual. Sendo assim, o que ele está dizendo é apenas que os primeiros hebreus não costumavam chamar essa alma invisível de “alma”, pelos motivos já explicados em outros comentários.

Note também que se Josefo e Filo foram judeus helenizados que demonstraram a transição para a última fase de entendimento sobre a morte em Israel, o mesmo ocorreu com judeus cristianizados, os quais, seguindo a informação de Jesus sobre a alma sobreviver à morte do corpo (Mateus 10:21-22, 27-28; Lucas 16:22-25; 23:43), fizeram afirmações que seguem uma linha semelhante de raciocínio:

“Irmãos, não queremos que vocês sejam ignorantes quanto aos que dormem [na morte], para que não se entristeçam como os outros que não têm esperança... Vocês todos são filhos da luz, filhos do dia. Não somos da noite nem das trevas. Portanto, não durmamos* como os demais, mas estejamos atentos e sejamos sóbrios... Ele morreu por nós para que, quer estejamos acordados quer dormindo [na morte], vivamos unidos a ele”. – 1 Tessalonicenses 4:13; 5:5-7, 10, colchetes acrescentados.

* Conforme já visto, comparar a morte ao sono e dizer que os mortos estão dormindo é uma figura de linguagem que faz alusão ao estado inerte do corpo. Porém, conforme o texto seguinte, é fora do corpo que os cristãos vão para a presença de Cristo, a exemplo das almas mencionadas em Apocalipse 20:4. Enquanto isso, o corpo fica “dormindo” na Terra, aguardando a ressurreição. Portanto, é dessa maneira que os cristãos falecidos dormem e ao mesmo tempo estão vivos com Jesus.

“Temos, pois, confiança e preferimos estar ausentes do corpo e habitar com o Senhor. Por isso, temos o propósito de lhe agradar, quer estejamos no corpo, quer o deixemos”. – 2 Coríntios 5:8, 9.

“Vi [no céu] as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus”. – Apocalipse 20:4, colchetes acrescentados.

Por fim, o autor do MB destaca em negrito que a suposta corrupção (que, na verdade, foi uma evolução) aconteceu no primeiro século, reforçando a tese de que a integridade doutrinal da igreja primitiva durou pouquíssimo tempo. Uma evidência adicional de que essa teoria é internamente contraditória é que o próprio Novo Testamento conteria a tal “corrupção”, como se vê nos três textos bíblicos supracitados e é confirmado por essa mesma obra que foi citada pelo autor do MB:

As formas do Cristianismo do Novo Testamento compartilham conceitos de céu tanto com a tradição judaica quanto com ideias greco-romanas. As primeiras noções judaicas e gregas incluíram a visão de que todos os mortos entravam em uma terra de existência sombria (Seol e Hades). Posteriormente, foram feitas distinções, e particularmente os virtuosos receberam recompensas especiais. Ainda mais tarde, os mortos virtuosos ascendiam para outro lugar, deixando para trás na terra ou no Hades aqueles que merecem o castigo”. – p. 25.

Os aniquilacionistas só não reconhecem isso porque precisam deixar a Bíblia debaixo de uma redoma, como se ela não tivesse nenhuma relação com o ambiente externo da época antiga. Ou seja, é preciso uma releitura artificial de alguns versículos do texto canônico a fim de adequá-lo ao moderno pensamento “cristão” materialista. Ao negarem o conteúdo claro das três passagens bíblicas supracitadas, eles revelam uma teimosia tão grande que mais parece uma patologia cognitiva, isto porque as afirmações de tais textos sobre a continuidade da vida são muito positivas! Por isso o autor do livro disse que tal expectativa era nutrida pelos cristãos antigos, mesmo não tendo sido os primeiros com a mesma esperança.

Logo, mais uma obra que não atende aos interesses do ideal aniquilacionista.

82. Three Essays. On the Intermediate State of the Dead (1828)

“A única coisa que resta ser mostrada é – como essas tradições pagãs vieram a ser incorporadas à religião cristã. É evidente que elas prevaleciam muitas eras antes de Cristo aparecer, e prevaleciam entre judeus e gentios no início da dispensação do evangelho... Quando o evangelho começou a ser pregado entre todas as nações, os que foram convertidos estavam impregnados com tais tradições pagãs e, de fato, suscetíveis às provas mais satisfatórias, que os primeiros pais da igreja tinham associado à filosofia platônica, que prevalecia em geral naquele momento. Alguns desses pais falaram de Platão e suas doutrinas nos termos mais nobres, e dizia-se que Platão aperfeiçoou a doutrina da imortalidade da alma. Agostinho confessou que os livros dos filósofos lhe foram muito úteis para facilitar o entendimento de algumas verdades ortodoxas. Eusébio afirmou que Platão penetrou até na doutrina da Trindade. Os primeiros pais, tais como Clemente Alexandrino, Tertuliano, Orígenes, admitiram todos ser platonistas. Que o cristianismo logo veio a ser corrompido pela filosofia da época é universalmente admitido por todas as seitas dos cristãos dos dias de hoje. Eu só dou espaço para um breve excerto da History of Philosophy [História da Filosofia] de Enfield, págs. 13, 14. ‘Entre os primeiros cristãos, que estavam se empenhando industriosamente na disseminação da doutrina divina de seu mestre, as sutilezas da filosofia dos gentios tiveram pouco crédito. Mas tão logo após a ascensão do cristianismo, muitas pessoas que tinham sido educadas nas escolas dos filósofos foram convertidas à fé cristã, a doutrina das seitas gregas e especialmente do platonismo foram entremisturadas com as verdades simples da religião pura. À medida que a filosofia eclética se espalhava, as doutrinas pagãs e cristãs foram misturadas ainda mais intimamente, até que, finalmente, ambas estavam quase completamente perdidas nas densas nuvens de ignorância e barbarismo que cobriram a Terra; exceto que a filosofia aristotélica tinha uns poucos seguidores entre os gregos, e o cristianismo platônico era apreciado nos claustros dos monges. Pelo início do século 11, surgiu um novo tipo de filosofia, chamada escolástica, que, enquanto professava seguir a doutrina de Aristóteles, corrompeu todos os princípios do raciocínio sadio e impediu, em vez de auxiliar, os homens em suas indagações sobre a verdade’.

“Sendo fato que o cristianismo se corrompeu com a filosofia da época, vejamos agora que os apóstolos haviam advertido os cristãos que desta mesma fonte haveriam de surgir erros entre eles. Paulo dissera aos colossenses, cap. 2:8, ‘Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo.’ Veja também 1 Tim. 6:20, 21; 1:4, 6 e 4:7; 2 Tim. 2:16-18. Estes erros não foram introduzidos sem oposição, pois exigiu que a autoridade eclesiástica estabelecesse a imortalidade da alma em alguns lugares. Consequentemente, Eusébio testifica que em 249 D.C., a doutrina de que ‘as almas dos homens perecem com seus corpos’, foi condenada em um concílio árabe. Não é de admirar que os cristãos árabes se opuseram à doutrina da imortalidade da alma até mesmo no terceiro século, pois conforme a própria exposição do Dr. Good, ela não se encontrava nos escritos de Jó, o antepassado deles, nem havia sido ensinada a eles por Cristo, seu mestre. Todavia, esta doutrina, uma vez estabelecida, forneceu a base para uma superestrutura sacerdotal e de superstição na igreja católica, que por muitas eras foi a admiração das nações, mas a maldição do mundo. As próprias ruínas dela despertam nosso assombro. Na Reforma, muitas coisas foram reformadas, mas todos admitirão que muitas não foram. Por exemplo, salvar almas imortais após a morte foi deixado de lado, mas os reformadores continuaram a salvá-las antes da morte. Se os homens tinham almas imortais para salvar de uma miséria infindável nunca foi questionado entre eles; e desde os dias deles até agora, poucos protestantes suspeitaram da natureza não-bíblica desta doutrina”.

Three Essays. On the Intermediate State of the Dead. The Resurrection from the Dead. And On the Greek Terms Rendered Judge, Judgment, Condemned, Condemnation, Damned, Damnation, etc. in the New Testament [Três Ensaios: Sobre o Estado Intermediário dos Mortos. A Ressurreição dos Mortos. E Sobre os Termos Gregos Traduzidos como Juiz, Julgamento, Condenado, Condenação, Danado, Danação, etc. no Novo Testamento], de Walter Balfour, publicado por G. Davidson, Massachussets, EUA, 1828, pp. 94-96.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Ok, vamos lá! A primeira informação que podemos destacar é a da suposta corrupção da igreja primitiva pelo paganismo greco-romano. O autor deixa claro que isso teria ocorrido “após a ascensão do cristianismo”. Qualquer um que esteja familiarizado com a história sabe que isso ocorreu somente no século IV, com a conversão do imperador Constantino. Ao dizer isso, o autor revela inconsistência em sua exposição, pois ele também diz que escritores cristãos antes de Constantino, a exemplo de Orígenes, já teriam sido “corrompidos” pela filosofia grega. Provavelmente Balfour foi um dos eruditos que não leu toda literatura patrística hoje disponível, pois se tivesse lido saberia que mesmo Orígenes, um dos principais “imortalistas” antigos (na boca dos aniquilacionistas), repudiou aspectos importantes do platonismo, conforme você pode conferir no texto “A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?”.

A segunda inconsistência importante no trecho citado é a menção dos cristãos árabes que defenderam o aniquilacionismo materialista, único caso que se tem notícia na Antiguidade. Balfour “se esqueceu” de mencionar que tais cristãos abandonaram essa opinião, pois foram todos convencidos por Orígenes de que estavam errados. Além disso, Eusébio afirmou que tal crença era estranha ao ensino cristão e uma completa novidade na igreja. Mas, neste caso, a referência de Balfour não pode ter sido por ignorância do que Eusébio escreveu sobre o assunto, pois o trecho de sua “Historia Eclesiástica” no qual ele menciona o ocorrido ocupa apenas um parágrafo, onde o leitor já fica sabendo o começo, o meio e o fim da história. Talvez se fosse hoje em dia Balfour não teria omitido esses detalhes, pois com a Internet é muito difícil manter algo escondido do leitor, pois atualmente é relativamente fácil conferir determinadas informações.

De qualquer maneira, está óbvio que a referida citação não prova nada a respeito do aniquilacionismo. Ao contrário, pode ser usada para refutá-lo. No entanto, Balfour era mesmo aniquilacionista e há trechos melhores desse livro dele que o autor do MB poderia ter selecionado para demonstrar isso. Balfour era também universalista. Ou seja, acreditava que todos serão salvos e não haverá punição eterna. Vários autores de sua época escreveram livros refutando as opiniões não ortodoxas de Balfour. Caso queira ler algum deles, sugiro os da lista abaixo. Os três últimos tratam de outros autores, a exemplo de Hosea Ballou, que junto com Balfour é considerado um dos pais do universalismo moderno.

Modern Universalism Exposed: In an Examination of the Writings of Rev. Walter Balfour, 1834, de Parsons Cooke.

Universal Salvation Indefensible Upon Mr. Balfour's Ground, 1825, de James Sabine.

Universalism: a modern invention, and not according to godliness, 1839, de Andrew Royc.

Universalism as it is: or, Text book of modern universalism in America, 1845, de Edwin F. Hatfield.

E sobre as advertências apostólicas mencionadas por Balfour, consulte o apêndice D.

Portanto, neste caso o escritor realmente atende ao que pretende o autor do MB com suas citações, ainda que o trecho apresentado não revele isso claramente.

83. La Parole de Dieu. Approches du mystère des Saintes Écritures (1960)

“O conceito de ‘alma’ no sentido de uma realidade puramente espiritual ou imaterial, separada do ‘corpo’,... não existe na Bíblia.

La Parole de Dieu. Approches du mystère des Saintes Écritures [A Palavra de Deus. Abordagens do Mistério das Escrituras Sagradas], de Georges Auzou, Editions de l'Orante, Paris, França, 1960, p. 128.

ERROS: 1 e 3.

Comentário:

A afirmação acima está correta se for considerado o que dizia o platonismo, segundo o qual a alma é completamente imaterial e sem características humanas. Já de acordo com o ensino cristão, ainda que a alma que sobrevive à morte do corpo seja espiritual (Mateus 10:28), ela têm aparência humana e é feita de alguma coisa, de maneira semelhante aos outros espíritos, que são imateriais apenas no nosso mundo. Mas na realidade onde vivem eles são materiais e possuem sensações táteis.

84. Law and Grace: Must a Christian Keep the Law of Moses? (1962)

“No Antigo Testamento, o homem jamais é considerado como uma alma que habita em um corpo, uma alma que um dia será libertada da opressão do corpo, por ocasião da morte desse corpo, como um pássaro libertado duma gaiola. Os hebreus não eram dualistas em sua compreensão do mundo de Deus.

Law and Grace: Must a Christian Keep the Law of Moses? [Lei e Graça: Deve Um Cristão Guardar a Lei de Moisés?], de George Angus Fulton Knight, SCM Press, Série: Religious Book Club 146, Londres, Inglaterra, 1962, p. 79.

ERROS: 1 e 3.

Comentário:

Informação completamente correta. Tais conceitos são típicos do platonismo e não encontram respaldo no ensinamento bíblico. Porém isso não é prova a favor do aniquilacionismo, conforme já visto em comentários precedentes e nos apêndices A e F.

85. The Old Testament View of Man (1978)

“Não se pode falar de antropologia propriamente dita na Bíblia. A Bíblia não considera o homem em si mesmo, como indivíduo como tal, mas sempre em seu relacionamento e atitude fundamentais para com Deus. Isto é bem verdadeiro, de qualquer forma que seja considerado, seja do ponto de vista da criação ou do ponto de vista da escatologia. Paulo caracterizou os tratos divinos com o mundo e o homem em uma palavra: mistério. Isto também pode ser dito e, de forma preeminente, do homem que permanece, apesar de muitos estudos e análises, um mistério e um enigma sem solução suficiente... Assim como a origem, a manutenção do homem depende do livre arbítrio de Deus... as palavras mais utilizadas para denotar o homem vivo, são nepesh quando trata da personalidade do sujeito ou basar quando se trata da natureza frágil do homem. Em grego, existe uma variedade de termos utilizados em referência ao homem: anthropos, aner, brotos, thnetos, psyche, arsen, andreios, dunatos, gegenes, etc. Todavia, uma distinção entre corpo e alma como elementos constituintes do homem é desconhecida para o Antigo Testamento. As diferentes palavras, tais como leb ou lebab... são usadas para descrever o homem inteiro em diferentes aspectos e não partes dele... A dicotomia ou a tricotomia são alheias ao pensamento do Antigo Testamento. Dessa forma, podemos dizer que a concepção do homem é totalmente e não parcialmente tratada no Antigo Testamento. As tendências dualistas originam-se com o judaísmo posterior e a seita de Qumran...

“[A filosofia grega] fez violência ao padrão de pensamento oriental e injustiça à mentalidade judaica. O Antigo Testamento considera o homem em sua relação com Deus. Se o homem é o centro da disputa e da discussão na filosofia grega, a arena do mundo do Antigo Testamento é entregue a Deus... É Deus e não o homem que ocupa o centro do cenário. Conduzindo e incorporando em si a coletividade da raça humana, Adão e seus relacionamentos resumem em um microcosmo a história completa de toda a humanidade... Ao contrário dos egípcios, que acreditaram em um estado de vida contínua mas inalterada após a morte, os mesopotâmios reconheciam que tudo terminava com a morte. A vida é uma reserva dos deuses... É verdade que [em Israel] há menção de um Seol (Isaías 14, Jó 10:21; 17:13-16; 3:17-19); mas ele é um vasto túmulo onde os mortos são armazenados como matéria inerte. A morte é o fim natural da vida... O Seol tem um tipo de existência suspensa.

The Old Testament View of Man [O Conceito de Homem no Antigo Testamento], G. M. Fernandez, 1978, pp. 150-159.

ERROS: 1, 3, 4 e 5.

Comentário:

Só em o autor dizer que há um conceito de que o “homem permanece” (depois da morte, obviamente), mas tal continuidade é um mistério, já atesta que quem escreveu tais palavras não devia estar apoiando o aniquilacionismo, mesmo se apegando ao discurso monista e ao enfoque que a Bíblia Hebraica dá à palavra nefesh (“alma”).

Também está correto dizer que a mentalidade grega difere do pensamento oriental semítico, que inclui a crença dos babilônios. Fernandez diz que para eles “tudo terminava com a morte”. Porém esse “terminar” não significava a inexistência absoluta, mas sim o fim do contentamento da vida, pois a experiência que as almas (“sombras”) dos mortos passavam a experimentar no mundo inferior era triste. Basta ler os relatos mesopotâmicos, como a Epopeia de Gilgamesh, para constatar que o “fim” da vida na concepção semítica era, na realidade, a continuação da pessoa na forma de um fantasma feito de uma substância invisível e desconhecida. Vimos uma amostra disso nos comentários às obras nº 31 (seção 2) e nº 45 (seção 3).

Tal mundo indesejável no subterrâneo profundo os hebreus chamavam de Sheol. Portanto, nesse contexto, os seres que iam para lá não eram tão inertes assim, pois possuíam consciência de si próprios e podiam se movimentar, caso quisessem, porém sem a vitalidade da outrora vida humana. Este é o cenário correto e preciso da situação, que já não é boa, porém Fernandez quis valorizar ainda mais tal negatividade, quem sabe para agradar leitores aniquilacionistas, que já se tornaram público cativo desse tipo de leitura.

86. Der Geist des lebens, Jürgen Moltmann (1992)

“À medida que o cristianismo cortou-se de suas raízes hebraicas e adquiriu a forma helenística e romana, ele perdeu sua esperança escatológica e renunciou à sua alternativa apocalíptica a este mundo de violência e morte. Ele se amalgamou à religião gnóstica da redenção da antiguidade posterior. De Justino em diante, a maioria dos Pais reverenciou Platão como um ‘cristão antes de Cristo’ e exaltou seu mundo espiritual. A eternidade de Deus agora tomava o lugar do futuro de Deus, o céu substituiu o reino vindouro, o espírito que redimiu a alma do corpo suplantou o Espírito como ‘a fonte da vida’, a imortalidade da alma dispensou a ressurreição do corpo e o anseio por outro mundo tornou-se um substituto para a mudança deste”.

Der Geist des lebens, de Jürgen Moltmann, Gütersloher Verlagshaus, Alemanha, 1991. (Em inglês: The Spirit of Life, Fortress Press, Minneapolis, EUA, 1992. Em português: O Espírito da Vida – Uma Pneumatologia Integral, Editora Vozes, Rio de Janeiro, Brasil, 1999), p. 89.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Jürgen Moltmann é um teólogo Luterano que tem recebido bastante destaque nos últimos anos. Um leitor “condicionalista” ao passar a vista nesse trecho acima poderá chegar facilmente à conclusão de que Moltmann está dizendo alguma coisa a favor do aniquilacionismo. Este, porém, não é o caso. Não só esse teólogo não é aniquilacionista como também já fez declarações a favor do “imortalismo”. Mas antes de mencionar algumas delas, vamos nos ater primeiro à referida citação.

Primeiramente, o que Moltmann destacou é o que diversos outros estudiosos também têm chamado a atenção: a mudança de expectativa dos primitivos cristãos. Na época apostólica os membros das comunidades cristãs aguardavam o fim do mundo para o período de vida deles, mas com a destruição do sistema judaico pelos romanos tal expectativa desvaneceu-se, e a igreja gradualmente começou a voltar seu interesse para o céu, o lugar para o qual eles sempre acharam que iriam depois da morte (ou então um local semelhante). Mesmo acreditando que a vida imediata com Cristo não impediria a ressurreição futura do corpo físico, esta segunda expectativa, que, na verdade, é a primeira em ordem de importância, começou a perder força quando autores cristãos começaram a dialogar com o platonismo. A escatologia passou a ter menor significado na teologia da Igreja. É disso que Moltmann está falando.

E note que ele ainda afirmou que esse enfraquecimento de um aspecto importante da esperança cristã só começou a ocorrer de Justino em diante. O que significa dizer que aquelas declarações de cristãos mais antigos sobre a ida imediata do fiel para Deus nada têm a ver com elementos do platonismo que foram parcialmente aproveitados pelo Cristianismo posterior. O mesmo ocorreu no caso do gnosticismo, a influência foi parcial e até certo ponto natural. O próprio entoar de cânticos nas igrejas passou a ser uma prática comum devido à influência gnóstica.

Conforme mencionado, Moltmann não é aniquilacionista, ainda que ele costume enfatizar que o homem é uma unidade constituída de corpo, alma e espírito, e que a visão grega de alma que abandona o corpo não está de acordo com essa ideia. Ele diz que a morte é o fim de tudo, porém o homem não deixa de ser eterno quando ela chega:

“Essa relação de Deus com os seres humanos, pela qual eles se tornam vivos, também é denominada ‘imortalidade dialógica’. ‘Com quem Deus dialoga, seja na ira, seja na graça, esta pessoa certamente é imortal’, dizia Martinho Lutero. Muitos teólogos protestantes e católicos defendem essa ideia: pessoas permanecem ‘interlocutores’ de Deus, mesmo que não estejam prestando atenção. Mas se os seres humanos prestam atenção, sua existência como um todo se torna como que uma existência de resposta, ou seja, responsorial: eles respondem e se responsabilizam. Se isso for correto, a morte será certamente o limite de nossa existência, mas não será o limite da relação de Deus conosco. Em relação à nossa vida, a morte é bem mais um portal de passagem, uma transformação de nossa parte. A relação de Deus conosco, que fala conosco, que nos chama e que por fim redime, permanece”. – No fim, o início: breve tratado sobre a esperança, Edições Loyola, 2007, de Jürgen Moltmann, p. 133.

Ao que parece, Moltmann é adepto do conceito de morte total seguida da ressurreição imediata do homem inteiro, pois a escatologia é uma realidade atual embora sua consumação final esteja no futuro. Ou então ele aderiu àquele raciocínio alternativo de que a ressurreição é simultaneamente presente e futura porque na “kairosfera”, o mundo de Deus, não há passagem de tempo, de modo que já estaríamos lá apesar do fato óbvio de ainda estarmos aqui... De qualquer maneira, seja lá o que Moltmann tenha racionalizado para não ser chamado de aniquilacionista, o fato é que ele claramente acredita na continuidade depois da morte. Ou seja, na prática ele crê na imortalidade da alma humana, ainda que não se refira a isso dessa maneira. Mas ele não declarou guerra ao conceito grego de imortalidade da alma, apenas o relevou a um grau menor de importância em favor da visão de continuidade do homem inteiro, ainda que desprovido desta vida terrena. Na verdade, Moltmann foi até bastante complacente em relação à concepção grega sobre a alma (Ibid., p. 127 em diante). E para reforçar melhor o quanto ele não era aniquilacionista, note a crítica que ele fez aos que não acreditam na punição eterna dos maus no inferno:

“A declaração de Lausanne feita pelos teólogos evangelicais diz que ‘aqueles que rejeitam Cristo recusam a alegria da redenção e condenam a si mesmos à separação eterna de Deus’. Portanto, eles não só serão condenados por Deus, mas condenam a si mesmos. Isto é teologicamente plausível? Pode um ser humano condenar a si mesmo e um outro salvar a si mesmo pela aceitação de Cristo? Se assim fosse, as decisões de Deus dependeriam da vontade dos seres humanos. Deus tornar-se-ia um auxiliar da plenitude dos seres humanos, que decidem, eles próprios, sobre o seu destino. Se eu posso condenar a mim mesmo, sou o meu próprio Deus e juiz. Em última instância, isso é ateísmo (grifo meu). Tampouco considero útil, por excluir o juízo de Deus, a concepção evangélica mais recente de uma ‘conditional immortality’, de acordo com a qual ninguém obtém a vida após a morte a não ser que creia e Deus lhe dê a vida eterna, ao passo que todos os demais permanecem mortos. Assassinos de massa talvez ficassem contentes com essa solução, pois não teriam de assumir a responsabilidade perante o juízo de Deus. A concepção dos aniquilacionistas, de que os incrédulos não irão para um inferno sem fim, mas simplesmente serão destruídos e cairão no nada eterno, tampouco me parece compatível com a onipresença vindoura de Deus e sua fidelidade para com as suas criaturas. O fato de os perdidos ‘sumirem’ combina com as terríveis experiências feitas com os bandos de assassinos das ditaduras militares, mas não com Deus”. – A vinda de Deus: Escatologia Cristã, São Leopoldo, Unisinos, 2003, de Jürgen Moltmann, p. 128, citado em “John Stott Avaliado por Moltmann e Packer”, de Carlos Eduardo Calvani.

Portanto, Moltmann é mais uma referência utilizada de maneira inadequada pelo autor do MB, assim como a maioria das outras vistas até aqui.

87. The Living Soul: A Study of the Meaning of the Word Næfæš… (1958)

Trechos das páginas 29 a 34:

“Já estabelecemos que é bem natural que a alma morra. No OT, a palavra næfæš aparece expressamente nesta conexão 46 vezes. Nas versões – mais antigas bem como mais novas – ela é geralmente vertida nesses casos pelas palavras ‘morto’, ‘corpo’, um pronome ou algo assim... Aparentemente, a morte era concebida como um processo mais ou menos longo durante o qual o homem ainda era chamado de næfæš por conta da ‘vida’ ou ação que ocorria em seu cadáver; talvez até o odor que vinha do cadáver tivesse alguma influência no assunto... conforme Johs. Pedersen diz, o corpo é a alma em sua forma externa, sua forma de manifestação de valor total e, neste caso, é justamente o corpo no qual se toca que causa impureza. Conseqüentemente, podemos dizer que, nestes casos, alma é = corpo, ou talvez mais apropriadamente – considerando a natureza funcional da alma – que o corpo representa a alma neles...

“A concepção de ‘alma vivente e falecida’ torna-se consideravelmente mais interessante e, à primeira vista, contraditória em si mesma, quando næfæš aparece – encarada no aspecto da vida – no seu significado normal ‘o ser vivo de seu possuidor’ ou ‘seu possuidor como ser vivente’. A contradição seria inevitável se com a palavra ‘morte’ a Bíblia quisesse dizer o que nós – pelo menos no uso diário – queremos dizer com essa palavra, a saber, que a morte seria o contraste da vida e, consequentemente, o fim absoluto desta última. Quando falamos deste modo estamos querendo dizer a chamada morte corporal, que pode ser melhor definida pela afirmação de que o corpo humano nele deixa de viver e de agir. Uma vez que o corpo é a forma de manifestação de valor completo da alma, e necessário para a existência da alma – sem o qual essa alma jamais existiria, Gen. 2:7 – temos razão suficiente para dizer que a morte corporal é ao mesmo tempo a morte da alma. Este mesmo é o significado das palavras em Deut. 19:11: ‘... e o feriu na alma, de modo que ele morreu...’... Deve-se ter em mente que a concepção de ‘ser vivo e atuante do homem’ não deve ser concebida espiritualmente demais. Abrange mesmo e acima de tudo, o corpo humano através do qual o homem age principalmente.

“Mas existem trechos no AT que mostram que a existência de um homem como ser individual não terminava na morte. 1 Sam. 28:7 e seguintes nos conta que Saul recebeu informações de Samuel em En-Dor por meio de uma ba’alat ‘ob, ‘invocadora de espíritos’. Todavia, a história pode ser interpretada em outros aspectos, em todo caso, mostra que, de acordo com a concepção do OT, a existência individual de um homem continua após sua morte. Como prova da afirmação dessa crença, citamos Deut. 18:10, 11: ‘Não haverá entre vós... quem consulte espírito, nem feiticeiro, nem necromante’... o que novamente indica que eles acreditavam que a existência dos homens continuaria após sua morte, e visto que em nenhum trecho do OT... esta crença é negada expressamente – só a consulta aos mortos é proibida – temos razão suficiente para supor que esta é também a opinião de todo o AT. Ademais, 1 Sam 28:15, 20 pressupõe que o escritor realmente acreditava que Samuel havia aparecido, e não só que Saul ou a médium acreditavam nisso.

“Todavia, uma outra questão ainda permanece: será que a forma de existência em que os mortos estão é uma do tipo que pode ser chamada de vida? Em outras palavras: a existência da alma continua após a morte de acordo com a Bíblia? Conforme sabemos, a residência dos mortos é comumente chamada no AT de seol. Esta palavra, que pode significar ‘uma cova, cavidade, poço’, significa às vezes uma única sepultura, às vezes o conjunto de todas as sepulturas ou o ‘mundo inferior’, conforme o contexto. Isto não é de modo algum excepcional na linguagem do AT; Como paralelo, podemos mencionar uma palavra como 'es, que às vezes significa uma única árvore (por exemplo, Gen 2:17), às vezes o conjunto de várias, ou de todas as árvores (por exemplo, Gen. 1:11, 3:8). O homem moderno que não vive no mundo das ideias do AT tem uma tarefa difícil ao tentar entender como os túmulos cuja localização às vezes estava muito distante um do outro podiam formar um todo orgânico no qual se pensava que a unidade real existia, porque o homem moderno costuma usar a maneira individual de pensar. A Bíblia, porém, não pensa individualmente, e sim coletivamente, como os antigos semitas em geral. Todas as palavras que podem ser usadas como nomes de espécies são potencialmente coletivas, ou seja, elas podem significar tanto um simples indivíduo como um conjunto de vários indivíduos sem mudar sua forma externa, por ex. 'ådåm, båqår, zera’, næfæš, 'es, assim como seol também. Os plurais árabes fracti são também um tipo de paralelo. Este uso linguístico seria inexplicável, se não tivesse correspondência no mundo das ideias.

. . . .

“Eze. 32:18 em diante parece nos dar uma descrição detalhada deste ‘reino dos mortos’. Pareceria como se houvesse algum tipo de ação lá, já que o v. 21 afirma: ‘O poderoso dos heróis falará dele do meio do Seol...’, mas deve-se observar que uma parábola está em questão, e mesmo assim, a situação é bem excepcional. Aquele que entra no Seol é o Egito, e os poderosos entre os heróis que já habitam no Seol são Assíria, Elão, Meseque e Tubal, Edom, etc., países e reinados inteiros. Por conseguinte, o discurso deles deve ser entendido de modo que, quando o Egito vir a destruição chegando, deverá entender que seu destino será o mesmo que os outros países poderosos e, em todo caso, o caráter excepcional da situação nos impede de usar este trecho para descrever a condição dos mortos. O mesmo se aplica a Isa 14:9 em diante, onde se descreve a descida do rei de Babilônia ao Seol. Que a descrição é uma parábola cujo propósito é ilustrar o alcance da destruição de Babilônia é bem provado pelo v. 8: ‘Até os ciprestes se regozijam por tua causa, os cedros do Líbano: ‘já que você caiu, o lenhador não é virá contra nós’. Ninguém poderia afirmar que o profeta estava dizendo isso literalmente. Ademais, mesmo aqui a situação é descrita como excepcional, a julgar pelo que diz o v. 9: ‘O Seol lá embaixo se agitado por ti... os refaim (= ‘fracos’) despertam por ti...’ A destruição de Babilônia é um evento tão notável que até os mortos devem ser despertados para contemplá-la.

“Com base em Isa. 9 em diante, podemos, porém, tirar uma conclusão sobre a condição normal entre os mortos. Uma vez que esta parábola descreve o despertar dos mortos como excepcional, temos a maior razão para supor que normalmente se pensa que eles estão no estado de inconsciência ou de sono, como isto é geralmente expresso. Outros trechos do AT em que se fala da condição dos mortos, corroboram essa conclusão. Por ex., Isa 38:18: ‘Porque o Seol não te dá graças, nem a morte te louva...’, Sal. 6:6: ‘Porque na morte não há lembrança de ti, no Seol que te dá graças?’, 88:11-13: ‘Farás maravilhas para os mortos? Ou os refaim se levantam (e) te louvam? Selah. É tua misericórdia contada no túmulo, a tua fidelidade na destruição? São tuas maravilhas conhecidas nas trevas, ou a tua justiça na terra do esquecimento?’ As perguntas são, obviamente, retóricas. No Sal. 115:17, a condição real é declarada de forma direta novamente: ‘Os mortos não louvam a Já, nem qualquer pessoa que vai ao silêncio’. A última palavra descreve  a condição entre os mortos: ela é dominada pelo silêncio.

“Consequentemente, parece que não podemos considerar a condição dos mortos no Seol como vida real. Que a opinião dos antigos israelitas era a mesma é mostrada pelo fato de que os mortos no Seol jamais são chamados de almas no AT. De fato, o nome mais comum dos habitantes do Seol, refaim, parece ser bastante oposto à palavra næfæš, uma vez que esta última expressa implicitamente que seu possuidor tem poder vital e atuante, enquanto os primeiros são ‘privados de poder’. A conclusão é que, de acordo com a opinião do AT, a alma não continuava sua vida – ou existência, que para a alma é o mesmo que vida – no Seol após a morte.

The Living Soul: A Study of the Meaning of the Word Næfæš in the Old Testament Hebrew Language [A Alma Vivente: Um Estudo do Significado da Palavra Næfæš na Linguagem Hebraica do Antigo Testamento], de A. Murtonen, Studia Orientalia Edidit Societas Orientalis Fennica XXIII: 1, Helsínque, Finlândia, 1958, pp. 29-34.

ERRO: 3 e 4.

Comentário:

Se alma no mundo hebraico é majoritariamente entendida como criatura que respira, é claro que eles diziam que qualquer alma poderia morrer. Até os gregos falavam isso ocasionalmente, como está exemplificado no apêndice B. No entanto, a morte não implica na inexistência total, conforme o livro admite, e as almas dos mortos (“sombras”) tinham consciência de si próprias no Seol e se movimentavam quando queriam, ainda que o padrão geral fosse de sonolência ou inatividade em um mundo sombrio. Por mais que haja metáforas nas descrições de determinados monarcas no Seol, a exemplo dos reis do Egito e de Babilônia, tais descrições são sim um indicativo de que no mundo dos mortos a inatividade não é total e absoluta. Se o autor do livro pensasse isto a outra explicação dele sobre a continuidade da existência não faria sentido.

Atente para o que foi destacado em azul, que implica basicamente no seguinte:

1) Se a alma tem uma forma externa (corpo), significa que ela tem uma forma interna e consequentemente invisível ou imaterial. Então o homem não é apenas uma alma, mas ele também possui uma alma dentro dele. Seria só questão de tempo os hebreus se darem conta que essa alma interna é justamente a “sombra” que desce para o Seol, ainda que desprovida da vitalidade carnal.

2) O episódio do aparecimento do falecido profeta Samuel para Saul é uma prova de que o homem realmente sobrevive à morte, ainda que numa forma enfraquecida (“sombra”). Porém o caso de Samuel demonstra que os fiéis não ficam nessa versão sem vitalidade, pois a necromante disse que ‘viu um deus subindo da terra’ e entrou em pânico, mesmo sendo “um deus” com aparência de um homem idoso. Além disso, está óbvio que Saul achava que o espírito de Samuel ainda detinha informações privilegiadas da parte de Deus. O que indica que a “sombra” do profeta continuou a ter plena atividade mental.

3) O conceito de um amplo mundo dos mortos conectado de alguma maneira às sepulturas individuais é uma maneira própria de pensar dos povos semitas, a exemplo daqueles da Mesopotâmia. Basta verificar as literaturas das nações de lá para notar que elas tinham a mesma ideia dos mortos, ou seja, sombras tristes e enfraquecidas no mundo subterrâneo. Tal cenário não é vislumbrado pelo homem moderno.

4) A condição normal das “sombras” poderia até ser de sonolência na maior parte do tempo, porém jamais de inexistência. Essas criaturas eram entendidas como seres reais e essa preguiça toda delas era devido à fraqueza em que se encontravam e o tipo de mundo onde estavam, escuro e deprimente. Um cenário assim não poderia ser chamado de verdadeira vida. É isso o que A. Murtonen explicou. Ter ele se referido às chegadas do reis do Egito e de Babilônia ao Seol como “parábolas” não anula essa realidade.

E sobre essa teoria de que os israelitas ainda chamavam o corpo de alma só porque determinadas propriedades físicas ainda estavam atuando no cadáver, ela não passa de uma suposição, e a meu ver sem fundamento por pelo menos três motivos:

1) Quando o salmista disse “não abandonareis minha alma na habitação dos mortos” (Sal. 16:10), ele certamente não esperava que isso iria acontecer em poucos dias ou meses depois que fosse efetivamente para lá. Mesmo assim a alma dele continuaria aguardando no Seol pelo tempo que fosse necessário. E, de fato, o desenrolar da história mostrou que isso não aconteceria nem em milhares de anos, pois a ressurreição geral dos mortos ainda não aconteceu. Somente Jesus Cristo, a quem esse salmo foi aplicado profeticamente, é que ressuscitou para a vida imortal enquanto o seu corpo físico ainda estava intacto.

2) Quando Jó considerou a possibilidade de um dia Deus tirá-lo do Seol, caso fosse para lá, ele descreveu a si próprio como sendo alguém vivo aguardando a chamada de Deus, ou seja, continuaria sendo uma alma, independentemente da existência ou não do corpo físico:

“Quem dera que me escondesses no Seol... Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, até vir a minha substituição. Tu chamarás e eu mesmo te responderei”. – Jó 14:13-15.

“E depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus. Eu o verei com os meus próprios olhos; eu mesmo, e não outro!” – Jó 19:26, 27, NVI.

E até nos momentos em que ele achava que não seria resgatado do mundo sombrio, ele dizia que seria ele mesmo que iria para lá, não importando onde estivesse seu corpo material:

“Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão”. – Jó 10:20-22, NVI.

O “eu” dos textos acima não significa outra coisa senão a própria pessoa, ou seja, a alma.

3) Conforme já comentado, na época de Jesus os judeus já não viam nenhum problema em chamar as “sombras” do Seol de “almas”, pois é isso o que realmente elas são, visto que são seres vivos, ainda que numa vida sem felicidade. Pelo menos no caso dos ímpios. Como foi visto, no tempo de Jesus também já se sabia com mais certeza que há mesmo uma separação entre justos e injustos depois da morte. Daí o surgimento do conceito sobre o “Seio de Abraão” (paraíso dos justos que se foram).

Com respeito a essa expressão “alma morta”, se considerarmos todas as informações aqui apresentadas, que comprovam a existência de uma alma espiritual no homem, será mais fácil compreender o que essa descrição significa. A representação externa da alma (o corpo físico) é que morreu, por isso se diz que é uma alma morta. A alma interna que sobrevive não fica mais neste mundo e vai para outro local (Gênesis 35:18). Em tal lugar ela é uma alma viva, mesmo que esteja em um estado de sonolência na maioria dos casos. Mas aqui neste mundo é uma alma morta. De modo que se trata apenas de uma questão de ponto de vista:

“Estas pessoas prestarão contas àquele que está pronto para julgar os viventes e os mortos. Com este objetivo se declararam as boas novas também aos mortos, para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:5, 6; compare com 1 Coríntios 5:5 e Filipenses 2:10, 11.

“Pois quando [Moisés] descreve como Deus lhe apareceu na sarça ardente, ele fala de Deus como ‘o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó’. Ele não é Deus de mortos, mas de vivos, pois para ele todos vivem”. – Lucas 20: 37, 38, NBV.

Mas, mesmo sem considerar todos esses detalhes, temos aqui mais uma obra citada pelo autor do MB que não advoga o aniquilacionismo e jamais deveria constar em um rol de referências que pretende demonstrar o contrário.

88. Have Faith In God (1935)

“A morte não é o seu pastor [do homem], pois Deus redime a sua vida (a palavra hebraica é nephesh, como também incidentalmente, em Gen. 2:7, não ‘alma’ como distinta do ‘corpo’ no sentido grego, e sim a ideia hebraica da coisa que tem vida como distinta da coisa que não tem vida) do Seol... É verdade que os hebreus dos dias primitivos falavam do Seol, a morada dos espíritos dos mortos, mas o Seol era essencialmente um mundo morto, um mundo sem esperança e sem desejo.

Have Faith In God [Tenha fé em Deus], de Norman Henry Snaith, The Epworth Press, Londres, Inglaterra, 1935, pp. 15, 22.

ERRO: 3 e 4.

Comentário:

Conforme mencionado no comentário à obra nº 7, cuja autoria também é de Snaith, só em ele dizer que os hebreus acreditavam que o Seol é o mundo dos espíritos dos mortos já encerra qualquer discussão acerca da possibilidade desse povo ter sido aniquilacionista. Será que existe alguma dificuldade para entender isso? Parece que sim, ao menos para o autor do MB, pois no meu referido comentário eu citei a obra acima justamente para explicar que Snaith sabia que os hebreus não eram materialistas religiosos, visto que aquilo que está citado da obra 7 não deixa isso claro. No entanto, ao invés de se conformar com o fato, o autor do MB incluiu em seu rol de citações exatamente a obra a que me referi! Como se explicaria esse comportamento?

E com relação ao que Snaith disse sobre o Seol ser um mundo essencialmente morto, trata-se apenas daquilo que já falamos aqui dezenas de vezes, o mundo dos mortos, na antiga visão israelita, é um lugar sombrio no subterrâneo profundo da Terra onde seus habitantes são fantasmas errantes e sonolentos. Não é o cenário que um hebreu chamaria de vida. Aliás, ninguém chamaria. Mas mesmo assim são seres invisíveis (“espíritos”, “almas”, “sombras”, “fantasmas”) e conscientes de que existem e foram humanos que respiram oxigênio com sangue circulando nas veias (“almas viventes” na Terra). Características não mais presentes em sua nova realidade de existência.

89. Life After Death – The Biblical Doctrine of Immortality (1947)

“Qual é a doutrina bíblica sobre a vida após a morte? Os credos históricos da igreja usam a frase ‘ressurreição do corpo’. O que significa isso? Muitos cristãos creem na imortalidade da alma. É isso, na prática e na interpretação, a mesma coisa que a frase nos credos? Em todo caso, será que isso é a doutrina bíblica?... Nem aqui nem em lugar algum da Bíblia há qualquer sugestão sobre uma alma imortal que sobreviva à morte. Nada sobrevive se não for levantado por Deus, e a condição é que o homem deve estar ‘em Cristo’ e, desta forma ‘nascido do espírito’.”.

Life After Death – The Biblical Doctrine of Immortality [A Vida Após a Morte – A Doutrina Bíblica da Imortalidade], de Norman Henry Snaith, Interpretation: A Journal of Bible and Theology [Interpretação: Uma Revista Sobre Bíblia e Teologia], Vol. 1, nº 3, julho de 1947, pp. 309, 324.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Ao invés de citar duas obras de Snaith para “provar” o aniquilacionismo, por que então não citar três? E por que não quatro? Foi exatamente isso o que o autor do MB fez. A citação nº 100 também é de um livro de Snaith...

Apenas para reforçar, Snaith seguia rigorosamente o enfoque da Bíblia Hebraica sobre a palavra “alma”, que em quase todos os casos se refere a um corpo físico vivo que respira oxigênio, aspecto intrinsecamente ligado à própria etimologia da palavra nefesh. Ou seja, pouco tem a ver com a concepção grega. Então, neste caso, a “alma” realmente não sobrevive à morte, pois a “sombra” que subsiste não pode ser chamada de alma pelos que optam por esse preciosismo linguístico. E em reforço a essa visão o próprio mundo para onde a alma invisível vai não pode ser considerado verdadeira vida. Por isso Snaith relega essa realidade subjacente da existência humana a uma categoria sem importância que pode ser encarada como se nem existisse no entendimento hebraico. Porém ela existe sim, conforme está melhor explicado na obra nº 98, que certamente não deve ter surtido nenhum efeito na cabeça do “pesquisador bereano”.

De qualquer maneira, visto que as declarações de Snaith se aproximam perigosamente do aniquilacionismo e, por essa razão, são bastante apreciadas por quem acredita que a Bíblia ensina isso, assim como aconteceu no caso de Balfour (obra nº 82) houve quem publicasse textos acadêmicos contra as explicações de Snaith. É o caso de James Bear em seu artigo “É o Homem um Homem Imortal? – Uma Resposta”.

Por fim, para quem não sabe, Snaith é também autor de uma edição hebraica do Antigo Testamento. Ou seja, ele conhecia plenamente o texto hebreu e por ter esse conhecimento ele jamais poderia advogar o aniquilacionismo, ainda que ele desejasse fazer isso se fosse possível, pelo que se infere do constante discurso negativo dele, que desconsidera o avanço que houve na doutrina da alma na história judaico-cristã, aspecto abordado por Bear em seu artigo, e pelo próprio Snaith na obra nº 100!, ainda que de maneira mais limitada.

90. The Witness of Jesus, Paul and John: An Exploration in Biblical Theology (2008)

Trecho das páginas 299 e 300:

“O texto problemático é 2 Coríntios 5:1-10. Este texto, porém, é coerente com os dois primeiros quando descortinamos o que realmente se descreve. Para fazer isso, exponho em forma de quadro os pontos essenciais que Paulo estabelece neste trecho:

Esta vida

A Morte

O ‘Estado Intermediário’ (a)

A ‘Vida Vindoura’

‘gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação celestial’ (v. 2); ‘enquanto estamos no corpo’ (v. 6); ‘Longe do Senhor’ (vs. 6, 9)

‘se for destruída a temporária habitação terrena’ (v. 1); ‘ser despidos’ (v. 4)

‘não seremos encontrados nus’ (v. 3); ‘despidos’ (v. 4); ‘ausentes do corpo e habitar com o Senhor’ (v. 8)

‘temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna no céu, não construída por mãos humanas’ (v. 1); ‘nossa habitação celestial’ (v. 2); ‘revestidos da nossa habitação celestial’ (v. 4); ‘absorvido pela vida’ (v. 4); ‘todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo’ (v. 10)

“Paulo realmente descreve quatro condições possíveis que um crente pode experimentar. A primeira é a vida em corpos físicos marcados pela fragilidade e mortalidade. O cenário de uma tenda retrata efetivamente essa condição. A experiência da morte, a segunda possibilidade, é aludida sob as metáforas da tenda destruída ou de repente estar sem roupa. A severa realidade por trás das metáforas é a separação do espírito e do corpo na morte. O que não é tão claro, mas creio ser essencial para entender o pensamento de Paulo, é uma ligeira referência à terceira possibilidade: um estado intermediário, uma existência desencarnada após a morte e antes da parousia. Paulo usa a metáfora da nudez para estabelecer o ponto. Por fim, ele descreve a quarta possibilidade: a grande consumação da história redentora, a ressurreição de vida na era vindoura, onde o que é mortal é ‘absorvido pela vida’.

“Em suma, Paulo não ensina que um crente recebe o corpo da ressurreição na morte. Mas ele está tão certo de que os crentes receberão um novo corpo na parousia que ele usa o tempo presente ‘temos [echomen]’ em 2 Coríntios 5:1. Este é o uso futurista do tempo presente, um uso comum ao grego e ao inglês [e outras línguas modernas]. Na morte, a pessoa está ausente do corpo – isto é, no estado intermediário. Por um lado, Paulo prefere muito este estado a estar no corpo, visto que está ‘habitando com o Senhor’ (2 Cor 5: 8). Para isso, comparamos com Filipenses 1:23, onde ele diz que ‘partir e estar com o Cristo ... é muito melhor’. Por outro lado, esta não é a condição final. O que Paulo mais deseja é estar com Cristo na sua habitação celestial (ou seja, possuindo um corpo da ressurreição). Em consonância com a herança hebraica de Paulo, o propósito final de Deus para os seres humanos envolve a existência corpórea. O corpo da ressurreição é um corpo imperecível, glorioso, poderoso, espiritual e celestial – um enorme avanço em relação a um mero corpo físico – mas ainda é um corpo bem concreto e real”.

Nota de Larry Helyer (a) sobre o “Estado Intermediário” (terceira coluna):

“Sendo chamado de outras maneiras: ‘o terceiro céu’ (2 Cor 12: 2) ou ‘paraíso’ (2 Cor 12: 4) ou ‘seio de Abraão’ (Lc 16: 22-23 nota marginal da NRSV)”.

The Witness of Jesus, Paul and John: An Exploration in Biblical Theology [O Testemunho de Jesus, Paulo e João: Uma Exploração na Teologia Bíblica], de Larry R. Helyer, InterVarsity Press, Illinois, EUA, 2008, pp. 299, 300.

ERRO: 5.

Comentário:

Ao que parece, não há nada de errado com essas explicações de Larry Helyer, ainda que ele chame as realidades que sistematizou no quadro acima de “possibilidades” e em vários momentos de seu livro ele dê crédito a algumas explicações de Oscar Cullmann, um dos principais responsáveis pela introdução sorrateira do aniquilacionismo na teologia “progressista” do século 20. Infelizmente, hoje em dia, até teólogos que acreditam na sobrevivência imediata depois da morte parecem estar intimidados por esse movimento religioso que flerta com a concepção materialista, e acham que devem prestar alguma reverência aos que o promovem. Se não a todos, pelo menos os que têm fama e uma carreira acadêmica sólida e produtiva, como foram os casos de Paul Althaus (obra nº 5) e Cullmann (autor da obra nº 106, mencionada no apêndice H).

De qualquer maneira, será que Helyer acha que o ser humano que ‘geme e anseia por sua habitação celestial’ é apenas um ‘evento possível’? Ou de fato muitos cristãos nutrem tal sentimento? Se essa “possibilidade” se revela então um fato concreto, as outras da sequência esquemática são igualmente verdadeiras e não apenas uma abstração:

1) ...

2) A habitação terrena é destruída na morte e a pessoa fica “despida” (sem corpo físico), o que está de acordo com o aviso de Jesus, quando disse que o corpo morre, mas a alma permanece. – Mateus 10:28.

3) Mesmo nessa condição fora do corpo terreno, o cristão vai para a presença de Cristo, conforme foi descrito sobre as almas dos mártires em Apocalipse 20:4. Mas eles não são encontrados completamente “nus”, pois até mesmo a alma invisível possui um corpo, além de uma aparência humana (Lucas 16:22-24), mesmo não sendo ainda o corpo glorioso da ressurreição, que incluirá a matéria física e não só a substância espiritual.

4) Por fim, na ressurreição dos mortos, os crentes receberão de volta seus corpos físicos, porém transformados, para que estejam aptos a viver tanto no céu quanto na Terra, como foi o propósito original de Deus no Éden, lugar que ainda existe e aguarda o retorno da humanidade.

E ainda há uma quinta etapa que foi omitida por Helyer na referida escatologia bíblica:

5) Os injustos serão também ressuscitados e condenados à punição eterna na Geena ardente (“inferno”), onde “haverá choro e ranger de dentes”, tanto na alma quanto no corpo. – Daniel 12:2; Mateus 8:11, 12; 10:28; 25:45, 46.

Helyer explica em seu livro o provável motivo da omissão. Ele diz que esse é um tema delicado que tem sido revisto por diversos movimentos evangélicos, cujos integrantes acham que é um cenário muito draconiano achar que Deus vai torturar os ímpios para sempre, mesmo aqueles extremamente maus, e é muito mais coerente supor que tais pessoas vão ser simplesmente aniquiladas, conforme a primeira versão do aniquilacionismo de Arnóbio de Sica, no século IV, que acreditava na sobrevivência da alma após a morte do corpo, mas não no sofrimento eterno dos iníquos na Geena ardente, pois achava que eles seriam consumidos por suas chamas destrutivas e desapareceriam. No entanto, conforme Helyer reconhece, “o ensino de Jesus sobre a Geena dificilmente pode ser enquadrado nessa ideia” (Ibid., p. 157). Isto porque Jesus foi muito claro ao apresentar o cenário de punição eterna como real, e não uma figura de linguagem. Helyer também destaca este fato.

Mas, enfim, o que esse teólogo apresentou no trecho citado revela que ele não advoga o aniquilacionismo. Pelo menos não a versão materialista que o autor do MB defende. Se Helyer é um aniquilacionista a la Arnóbio de Sica, que não acreditava na punição eterna dos maus, isso não importa. E a nota de rodapé que foi omitida pelo autor do MB na citação reforça que Helyer realmente não está defendendo o materialismo “cristão”, pois nela o estado intermediário foi equiparado (1) ao paraíso para o qual Paulo foi arrebatado antes mesmo de morrer, e (2) também ao Seio de Abraão para onde o mendigo foi levado pelos anjos na parábola do rico e Lázaro.

No caso do arrebatamento de Paulo, Helyer informa que o testemunho paulino sobre esse acontecimento reflete a visão esotérica dos fariseus sobre o terceiro céu, um misticismo judaico chamado de merkabah (Ibid., p. 210). Conforme sabemos, além de cristão, Paulo era também fariseu e nunca disse que tinha abandonado a crença farisaica da existência da alma depois da morte do corpo. Ter o seu amigo Clemente de Roma informado que depois que Paulo faleceu ele foi para o céu atesta que a expectativa de Paulo era mesmo à da mudança imediata de domicílio. Não só dele, mas a de todos os cristãos daquele tempo. – Atos 23:6-10; 2 Coríntios 5:6-9; 1 Coríntios 26:1-3, de Clemente.

91. Implications of the Nature of Immortality for the Final Judgment (2014)

Trechos das páginas 5 a 10:

“Um dos fundamentos da doutrina tradicionalista do tormento consciente e eterno para os ímpios é a crença de que a alma humana é imortal e, assim, após o julgamento, ela deve ir para algum lugar... A evidência bíblica para o tormento eterno consciente será examinada numa seção posterior. Excluindo-se umas poucas referências possíveis, o Antigo Testamento não tem qualquer ensinamento bem desenvolvido sobre a vida após a morte. O conceito hebraico da morte gira em torno da natureza do Seol: ... Os hebreus dos tempos do Antigo Testamento não tinham quaisquer ideias positivas sobre o Seol. Tudo era negativo em vez de positivo. Se o Seol deve ser encarado como evidência da persistência de alguma coisa, é melhor pensar nele como a persistência da morte em vez da vida... [Para Platão a alma é] não gerada e eterna, ela existia antes de o corpo lhe dar habitação, e sobreviveria ao corpo também. Estar separada do corpo era a condição natural e própria da alma; estar aprisionada no corpo foi o castigo dela por faltas cometidas durante uma encarnação anterior.

“Os apologistas do segundo e terceiro séculos, como Inácio, Ireneu e Tertuliano, tomaram emprestados certos aspectos da alma imortal de Platão, com modificações... Os pais cristãos rejeitaram a história da transmigração da alma, mas aceitaram a imortalidade da alma individual, uma vez que a acharam conciliável com o conceito de Paulo sobre ressurreição e com a angelologia judaico-cristã, isto é, a existência de um mundo de seres imateriais... Tão lógico quanto esta ideia possa parecer, o fator importante é se as Escrituras ensinam a imortalidade inerente da alma... Conforme Snaith observa: ‘Nem aqui nem em lugar algum na Bíblia há qualquer sugestão de uma alma imortal que sobreviva à morte. Nada sobrevive a menos que seja levantado por Deus, e a condição é que o homem deve estar ‘em Cristo’, sendo assim ‘nascido do espírito’. A imortalidade não é inerente, mas está condicionada à fé em Cristo.

“Apesar do claro ensino bíblico, os tradicionalistas continuam a insistir nessa crença, mesmo ela não sendo encontrada na Bíblia, porque é necessário estabelecer a doutrina do inferno como um lugar de tormento eterno e consciente...

“As citações seguintes provam que esta posição se baseia mais na suposição do que na demonstração à base das Escrituras. Lehman Strauss afirma: ‘A Palavra de Deus assume a existência eterna de cada alma, independentemente do destino dela. A alma de cada homem é imortal e nunca pode ser aniquilada (ênfase adicionada).’ Shedd enfatizou que a imortalidade da alma ‘não é demonstrada formalmente em parte alguma, porque ela é presumida em todo lugar’, Goulburn insiste que ela ‘parece estar gravada no coração do homem quase tão indelevelmente como a doutrina da existência de Deus’, e Herman Bavinck insiste que a imortalidade da alma é uma doutrina bíblica, mas ela é mais bem demonstrada pela razão do que pela revelação. Claramente, a doutrina da imortalidade da alma carece de suporte bíblico, mas, como ela é um componente necessário da posição tradicionalista, ela deve ser mantida. Antes de passar a uma consideração dos dados bíblicos tanto a favor como contra o aniquilacionismo, é necessário examinar o significado da palavra grega αιωνιος (aionios), mais comumente traduzida como eterno”.

. . . .

“A questão é: será que aionios sempre significa eternidade temporal, ou tempo perpétuo, ou pode ter também um aspecto qualitativo, tal como pertencer à era vindoura? Fudge cita Emmanuel Petavel como afirmando que em ‘pelo menos setenta vezes na Bíblia, esta palavra qualifica  ‘objetos de natureza temporária e limitada’, de modo que significa apenas “uma duração indeterminada da qual o máximo é fixado pela natureza intrínseca da pessoa ou das coisas”.’ Daí ele cita uma série de coisas em que aionios (e seu equivalente hebraico, olam) se refere a coisas que chegaram ao fim:

. . . .

“Vemos aqui novamente a qualidade do “eterno” da outra era. Há algo transcendente, escatológico, divino sobre este julgamento, este pecado, este castigo e destruição, esta redenção e salvação. Eles não são meramente humanos, assuntos desta era, mas são de uma natureza totalmente diferente. No entanto, os contextos e conteúdos dos trechos das Escrituras em que aionios modifica as palavras julgamento, pecado, punição, destruição, redenção e salvação justificam a conclusão de que alguma coisa relativa a cada um deles jamais chegará ao fim.

“Em todos esses casos, eterno modifica um substantivo que é o resultado de uma ação, não uma ação em si. Assim, salvação eterna não significa que Deus esteja salvando para sempre seu povo, e sim que o resultado dessa salvação não terá fim. Da mesma forma, redenção eterna não significa redimir para sempre, e sim que os resultados duram para sempre. Do mesmo modo, o julgamento, a punição e a destruição eternas não significam que Deus julgará, punirá e destruirá para sempre, e sim que os resultados dessas ações durarão para sempre.

Implications of the Nature of Immortality for the Final Judgment [As Implicações da Natureza da Imortalidade para o Julgamento Final] (tese), de Norman H. Althausen, Liberty University Baptist Theological Seminary, Lynchburg, Virgínia, EUA, 2014, pp. 5-10.

ERRO: 1 e 4.

Comentário:

Ter o autor do livro dito que não há no Antigo Testamento um ensinamento bem desenvolvido sobre a vida após a morte, implica na admissão de que existe algum ensinamento. Só não tem a amplitude do que vemos no Novo Testamento ou mesmo na literatura judaica intertestamentária. O conceito de Seol e seus habitantes sombrios são bons exemplos dessa fase pouco desenvolvida da crença de vida após a morte.

E o que Platão ensinou a respeito disso vai muito mais além do que os escritores bíblicos disseram. Na visão platônica a alma é indestrutível, sempre existiu, alcança o céu por seus próprios méritos, é o verdadeiro eu e despreza o corpo físico, dentre outras coisas. Já na visão bíblica a alma apenas continua viva depois da morte. Mas sua existência contínua depende também da vontade de Deus, dentro do contexto da ressurreição do corpo, que será dado de volta à alma.

Resumidamente, é isso o que a obra acima está explicando. Para mais informações do contraste entre o ensino cristão e o de Platão, consulte os apêndices A e F.

92. Life and Immortality: An Examination of… (1969)

“Há catorze ocorrências da palavra psychee no Novo Testamento, significando um ser humano exatamente no mesmo sentido do hebraico nephesh, quatro das quais estão em citações do Antigo Testamento. As duas primeiras, que aparecem no mesmo versículo, são as mais importantes e exigem um exame especial. Em Mateus 10.28, lemos: ‘E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo.’ Neste texto, encontramos o contraste entre alma e corpo que às vezes ocorre no Novo Testamento, embora muito raramente no Antigo sob a forma de alma e carne. Nosso texto aqui isolado é facilmente capaz de querer dizer a sobrevivência da alma após a morte do corpo e nossos amigos que acreditam que a alma sobrevive normalmente o tomam nesse sentido. Se houvesse alguma palavra no Antigo ou no Novo Testamentos para conectar a sobrevivência ou a imortalidade com a alma, eles sem dúvida teriam razão. Mas um estudo cuidadoso do significado da palavra ‘alma’ na língua original do Antigo Testamento, e também do Novo como veremos, mostra que ela está sempre associada com um ser humano vivo na terra e que ela morre ou é destruída quando a morte chega para ele da maneira que é tão familiar à nossa experiência. Quando temos isso em mente, o significado das palavras do Senhor aqui fica claro. Matar o corpo aqui significa tirar a vida atual na Terra. Mas isso não mata a própria alma ou pessoa. Isto só a faz dormir. Ele é por fim destruído na segunda morte, quando sua pessoa ou o eu é morto para sempre. Todos concordarão que a destruição no inferno [geena] é a segunda morte, embora vamos deixar a discussão de sua natureza exata para nossa quarta seção. Em paralelo com este versículo está a declaração do Senhor de que a filha de Jairo não estava morta, mas estava dormindo (Mat. 9:24). Ela estava realmente morta (‘matar o corpo’), mas como ela iria acordar, poderia ser dito que estava dormindo. Da mesma forma, todos os mortos se levantarão no último dia, de forma que, como eles agora estão em seus túmulos, pode-se dizer corretamente que suas almas, isto é, eles mesmos não foram finalmente mortas ou destruídas. A morte que todos conhecemos é, como vimos, a morte da alma, mas ela não é definitiva.

“... O caso restante é Apocalipse 6:9, que necessita de estudo especial. As almas de que se fala aqui são muitas vezes encaradas como espíritos desencarnados dos mártires. Uma dificuldade está na estranha posição delas por baixo do altar e uma grande dificuldade no fato de que elas são ouvidas gritando por vingança como se todo o caráter e princípios tivessem sido alterados pela morte. Esses versículos são todos simbólicos em consonância com todo o Apocalipse. A chave do seu significado está no Levítico 17:14, onde a alma é identificada com o sangue. A passagem é paralela a Gênesis 4:10: ‘A voz do sangue de teu irmão está clamando a mim desde a terra.’ As almas são as pessoas mortas dos mártires (veja Números 5:2 e outros trechos em Números). As almas em Apocalipse 20:4 também foram ocasionalmente tomadas como espíritos desencarnados, mas a palavra enfatiza o contrário. As almas dos mártires e os justos são eles próprios restaurados na ressurreição do pó da morte e este é o uso da palavra que apresenta este fato e chama a atenção para ele.

Life and Immortality: An Examination of the Nature and Meaning of Life and Death as they are revealed in the Scriptures [Vida e Imortalidade: Um Exame da Natureza e do Significado da Vida e da Morte conforme são revelados nas Escrituras] (resumo, pdf), de Basil Ferris Campbell Atkinson, E. Goodman & Son Ltda., The Phoenix Press, Taunton, Inglaterra, 1969, pp. 12, 13.

ERRO: 5.

Comentário:

Afinal, a alma morre (no sentido materialista) ou fica dormindo? Nem uma coisa, nem outra. Em termos de existência ela sobrevive à morte e vai para o mundo invisível e inacessível chamado Hades ou Seol. E de maneira consciente aguarda a devolução do corpo físico (ressurreição). No caso das almas dos justos e fiéis, a alma pode ser levada para o céu. Esse é o ensinamento verdadeiramente bíblico. Quando o autor da obra supracitada se depara com versículos que demonstram tais fatos, a exemplo de Apocalipse 6:9 e 20:4, vemos que ele afirma que tais passagens ‘enfatizam o contrário’, pois todo o livro da Revelação seria simbólico. Além disso, falou que as almas dos injustos que estão “dormindo” serão destruídas. Diante de tais afirmações, nem precisaria ler o restante do que esse escritor escreveu para perceber que ele é aniquilacionista, com um discurso muito semelhante ao da obra nº 66 (de Samuelle Bacchiocchi).

Basil Atkinson realmente era um aniquilacionista, ou um “condicionalista”, conforme alguns preferem. Um nome inadequado neste caso, como foi visto na seção 7, pois não é o tipo de condicionalismo no qual Lutero acreditava, por exemplo, que estava mais próximo da concepção bíblica. Atkinson entabula as mesmas gastas afirmações dos que defendem o materialismo “cristão”: que a pontuação de Lucas 23:43 está errada, que Seol é apenas uma sepultura, que os maus serão extintos, que não existe Geena ardente etc. E também incorre nas mesmas contradições lógicas que resultam do entendimento errado das Escrituras. É o caso quando ele diz que os iníquos que morreram serão destruídos. Ora, se eles não existem mais, que sentido faz dizer que eles serão (futuro) erradicados da existência? Ou será que eles serão “ressuscitados” só para serem aniquilados de novo? Não seria melhor deixá-los do jeito que já estão? Ainda que sem nexo, e descontando as implicações filosóficas, certamente a ressurreição seguida de uma “nova” aniquilação “resolveria” o fato da Bíblia informar que eles serão realmente ressuscitados.

Sobre a afirmação de que as “almas” mencionadas em Apocalipse são simbólicas, Atkinson desconsiderou uma evidência básica das referidas passagens: o escritor bíblico usou uma linguagem “imortalista” para se referir a elas, ao dizer ‘almas dos que foram assassinados’. Além disso, mesmo havendo inegavelmente simbolismos em Apocalipse, determinadas informações são literais, mesmo apresentadas numa espécie de encenação visual. Ou será que Atkinson não acreditava que os anjos, demônios, o reino milenar ou o próprio Jesus que aparecem nesses mesmos textos não são reais? O mesmo ocorre com as “almas dos que foram” mortos. É como na parábola do rico e Lázaro. O evento pode ser fictício, mas ensina realidades existentes, a exemplo do Hades, local que Jesus disse que fica no “coração da terra”, o que denota grande distância e profundidade. – Mateus 12:40.

E uma peculiaridade nas explicações de Atkinson é que ele acreditava que no antigo Israel havia mesmo o conceito de que as “sombras” no Seol significam almas ou espíritos dos mortos em outro mundo, porém essa era uma falsa crença presente na nação e quando o termo “sombras” aparece no Antigo Testamento “deve ser” entendido apenas com o sentido de “mortos”, isto é, pessoas que não existem mais, da mesma maneira que Seol seria tão somente uma sepultura. Pelo visto, a Bíblia informar que o Seol é tão distante para baixo quanto o céu é para cima parece não ter tido nenhum efeito na cabeça de Atkinson. (Amós 9:2; Isaías 7:10, 11; compare com Salmo 139:8). O mesmo deve ter ocorrido também no versículo onde Jesus disse que uma cidade inteira desceria para o Hades. – Mateus 11:23.

Esse breve exame da teologia de Atkinson demonstra que ele é apenas mais uma prova, ainda que de feição mais erudita, de que não há limites para uma pessoa que não quer enxergar a visão bíblica da maneira que ela realmente é, mas apenas da forma que um homem moderno gostaria que fosse. Ah, e Atkinson também disse que o espírito que apareceu para Saul em Endor era um demônio embusteiro. Para ver uma análise realmente séria sobre tal episódio consulte o apêndice C e o livro lá indicado.

93. Das Kommen Gottes: Christliche Eschatologie (1995)

“A imortalidade da alma é uma opinião – a ressurreição dos mortos é uma esperança. A primeira é uma confiança em algo imortal no ser humano, a segunda uma confiança no Deus que chama à existência coisas que não existem, e faz os mortos viverem. Confiando na alma imortal, aceitamos a morte e, de certo modo, a antecipamos. Confiando no Deus criador da vida, esperamos pela superação da morte: ‘Engolida foi a morte pela vitória’ (1 Co 15,54) e por uma vida eterna em que a ‘morte não mais existirá’ (Ap 21,4). A alma imortal pode até saudar a morte como ‘amiga’, porque esta a redime do corpo terreno; para a esperança da ressurreição, a morte é ‘o último inimigo’ (1 Co 15,26) do Deus vivo e das criaturas do seu amor”.

Das Kommen Gottes: Christliche Eschatologie, de Jürgen Moltmann, Gütersloher Verlagshaus, Alemanha, 1995 (Em inglês: The Coming of God: Christian Eschatology, Fortress Press, Minneapolis, EUA, 1996. Em português: A Vinda de Deus: Escatologia Cristã, Unisinos, Rio Grande do Sul, Brasil, 2003), p. 82.

ERROS: 1 e 5.

Comentário:

Considerando o que o platonismo ensinava, o comentário de Moltmann está basicamente correto. E o que não existe depois da morte é o homem qual ser físico e que respira. Mas ele vai espiritualmente para o Hades ou para a presença de Cristo, como já foi considerado exaustivamente em outras partes deste livro.

Conforme já visto no comentário à obra nº 86, que também foi escrita por Jürgen Moltmann, este autor não é aniquilacionista e acredita na sobrevivência imediata depois da morte, ainda que evite explicar isso usando a linguagem grega e goste dos discursos monista ou integralista que foram abraçados por muitos teólogos modernos.

94. Nuevo Diccionario Ilustrado de la Biblia (1998)

ALMA Termo que no Antigo Testamento é tradução do substantivo hebraico nefesh, o qual por sua vez é derivado do verbo nafash (respirar, refazer-se)... Talvez o significado original de nefesh tenha sido ‘garganta’ (canal da respiração) ou ‘pescoço’, como o acadiano napishtu, pois este sentido é preservado em textos do Antigo Testamento, como Sal. 69:1 e Jon. 2:7. Daí vem o sentido de ‘fôlego’ de vida... Em contraste com o pensamento filosófico grego (Platão, por exemplo), é notável que o Antigo Testamento jamais fala da imortalidade da alma. Pelo contrário, diz-se que a nefesh morre (Num. 23:10; Jui. 16:30, donde nefesh é traduzida como ‘eu’). A nefesh não é algo distinto do corpo que desce para o SEOL, e sim o ser humano completo (Sal. 16:10; 30:3). Os habitantes do Seol não são chamados de ‘almas’ nem de espíritos, e sim de ‘mortos’ (refaim em Sal. 88:10; metim em Isaías 26:14, 19). Hoje em dia é comum reconhecer muitas provas no Antigo Testamento para a doutrina da sobrevivência humana após a morte, mas estas provas levam mais diretamente a um ensino sobre a pessoa completa e não a alma no sentido platônico... Por fim, como princípio da vida, psyche indica em alguns textos a sede de uma vida que transcende a vida terrena. Este uso, muito parecido com o de alguns filósofos gregos (Platão, por exemplo), tem certa base em algumas declarações de Jesus (Mat. 10:28, 39; Mar. 8:35-37), mas se desenvolve nos escritos posteriores (Heb. 6:19; 10:39; 13:17; 1 Ped. 1:9, 22; 2:11, 25). ‘Alma’ chega a significar, inclusive algo imortal, distinto do corpo (Apoc. 6:9; 20:4). Porém, a necessidade da RESSURREIÇÃO corporal (Rev. 20:4 em diante) não é negada. Seria muito arriscado interpretar 1 Tes. 5:23 como um ensinamento da tricotomia grega (compare com Heb. 4:12); isto é mais diretamente um modo de enfatizar a pessoa completa (‘todo o vosso ser’) como objeto da santificação (Deut. 4:6; Mar. 12:30)”. – Verbete “Alma”, pp. 351-378, 386 em diante.

IMORTALIDADE (em grego, athanasia). Termo usado na literatura e mitologia gregas e que se tornou popular na época de Sócrates (470-399 AC) e Platão (427-347 AC). Era aplicado aos deuses gregos, a quem se atribuía a qualidade de ser imortal... Originalmente este termo nunca se referiu ao que hoje se entende por imortalidade da ALMA. Foi com o surgimento da escola platônica que este conceito se converteu em dogma.

“No Antigo Testamento não se encontra um termo equivalente a imortalidade; porém, o conceito de sobrevivência após a MORTE  é claro. A ideia da imortalidade no pensamento hebraico surge do conhecimento do Senhor, o Deus vivo dos hebreus, e sua relação com os homens e, portanto, com a morte. O homem afirma sua sobrevivência post mortem pela certeza da eternidade de Deus... Do exposto, fica claro que o Antigo Testamento mostra um desenvolvimento gradual do conceito de imortalidade dentro do pensamento hebraico. Nos períodos intertestamentário e neotestamentário, existiam três correntes:

“Na literatura mais antiga (Gen. 15:15; 25:8; 37:35; 49:29) surge a ideia de uma sobrevivência parcial (uma projeção ou sombra vaga). A personalidade humana não perecia inteiramente, mas continuava a existir passivamente em uma região escura denominada SEOL. Faltava-lhe o ‘fôlego de vida’ (Gen. 2:7) e ela permanecia em uma solidão existencial, sem relacionamento com Deus e com os outros homens... Porém, ainda não havia surgido a ideia de retribuição no além-túmulo; as recompensas e punições são recebidas nesta vida (Deut. 7:12, 13).

“Na literatura sapiencial (Jó, Salmos, Eclesiastes) surge o clamor por justiça dos justos ansiavam à beira da morte e não tinham experimentado a alegria da bênção divina. É manifesto que a vida terrena é insuficiente para recompensar os justos e punir os ímpios, e daí surge a ideia de uma inter-relação Deus-justo. O justo não se preocupa com o que acontece depois da morte, a não ser sua comunhão com Deus; ele está convicto de que a morte não pode destruí-lo. Mais ainda, surge a ideia de um retorno à vida, uma RESSURREIÇÃO... O injusto, por outro lado, está condenado a uma morte eterna (Sal. 49 e 73).

“Estas ideias se acentuaram ainda mais depois da catástrofe política do povo judeu durante o cativeiro, quando o conceito individualista de retribuições e punições tornou-se mais popular e os conceitos de imortalidade e ressurreição atingiram sua maturidade (Isa. 24:21; 25:8; 26:19; 27:13; 53:8, 10; Eze. 37; Dan. 12:2; Ose. 6:1ss). Esta nova ênfase encontra-se mais difundida nos livros extracanônicos (confira 2 Mac. 7:9ss; As Parábolas de Enoque, Baruque e o Testamento dos Doze Patriarcas). Nesta linha continuaram os que se mantiveram no pensamento judaico tradicional, segundo o qual não era possível dividir a personalidade humana em corpo e alma. Nunca ALMA (nefes) nem Espírito (ruach) significaram entidades capazes de existir isoladas do corpo após a morte. O Antigo Testamento resistiu à influência da religião cananéia que celebrava ritualmente o constante retorno à vida de um deus que simbolizava a natureza. Contudo, estudos recentes na literatura de UGARIT revelam semelhanças linguísticas e literárias fascinantes com os nossos Salmos, especialmente em torno dos conceitos de imortalidade, paraíso, ressurreição e ascensão (confira Sal. 1; 17; 23; 30; 49; 73; 91).

“Por outro lado, aparece o pensamento judaico-alexandrino, carregado de filosofia greco-platônica, e o conceito da imortalidade se desenvolve impregnado da ideia dualista da pessoa (corpo e alma). Uma vez que a alma é imaterial, invisível e eterna (já que existe antes do corpo), ela não pode experimentar a destruição. O corpo, por ser visível, finito e material, está destinado à destruição. Esta linha de pensamento se manifesta sobretudo na literatura apócrifa (Sabedoria de Salomão 3:1ss; 9:15; e 4 Mac.), donde o conceito da imortalidade da alma aparece como dogma.

“A outra linha de pensamento, apoiada pelos SADUCEUS, era mais radical e rigorosa: não há imortalidade, porque o homem não sobrevive além da morte (Mar. 12:18).

“O Novo Testamento reafirma a imortalidade de Deus (1 Tim 6:16). Quanto ao homem, tanto o ensinamento de Jesus (Mat. 7:14; 18:8s; 19:17; 22:23ss; Luc. 16:24; João 11:23ss) como o de Paulo (Rom. 6:22; 2 Cor 5:4) enfatizam a VIDA além-túmulo, especialmente para os que creem em Cristo. Entretanto, esta vida não é atribuída à imortalidade do homem, e sim à RESSURREIÇÃO do corpo, a qual Deus vai realizar em virtude da ressurreição de Jesus Cristo (1 Cor. 15, passim)”. – Verbete “Imortalidade”, pp. 386-424.

Nuevo Diccionario Ilustrado de la Biblia [Novo Dicionário Ilustrado da Bíblia], de Wilton M. Nelson, Nashville, TN, EUA: Caribbean Editorial, 1998.

ERROS: 1 e 3.

Comentário:

Outro caso em que os trechos citados são suficientes para notar que o aniquilacionismo não está sendo ensinado. Basta ter em mente o que realmente significa a doutrina grega da imortalidade da alma e o contraste dela com o ensino bíblico, cujos aspectos estão parcialmente indicados nos destaques em azul na citação.

A ênfase da Bíblia hebraica dada à “alma vivente” que morre quando o corpo físico deixa de funcionar não elimina o que tempos depois Jesus explicou, de que quando a alma carnal morre (“corpo”), a alma invisível permanece (“alma”). – Mateus 10:28.

95. Themes in Old Testament Theology (1989)

Trechos das páginas 185 a 190:

“Nossos comentários sobre a esperança profética demonstraram que a esperança do Antigo Testamento era de natureza coletiva. O mesmo vale quando voltamos nossa atenção para o conceito da vida após a morte: a imortalidade é primeiramente do grupo e, em seguida, do indivíduo. Só quando uma pessoa está dentro do povo de Deus ela pode ter a certeza da vida eterna... Todos os povos do mundo entendem que a morte é o fim natural da vida na Terra. Como diz a Epopeia de Gilgamés: ‘Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em suas próprias mãos’. Todavia, no Antigo Testamento, a morte está associada com o pecado, e isso reflete algo antinatural no mundo como ele existe, algo sobre o qual só Deus pode triunfar... os judeus compartilhavam um conjunto de ideias sobre a morte que eram comuns a todo o mundo semita. Pela simples observação pode-se ver que a morte pode ser uma falta de vigor (às vezes apenas falta de alento, Salmo 104:29) ou a redução da vitalidade física que nos faz pensar em dormir... A vaidade melancólica do Eclesiastes assenta-se no fato de que todas as atividades findam no túmulo. Só os vivos têm esperança (Eclesiastes 9:4). Em parte alguma do Antigo Testamento a morte é simplesmente a porta para o paraíso (Jacob, 299). Seu perfil de inimiga é evidente em todos os lugares... Como regra geral, no Antigo Testamento não se faz distinção entre a morte física e a espiritual; o homem, como um todo, está sujeito à morte... Assim, Moisés pôde dizer: ‘Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência’ (Deuteronômio 30:19). Embora isto se refira à vida terrena, é claro que também tem implicações para a vida após a morte...

“... Embora o homem pudesse escolher a vida, era Deus quem devia dá-la. Deus é o que mata e mantém vivo (Deuteronômio 32:39). É Ele que faz descer ao Seol e quem faz subir de lá (1 Samuel 2:6). Todavia, não há nada no Antigo Testamento que conduza ao fatalismo... O lugar dos mortos no Antigo Testamento, o Seol, é frequentemente representado em termos visíveis como uma existência sombria e carente de dinamismo. Também neste aspecto, os hebreus compartilhavam muitas de suas ideias com seus vizinhos no Oriente Médio. O Seol não é identificado com lugar algum. Em vez disso, ele é considerado mais como um tipo de existência que, no caso dos hebreus, é basicamente oposta a Deus. O Seol é o lugar de sobrevivência desnuda. A pessoa dorme com seus pais (Gênesis 37:35 e 1 Reis 2:10). É um lugar onde o louvor é impossível (Isa 38:18 e Salmo 6:5). Ele está fora do escopo da terra e de suas instituições; mas não está fora do âmbito de Deus (Sal. 139:7-12; Amos 9:2). Ao passo que se trata dum local sem esperança do ponto de vista humano, Deus pode resgatar do poder do Seol aqueles que confiam nele (Sal. 49:15).

“Mas, qual é o significado da esperança de que Deus não permitirá que seu povo desça ao abismo? Não há convicção de que a alma sobreviva, apesar de o corpo morrer. Edmond Jacob chega ao ponto de dizer: ‘Não há qualquer texto bíblico que autorize afirmar que a ‘alma’ se separa do corpo no momento da morte’ ([Dicionário Bíblico do Intérprete], 1803). Não, assim como observa Eichrodt, a esperança de Israel era bem completa para ter uma realização de qualquer tipo no âmbito do espírito apenas. Ela exigia a renovação da vida corpórea e terrena, tal como era conhecida. (Eichrodt, 1, 491).

“... As ideias de vida eterna no Antigo Testamento têm sido difíceis de avaliar. Tradicionalmente, os eruditos sempre acreditaram que, embora os judeus tivessem certo senso vago de imortalidade, não tinham qualquer  ideia clara da ressurreição. Recentemente, Mitchell Dahood usou paralelos ugaríticos em seu estudo dos Salmos, para mostrar uma esperança muito mais plena de confiança na ressurreição e na imortalidade... De modo primário, vemos isso em três temas distintos que ganham força nas páginas do Antigo Testamento e conduzem, quase inevitavelmente, à doutrina da ressurreição do Novo Testamento. No entanto, para que isso fique bem claro, precisamos do exemplo concreto de nosso precursor na morte e na ressurreição, o nosso Senhor Jesus Cristo.

“Apesar de ser possível desenvolver amplamente os fundamentos teológicos da vida eterna, é suficiente observar que o conceito que o Antigo Testamento tem sobre Deus assegurava a sobrevivência daqueles que confiavam nele. Esta crença enraizava-se na convicção de que Deus é a única fonte da vida, que a dá e a tira... Por conseguinte, quando a pessoa encontra Deus e começa a compartilhar a vida dele, ela adquire um elemento indestrutível. Isto é representado de muitas maneiras diferentes nos Salmos e Provérbios... Assim, mesmo que jamais haja quaisquer falsas ilusões quanto à fraqueza humana e sua propensão à morte, há uma forte confiança de que Deus protegerá aqueles que confiam nele. ‘Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre.’ (Salmo 73:26). Note-se o uso de ‘para sempre’. Isso significa que a força dele é tal que a sua proteção não tem limites. Deve tratar-se simplesmente de que a pessoa que teme a Jeová não verá o Seol (Salmo 16:10, 11). Isso não aparece em nenhum lugar com mais beleza do que no Salmo 23: ‘Jeová é o meu pastor’. Embora passarei por vales que evocam a morte, confessa o salmista, eu experimentei a maravilhosa providência de Deus a tal ponto – minha mesa está bem sortida e meu cálice transborda -, que creio que a bondade e a misericórdia me perseguirão; não posso fugir disso. (Dahood,1, 148-49). O corolário simples é que certamente habitarei para sempre na presença de Deus (note-se um paralelo no Novo Testamento, em João 14:1-3).

A fonte do fundamento ético para a vida eterna é a ideia de retribuição do Antigo Testamento que vimos antes e que se torna particularmente evidente nos textos sobre a sabedoria... podia-se ter como certo que Deus recompensará os justos com a vida. A verdade deve prevalecer, devido à ordem das coisas. Este é o sentido de retribuição que está por trás da súplica de Jó... Jó sabia que mesmo depois de sua carne ser destruída (versículo 26), a vindicação de Deus o preservaria. É como se, por inspiração do Espírito, ele tivesse ido além do que ele sabia, a uma verdade que sua experiência com Deus tornava necessária, a verdade de que a proteção de sua carne por Jeová, depois de sua morte, seria uma vindicação da ordem justa do próprio Deus. Neste ponto, a fé do Antigo Testamento atinge o próprio limiar da revelação adicional de Deus em Cristo”.

“Já enfatizamos anteriormente em nosso estudo a qualidade ‘terrestre’ da fé de Israel. Eles não tinham que especular sobre como Deus trataria seu povo, porque eles tiveram ampla oportunidade de apreciar isso com seus próprios olhos... Tudo isso deu-lhes confiança de que Deus os livraria no futuro também. A experiência que tinham do cuidado real e providência de Jeová os fez acreditar naturalmente que Deus iria preservá-los... Eles também tinham diante de si o exemplo de Enoque e Elias, os homens que haviam andado com Deus e que gozavam de sua proteção especial. Tudo isso fazia com que os hebreus, quando refletiam no futuro, acreditassem que a vitória final de Deus certamente incluiria o triunfo final sobre a morte. Eles não tinham qualquer ideia clara sobre como é que Deus faria isso; mas eles não tinham dúvida de que Ele faria. O ajuste final de contas, como observou Isaías, incluirá a destruição da morte para sempre (Isaías 25:8). Associando isso à vinda de Miguel e à época da tribulação, Daniel diz: ‘Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão’ (Daniel 12:2).

Não se trata de negar a realidade e o terror da morte, e sim de colocar as coisas em perspectiva. Quando se entende plenamente o caráter de Deus, quando se observa o modo como a ordem moral do mundo funciona, quando se vê Deus libertar seu povo, considera-se, no final de tudo, que a morte é algo pequeno e fraco, do ponto de vista de Deus. Quando chegar a vitória final, não há dúvida alguma de que a própria morte será eliminada. Porém, o Antigo Testamento também neste caso parece estar de sobreaviso; ele busca um complemento e uma encarnação de tudo o que se sabe com certeza que é a verdade. Esta encarnação é a nova criação que Cristo veio a revelar. A verdade que eles só conheciam em parte, Cristo veio iluminá-la ainda mais: que por sua morte e ressurreição, nós podemos ser o seu povo e Ele o nosso Deus, para sempre”.

Themes in Old Testament Theology [Temas na Teologia do Antigo Testamento], de William A. Dyrness, Inter-Varsity Christian Fellowship, EUA, 1979 (Em espanhol: Temas de la Teologia del Antiguo Testamento, traduzido por Agustín S. Contin, Editorial Vida, Miami, Flórida, EUA, 1989), pp. 185-190.

ERROS: 3 e 4.

Comentário:

Novamente, outro caso que não é preciso dizer nada. Basta ler e entender o que a referência supracitada está dizendo. Ao contrário de advogar o aniquilacionismo ela está dizendo claramente que a Bíblia ensina que há sobrevivência depois da morte, ainda que esta crença tenha passado por etapas de desenvolvimento e a ressurreição do corpo físico seja um aspecto sempre presente nela. Essa é que a perspectiva correta do assunto.

96. How Came Our Faith: a Study of the Religion of Israel... (1948)

“Quando um homem morre, o que acontece? Obviamente, para o pensamento hebraico, sua nephesh não existe mais; pois essa palavra significava unicamente o Ser causado pela coexistência do fôlego ativador com carne, ossos e sangue. O corpo morto dele, de carne e sangue deve ser enterrado na sepultura, e então retorna ao pó da terra. Seu fôlego-vitalidade (ruach ou neshamah) retorna a Deus que o deu.

How Came Our Faith: a Study of the Religion of Israel and Its Significance for the Modern World [Como Nossa Fé Chegou: Um Estudo da Religião de Israel e seu Significado para o Mundo Moderno], de William Alexander Leslie Elmslie, Charles Scribner's Sons, Nova Iorque, EUA, 1948, p. 124.

ERRO: 3.

Comentário:

Considerando o significado predominante dado à palavra “alma” no Antigo Testamento, a nefesh realmente deixa de existir depois que morre, ou seja, o ser de carne e osso que respira e tem sangue circulando nas veias. Porém isto não se refere à alma que deixa o corpo no momento da morte (Gênesis 35:18) e vai para o Seol (Salmo 16:10). Essa outra alma permanece, conforme Jesus disse . – Mateus 10:28.

Então, da perspectiva bíblica o comentário da obra acima está correto e não diz respeito à inexistência completa de quem morre. Até porque o seu autor sabia que no antigo Israel não havia esse conceito de aniquilação completa depois da morte, por isso era difícil banir completamente a prática da necromancia. Sobre isso, Elmslie disse:

“Os hebreus, desde os tempos mais antigos, acreditavam vagamente que uma continuação de aparência fantasmagórica da individualidade aguardava tanto os bons quanto os maus no mundo do Seol. Mas essa existência não foi considerada como ‘vida’ em qualquer sentido verdadeiro. Certamente não se pensava que um homem pudesse receber a recompensa de seus méritos no Seol, a terra das sombras. O Seol não oferecia nenhuma solução, ou mesmo alívio, do enigma moral que enfrenta o sábio. Se houvesse uma reivindicação divina da moralidade, em sua opinião, devia ser mostrada na Terra, seja no tempo da vida do próprio sofredor, seja no de seus filhos. No período em que estamos considerando, a razão e a intuição já estavam encaminhando os pensadores judeus para uma doutrina superior da imortalidade humana. Mas nenhum vestígio da grande concepção libertadora apareceu nos provérbios [com exceção talvez de Provérbios 14:32, conforme nota de Elmslie]”. – Studies in life from Jewish proverbs, 1917, de William Alexander Leslie Elmslie, p. 190, colchetes acrescentados.

Lembrando que não ser a existência no Seol uma verdadeira vida é apenas no sentido de que lá não existe alegria e tudo o que costuma satisfazer o ser humano. Os hebreus acreditavam que esse lugar e seus moradores existiam literalmente. Apenas não nutriam qualquer interesse por ele, devido às circunstâncias que concebiam sobre esse mundo distante.

97. The Siege Perilous: Essays in Biblical Anthropology and Kindred Subjects (1956)

O que o Cristianismo Herdou do Judaísmo?...

“A forma como a Igreja recebeu e continuou a manter a crença na ressurreição foi, e continuou sendo judaica. O falecido professor H. Wheeler Robinson bem enfatizou esta conexão:

‘É uma vida na terra, porém com novas condições, e é uma vida de ressurreição, envolvendo a restauração do corpo morto. Esta forma de crença é considerada como inevitável, a partir do momento em que entendemos o conceito hebraico da personalidade; uma ressurreição do corpo era a única forma de triunfo sobre a morte que a psicologia hebraica poderia conceber para os que estão realmente mortos. Até S. Paulo recua diante da ideia da existência sem corpo.’ (Inspiration and Revelation in the Old Testament [Inspiração e Revelação no Antigo Testamento], págs. 101-2).

“A doutrina grega da imortalidade, que encontra sua primeira expressão judaica na Sabedoria de Salomão, e que concebe uma imortalidade da alma à parte do corpo, não ocorre no Novo Testamento nem nos Credos. Até os Pais Alexandrinos parecem presumir a identidade do ‘corpo espiritual’ mencionado por São Paulo com o corpo terrestre, sem, porém, explicar a natureza da identidade. O valor permanente deste elemento da herança judaica é, no mínimo, aberto à questão, e o Quarto Evangelho parece representar uma tentativa de reinterpretar a escatologia cristã primitiva e, especialmente, a expectativa da Parousia, de modo a remover alguns dos seus aspectos menos desejáveis’.”

The Siege Perilous: Essays in Biblical Anthropology and Kindred Subjects [O Cerco Perigoso: Ensaios em Antropologia Bíblica e Assuntos Afins], de Samuel Henry Hooke, S.C.M. Press, Londres, Inglaterra, 1956, pp. 201, 202.

ERRO: 1.

Comentário:

Mais um exemplo que basta conhecer um pouco a literatura patrística e aquilo que os gregos ensinavam sobre a alma. Assim o leitor entenderá que a Igreja a que Samuel Hooke se refere está inserida em um período que vai muito além do século I e que a ressurreição mencionada no credo apostólico, por exemplo, cuja versão resumida todo católico sabe de cor, era entendida pelos cristãos primitivos como a devolução do corpo físico para a alma que sobrevive à morte, mas que não é imortal na acepção grega.

E para saber o provável motivo do espanto de Hooke ao constatar que até o apóstolo Paulo viu a necessidade de um corpo depois da morte, clique no link que aparece no referido comentário.

98. The Perfectibility of Human Nature in Eastern and Western Thought (2008)

Trechos das páginas 30 a 32, 37, e 56 a 58:

“O período bíblico no pensamento hebraico vai do êxodo dos judeus do Egito e do estabelecimento de uma aliança com Moisés por Deus em 1447 AEC até a destruição de Jerusalém e do Segundo Templo pelos romanos em 70 DC. Os estudiosos do pensamento bíblico identificam quatro conceitos básicos sobre a natureza humana. [1] Primeiramente, uma pessoa é considerada como um corpo vivo com várias qualidades, mas sem qualquer distinção pontual entre corpo e alma... [2] Em segundo lugar, a consciência não se centralizava no cérebro, como é o caso no pensamento moderno. Para os hebreus, a consciência humana, com suas qualidades éticas, era encarada como estando difundida por todo o corpo, de modo que a carne e os ossos, bem como a boca, o olho, o ouvido, a mão e assim por diante, tinham uma ‘quase-consciência’ por si mesmos. [3] Em terceiro lugar, estas ‘consciências separadas’ eram encaradas como sendo facilmente suscetíveis a todos os tipos de influências externas, desde a posse por demônios (como no caso de uma dor de dente) até a invasão e o controle pelo Espírito de Deus (como no caso dos profetas). [4] Em quarto lugar, há também a ideia de um fantasma ou duplicata (que não deve ser necessariamente identificado com a alma) – uma réplica fraca e sombria para o eu, como o fantasma de Samuel, descrito pela ‘feiticeira de Endor’ (1 Sam 28:14) como ‘um homem idoso’, envolvido na contrapartida fantasma pelo manto familiar usado na vida. Este eu débil ou ‘sombra’, como se chamava em hebraico, pode ser separado até mesmo dos vivos e é visto por outros em seus sonhos, ao passo que depois da morte ele passa para a caverna do Seol sob a terra.

“Além desses quatro conceitos básicos, o hebraico bíblico usa certos termos-chave para descrever a natureza humana. A palavra hebraica nephesh é geralmente traduzida para o inglês [e outros idiomas modernos] como ‘alma’, mas isto é inadequado e enganoso. A análise literária do uso de nephesh na Bíblia hebraica mostra três significados distintos... [1] princípio da vida, sendo o fôlego [ou respiração] o significado subjacente... [2] ‘eu’ ou ‘pessoa’, como no Salmo 3:2 ‘Muitos estão dizendo sobre minha nephesh [eu], não há libertação para ele em Deus’. Aqui não há referência à vida interior do salmista como distinta de seu corpo externo, e, portanto, ‘alma’ é uma tradução errada... [3] ‘consciência humana’ em todo o seu alcance, como em Jó 16: 4; ‘Eu poderia falar como vós falais se vossa nephesh estivesse no lugar da minha nephesh.’... é fortemente identificada com o corpo, seus órgãos, especialmente o coração, e seu sangue como o princípio ativador da vida”.

. . . .

“... não devemos ser influenciados pelo dualismo corpo-alma do pensamento grego. Para o hebraico bíblico, nephesh (alma-fôlego), ruach (espírito) e basar (carne) são concebidos juntos como uma unidade psicofísica – a personalidade humana como um corpo animado... O pensamento na antiguidade não tinha conhecimento de um sistema nervoso central, e os hebreus bíblicos (assim como outros da época deles) distribuíam os poderes psíquicos que situamos na mente para várias partes do corpo, incluindo todos os aspectos da ‘carne’ e do ‘osso’... para os hebreus bíblicos, a natureza humana é entendida como um complexo de partes que deriva sua vida e atividade de um nephesh/ruach, que não possui existência à parte do corpo. O aspecto mais importante da natureza humana, além da unidade psicossomática, é a sua constante abertura à influência ‘espiritual’ de fora...

“... Essa ideia dos seres humanos constituídos por três partes, abriu o caminho para que o conceito psicossomático hebraico da natureza humana começasse a se aproximar mais do entendimento dualista corpo / alma grego. Por exemplo, o rabino Simai sugere que na criação de um humano a alma é proveniente do céu e o corpo da terra. E Filo, seguindo Platão, descreve a natureza humana como tendo três partes: ‘o corpo que é proveniente do barro, a vitalidade animal que está ligada ao corpo e a mente que é instilada na alma, sendo essa a mente divina.’... Em última análise, porém, a alma precisa ser liberta do corpo. Este é o conceito de Filo, e ele é essencialmente dualista e grego. Os rabinos rejeitam uma mudança tão extrema e encaram a relação entre as partes terrestres (dos pais) e a parte divina da natureza humana de maneira mais positiva. Para os gregos, o objetivo final é a libertação da alma do corpo, mas para os rabinos, a perfeição e a ascensão humana são alcançadas por se seguir as leis da Torá e pela realização de boas ações...

“... Os Evangelhos indicam que os conceitos de Jesus em relação à natureza humana são essencialmente as da Bíblia hebraica ou do Antigo Testamento (veja o capítulo 3)... Jesus frequentemente usa os termos ‘carne’ e ‘corpo’ para representar a personalidade completa, como, por exemplo, em Mateus 5:29 ‘e não seja todo o teu corpo lançado no inferno’... O entendimento da natureza humana que perpassa ao longo dos ensinamentos de Jesus é a da Bíblia hebraica...

Assim como Jesus, Paulo adota o conceito hebraico básico ou o do Antigo Testamento sobre a natureza humana. Os seres humanos são criados por Deus como uma unidade mente-corpo-espírito e à imagem de Deus... Paulo usa palavras-chave ao conduzir sua análise. Ele usa várias palavras para ‘desejo’, que frequentemente combina com ‘carne’ para obter ‘desejos da carne’. Aqui é importante notar que Paulo não está separando o corpo da alma ou espírito e identificando os desejos iníquos de uma pessoa com seu corpo, como nos conceitos dualísticos gregos da natureza humana. Em vez disso, Paulo usa ‘desejos da carne’ de uma maneira poética como uma maneira de falar de todos os desejos...

“Paulo usa também o termo ‘corpo’ em um sentido poético semelhante. Em Romanos 6:12, por exemplo, ele diz: ‘Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em seus desejos’. Aqui, ‘corpo’ tem em muito o significado de ‘carne’ como descrito acima. De fato, Paulo usa os termos ‘carne’, ‘corpo’ e ‘pecado’ intercambiavelmente, para significar essencialmente a mesma coisa... Paulo afirma claramente que, embora ele queira fazer o bem que encontra dentro de si, sem a graça de Deus que recebeu por meio de seu Senhor Jesus Cristo, ele permanece sob o domínio dos desejos pecaminosos da carne... No meio está um ‘eu’ consciente que possui livre arbítrio à sua disposição. Mas a capacidade de escolher obedecer é constantemente obstruída pelo desejo”.

The Perfectibility of Human Nature in Eastern and Western Thought, [A Perfectibilidade da Natureza Humana no Pensamento Oriental e Ocidental], de Harold Coward, Albany: Editora da Universidade de Nova Iorque, EUA, 2008, pp. 30-32, 37, 56-58, versão on line.

ERROS: 1, 3 e 4.

Comentário:

Mais uma vez, o próprio trecho citado demonstra de maneira clara que os antigos hebreus não eram aniquilacionistas (note os destaques em azul e amarelo), mesmo que não possuíssem ainda a noção mais completa do Cristianismo, a respeito da vida após a morte, que diferia substancialmente da doutrina grega sobre a alma. O único ponto seguramente em comum é que os primeiros cristãos e os platonistas acreditavam ambos que algo do homem sobrevive à morte. Mas os gregos ampliaram essa ideia com muitos elementos estranhos à antiga noção cristã. Veja mais detalhes nos apêndices A e F.

99. The Hopes of the Church of God – In Connection with the Destiny of the Jews and the Nations (1840)

Trechos da “Palestra 4A Primeira Ressurreição; ou, Ressurreição dos Justos” (Ler Lucas 20:17), proferida por John Nelson Darby em Genebra, no ano de 1840:

“...A doutrina da ressurreição é importante sob mais de um ponto de vista. Ela liga nossas esperanças a Cristo e a toda a igreja... A alma que parte vai para Jesus, mas ela não é glorificada. A palavra de Deus fala de homens glorificados, de corpos glorificados; mas nunca de almas glorificadas. Porém, como já foi observado, os preconceitos e os ensinamentos humanos tomaram o lugar da palavra de Deus, e o poder e a expectativa da ressurreição deixaram de ser a condição habitual da igreja ...”.

“Atos 4:2. Esta doutrina da ressurreição era reconhecida como a doutrina pregada publicamente pelos apóstolos; não era que a alma na morte ia para o céu, e sim que os mortos viveriam novamente. Como os fariseus eram os maiores inimigos do Senhor, enquanto ele estava na terra – isto é, os falsamente justos, em oposição ao verdadeiramente justo – de modo semelhante, Satanás, após a Sua morte, suscitou os saduceus, que eram inimigos da doutrina da ressurreição (Atos 4:1; 5:17)...”.

“Atos 17:18-30. Ele anuncia, no meio dos sábios gentios, esta doutrina, que foi a pedra de tropeço da sabedoria carnal deles. Sócrates e outros filósofos acreditavam na imortalidade da alma, seguindo a moda*; mas quando esses homens, curiosos em ciência, ouviram falar da ressurreição dos mortos, eles zombaram. Um incrédulo é capaz de falar sobre a imortalidade; mas se ele ouvir sobre a ressurreição dos mortos, ele transforma o assunto em escárnio. E por que? Porque, em virtude da [ideia grega de] imortalidade da alma, ele pode se exaltar, ele pode elevar sua própria importância. Há algo na ideia que pode aliar-se ao homem tal qual ele é; mas pensar em pó levantado novamente – de um ser vivo e glorioso feito disso – esta é uma glória que pertence apenas a Deus, uma obra da qual apenas Deus é capaz. Pois, se um corpo reduzido ao pó pode ser reconstituído por Deus em um homem vivo e glorificado, nada está oculto do poder dele. Com a imortalidade da alma, o homem ainda pode conectar a ideia de ego – de poder no corpo; mas quando a verdade principal é a ressurreição do corpo, e não a [ideia grega de] imortalidade da alma, a impotência do homem torna-se flagrante...” (colchetes acrescentados).

* Nota de Darby [omitida pelo autor do MB]: “[A ideia grega de imortalidade da alma] era, no entanto, em metempsicose, ou transmigração para outros corpos” (colchetes acrescentados).

“Mas antes de passar às provas diretas, eu gostaria de expressar a convicção de que a ideia da imortalidade da alma*, embora reconhecida em Lucas 12:5 e 20:38**, não é, em geral, um tema do evangelho; que isso vem,*** ao contrário, dos platonistas; e foi só quando a vinda de Cristo foi negada na igreja ou, pelo menos, quando se começou a perdê-la de vista, foi que a doutrina da imortalidade da alma veio a substituir a da ressurreição. Isto foi por volta do tempo de Orígenes. Dificilmente é preciso dizer que eu não duvido da imortalidade da alma; só afirmo que esse conceito tomou o lugar da doutrina da ressurreição da igreja, como sendo a época de sua alegria e glória...”.

* Nota de Darby: Na expressão (2 Tim. 1:10): ‘Trouxe  a vida e a imortalidade à luz,’ – ‘imortalidade’ significa a incorruptibilidade do corpo e não a imortalidade da alma.

** Notas do autor do MB:

1) “Ao dizer que ‘a imortalidade da alma é reconhecida’ nestes dois trechos, Darby certamente não se referia à imortalidade inerente, ensinada pela filosofia grega. O conceito de ‘imortalidade da alma’ dele era o bíblico, a saber, imortalidade condicional. Esta é a crença dos cristãos crentes na Bíblia hoje, e era a crença da Igreja primitiva, antes de ser corrompida pela invasão do platonismo, promovida por líderes arrogantes. Conforme Darby prosseguiu explicando nesta mesma palestra, os justos já possuem essa imortalidade. Ao morrerem, eles vão para o ‘Hades’ bíblico, e ficam lá até a ressurreição, que já está assegurada no caso deles. Quando Jesus declarou, em Lucas 12:5 (bem como em Mateus 10:28), que ‘só Deus tem poder de lançar o corpo e a alma no inferno’ (a tradução correta aqui é Geena) não quer dizer que Deus lança pessoas em algum lugar ‘ardente’, de tormentos. Esta ideia é fruto da filosofia grega e das religiões pagãs da antiguidade, e não tem nada que ver com a Bíblia. Antes, isto significa que só Deus pode determinar se alguém será ressuscitado ou não. Se Ele decidir não ressuscitar, tal pessoa estará morta para sempre, sem qualquer possibilidade de retorno. Este é o sentido de ‘lançar na Geena’ - e nada mais do que isso”.

2) “Quanto aos três patriarcas citados em Lucas 20:37, 38, Darby não quis dizer que a ressurreição deles já ocorreu, nem foi isso o que Jesus ensinou. Eles viveram antes de Cristo, mas, como eles ‘morreram na fé’, a ressurreição deles também está assegurada. Era esse o assunto da contenda entre Jesus e os saduceus. Darby defendia - corretamente - que tal ressurreição é um evento futuro, conforme disse Jesus e foi confirmado por outros cristãos primitivos, como o apóstolo Paulo (veja Atos 24:15). Estes homens não se encontram no céu, e sim no Hades, inconscientes e inativos. (Para mais informações sobre o caso específico destes patriarcas hebreus, sugerimos o artigo Estão Abraão, Isaque e Jacó no Céu?)”.

*** Nota de Darby: “Isto é, a propagação disso como uma doutrina especial vem deles”.

O referido texto de Lucas diz: “E que os mortos ressuscitam, já Moisés mostrou, no relato da sarça, quando ao Senhor ele chama ‘Deus de Abraão, Deus de Isaque e Deus de Jacó’. Ele não é Deus de mortos, mas de vivos, pois para ele todos vivem”. – Lucas 20:37, 38, NVI.

Prosseguindo na palestra de Darby:

“Dois atos de Cristo são apresentados como atributos de sua glória; um, fazer viver; o outro, julgar. Ele dá vida aos que ele quer, e todo o juízo é confiado a ele; para que todos, mesmo os ímpios, honrem o Filho, como honram o Pai. Jesus foi injustamente rogado aqui abaixo; Deus, o Pai, cuida de que a Sua reivindicação de glória será reconhecida: ele (Cristo) dá vida a quem ele quer – primeiro às suas almas e depois aos seus corpos. Estes o glorificam da boa vontade. Quanto aos ímpios, o modo de obrigá-los a reconhecer os direitos de Jesus é julgá-los; e esse julgamento está nas mãos de Jesus... Os maus reconhecerão Jesus Cristo a despeito de si mesmos quando forem julgados. Em que época se cumprirão essas coisas? Para os ímpios, no momento do julgamento – o julgamento dos vivos e dos mortos diante do grande trono branco; para os justos, os filhos de Deus, quando seus corpos participarem da vida já transmitida às suas almas (a vida do próprio Cristo) na ressurreição dos justos. A ressurreição para estes não é uma ressurreição de julgamento, mas simplesmente, para repetir novamente o exercício para com os corpos dos filhos de Deus, daquele poder ativador de Jesus, o qual ele já exerceu sobre as almas deles e que, no tempo devido de Deus atuará sobre os corpos deles. ‘Os que fizeram o bem’, diz o nosso texto, ‘para a ressurreição da vida, e os que fizeram o mal, para a ressurreição do julgamento’.”.

“Porém levanta-se a objeção de que Jesus disse (v. 28): ‘Vem a hora em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a sua voz’. Os ímpios e os justos evidentemente serão levantados juntos. Mas três versículos antes (v. 25) é dito: ‘Vem a hora, e agora é, quando os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que ouvirem viverão’... sob esta palavra estão contidos dois estados de coisas muito diferentes, visto que os mortos ouviram a voz do Filho de Deus durante o tempo em que Ele estava vivendo na Terra e eles o tem ouvido por dezoito séculos desde então. Esta é, então, a interpretação. A hora para dar vida à alma é uma hora que já dura dezoito séculos. E vem a hora também para o julgamento. A palavra hora tem o mesmo sentido nos dois trechos. Ou seja, há um tempo de despertar e um tempo de julgamento; Há um período durante o qual as almas são ativadas e um período em que os corpos devem ser criados. Para nós, a ressurreição é apenas a aplicação do poder ativador de Jesus Cristo aos nossos corpos. Seremos levantados, porque já estamos vivificados em nossas almas. A ressurreição é a coroação de toda a obra, porque somos filhos de Deus, porque o Espírito habita em nós, porque (no que diz respeito às nossas almas) já fomos ressuscitados com Cristo. Haverá uma ressurreição da vida para os que já foram vivificados em suas almas; e uma ressurreição de julgamento para os que rejeitaram Jesus...”.

“Se a primeira ressurreição – a dos justos – não deve ser tomada literalmente, por que a segunda – a dos injustos – deveria ser tomada? Como o objeto de nossa esperança, e fonte da nossa consolação e da nossa alegria, é apenas uma coisa pequena saber que os injustos serão levantados; mas a coisa preciosa – o essencial – é saber que a ressurreição do justo será a consumação de sua felicidade; que nela Deus realizará o Seu amor para conosco; que, depois de ter dado vida às nossas almas, Ele dará vida aos nossos corpos e fará do pó da terra uma forma adequada à vida que nos foi dada por parte de Deus. Nunca lemos na palavra de Deus sobre espíritos glorificados, mas sempre sobre corpos glorificados...”.

“Desejo, queridos amigos, que o conhecimento dessa verdade, pelo poder de Cristo, do qual depende toda a sua realização, possa fortalecer os nossos corações para toda a perfeição... Que vossos corpos, almas e espíritos sejam preservados irrepreensíveis até a chegada do nosso bem-amado! Que esta verdade da ressurreição da igreja fique associada, em nossas mentes, com todas as preciosas verdades de nossa salvação consumadas em Cristo, e que ela seja cumprida na plenitude de nossa salvação em nossos corpos também!.

The Hopes of the Church of God – In Connection with the Destiny of the Jews and the Nations. As Revealed in Prophecy – Eleven Lectures Delivered in Geneva, 1840 [As Esperanças da Igreja de Deus – Em Conexão com o Destino dos Judeus e das Nações. Conforme Revelado na Profecia – Onze Palestras Proferidas em Genebra, 1840], de John Nelson Darby, pp. 39-54.

ERRO: 1.

Comentário:

Ele chegou ao lar celestial em 29 de Abril de 1882.

                                                                                                                                     De uma biografia de John Nelson Darby

Mas eu vos digo que todo aquele que está levemente irritado com seu irmão estará sujeito ao julgamento; Mas quem disser ao seu irmão, Raca, estará sujeito a ser chamado de sanedrim; Mas quem disser: Tolo, estará sujeito à pena do inferno do fogo.

                                                                                                                                                                                                                                                           Mateus 5:22, Tradução de John N. Darby

Como alguém que inseriu a versão “inferno de fogo” em sua tradução bíblica e é considerado como já estando no céu por seus seguidores ou admiradores poderia ser um defensor do aniquilacionismo? Realmente é bem difícil chegar a tal conclusão. De fato, Darby foi um dos que têm plena convicção que após a morte do corpo a alma continua viva e o crente vai imediatamente para a presença de Cristo, conforme os trechos supracitados da palestra de Darby deixam bastante claro em vários momentos.

Acho que eu deveria é agradecer ao autor do MB por me trazer esse presente na reta final das minhas considerações sobre a “pesquisa” empreendida por ele, pois agora temos à disposição um exemplo superlativo de como o autoengano religioso pode cegar completamente uma pessoa. Se eu já me senti um pouco constrangido ao mostrar a ele em casos de menor vulto como se deve compreender o que ele vem citando, imagine em uma situação dessas em que as palavras do escritor foram completamente torcidas!

Antes de mais nada, para confirmar logo o que Darby realmente acreditava sobre o assunto, veja a seguir o que ele escreveu sobre o aniquilacionismo e o que acontece com a alma depois da morte do corpo (os colchetes foram acrescentados):

“... esta doutrina é uma heresia mortal e desmoralizante ou, melhor, de infidelidade. Eu sempre a refutei... Trata-se de negar a responsabilidade e a consciência, enfraquecendo da maneira mais mortal o sentido do pecado, o valor que é consequencia da expiação e, finalmente, da divindade de Cristo... A maior parte de suas provas [dos que defendem o aniquilacionismo] são do Antigo Testamento, e no momento em que você sabe que a multidão dos textos deles se referem a julgamentos temporais na Terra, toda a parte do tecido desaparece. Daí eles se esquivam das palavras no Novo Testamento: como se, por exemplo, ‘destruição’ significasse deixar de existir. Isso não é verdade, como em ‘Ó Israel, você se destruiu, mas em mim é a tua ajuda’. No original é a mesma palavra onde é dito ‘a ovelha perdida da casa de Israel’. Deus pode dizer: ‘Eu crio e eu destruo’. Mas, por outro lado, ela [essa palavra ‘destruir’] é usada constantemente para a ruína em um sentido geral, como no barco, onde os discípulos dizem: ‘Não deixes que pereçamos!’ [Mateus 8:25] Eles admitem que não pode haver aniquilação na natureza e não gostam da palavra. Em seguida, a morte nunca significa deixar de existir. A Escritura fala de lançar a alma no inferno depois que o corpo é morto. Assim, na parábola do homem rico e Lázaro, eles subsistem após a morte. Eles [os defensores do aniquilacionismo] dizem que é uma ilustração judaica. Eu admito isso. Mas é uma ilustração para mostrar como eles subsistem após a morte. Mais uma vez, diz-se em Lucas 20: ‘Porque todos vivem para ele’ - homens mortos, mas sempre vivos para Deus. Além disso, se for assim, deixando de existir, não há ninguém para se julgar. A segunda morte é mesmo serem lançados no lago de fogo, onde são atormentados. Ou seja, não deixam de existir. Eles dizem que a vida eterna e a morte eterna não significam eternas. Isto não é verdade. A vida eterna e o castigo eterno são falados em conjunto, e é a força regular disso nas Escrituras: ‘As coisas que são vistas são temporais, e as coisas que não são vistas são eternas’. Nada pode ser mais claro do que isso. Então, temos ‘o Deus eterno’, ‘o Espírito eterno’, ‘redenção eterna’, ‘herança eterna’ - tudo em contraste com o tempo.

“O que é moralmente terrível [no aniquilacionismo] é o enfraquecimento do sentido do pecado e da expiação... um grande número fala do que Cristo obteve para nós pela Sua morte, mas abandonam a expiação pelos nossos pecados sem nenhuma conseqüência. Mais uma vez, se a morte significa deixar de existir (e essa é a base de todas as suas afirmações), então Cristo deixou de existir: isso leva muitos a negar Sua divindade (eu não digo todos, embora seja em maior número na América )... a morte não significa deixar de existir. Além disso, esse materialismo quanto à alma é totalmente contrário às Escrituras. Em Gênesis, o modo como o homem é criado é cuidadosamente distinguido dos animais. Deus soprou em suas narinas o fôlego da vida: isto nunca foi feito com os animais. Daí Adão é chamado de filho de Deus, e Paulo declara que somos descendentes de Deus. Portanto, comparar nossa alma com os animais é falso. Além do que citei dos Evangelhos quanto à sua subsistência após a morte, o texto ‘é designado aos homens uma vez para morrer e, depois disso, o julgamento’ [Hebreus 9:27] prova demonstrativamente que subsistimos depois da morte. A morte dissolve o nosso estado atual de existência, mas essa existência não cessa de maneira absoluta. Longe da morte ser o salário total do pecado neste sentido, é depois da morte que obtemos tudo do que fomos julgados. Ou seja, a morte quanto ao corpo é o resultado do pecado aqui. O julgamento do homem para receber as reais consequências dele diante de Deus vem em conjunto depois disso. Portanto, há uma ressurreição do injusto, uma ressurreição ao julgamento. Lembre-se, nós concebemos a eternidade como um tempo prolongado. Isso significa que não a concebemos totalmente. É um Agora eterno. E esta é a própria definição da palavra dada pelos escritores do tempo dos apóstolos”. – The Doctrine of Annihilation; Eternal Punishment, de John Nelson Darby, extraído de Notes, Letters & Other Darby Writings, carta 1, versão on line.

“Pelo que estou ciente, [a palavra] ‘consumir’ não é usada no Novo Testamento, exceto em 2 Tessalonicenses 2:8, onde fala do ímpio e também de um julgamento terreno: ‘A quem consumirá o Senhor com o sopro de sua boca e destruirá pelo brilho da sua vinda’. É dito deste perverso como subsistente depois, primeiro por mil anos e depois, e ainda com o diabo, no lago de fogo. Você acharia difícil provar, a partir desta passagem pelo menos, que ‘consumir’ significasse que a existência cessa e que o ser se extingue. No Antigo Testamento eu li sobre consumir a terra. Mas, quando usado em vários sentidos, como o zelo da casa de Deus diz ter consumido a Cristo, não vejo nenhum lugar que toque a questão da existência subsequente. A destruição terrestre é muitas vezes falada - de povos, reinos, circunstâncias, prosperidade. Mas não vejo nada da alma nem do corpo, mesmo em um estado visível de se estar na terra, visto que o Senhor disse que destruir o corpo na terra não destrói a alma [Mateus 10:28]. Não encontro uma passagem onde ‘consumir’ vá mais longe do que esse sentido. O julgamento sobre a terra é o sujeito natural do Antigo Testamento... Já vimos, em um artigo anterior, que a alma não deixa de existir com o corpo. E que a parábola do homem rico certamente ensina que os ímpios existem na miséria”. – Eternal Punishment, Scriptural Enquiry As To The Doctrine Of Eternal Punishment Contained In J. P. Ham's Theological Tracts, de Nelson H. Darby, versão on line.

“Então ele disse, voltando-se para Jesus: ‘Senhor, lembra-te de mim quando vieres no teu reino’ [Lucas 23:42, 43]... E o Senhor deu a ele mais do que sua fé perguntou. Foi uma resposta de paz presente. Não seria somente quando o reino viesse, mas: ‘Em verdade, em verdade te digo, hoje estarás comigo no paraíso’. É como se ele dissesse ‘Tu terás o reino quando ele vier, mas agora estou dando a salvação da tua alma’... Pois o trabalho foi realizado na cruz, o qual poderia transportar uma alma para o paraíso... E agora o ladrão arrependido é uma brilhante testemunha da graça perfeita e salvação eterna através do Seu sangue”. – Notes on the Gospel of Luke, 1869, de John Nelson Darby, pp. 233-235.

“Em Sua resposta aos saduceus [em Lucas 20:38], três coisas importantes são adicionadas ao que se diz em Mateus. 1ª Não é apenas a condição daqueles que são criados e a certeza da ressurreição. É uma Época [ou Era], na qual uma classe somente, que é considerada digna dela, deve obter uma ressurreição separada de justos (v. 35). 2ª Esta classe é composta pelos filhos de Deus, como filhos da ressurreição (v. 36). 3ª Enquanto esperam por esta ressurreição, suas almas sobrevivem à morte, todas vivem para Deus, embora possam estar escondidas dos olhos dos homens (v. 38)”. – Synopsis of the New Testament, de John Nelson Darby, versão on line; se quiser obter o PDF clique aqui (o trecho está na página 364); compare com Sabedoria 3:1-4.

Mesmo não havendo nenhuma necessidade, pois as informações anteriores são mais do que suficientes para dirimir qualquer dúvida que alguém viesse a ter sobre o “imortalismo” de Darby, é interessante analisar alguns pontos da palestra que ele proferiu em Genebra e comentar sobre o que o autor do MB achou que viu nela. Afinal, pode haver outros “bereanos” de semelhante atitude por aí, que não conseguem acreditar nem no que os próprios olhos estão lendo. Não surpreende então o conhecimento deles sobre a antiga literatura cristã ser tão rasteiro. Se eles não conseguem entender nem o que foi publicado há pouquíssimo tempo e que possui amplo material de apoio que impede qualquer possibilidade de descontextualização, o que dizer de obras que foram escritas há quase dois mil anos?

Análise do que o autor do MB pensou que viu na palestra de Darby

John Darby (1800-1882) foi um erudito extremamente dedicado ao ministério cristão. O pai dele queria que ele tivesse uma carreira de prestígio, porém o deserdou quando o filho decidiu ser pastor anglicano. Mas por sorte, ou providência divina, um tio abastado dele que faleceu algum tempo depois deixou uma grande fortuna para Darby, que conseguiu assim dedicar toda sua vida ao que gostava de fazer. Traduziu a Bíblia para três idiomas (alemão, francês e inglês), compôs hinários, escreveu livros e artigos, além de proferir palestras em vários países. Até hoje é conhecido por ter despertado nas igrejas evangélicas o apego à doutrina do arrebatamento. Ele também gostava de profecias e cronologia bíblica, de modo que influenciou até os adventistas de sua época, que por sua vez influenciaram Charles Taze Russell, o fundador dos “Estudantes da Bíblia”, hoje “Testemunhas de Jeová”.

Com tão ampla gama de atividades, naturalmente ele não conseguiu agradar a todos e alguns de seus posicionamentos doutrinários são rejeitados por determinados grupos protestantes, embora eles geralmente continuem a nutrir admiração por essa importante figura cristã do século 19. No entanto, o conceito de Darby sobre o que acontece ao homem depois da morte não é um dos ensinamentos que encontraram resistência em algumas igrejas, pois está em total acordo com a ortodoxia cristã. Conforme visto, Darby acreditava que a alma continua viva depois da morte do corpo e era um franco opositor do aniquilacionismo. Sendo assim, o que teria feito o autor do MB achar que a palestra que Darby proferiu em Genebra teria alguma coisa que apoiasse o materialismo “cristão”?

O ponto principal certamente foi a ênfase que Darby deu ao ensinamento da ressurreição, dizendo que ela era o tema central da igreja primitiva, mas depois perdeu espaço para a perspectiva da alma ir para a presença de Cristo imediatamente depois da morte, crença que também é verdadeira. Para explicar tal mudança de foco dos primeiros cristãos, Darby usou uma palavra que, a meu ver, é forte demais para descrever o que realmente aconteceu. Ele disse que, por influência do platonismo, a igreja substituiu a esperança da ressurreição pela crença de sobrevivência da alma depois da morte. E isso teria ocorrido por volta da época de Orígenes.

Na verdade, não foi bem assim. Como foi visto no comentário à obra nº 86, os cristãos do primeiro século achavam que o fim do mundo ocorreria na geração deles e quando o tempo mostrou que isso não aconteceria, a ênfase na vinda iminente do Reino desvaneceu-se. No entanto, a igreja nunca esqueceu o ensino da ressurreição. Pelo contrário, os primeiros autores patrísticos falavam muito mais da ressurreição do corpo do que da sobrevivência da alma, inclusive os que tinham sido platonistas, como foi o caso de Atenágoras:

“Os homens, em relação à alma, têm de sua primeira origem uma continuidade imutável, mas em relação ao corpo obtêm imortalidade por meio da mudança. É o que se entende por doutrina da ressurreição... depois disso esperamos uma continuação com a imortalidade, não colocando a nossa morte em um nível com a morte do animais irracionais... Não é porque sabemos que a separação da alma dos membros do corpo e a dissolução das suas partes não interrompem a continuidade da vida que devemos desanimar da ressurreição”. – Sobre a ressurreição dos mortos, Atenágoras de Atenas, cap. 16.

Esse era o costume até mesmo de Orígenes, que é um dos principais “culpados” pela introdução da “imortalidade da alma” na igreja antiga, de acordo com os aniquilacionistas. Mas, além dele sempre mencionar a ressurreição do corpo, ele também disse que a alma não é imortal, a menos que Deus queira que ela seja. Porém ela sobrevive à morte. Veja a seguir algumas dessas declarações de Orígenes:

“Que ninguém, entretanto, suspeite que, devido ao nosso discurso, fazemos parte daqueles que são chamados de cristãos, mas que rejeitaram a doutrina da ressurreição conforme ensinada nas Escrituras!” – Contra Celso, Livro V, cap. 22.

“[Deus] é a fonte de tudo o que é bom. E reconhecemos que Ele é capaz de proporcionar uma vida imortal para a alma. E que Ele possui não apenas o ‘poder’, mas o ‘desejo’... Pois, em harmonia com as leis que se baseiam nos princípios da equidade, os corpos são considerados dignos da sepultura, com as honras concedidas em tais ocasiões, sem nenhum insulto, tanto quanto possam ser ajudados, em consideração à alma que habitava dentro do corpo, e não descartá-los (depois que a alma partiu) como se fossem corpos de animais. Não seja então contrário à razão dizer que é a vontade de Deus declarar que, embora o grão de trigo não seja imortal, a espiga que brota dele será, da mesma maneira que o corpo semeado na corrupção não é imortal, mas o que é levantado dele na incorrupção será”. – Contra Celso, Livro V, cap. 24.

“Após a Sua ressurreição, ele [Jesus] existiu em um corpo intermediário, por assim dizer, entre a densidade material que Ele tinha antes de seus sofrimentos [na cruz], e a aparência de uma alma despojada de tal corpo. E foi, portanto, devido a isso quando os seus discípulos estavam reunidos, e Tomé com eles, Jesus apareceu em um recinto fechado e ficou no meio deles, e disse: ‘Paz seja convosco’. Então disse a Tomé para colocar o dedo [nas suas feridas] etc. E no Evangelho de Lucas também, enquanto Simão e Cléopas conversavam entre si a respeito de tudo o que lhes acontecera, Jesus ‘aproximou-se e foi com eles. E seus olhos foram fechados, para que eles não o reconhecessem’. E Ele disse-lhes: ‘Que tipo de conversa é essa que falais uns com os outros enquanto andais?’. E quando seus olhos foram abertos, e eles O reconheceram, então a Escritura diz em palavras expressas: ‘E Ele desapareceu da vista deles’.”. – Contra Celso, Livro II, cap. 62, colchetes acrescentados.

“Se eles também admitem que há uma ressurreição dos mortos, que eles nos respondam, o que é o que morreu? Não foi um corpo? É do corpo, então, que haverá uma ressurreição. Deixe-os nos dizer se eles pensam que devemos usar corpos ou não. Penso que quando o apóstolo Paulo diz que ‘é semeado um corpo natural, surgirá um corpo espiritual’, eles não podem negar que é um corpo que surge ou que na ressurreição devemos usar corpos... pode ser uma questão de dúvida como eles se levantarão novamente, a fim de que possamos ser vestidos com eles uma segunda vez na ressurreição... se for necessário que sejamos revestidos de corpos, como certamente é necessário, não devemos nos revestir de outros mas de nossos próprios corpos. Mas se é verdade que estes se levantam de novo, e que eles surgem quais corpos ‘espirituais’, não há dúvida de que eles são ressuscitados dos mortos, depois de expurgada a corrupção e deixada de lado a mortalidade”. – Dos Princípios, Livro II (Sobre a Ressurreição), cap. 10, seção 1.

Como se nota, aqueles que acusam Orígenes de ter sido imortalista e um seguidor de Platão, além de cometerem uma grande injustiça, demonstram que não fazem a mínima ideia do que estão falando, e apenas seguiram comentários preconceituosos de terceiros, a maioria dos quais certamente nunca leu todas as obras disponíveis de Orígenes e não possuem autoridade para acusar esse cristão antigo.

Mas voltando a Darby, o discurso dele é muito semelhante ao que disseram os primeiros pais da igreja. Vai ver é por isso que o autor do MB “não consegue” discernir o que ambos disseram... Quando Darby disse que os filósofos gregos aguardavam a ida da alma para o céu e escarneciam quando ouviam falar de uma ressurreição do corpo, não é que ele não acreditasse que a alma realmente sai do corpo e permanece viva. Aliás, ele mesmo disse em sua palestra que realmente acreditava na sobrevivência da alma, e falou isso mais de uma vez. O que John Darby estava querendo destacar é que a expectativa de sobrevivência imediata não é o que o cristão considera mais importante, mas sim a ressurreição do corpo. Além do mais, o contexto grego da sobrevivência da alma era bastante diferente. A ideia era que a alma ascende às esferas celestiais por seus próprios méritos e nunca mais quer saber do corpo que teve, pois existirá de forma totalmente imaterial (sem substância alguma) imergida dentro da grande Alma do universo. Mas antes disso viverá várias vidas carnais pelo processo da reencarnação, conforme Darby salientou em uma nota. Nada disso faz parte do ensino dos apóstolos.

O que Darby apresentou em seu discurso é exatamente o que Justino e seu discípulo Taciano disseram a respeito desse contraste entre a doutrina grega da imortalidade e a esperança cristã da pessoa continuar viva depois da morte:

“A ressurreição é a ressurreição da carne que morreu. Pois o espírito não morre. A alma está no corpo, e sem alma não pode viver. O corpo, quando a alma o abandona, já não é um ser vivo. Porque o corpo é a casa da alma, e a alma, a casa do espírito. Estes três, em todos aqueles que apreciam uma esperança sincera e uma fé inquestionável em Deus, serão salvos... [Se] o Salvador em todo o Evangelho mostra que há salvação para a carne, por que ainda toleramos esses argumentos incrédulos e perigosos, e não vemos que estamos retroagindo quando ouvimos um argumento tal como este: que a alma é imortal, mas o corpo mortal, e incapaz de ser revivido? Para isso, costumávamos ouvir Pitágoras e Platão, mesmo antes de termos aprendido a verdade. Se, então, o Salvador disse isso e proclamou a salvação somente à alma, que coisa nova, além do que ouvimos de Pitágoras, Platão e toda o seu pessoal, Ele nos trouxe?” – Sobre a ressurreição dos Mortos, Justino de Roma, cap. 10.

“Eu escolhi não seguir a homens nem a doutrinas de homens, mas Deus e as doutrinas [entregues] por Ele. Pois, se você caiu na conversa de alguns que são chamados cristãos, mas que não admitem isto, e arriscam-se a blasfemar contra o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó, e que dizem que não há ressurreição dos mortos, e que suas almas, quando eles morrem, são levadas para o céu, não imaginem que eles são cristãos”. – Diálogo com Trifão, Justino de Roma, cap. 80.

“Quando chegarmos ao fim da nossa vida [terrena], poderemos pedir o mesmo de Deus [ou seja, que proteja nossas almas], aquele que é apto para impedir que qualquer vergonhoso anjo do mal leve nossas almas. E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou... na morte [devemos] orar para que nossas almas não caiam nas mãos de tais poderes”. – Diálogo com Trifão, Justino de Roma, cap. 105, colchetes acrescentados.

A alma não é em si mesma imortal, ó gregos, mas mortal. No entanto, é possível que ela não morra. Se, de fato, não conhece a verdade ela morre e se dissolve com o corpo, mas ressurge finalmente no fim do mundo com o corpo, recebendo a morte por castigo na imortalidade. Mas, novamente, se ela adquire o conhecimento de Deus, ela não morre... A alma humana consiste em muitas partes, e não é simples; ela é composta, de modo a se manifestar através do corpo; pois nem ela poderia aparecer por si mesma sem o corpo, nem a carne ressuscitar sem a alma. O homem não é, como dizem os filósofos, apenas um animal racional”. – Discurso aos gregos, Taciano, cap. 15.

Então este é o ponto: a alma sobrevive sim à morte, porém ela não é imortal em sentido absoluto, conforme pensavam os gregos, que também acreditavam que o destino de todas as almas é o céu, e que isso estaria plenamente assegurado. As seitas gnósticas, cujos membros se identificavam como sendo cristãos, seguiram os filósofos gregos no que tange ao desprezo do corpo e à imortalidade da alma, achando que seriam eternamente espíritos imateriais. Para ambos, gregos e gnósticos em geral, a ressurreição do corpo era algo que não estava nos planos de Deus. É nesse contexto que se situa a crítica de Justino, quando ele disse que se alguém disser que é cristão, mas não acredita na ressurreição, dizendo que sua alma vai para o céu, não deve ser chamado de cristão.

E é também importante lembrar que, desde o Antigo Testamento, a ideia de morte na Bíblia não é de aniquilação, mas da ida da pessoa para o mundo inferior chamado Seol ou Hades, onde lá experimenta uma existência sombria ou de provações, e só os justos são poupados de tal lugar, conforme foi esclarecido no Novo Testamento. Deste modo, ao passo que a consequência da morte para o corpo é ele ir para a sepultura, o destino temporário da alma é ser levada para outro mundo não visto por seres humanos (a etimologia da palavra “Hades” contém essa ideia de inacessibilidade ou invisibilidade), até o dia em que ela será reintegrada ao corpo físico novamente.

Quando um cristão da grande igreja, que não fazia parte dos antigos movimentos gnósticos, dizia que a alma é imortal, ele tinha bem em mente a distinção que havia em relação à versão grega de imortalidade da alma. O mesmo foi feito por Darby, ao mencionar a imortalidade restrita ou condicional da alma e dizer que isto tem menor importância que a futura ressurreição, quando a alma receberá novamente um corpo físico, porém glorioso, apto para estar tanto no céu quanto na Terra. Será semelhante à natureza dos anjos, que mesmo sendo espíritos podem se transmutar para a forma humana se quiserem, a exemplo daqueles a quem Abraão acolheu e comeram a refeição que lhes foi oferecida. – Gênesis 18:5-8; Hebreus 13:1, 2.

Por isso o comentário que o autor do MB fez sobre a crença de Darby não tem absolutamente nada a ver com a realidade, e é uma misturada enorme de conceitos antagônicos entre si:

“Ao dizer que ‘a imortalidade da alma é reconhecida’ nestes dois trechos, Darby certamente não se referia à imortalidade inerente, ensinada pela filosofia grega. O conceito de ‘imortalidade da alma’ dele era o bíblico, a saber, imortalidade condicional. Esta é a crença dos cristãos crentes na Bíblia hoje, e era a crença da Igreja primitiva, antes de ser corrompida pela invasão do platonismo, promovida por líderes arrogantes. Conforme Darby prosseguiu explicando nesta mesma palestra, os justos já possuem essa imortalidade. Ao morrerem, eles vão para o ‘Hades’ bíblico, e ficam lá até a ressurreição, que já está assegurada no caso deles. Quando Jesus declarou, em Lucas 12:5 (bem como em Mateus 10:28), que ‘só Deus tem poder de lançar o corpo e a alma no inferno’ (a tradução correta aqui é Geena) não quer dizer que Deus lança pessoas em algum lugar ‘ardente’, de tormentos. Esta ideia é fruto da filosofia grega e das religiões pagãs da antiguidade, e não tem nada que ver com a Bíblia. Antes, isto significa que só Deus pode determinar se alguém será ressuscitado ou não. Se Ele decidir não ressuscitar, tal pessoa estará morta para sempre, sem qualquer possibilidade de retorno. Este é o sentido de ‘lançar na Geena’ - e nada mais do que isso”.

Note o que essa peça de afirmações realmente evidencia, tanto em relação às crenças do autor do MB quanto ao que Darby acreditava sobre o assunto:

1) Sim, Darby realmente reconheceu a imortalidade da alma, mas no sentido de que ela continua viva e consciente depois da morte. Ou seja, o que ele pensava não tinha nenhuma relação com a ideia de inexistência dos que morrem!

2) É óbvio que ele também não aceitava o conceito grego de imortalidade inerente, mas acreditava que a alma continua existindo. E no caso da alma do cristão, feliz e na presença de Jesus. Novamente, não se trata de extinção!

3) Certamente o conceito de Darby era o bíblico, que não é o que o autor do MB defende (aniquilacionismo). Todas as referências supracitadas atestam isso com a mais absoluta certeza! E inclua nisto os autores patrísticos.

4) Claro que a imortalidade é condicional. Afinal, estamos falando do conceito cristão e não do grego. Porém, se a pessoa é fiel a Deus, e assim permanece para sempre, ela nunca deixará de viver, ainda que o corpo físico morra e desapareça.

5) Note também que o autor do MB transforma o aniquilacionismo no qual ele acredita na “crença dos cristãos crentes na Bíblia hoje” e na “crença da igreja primitiva” antes dela ser “invadida pelo platonismo”. E quando teria se dado essa tragédia? Certamente não foi na época de Justino ou Taciano, e nem tampouco na de Orígenes, pois, conforme visto no que eles escreveram, eles tinham um entendimento semelhante ao de Darby. Isto nos faz chegar novamente à inevitável conclusão que a crença do autor do MB não é nem de longe o que se acreditava na igreja primitiva. De modo que a crítica velada que ele fez, de que os “imortalistas” não são cristãos por “rejeitarem o ensino original”, volta ostensivamente para ele e com muito mais força do que veio.

6) O autor do MB ainda se sentiu apto para chamar de arrogantes os cristãos que supostamente teriam sido corrompidos pelo platonismo. Essa “corrupção” tem relação com o que alguns comentaristas dizem que aconteceu na época de Agostinho. Mas não é isso o que o autor do MB está querendo dizer. Para ele, o simples fato de alguém acreditar que o homem possui uma alma espiritual que continua viva depois da morte do corpo já implica em corrupção pelo platonismo. Deste modo, seria necessário recuar a época dos tais “líderes arrogantes” até a última metade do primeiro século, gerando assim um cenário irrealista de uma crença que teria durado apenas uns 50 anos (aniquilacionismo), pois nenhum documento atesta essa teoria. Aliás, nem mesmo a Bíblia faz isso, visto que há diversas evidências nela de que aquilo que se cria na era apostólica, a respeito da sobrevivência imediata, era o mesmo que os cristãos acreditaram nos séculos iniciais do Cristianismo. Mesmo encurralado de todos os lados, sem nada que corrobore sua tese, o autor do MB continua persistindo no erro.

7) Quando Darby disse que os justos já possuem a imortalidade, era exatamente isso o que ele estava dizendo. Lembre-se do que ele falou a respeito do malfeitor arrependido na cruz. Se o justo continua vivo e nunca abandona a Deus ele jamais experimentará a morte, no sentido hebraico [provações no Hades] (João 11:26). Então, na prática, ele já adquiriu a imortalidade pelo mérito de Jesus e pela fé demonstrada nele. Essa conquista foi resultado da trajetória do cristão na Terra. A ressurreição será apenas a celebração dessa imortalidade e o recebimento do “diploma” pelo curso da vida, como acontece em uma formatura de faculdade. A colação de grau é apenas o selo de autenticação de uma rotina prévia que durou muito mais tempo do que o dia de festa dos formandos. Ou então, nas palavras de Darby, é “a coroação de toda a obra” do cristão.

8) Quando o autor do MB se propõe a reescrever o que Darby disse, afirmando que os justos já terem recebido a imortalidade significa apenas que eles ‘têm a ressurreição assegurada’ e que, enquanto isso, ficam “inconscientes e inativos” no Hades “bíblico”, é uma tapeação. Primeiro porque o Hades bíblico não é uma sepultura e sim a morada dos mortos que não fica em nosso mundo, conforme já foi exaustivamente demonstrado nas próprias obras citadas pelo autor do MB. Em segundo lugar, quando algum aniquilacionista diz que o morto está dormindo, inativo ou inconsciente é apenas uma figura de linguagem, pois o que se quer dizer realmente é que o sujeito foi aniquilado e não existe mais. Eles evitam a todo custo colocar a situação nesses termos para esconder a verdadeira face da crença que defendem. Conforme vimos, Darby se sentia indignado com esse materialismo “cristão”, especialmente porque ele resulta na conclusão de que Cristo deixou de existir entre a tarde de uma sexta-feira e a manhã de um domingo, embora a Bíblia diga que ele desceu à mansão dos mortos e falou até com os espíritos que estavam aprisionados lá. Esta era uma crença predominante na igreja primitiva.

A segunda nota do autor do MB é também enganosa:

“Quanto aos três patriarcas citados em Lucas 20:37, 38, Darby não quis dizer que a ressurreição deles já ocorreu, nem foi isso o que Jesus ensinou. Eles viveram antes de Cristo, mas, como eles ‘morreram na fé’, a ressurreição deles também está assegurada. Era esse o assunto da contenda entre Jesus e os saduceus. Darby defendia - corretamente - que tal ressurreição é um evento futuro, conforme disse Jesus e foi confirmado por outros cristãos primitivos, como o apóstolo Paulo (veja Atos 24:15). Estes homens não se encontram no céu, e sim no Hades, inconscientes e inativos”.

A exemplo do primeiro, comentário igualmente descontextualizado e fora dos moldes bíblicos devido ao que é dito no final. O conceito de que ninguém será lançado em Geena alguma, e que esse local é um simbolismo que se refere apenas aos que Deus decide manter aniquilados, não fazia parte da crença dos primeiros cristãos, e nem tampouco da crença de John Darby. Eles achavam que a Geena é um lugar real no qual os perversos serão lançados (futuro) depois de terem sido ressuscitados. Dizer que Geena é a representação simbólica da inexistência significaria que tal situação já aconteceu, porque os que Deus decidisse não ressuscitar já estariam no estado em que deveriam estar. Certamente um presente para os extremamente maus, pois, independente do que fizeram, estariam para sempre em uma “doce” inexistência.

Portanto, está demonstrado que o autor do MB não se beneficiou de praticamente nada do que John Darby disse na referida palestra e também o quanto ela é inadequada para o propósito pretendido pelo “bereano”. As conclusões dele, além de eivadas de preconceitos resultantes de uma falsidade religiosa (aniquilacionismo), são uma completa deturpação do que Darby realmente acreditava. Tomara ao menos que esse vexame possa, quem sabe, ajudar o autor do MB a sair desse cativeiro onde se encontra. Basta que ele reflita em tudo o que foi dito aqui para que isso comece a acontecer.

Ah, sim! Conforme vimos no livro Synopsis of the New Testament, Darby também acreditava que Abraão, Isaque e Jacó continuam vivos, diferentemente do que o autor do MB imaginou...

100. I Believe In... (1949)

Todos os credos falam de uma ressurreição e não de uma sobrevivência. Na maioria deles consta ‘da carne’, embora aqui, no chamado Credo Niceno, diga ‘dos mortos’. Parece haver pouca dúvida de que a Igreja durante séculos pensou em termos do reavivamento da vida no corpo verdadeiro de carne e osso. Esta era a crença de Clemente de Roma e de Orígenes, mas foi Agostinho o principal responsável pelo estabelecimento da crença tradicional. Essa crença está consagrada na paráfrase da Versão Autorizada de Jó 19:25-6, que é bem claramente uma declaração da ressurreição do corpo, e é mantida fresca na memória pública pela popularidade do Messias de Handel. Agostinho disse que Jó ‘profetizou sem dúvida a ressurreição da carne’, e declarou que o trecho significava ‘eu estarei na minha carne, quando eu vir Deus’. A Vulgata Latina de Jerônimo (contemporânea de Agostinho e datada de 390-405 D.C.) diz: ‘E no último dia, levantarei da terra. E serei revestido novamente com a minha pele; e na minha carne, eu verei Deus.’ Esta é a interpretação da versão oficial católica romana Douay, e isso é uma interpretação, em vez de uma tradução do hebraico original. Nossa Versão Autorizada, em alguns aspectos, foi ainda mais longe. No hebraico original não se encontra absolutamente nada sobre uma ressurreição dos mortos, e este é um fato geralmente aceito pelos eruditos hebraicos.

“Eu encontro dois trechos apenas no Antigo Testamento que falam de alguma vida após a morte para alguém. Estes são Isa. 26:19 e Dan. 12:2 [ambas passagens ressurreicionais] (eu tomo passagens tais como Sal. 73:23-26 e Sal. 139:7-10 como geográficas, como está, penso eu, claro em hebraico.) Ambos os versículos são um tanto tardios ​​e ambos estão em apocalipses. O primeiro trecho pode ser datado aproximadamente por volta de 300 A.C., e o outro por volta de 165 A.C. O primeiro declara que os mortos justos de Israel serão ressuscitados para participar das bênçãos da libertação de Israel. O segundo diz que ‘muitos dos que dormem no pó da terra (hebreus portanto) despertarão, uns para a vida eterna, e uns para grande vergonha e horror eterno’. A antiga ideia era a do Seol, a vasta e espaçosa morada subterrânea dos mortos, toda ela negativa e não positiva, e que deve ser considerado como a persistência da morte e não da vida. Tentativas foram feitas, e às vezes ainda são feitas, para ver nesses sombrios pensamentos do Seol o começo das ideias hebraicas de uma vida real após a morte. Todas essas tentativas são equivocadas. As ideias hebraicas da ressurreição não vieram de ideias sobre o Seol, assim como as ideias gregas da imortalidade não surgiram das noções tradicionais e populares do Hades. Para o filósofo, a ideia veio por meio de Platão, enquanto que para o homem comum veio muito posteriormente, e das religiões de mistério com seus cultos de deuses salvadores.

“A crença hebraica na vida após a morte surgiu da firme convicção de que Deus ainda é o Salvador de Israel... O intenso aspecto prático e ‘deste mundo’ do judeu requeria que este novo mundo deveria ser aqui na Terra, uma Terra transformada talvez, mas certamente aqui e real. Isto seria anunciado por um grande Dia do Juízo, e depois disso a vida do mundo vindouro começaria. Chegou um momento em que eles começaram a suspeitar que, afinal de contas o Reino de Deus não se concretizaria aqui em uma terra como essa, e sim em lugares celestiais, embora a ideia de corpos revividos nunca morreu completamente, assim como a ideia ainda é mantida entre alguns cristãos hoje.

“O cenário mais instrutivo do que os judeus do tempo de Cristo (embora não os saduceus) acreditavam que acontece após a morte é encontrado em Enoque 22 (datado de cerca de 170 A.C.). Encontramos lá um relato dos três lugares no Seol, onde se acreditava que os espíritos dos mortos estariam reunidos até o Dia do Juízo. Entre os três lugares, havia grandes golfos, de modo que qualquer intercâmbio era impossível. Um lugar era para os justos, e ali eles eram preservados em segurança até o Dia do Juízo, quando eram julgados e entravam na felicidade do mundo vindouro que tinha sido preparado para eles. O segundo lugar era para os perversos que padecido na terra pelos seus pecados. Nada mais acontecia com eles. Eles não eram ressuscitados. Eles tinham pecado e pagaram a penalidade. Era o que era, e isso era tudo. O terceiro lugar era para os pecadores que não haviam sofrido na terra pelos seus pecados. Este era um lugar de grande tormento; eles pagavam a penalidade por seus pecados. No dia do julgamento, eram julgados e destruídos.

“Este, como é evidente, é o cenário da estória de Dives [o rico Epulão] e Lázaro. Lázaro está no ‘seio de Abraão’, isto é, na morada dos justos que aguardam o Último Dia. Epulão não está no inferno da imaginação popular, mas está pagando o preço no Seol pelos pecados não pagos cometidos na Terra. Ele morreu impenitente, e é aí que ele paga. Quando Jesus diz ao ladrão moribundo que eles estarão juntos naquele dia no Paraíso, a referência é à morada dos justos. A parábola das cinco virgens sábias e das cinco virgens tolas enfatiza o caráter final do julgamento de Deus que vem antes do banquete messiânico, que deveria inaugurar o Reino Messiânico. Realmente, de todas maneiras, é evidente que Jesus falou e pensou substancialmente como está estabelecido em Enoque 22. Há um Dia do Juízo para os justos e para os ímpios que não se arrependeram de sofrerem na Terra. Há uma ressurreição de vida para os justos e para os ímpios que não se arrependeram ou sofreram na terra.

“Nos escritos de São Paulo, há uma distinção nítida entre ‘o homem natural (psychikos)’ e ‘o homem espiritual (pneumatikos)’. Nada do homem natural sobrevive na vida do mundo por vir, mas apenas o homem espiritual, isto é, o homem que nasceu do espírito (pneuma). A frase ‘homem natural’ inclui tudo o que Paulo considerava pertencer à psyche. Esta é a palavra que, em Platão e entre os gregos, representa a alma imortal do homem, mas a palavra nunca é usada dessa maneira na Bíblia grega, nem no Antigo nem no Novo Testamento. No Antigo Testamento grego, a palavra representa o hebraico nephesh, a vivacidade do apetite e do desejo que deixa de existir na morte. No Seol não há nephesh alguma, nenhum desejo, nenhum anseio, nenhuma vida. Este uso da palavra grega psyche é transferido para o Novo Testamento, de modo que em parte alguma da Bíblia em inglês [e outros idiomas modernos] a palavra ‘alma’ deveria ser entendida como uma parte imortal do homem que sobrevive à morte. De acordo com a Bíblia, não há nada no homem, enquanto homem que sobreviva à morte, mas se ele durante a vida nasceu do espírito, ele é levantado para ser participante na vida do mundo vindouro.

“A grande diferença que o Novo Testamento faz é em matéria de mérito. Segundo o pensamento judaico contemporâneo, um homem poderia ganhar seu lugar no mundo vindouro por cumprir a Lei. Paulo deixa claro que não existe essa maneira, mas que tudo é de graça. O que se exige da parte do homem é a fé, uma confiança total e absoluta em Deus.

“Se, portanto, mesmo no momento da morte, um pecador realmente se arrepende e confia em Deus, então está tudo bem. O que foi verdade para o ladrão moribundo pode ser verdade para qualquer homem vivo. E ninguém pode dizer que por causa do que ele fez, a vida no céu está assegurada. Nós, cada um de nós, devemos depender inteiramente dos méritos e da morte do Senhor Jesus Cristo. Embora seja verdade que a fé sem obras está morta, o fator decisivo é a fé e não as obras. O ladrão moribundo teve fé e, na natureza das coisas, não teve tempo para mostrar quaisquer obras.

“Mas ‘como são levantados os mortos e com que tipo de corpo eles vêm?’ Neste capítulo (1 Cor. 15), Paulo distingue entre um corpo espiritual e um corpo natural. Até certo ponto, ele se afasta da visão contemporânea e tradicional da revivificação do corpo real de carne e osso. Eu julgo que na fraseologia moderna a visão dele é: Todas as coisas que pertencem a esta vida física chegam ao fim na morte. Isto inclui todos os elementos emocionais e todas as qualidades estéticas e mentais. Mas se um homem nasceu de novo, se ele nasceu do espírito, seu ‘corpo’ (soma) atua como uma espécie de portador e a identidade do homem é preservada. É o mesmo homem que é ressuscitado. O espírito persiste; não uma alma no sentido de algo que era naturalmente dele porque ele era um homem, e sim um espírito que nasceu nele quando ele veio até Cristo em fé. Muito do mesmo ensinamento encontra-se no Quarto Evangelho em relação à bios (vida física comum) e a zoe (a vida eterna) é o ‘transportador’ para os lugares celestiais. Isto eu considero ser a interpretação moderna correta da frase no credo.

“Está bem claro para mim quanto à doutrina bíblica sobre a vida após a morte que a crise final ocorre por ocasião da morte. Isso, como eu entendo os Evangelhos, é o formato claro das palavras do próprio Jesus, e não vejo qualquer razão para supor qualquer outra coisa, exceto com base em desejo de acreditar em algo [wishful thinking] com base em alguma doutrina de mérito pessoal que está excluída. É por isso que é tão importante que os pecadores se convertam agora, antes de morrerem. Aliás para mim, este é um argumento final contra o enforcamento como uma penalidade pelo assassinato. É uma coisa terrível cair nas mãos do Deus vivo, e eu não cortaria nenhum homem da oportunidade do arrependimento. Nenhum homem é tão perverso e está tão completamente abandonado, mas a graça de Deus pode realizar seu trabalho salvador no coração e na vida. É também claro para mim que existe uma ressurreição para a vida eterna para o pecador arrependido que tem o que nossos pais costumavam chamar de ‘mortos em fé’, isto é, para os que morreram na esperança do Evangelho. Pode haver uma ressurreição para o pecador não arrependido, pois o ensino da Bíblia varia aqui, mas, se houver, é uma ressurreição para a condenação e a morte. Se nos afastarmos desta doutrina, devemos reconhecer com bastante franqueza que estamos nos afastando da doutrina bíblica e do ensino da Igreja dos primeiros séculos. Para mim, é uma coisa bem notável que os primeiros pensadores cristãos se mantiveram tão livres da doutrina grega da imortalidade da alma. Ela estava lá, completamente desenvolvida, mas eles se mantiveram afastados dela. Eu creio que isto é significativo.

“O que acontece com o pecador não arrependido após a morte? Eu acredito que ou ele sofre os tormentos do inferno, ou ele é destruído na morte. Inclino-me para a segunda ideia porque não consigo conceber Deus punindo alguém exceto para levá-lo ao arrependimento. Portanto, se existe algum castigo dos ímpios após a morte, deve ser com o objetivo de levá-los ao arrependimento, e a doutrina romana do Purgatório é substancialmente sólida.

“Não encontro em parte alguma da Bíblia qualquer doutrina de que o indivíduo sobrevive necessariamente, isto é, da imortalidade da alma [de acordo com a concepção grega], no sentido de que há uma parte de todo homem que nunca pode morrer. Certamente é a vontade de Deus que todos os homens sejam salvos. É verdade agora como sempre foi que Deus ‘não deseja a morte de um pecador, mas sim que ele se desvie de sua maldade e viva’. Mas é também verdade, como implica essa oração, que se ele não se arrepender, então ele morre. Deus deu ao homem esta liberdade para escolher, e é uma liberdade real. É, de fato, a liberdade de viver ou de morrer. E nem mesmo Deus pode ter isso nos dois modos [ao mesmo tempo]. Parece-me que não é senão um pensamento confuso e sentimental afirmar que, se um homem está perdido, Deus foi derrotado. A vitória de Deus é uma vitória sobre o pecado. O pecado, por fim, será destruído, e com ele tudo o que está ligado a ele. Nenhuma planta pode viver em solo envenenado, e o pecado envenena a vida de um homem para que a planta do espírito nunca possa crescer lá.

“... Se os homens cristãos realmente entendessem o veneno mortal do pecado, eles levariam mais a sério as palavras de Jesus e perceberiam que há um terrível julgamento ordenado por Deus para todos os pecadores impenitentes e que um homem pode de fato morrer eternamente.

I Believe In...[Creio Em...], de Norman SnaithSCM Press Ltd., Londres, Inglaterra, 1949, pp. 115-121, colchetes acrescentados.

ERROS: 1, 3, 4 e 5.

Comentário:

De início vemos que Snaith lança por terra a teoria na qual o autor do MB parece se apoiar: de que a igreja primitiva que manteve o ensinamento correto sobre a alma se restringiu apenas ao primeiro século. Snaith era da opinião que o entendimento certo permaneceu até a época de Orígenes, e só depois é que Agostinho estabeleceu a “crença tradicional” sobre a alma. Snaith disse que tudo ia bem até o quarto século. E ainda afirma que a doutrina católica do purgatório (inferno temporário) “é substancialmente sólida”! Sendo assim, com base em tais declarações, a crença patrística imediatamente após a era apostólica, sobre a alma continuar viva e consciente depois da morte do corpo, não é equivalente à doutrina grega da imortalidade da alma, e esta só veio a ser aceita parcialmente por Agostinho.* Logo, já de início nota-se que a obra supracitada não atende aos interesses do autor do MB.

* Eu ainda não li as obras de Agostinho e o que conheço dele se resume apenas a citações e aquilo que obras de referência dizem a respeito do diálogo dele com o platonismo. Mas, baseado na minha experiência anterior com os primeiros pais da igreja, cujas obras são frequentemente descontextualizadas por “especialistas” ou aventureiros do aniquilacionismo, eu só opinarei com segurança sobre o que Agostinho ensinou depois que eu mesmo tiver lido integralmente o que ele escreveu. Eu não ficaria surpreso se descobrisse que ele também tem sido mal interpretado.

Uma coisa que eu gostei nessas explicações de Snaith é que ele admite francamente que não sabia muito bem no que acreditar, excetuando, é claro, a fé de que o cristão terá uma vida eterna, independentemente de como isso se dará. Snaith diz que as crenças diametralmente opostas do sofrimento dos maus no fogo do inferno ou a aniquilação completa deles são igualmente possíveis, e ele não tinha se decidido ainda por nenhuma delas. Visto que ele morreu no Senhor, provavelmente Snaith já foi informado sobre o que acontece com os maus, e hoje sabe qual opção deveria ter escolhido. É claro que, lá no íntimo, ele sabia que era a primeira, pois ele próprio costumava admitir que a Bíblia realmente aponta para uma existência continuada e sombria na “espaçosa morada subterrânea” do Seol e que a profecia de Daniel sobre a ressurreição já dava conta de que muitos ressuscitados seriam despertados para a “grande vergonha e horror eterno”. Nada dessas descrições combina com aniquilação ou com a opinião insustentável de que o Seol é uma simples sepultura. E, em referência aos maus, Snaith ainda alude ao texto de que é ‘uma coisa terrível cair nas mãos do Deus vivo’. O que indica que o destino deles não será apenas a inexistência. Mesmo assim, Snaith disse que se sentia ‘inclinado’ a crer nesta segunda “possibilidade”...

O quadro está bem definido. Ainda que Snaith claramente tivesse um apego maior do que o recomendado ao enfoque da Bíblia hebraica sobre a palavra nefesh (“alma”), bem como pelo cenário pessimista e negativo atribuído à morada dos mortos, considerando tudo o que ele escreveu, suas opiniões não podem ser usadas para apoiar o aniquilacionismo materialista. O que foi destacado nos parágrafos anteriores atesta isso. Um aniquilacionista convicto não faria tais tipos de declarações. É claro que Snaith cometeu um equívoco ao dizer que o conceito de Seol e seus moradores sombrios não era uma fase embrionária da ideia de uma vida após a morte. Está tão evidente que foi isso sim que muitos comentaristas expressam tal opinião e qualquer pessoa despojada de preconceitos aniquilacionistas perceberá facilmente tal conexão (ver citação “a” da obra nº 29, o trecho final da nº 49 e a observação de Bento XVI no comentário à obra 5). Mas esse erro é apenas uma peculiaridade na teologia de Snaith. E mesmo assim algumas de suas observações são corretas e pertinentes.

Outra evidência da referida inconsistência de Snaith é quando ele diz que os hebreus, afinal, se deram conta que a vida eterna seria celestial. Mas esta ênfase se encontra apenas no judaísmo intertestamentário e no Novo Testamento. A antiga visão hebraica a que Snaith se apegava com tanto vigor não vislumbra o céu qual destino, mesmo havendo referências superficiais, a exemplo do que vemos nos Salmos. Para os hebreus, a vida mesmo era só na Terra e na condição de ser humano. Mesmo as profecias do Velho Testamento sobre a ressurreição não apontam para uma vida celeste, mas apenas para a saída de pessoas dos túmulos. Ou seja, realidades terrestres. Isso demonstra que se apegar somente ao contexto hebraico retira a possibilidade de entender o assunto da maneira completa e mais correta. Houve uma evolução até a época de Cristo que deve ser considerada. E os primeiros autores patrísticos apenas refletiram o resultado final desse processo gradual.

Percebe-se o tamanho do apego que Snaith tinha à antiga visão “materialista” hebraica quando ele reconhece que determinados ensinos de Jesus estavam perfeitamente alinhados com a teologia que se desenvolveu no período entre os dois Testamentos. No entanto, por mais incrível que possa parecer, isso não foi suficiente para Snaith largar a velha opinião de que as “sombras” no Seol não podem ser chamadas de almas e que o entendimento correto de almas sempre se refere a seres de carne e osso. Por isso ele disse que “não há nada no homem, enquanto homem que sobrevive à morte”. De fato, não é a nefesh que respira oxigênio e que tem sangue nas veias que sobrevive à morte. É o homem interno que também se convencionou chamar de “alma”. A ideia de sobrevivência está implícita em toda a Bíblia, mas como ela geralmente não dá ênfase a isso e nem chama a alma que sobrevive de “alma vivente”, Snaith não abandonava a antiga opinião. É o que poderíamos chamar de alguém que se apega à forma das palavras e não à essência do que elas representam. Em suma, Snaith era um teólogo “burocrata”.

Também atente que se Snaith afirmou que a vida sem fim, no final das contas, será no céu, o “mundo vindouro” a que ele se referiu não pode ser algo futuro que virá para este planeta, mas à vida que o cristão encontrará depois que morrer. É futuro em relação à pessoa e não à Terra. E tem que ser assim mesmo, pois o céu já está do jeito que Deus quer. Por isso não há razão para espera. Num instante o cristão está aqui e no outro já se encontra na pátria celeste. Por isso, para ele, no momento da morte está tudo bem. Já os demais, que não têm fé ou que são muito maus, continuam indo para o Seol como sempre aconteceu desde o início do mundo.

Vemos ainda várias alusões a conceitos gregos. Por exemplo, Snaith critica a crença em ‘uma alma imortal que sobrevive à morte’ e que vai ao céu ‘pelos seus próprios méritos’. Sendo imortal no sentido de indestrutibilidade, pois “nunca pode morrer”. Os pais da igreja (aqueles dos 4 séculos iniciais que Snaith aprovou...) achavam sim que uma alma sobrevive à morte, porém não acreditavam que ela fosse imortal conforme os gregos pensavam e nem tampouco que está com passagem garantida para o céu devido a qualidades dela mesma.

Já está mais do que comprovado que o aniquilacionismo é um ensino falso, porém seus defensores continuam acreditando nele por simples desejo. Eu, particularmente, acho que esse comportamento é um ato de ingratidão, e até um pouco masoquista, pois Deus bondosamente quer que continuemos a existir, mas os aniquilacionistas rejeitam esse presente. Preferem que suas lembranças acumuladas sejam revividas por cópias perfeitas deles e usufruam uma vida futura que eles não sabem ao certo quando virá... Felizmente, a situação não se trata de desejarmos algo ou não, pois tudo acontece exatamente da maneira que Deus determinou desde o princípio do universo.

Portanto, o wishful thinking (crer só pelo desejo de acreditar) se aplica muito melhor à ideia grega e não à crença que todos os cristãos antigos sempre tiveram de continuarem vivos depois da morte. E se aplica mais ainda à postura do autor do MB nessa prática inadequada de citar tantas referências que não ensinam o que ele quer, sendo a obra nº 99 o ápice de tal procedimento. Nem quando os autores mostram claramente que não são aniquilacionistas ele aceita. Recusa-se a acreditar no que os próprios olhos estão vendo.

 

9. RECAPITULAÇÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Veja a seguir o que disse o autor do MB em sua conclusão sobre as referências que citou (os colchetes foram acrescentados):

“Todos estes pronunciamentos [dos eruditos] acerca do conceito dos antigos adoradores do verdadeiro Deus – baseados no exame imparcial das próprias Escrituras Hebraicas – divergem radicalmente das declarações costumeiramente encontradas na literatura imortalista sobre isso – baseadas, sobretudo, num simples desejo de acreditar [‘wishful thinking’]... todas as teorias acalentadas pelos imortalistas... são contraditas da maneira mais eloquente pelos eruditos... Declarado de modo simples e sem rodeios:... O ‘contraste mais interessante’ é entre as declarações [da Bíblia]... e as muitas afirmações erráticas que certos imortalistas modernos tanto insistem em fazer, com base em francas distorções das Escrituras e pesquisa inadequada”.

Vimos detalhadamente no decorrer deste livro que essas afirmações são completamente falsas. A Bíblia e a maioria dos eruditos citados não apoiam o aniquilacionismo. Realmente tais homens costumam fazer uma análise imparcial do assunto, porém a conclusão a que chegam é bem diferente da pretendida pelo “bereano”. Sendo assim, será que as críticas que ele endereça aos “imortalistas” não se aplicariam melhor a ele mesmo? De qualquer maneira, uma coisa é certa. Todos os fatos apresentados indicam que o autor do MB é quem faz afirmações erráticas baseadas em distorções das Escrituras e em pesquisa inadequada, como acontece também com todos os demais aniquilacionistas, inclusive os que são “eruditos”.

Como ficou bem demonstrado nas demais seções, quando os primeiros escritores cristãos da época patrística diziam aos gregos que a alma não é imortal, “inerentemente” imortal, era apenas no sentido de que ela (1) não é indestrutível, (2) teve um princípio e (3) não tem a morada do céu assegurada. Porém todos os cristãos acreditavam que a alma da pessoa continua viva e consciente depois da morte e, além disso, que ela (4) continua tendo algum tipo de corpo e (5) receberá o corpo físico de volta na ressurreição. Os platonistas ensinavam exatamente o contrário desses cinco pontos, além de haver outras diferenças. De modo que a crítica que muitos eruditos fazem contra a “imortalidade inerente da alma” é, na verdade, contra o referido conceito platônico. Mas eles sabem que a igreja primitiva acreditava na sobrevivência da alma. O que ela rejeitava era a versão de Platão sobre a maneira que a alma sobrevive. Não havia entre os cristãos a ideia de extinção após a morte, a ser revertida por Deus ao término de um longuíssimo lapso temporal.

Certamente quando o autor do MB insinua que “uma grande proporção de eruditos bíblicos” apoia a crença que ele defende, ele está contabilizando os que fizeram a referida crítica contra o platonismo, que a partir do século IV começou a ser parcialmente aceito pela Igreja. Mas o “bereano” está confundindo as coisas, misturando conceitos que são completamente distintos. E as evidências demonstram que atualmente é de caso pensado, pois ele sabe da existência desta minha pesquisa e já leu diversos trechos dela, especialmente sobre as citações inadequadas que ele está fazendo. Por isso ele disse o seguinte (os colchetes foram acrescentados):

“É claro que estas declarações inequívocas [dos eruditos] – que são decorrentes do exame da evidência contida nas Escrituras – não serão aceitas de modo algum pelos imortalistas. Eles só conseguem usar sua conversa dupla (fingindo que ‘concordam’ com os eruditos) no caso daquelas declarações de eruditos que lhes possibilitam, de alguma maneira, extrair ‘outra conclusão’ das palavras do autor (fazendo citações seletivas, tirando palavras do contexto, ou usando outros artifícios para fazer o erudito ‘dizer’ algo que ele não disse, ou para fazê-lo ‘cair em contradição’)”.

A ousadia de tais afirmações é realmente inacreditável. Praticamente tudo o que foi dito acima em referência aos “imortalistas” se aplica com muita propriedade ao que o próprio autor do MB vem fazendo em sua “pesquisa adequada” e “baseada nas Escrituras”. Ele é que distorceu o que os referidos especialistas disseram. A título de recapitulação, veja a seguir algumas das afirmações dos autores citados. Para ler na íntegra os trechos de onde as amostras foram retiradas, basta consultar as seções 2, 4 e 8. A numeração segue a mesma ordem utilizada nelas. Ou então clique no respectivo número da citação amostral para ver especificamente o que diz cada obra e a análise que foi feita dela (use a seta de retornar do seu navegador para voltar a este ponto):

- Os colchetes foram acrescentados e as obras favoráveis* ao “bereano” destacadas em vermelho.

* É possível que as referências 5, 37, 40, 72 e 80 não estejam realmente apoiando o aniquilacionismo materialista, especialmente as quatro últimas. Para determinar isso com maior segurança seria necessário ler integralmente as referidas publicações, além de outras que foram escritas pelos mesmos autores.

1. “[O Seol é] o lugar das almas que se foram... o tormento que aguarda os perdidos terá elementos de sofrimento adaptados ao aspecto material... [O Hades] é o mundo invisível”.

2. “Os hebreus primitivos acreditavam que os mortos descem para o mundo subterrâneo e vivem ali uma existência pálida”.

3. “É completamente assumido no N[ovo] T[estamento] que as almas dos homens, bons e maus, sobrevivem à morte”.

4. “Os judeus compartilhavam o ponto de vista do inteiro mundo antigo... de que os mortos continuavam a existir em uma morada sombria do mundo subterrâneo (Seol)”.

5. “[A morte] é uma partida para o nada”. (?)

6. “A palavra alma refere-se à parte imaterial do homem... [O Hades é] um abismo debaixo da terra; e os que lá ficam estão reduzidos a meras sombras, os espíritos dos mortos”.

7. “O Sheol é a terra dos fantasmas... os hebreus dos tempos primitivos falavam do Seol como sendo a morada dos espíritos dos mortos”.

8. “[No Antigo Testamento, a morte] não significa, porém, que a existência cessa. O homem continua a viver, embora em um estado muito fraco, no submundo do Seol”.

9. “O corpo e a alma são separados na morte... [Os maus] irão, alma e corpo, para o inferno”.

10. “[No Antigo Testamento] a morte foi vista e experimentada como uma transição para a fraqueza e impotência... morrer é ligado à terra da escuridão e do esquecimento... Na crença cristã, morrer também nunca foi interpretado como o morrer natural... a morte é apenas uma passagem para a vida eterna... Não há nenhuma dúvida de que a Igreja, desde os tempos mais antigos, estava convencida da existência contínua após a morte”.

11. “A realidade e a eternidade do sofrimento na Geenna é um elemento da verdade bíblica da qual uma exegese honesta não pode se evadir”.

12. “O Seol ou o Hades, [é] a morada dos espíritos dos mortos... Os hebreus, da mesma maneira que outros povos primitivos, não consideravam a morte como sendo a inexistência total... [Porém] A visão grega da imortalidade como sendo a absorção no Infinito é repudiada”.

13. “[Sobre o Hades:] usado para o hebraico Seol, a morada dos mortos, este termo veio a denotar o lugar de permanência temporária antes da ressurreição (conforme Is. 26:19)... Neste lugar os bons foram vistos então separados do maus (... conforme Lc. 16:23, 26)”.

14.Lucas 23:43 faz do paraíso o lugar onde tanto Jesus quanto o ladrão arrependido vão depois da morte; este é o paraíso dos justos, possivelmente concebido como um estado intermediário”.

15. “A psyche em Mat. 10:28... significa uma vida que existe separadamente do corpo”.

16. “É o Senhor que governa os espíritos do hades... [“Ir” ou “partir” pode] também significar a ‘partida’ desta vida (1 Rs 2:2; 2 Sm 12:23) e, em tempos posteriores, a viagem ao Sheol ou ao Hades (Inferno), como em Jó 10:21”.

17. “A Bíblia não ensina que o corpo é uma concha ou prisão na qual estamos presos e da qual ansiamos escapar... Todos que morrem vão para o mesmo lugar, o Seol... a região onde todos os mortos têm o mesmo tipo de existência sombria”.

18. “A concepção do Seol, a morada dos mortos, tem muitos pontos de semelhança com o Hades grego”.

19. “O mundo dos mortos... é concebido como um grande local subterrâneo de reunião no qual os mortos se levantam como espíritos das sombras e falam”.

20. “Os seguidores do pensamento de Fílon não foram os rabinos, mas os teólogos do Cristianismo nascente”.

21. “A morte para os ímpios não é aniquilação, mas a descida ao Seol... estado intermediário dos justos e dos ímpios é de experiência consciente ao invés de aniquilação”.

22. “[Sobre os aniquilacionistas:] Esses primos primogênitos dos psicopaniquistas erram por causa de uma falsa interpretação de uma passagem de São Paulo”.

23. “[A região dos mortos] está nas profundezas da terra”.

24. “[Seol é] a morada dos mortos de acordo com a Bíblia. Está localizado em um longínquo lugar debaixo da terra”.

25. “Visto que ele, Abraão, morreu como um bom hebreu, ele não teria tido nenhuma noção de sua própria sobrevivência após a morte”.

26. “[A oração de Jesus pede] apenas as necessidades básicas para manter o corpo e a alma juntos... Encaro com toda a seriedade tudo o que Jesus tinha a dizer sobre o inferno, incluindo o tormento eterno”.

27. “[O Seol fica nas] profundezas da terra... é o mundo subterrâneo para onde os espíritos partiram... Embora a ideia grega de uma alma imortal de espécie diferente do corpo mortal não seja evidente, ‘alma’ denota a existência de uma pessoa após a morte”.

28. “[O Seol é] o lugar mais profundo de todos... Apocalipse 6:9 indica a presença no céu das almas dos mártires antes da ressurreição”.

29. “Que Cristo se apartou na morte, em sua alma humana, para o lugar dos mortos até sua ressurreição é afirmado no N[ovo] T[estamento]... [O estado intermediário do crente] é um período durante o qual sua alma descarnada, em comunhão consciente com Cristo, espera a recepção da ressurreição corporal. Uma ideia alternativa, porém, é a de que os crentes recebem seu corpo espiritual na morte... Em qualquer dos casos... [o crente] acha-se plenamente alerta quanto ao seu novo ambiente... (literalmente) na presença de Cristo”.

30. “Ele [Calvino] tinha boas razões para concluir que a alma sobrevive à morte do corpo... Temos argumentado que a sobrevivência da pessoa, ou da alma, no estado intermediário entre a morte e a ressurreição, não implica necessariamente na sua sobrevivência eterna”.

31. “A obra hebraica [Eclesiastes] tem em comum com a epopeia de Gilgamesh o tema da morte e da vida humana transitória... Os pontos de vista de Eclesiastes sobre a morte são, em alguns aspectos, surpreendentemente diferentes da visão bíblica padrão... A visão de Eclesiastes sobre a morte é condicionada por seus interesses particulares”.

32. “No Antigo Testamento, a existência humana não termina com a morte... ‘Hoje você estará comigo no Paraíso’ (Luc. 23:43). Aqui é uma clara afirmação que a alma ou espírito do homem que estava morrendo estaria com Jesus”.

33. “No judaísmo antigo é incerta a condição dos mortos no sheol (lugar obscuro, caverna situada por debaixo dos oceanos...)... No cristianismo são claramente afirmadas as seguintes doutrinas: imortalidade da alma; juízo particular...”.

34. “Tanto os judeus quanto os cristãos têm uma crença bem estabelecida na vida após a morte... quer acordemos quer durmamos [na morte], estaremos vivos com Cristo”.

35. “[Os escritos proféticos] sugerem que há uma vida após a morte em que todos os mortos descem a uma região nas profundezas da terra chamada Sheol”.

36. “Usualmente a nefesh é considerada como a parte do homem que se separa do corpo por ocasião da morte (p. ex., Gn 35.18), ainda que a palavra jamais seja empregada para indicar o espírito dos mortos”.

37. “Esse dualismo... é a doença mais destrutiva que nos aflige... desprezar o corpo ou maltratá-lo por causa da ‘alma’... é mais uma blasfêmia... todos os nossos atos têm um significado supremo... Se pensarmos em nós mesmos como almas vivas, criaturas imortais...”. (?)

38. “As pessoas não se extinguem totalmente na morte... [Uma] dimensão extra da personalidade continua após a morte”.

39. “O corpo não é intrinsecamente impuro, como os platonistas haviam sustentado... Isso não significa, contudo, que a alma morra com a morte de seu corpo. Quando este último morre, a alma sobrevive...”.

40. “A erudição moderna tem ressaltado o fato de que os conceitos hebraico e grego de alma não eram sinônimos... não havia qualquer questão sobre duas entidades separadas, independentes”. (?)

41. “O Seol mais frequentemente designa as regiões inferiores... algumas passagens [do Novo Testamento] indicam que a alma sobrevive à morte... Deus traz a alma do Hades e o corpo do túmulo para serem rejuntados na ressurreição”.

42. “[Lc. 17:34 e 23:43] se referem ao dia da morte individual no qual ele [o indivíduo] tanto perde sua vida quanto ‘a ganha’ ”.

43. “[O Seio de Abraão] foi usado por Jesus na história de Lázaro como uma descrição do paraíso... Em escritos rabínicos, bem como em 4 Macabeus 13:17, os povos justos foram considerados bem-vindos na morte por Abraão, Isaque e Jacó. Jesus, provavelmente ciente disso, também aludiu ao ‘banquete messiânico’ ”.

44. “Existe um dualismo corpo-alma porque o corpo na sepultura é diferente da alma queimando nas chamas do inferno... o corpo carnal é idêntico ao corpo da alma... a alma tem um corpo”.

45. “A ideia da extinção pessoal devido à morte é um conceito sofisticado que era desconhecido até o 6º século antes de Cristo... os hebreus e os gregos, por exemplo, pensavam que, após a morte, apenas um espectro sombrio descia ao reino dos mortos, onde existia miseravelmente na poeira e na escuridão”.

46. “Em Israel, somente depois de lenta evolução da consciência moral foi que se impôs a ideia de punição depois da morte... No Novo Testamento, alude-se freqüentes vezes a um lugar em que serão punidos os condenados: ‘geena’.”.

47. “Não pode haver sobrevivência após a morte a menos que, e somente se, Deus recriar um novo ser”.

48. “A morte não abrandou [o falecido] Samuel. Ele diz [a Saul] as mesmas coisas sobre a desobediência e rejeição que ele falou quando estava vivo”.

49. “Sheol é o termo hebraico usado para designar o lugar para onde os mortos vão... [Nele] os espíritos dos mortos são retratados como indo ao recém-falecido rei da Babilônia... [O conceito de Seol] é muito parecido com a imagem do mundo inferior da literatura mesopotâmica”.

50. “O judaísmo sempre manteve uma crença na vida após a morte... os mortos descem ao Seol, uma espécie de Hades, onde vivem uma existência etérea e sombria... único ponto que emerge claramente das passagens acima é que existia uma crença na vida após a morte de uma forma ou de outra”.

51. “[A ideia de Seol] parece se aproximar ao conceito de Hades dos gregos... o lugar escondido ou não visto... a uma grande ‘profundidade no subterrâneo, fora da vista”.

52. “A recepção da teoria de Platão... é tão forte que para muitos ela eclipsa a esperança bíblica da ressurreição da pessoa inteira e confunde o núcleo da mensagem cristã sobre a vida após a morte com a doutrina platônica”.

53.Platão e outros gregos insistiam nas limitações que a matéria impunha à alma. O corpo era um impedimento... Nos primeiros tempos, o pensamento hebraico sobre o mundo vindouro dificilmente ia além da concepção de uma existência muito sombria no Seol”.

54. “O debate foi alimentado pelo desenvolvimento de crenças sobre a vida após a morte dentro da própria Bíblia... Os saduceus... adotaram o materialismo grego, que negava totalmente a vida após a morte... [Os] influenciados por Platão... enfatizaram a imortalidade da alma em vez da ressurreição física do corpo... O N[ovo] T[estamento] desenvolve uma posição mais parecida com a dos fariseus... prevê a comunhão pessoal com Cristo imediatamente após a morte (Lucas 23:43, 46; 2 Coríntios 5:1-10, Filipenses 1:20-24)”.

55. “A alma não representa uma parte divina, imortal, imorredoura do ser humano após a morte, como os gregos frequentemente pensaram... Há uma continuidade entre a vida terrena e a ressuscitada que não reside nas capacidades ou na natureza dos humanos mortais... Na maioria das vezes, recebemos imortalidade após a morte”.

56. “O foco dos contextos em que esses termos [alma e espírito] aparecem [no Novo Testamento] se sobrepõe... ambos são usados para falar da existência pessoal, da vida após a morte, das emoções, do propósito e da pessoa em si (o ‘eu’)”.

57. “Filosoficamente, toda a questão ainda está aberta à especulação, e o pensamento cristão, após o Novo Testamento, freqüentemente usou, de forma bastante justificada, a concepção platônica e outras sobre a imortalidade da alma como sendo formas intelectuais de sua fé”.

58. “Estar com Cristo, portanto, denota a condição dos crentes imediatamente depois de sua morte”.

59. “Tudo o que precisamos notar é a possibilidade de que Paulo pensava num estado intermediário... em que o gemer causado pela tensão [do não ainda]... poderia continuar além da morte e até a parusia... de qualquer maneira, Paulo pensa num estado incompleto no processo da salvação, que só pode ser resolvido pelo novo corpo de ressurreição”.

60. “O que é levantado é a pessoa inteira inclusiva de nossos vários aspectos: corpo, alma, e tudo mais. Isso não proíbe a afirmação da existência de uma alma humana (‘Deus fornece a identidade pessoal contínua, mesmo quando nossos corpos se desintegram’, comentário sobre a crença do autor desta obra)”.

61. “O elemento helênico no Novo Testamento é geralmente quase ignorado”.

62. “A oposição [à doutrina platônica da imortalidade natural da alma] foi grande [no cristianismo antigo], em primeiro lugar por parte dos primeiros Pais da Igreja”.

63. “[De acordo com o Antigo Testamento, na morte] o homem se torna uma mera sombra de seu antigo eu... o homem não possui uma alma indestrutível que sobrevive à morte, enquanto o corpo destrutível perece... É a sarx ou a alienação que morre, não o soma ou a personalidade”.

64. “[Há] falhas e imperfeições radicais dos melhores ensinamentos de Platão... suas conseqüentes ideias errôneas de sua cura por meio de sucessivas transmigrações na terra [as reencarnações]...”.

65. “Platão se manteve na alta consideração da antiga Igreja Cristã, especialmente enquanto os Pais da Igreja Grega foram peculiarmente os formadores e líderes da teologia”.

66. “O crente que dorme em Cristo não tem consciência da passagem do tempo... [As passagens do Novo Testamento sobre vida imediata depois da morte são] metáforas marcantes”.

67. “Cada abordagem que as várias escolas deram à alma atraiu diferentes teólogos patrísticos. Platão deu uma forte ênfase à imortalidade inerente da alma. Inicialmente, muitos cristãos resistiram a isso como incompatível com a mensagem do evangelho, e o conceito de ‘imortalidade condicional’ da alma era o preferido”.

68. “O homem é encarado na Bíblia como um todo... O homem dividido contra si mesmo é puro platonismo... Podemos concluir destes textos [Apocalipse 6:9 e 20:4], e das atitudes convictas que eles presumem, que a psychē depois da morte foi considerada uma pessoa, e ainda que separada da sarx-sōma [carne-corpo], continuava tão relacionada a ela que continuou sendo apresentada como possuindo algum tipo de corpo”.

69. “Os seres humanos aparentemente sempre tiveram alguma noção de uma duplicata sombria que sobrevive à morte do corpo... Porém, a ideia da alma como uma entidade mental, com qualidades intelectuais e morais, interagindo com um organismo físico, mas capaz de continuar depois da dissolução deste, deriva no pensamento ocidental de Platão e entrou no judaísmo aproximadamente ao longo do último século antes da Era Comum e daí no cristianismo”.

70. “Ao morrer, o homem inteiro morre... Porém, após a morte física, [há] um misterioso desígnio da sabedoria... além da materialidade, do caráter espacial e da temporalidade, o homem viverá de acordo com o que tinha sido sua vida no mundo (‘Abandonou o dualismo antropológico alma/corpo ao mesmo tempo que continuou a rejeitar o monismo idealista ou materialista’, sobre o autor desta obra).

71. “[No Antigo Testamento] a corrupção [da morte] afetava tanto o corpo como a alma... a partida da alma de Raquel significava a morte (Gênesis 35:18)... [mesmo não sendo] uma noção dualista de corpo e alma... se a nephesh aparece novamente no Seol, é apenas para uma existência inferior, e mesmo essa existência não é imaterial [da maneira que os platonistas pensavam]”.

72. “Deus criou o homem como um ser unitário; não há nele uma dicotomia de corpo e alma... A ideia de que a carne se opõe ao espírito e é a causa do pecado é alheia ao Antigo Testamento”. [Aqui o autor faz um contraste com os conceitos gregos]. (?)

73. “Os filósofos gregos argumentavam que... as almas dos homens são por sua própria constituição imortais... A [ideia grega de] imortalidade da alma não faz parte do credo cristão”.

74. “Devemos ter o cuidado de evitar interpretar o conceito hebraico de alma em termos do dualismo platônico”.

75. “É pouco menos do que um crime que alguém... cite as palavras ‘ausente do corpo e presente com o Senhor’ com a ideia de dispensar a esperança da Ressurreição... como se a ‘presença com o Senhor’ fosse alcançável sem ela!”.

76. “Essas sombras [no Seol] não são de qualquer forma diferentes das almas de Homero no Hades... a morte não é o fim da existência humana”.

77. “Quando o cristianismo, por exemplo, fala de sobrevivência e imortalidade, quem sobrevive e é imortal não é a alma, e sim o homem, isto é, toda a substantividade humana”. [Este autor era contra o aniquilacionismo, de acordo com alguns especialistas em sua obra].

78. “A imortalidade humana inerente, porém, é uma ideia alheia às Escrituras Judaicas... Foi só durante o período do Judaísmo do Segundo Templo (cerca de 200 AC-120 DC), quando o conceito grego de imortalidade foi fundido com o conceito hebraico dos seres humanos que foram criados ‘à imagem de Deus’ (Gen. 1:27), que os judeus começaram a distinguir entre corpo e alma... Primeira aos Coríntios 15 coloca claramente a recepção da imortalidade no momento da ressurreição”.

79. “Os mortos existem em uma condição de vitalidade reduzida; esse tipo de vida sombria no submundo era conhecido, por exemplo, entre os gregos (Hades) e os antigos hebreus (Seol). Quando o espírito de vida partia, o homem continua a existir na terra das sombras”.

80. “Quando morremos, tudo em nós morre... Se houver alguma continuação da existência depois da morte, terá de ser em um corpo reanimado ou recriado que Deus simplesmente decidiu tornar vivo novamente”. (?)

81. “O pensamento grego não influenciou fortemente o pensamento hebraico ou judaico até o período helenístico”.

82. “Os apóstolos haviam advertido os cristãos que desta mesma fonte haveriam de surgir erros entre eles... Estes erros não foram introduzidos sem oposição... Não é de admirar que os cristãos árabes se opuseram à doutrina da imortalidade da alma”.

83. “O conceito de ‘alma’ no sentido de uma realidade puramente espiritual ou imaterial, separada do ‘corpo’,... não existe na Bíblia”.

84. “Os hebreus não eram dualistas em sua compreensão do mundo de Deus”.

85. “Paulo caracterizou os tratos divinos com o mundo e o homem em uma palavra: mistério. Isto também pode ser dito e, de forma preeminente, do homem que permanece [depois da morte], apesar de muitos estudos e análises, um mistério e um enigma sem solução suficiente”.

86. “Com quem Deus dialoga, seja na ira, seja na graça, esta pessoa certamente é imortal’, dizia Martinho Lutero... Em relação à nossa vida, a morte é bem mais um portal de passagem, uma transformação de nossa parte”.

87. “Existem trechos no A[ntigo] T[estamento] que mostram que a existência de um homem como ser individual não terminava na morte. 1 Sam. 28:7 e seguintes nos conta que Saul recebeu informações de Samuel [o falecido]... a existência individual de um homem continua após sua morte”.

88. “Os hebreus dos dias primitivos falavam do Seol, a morada dos espíritos dos mortos... um mundo sem esperança e sem desejo”.

89. “Nada sobrevive [à morte] se não for levantado por Deus, e a condição é que o homem deve estar ‘em Cristo’ e, desta forma ‘nascido do espírito’ ”.

90. “Na morte, a pessoa está ausente do corpo – isto é, no estado intermediário. Por um lado, Paulo prefere muito este estado a estar no corpo, visto que está ‘habitando com o Senhor’.”.

91. “A imortalidade não é inerente, mas está condicionada à fé em Cristo... Antes de passar a uma consideração dos dados bíblicos tanto a favor como contra o aniquilacionismo, é necessário examinar o significado da palavra grega αιωνιος (aionios) [“eterno”]”. [O “aniquilacionismo” aqui é sobre se haverá ou não tormento eterno, e não sobre se a morte resulta em extinção imediata].

92. “Matar o corpo aqui significa tirar a vida atual na Terra. Mas isso não mata a própria alma ou pessoa. Isto só a faz dormir”.

93. “A imortalidade da alma é uma opinião – a ressurreição dos mortos é uma esperança. A primeira é uma confiança em algo imortal no ser humano, a segunda uma confiança no Deus que chama à existência coisas que não existem, e faz os mortos viverem”. [A “coisa que não existe” (ainda) é o corpo da ressurreição, e não a alma que continua em existência, mesmo não sendo imortal no sentido grego].

94. “ ‘Alma’ chega a significar, inclusive algo imortal, distinto do corpo (Apoc. 6:9; 20:4). Porém, a necessidade da RESSURREIÇÃO corporal (Rev. 20:4 em diante) não é negada... No Antigo Testamento não se encontra um termo equivalente a imortalidade; porém, o conceito de sobrevivência após a MORTE é claro”.

95. “[No] Antigo Testamento, o Seol, é frequentemente representado em termos visíveis como uma existência sombria e carente de dinamismo. Também neste aspecto, os hebreus compartilhavam muitas de suas ideias com seus vizinhos no Oriente Médio”.

96. “Para o pensamento hebraico, [quando o homem morre] sua nephesh [“alma”] não existe mais; pois essa palavra significava unicamente o Ser causado pela coexistência do fôlego ativador com carne, ossos e sangue”. [Antigo enfoque hebraico. Não se trata de aniquilacionismo, pois o homem descia em uma forma enfraquecida, porém consciente, para o Seol; só próximo da época de Jesus é que esse ‘homem invisível’ que desce para o subterrâneo passou a ser chamado também de “alma” ou “espírito”. Antes era apenas uma “sombra” ou “fantasma”. Ver citação nº 98, abaixo].

97. “Uma ressurreição do corpo era a única forma de triunfo sobre a morte que a psicologia hebraica poderia conceber para os que estão realmente mortos... A doutrina grega da imortalidade... não ocorre no Novo Testamento nem nos Credos [da igreja do século II em diante]”.

98. “[No Antigo Testamento, em relação à morte] há também a ideia de um fantasma ou duplicata (que não deve ser necessariamente identificado com a alma) – uma réplica fraca e sombria para o eu, como o fantasma de Samuel, descrito pela ‘feiticeira de Endor’ (1 Sam 28:14)”.

99. “A alma que parte vai para Jesus, mas ela não é glorificada... a ideia da imortalidade da alma, embora reconhecida em Lucas 12:5 e 20:38, não é, em geral, um tema do evangelho... [Mas] eu não duvido da imortalidade da alma... ele (Cristo) dá vida a quem ele quer – primeiro às suas almas e depois aos seus corpos... esta doutrina [do aniquilacionismo] é uma heresia mortal e desmoralizante... a morte nunca significa deixar de existir”.

100. “... ‘muitos dos que dormem no pó da terra (hebreus, portanto) despertarão, uns para a vida eterna, e uns para grande vergonha e horror eterno’... Quando Jesus diz ao ladrão moribundo que eles estarão juntos naquele dia no Paraíso, a referência é à morada dos justos... É uma coisa terrível cair nas mãos do Deus vivo... O que acontece com o pecador não arrependido após a morte? Eu acredito que ou ele sofre os tormentos do inferno, ou ele é destruído na morte”.

Como está evidente, não houve nenhuma ‘tentativa de buscar contradições’ nas declarações dos eruditos. Caso as leia na íntegra, e isto é recomendado, verá que a inadequação delas ao objetivo do autor do MB é ainda maior. Os especialistas são majoritariamente contra o aniquilacionismo materialista, ou seja, aquele que diz que a morte resulta em inexistência total da pessoa, ainda que uns poucos relutem em aceitar o tormento eterno dos maus, como foi o caso do autor da obra nº 100. Conforme já visto, originalmente o aniquilacionismo se referia somente aos que negavam a punição eterna do inferno, pois não existia na igreja primitiva o conceito de inexistência depois da morte. Todos acreditavam que havia uma alma que sobrevive. Porém o foco aqui não é esse aniquilacionismo antigo, mas o que surgiu por volta do século 19, que eu chamo de “aniquilacionismo materialista”.

É claro que o autor do MB dirá que omiti partes importantes das explicações, que “provariam” o que ele diz, e que fiz uma “citação seletiva” delas ou citei argumentos fora do contexto. Caso você venha a ler as seções recomendadas, perceberá que isso não é verdade. As reduções e seleções que apresento são apenas para destacar aspectos cruciais que são frequentemente ignorados por ele e raramente comentados. Ele faz questão de “limar” tais detalhes de sua argumentação porque sabe que eles são inconvenientes e atrapalham o que ele imaginou sobre os eruditos citados, ao achar que eles apoiariam o aniquilacionismo.

Diante das verdadeiras informações dos eruditos sobre o mundo dos mortos, se entende porque o autor do MB quer mudar o Hades de lugar com uma simples “canetada”, ou “digitada”, e transferi-lo para o mundo da imaginação ou do simbolismo. Porque se a Bíblia diz que o Seol é um mundo invisível e desconhecido com características espirituais nas profundezas da Terra, e ao mesmo tempo afirma que os mortos vão para lá, então não se trata de algo físico que faz essa viagem, pois os corpos de quem morre vão para o cemitério, local acessível a todas as pessoas. De modo que a única “solução” para esse problema é dizer que o Seol é apenas uma cova rasa, jogando assim na latrina todas as referências bíblicas que contradizem essa ideia e também os “eruditos credenciados” (sic.) que tacitamente o autor do MB diz respeitar... Quem dera isto fosse verdade! Assim haveria esperança para ele dar meia volta de seu erro.

E como se não bastasse essa releitura de um ponto fundamental, ele não se cansa de nos apresentar exemplos primorosos de que não consegue compreender o âmago de determinadas questões, caso isso não seja algo premeditado. Observe o que ele disse sobre os habitantes da morada invisível dos mortos, conforme explicado pela maioria dos eruditos:

“E ainda que fosse verdade que o termo ‘sombras’ dá a entender ‘criaturas debilitadas’ no Seol, que não usufruem ‘verdadeira vida’, e sim uma ‘existência rebaixada’ ou ‘triste’ (talvez por se encontrarem num ‘cenário sombrio’?), isso ainda anularia outras teorias, tais como aquela da ‘vida melhor depois da morte’, ou a ideia de que certos mortos vão para algum tipo de ‘paraíso’ idílico radiante, para lá usufruir ‘paz, alegria e vida sem fim’. Como acontece em muitos casos, as teorias inventadas por certos imortalistas não contradizem apenas as Escrituras, mas também se ‘implodem' entre si mesmas, visto que muitas delas são produto de pesquisa deficiente ou nada mais que elucubrações feitas às pressas, conforme a ‘conveniência’ do momento (naquele ‘desespero’ de responder qualquer coisa para ‘refutar’ as evidências que os eruditos apresentam contra as teses deles)”.

Será que ele não percebeu em todas essas citações que quando exegetas e comentaristas explicam o que é o Seol e seus habitantes sombrios eles estão se referindo apenas a uma das fases do entendimento do povo de Deus sobre esse tema? E a mais primitiva delas? Houve uma curva doutrinal ascendente até o tempo de Jesus e da igreja primitiva, época em que todos já sabiam que a realidade da vida após a morte não era bem aquilo que os antigos hebreus acreditavam e que registraram no Antigo Testamento. No entanto, a mente do autor do MB travou em uma concepção errônea, como se fosse um vírus de computador, e talvez por isso quando ele adentra nesse assunto ele não consegue raciocinar direito. Isto é comum acontecer quando uma falsidade religiosa é implantada no coração de uma pessoa.

O resultado prático de toda essa situação é que quando o autor do MB cita os eruditos, ele tem uma coisa na cabeça e os eruditos têm outra! É o caso da famosa “imortalidade condicional” aludida na igreja primitiva. Geralmente quando autores se referem a isso, eles não estão querendo dizer que os primeiros cristãos não acreditavam que uma alma sobrevive à morte, ou que não se sobreviva de imediato à morte (a linguagem irá variar de acordo com a época). Não, não é isso! O que esses comentaristas estão dizendo na maioria das vezes é que o conceito grego de imortalidade da alma não fazia parte do cristianismo original, pois ele difere radicalmente da ideia cristã, tendo em comum com ela apenas a crença de que uma alma permanece viva. Para se inteirar com detalhes a respeito de tal contraste entre as duas correntes, recomendo novamente os dois estudos indicados a seguir:

A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?

O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?

Neles você verá dezenas de documentos da fase inicial do Cristianismo que apresentam o verdadeiro quadro de crenças relacionadas à morte e ao conceito de alma, que não é o que os aniquilacionistas costumam imaginar.

Dentro desse processo de imaginação, é importante salientar que há pelo menos três características importantes na maneira que o autor do MB apresenta suas opiniões e que estão sempre presentes desde que ele iniciou suas “pesquisas” mais abrangentes sobre a questão do aniquilacionismo:

1) Ele não entende determinadas informações apresentadas por eruditos bíblicos porque desconhece o contexto autoral. Por isso, além de achar que eles servem para o que ele pretende provar, às vezes chega a uma conclusão que é exatamente o oposto do que a referência está informando. O que vimos nas 100 obras aqui analisadas demonstra o resultado calamitoso desse problema.

2) Como se não bastasse essa enorme dificuldade que ele tem de compreender alguns assuntos, ele ainda faz declarações ofensivas a respeito dos “imortalistas” e usa palavras ácidas para descrevê-los. Na maioria dos casos elas são contra mim, em virtude do que ele leu em meus textos. Dentre o que ele diz, cito alguns exemplos: “francas distorções das Escrituras”, “pesquisa inadequada”, “procedimentos lastimáveis”, “erros deploráveis”, “releituras particulares da Bíblia”, “conversa tola” etc.

3) Ele não quer, de maneira alguma, aceitar a essência da crença que defende e ao se referir a ela diz coisas do tipo: ‘os imortalistas criticam os chamados “aniquilacionistas” ’. Prefere o termo “mortalista”, que é uma classificação inadequada, pois ele não acredita na versão bíblica de morte, que significa descer para o mundo subterrâneo do Hades. Mas o fato é que os aniquilacionistas não são apenas “chamados”, como se isso fosse uma injustiça a eles, eles realmente são! Para eles, todos os que morreram não existem mais. Foram completamente aniquilados.

Certamente tais problemas contribuem para a notória falta de acurácia dele ao escolher os trechos de tantos livros e periódicos que agora fazem parte de seu rol inadequado de citações. Se aquilo que o motiva está essencialmente errado não podemos esperar muita coisa da “pesquisa” que ele empreendeu, cujo panorama geral está apresentado na tabela abaixo, feita com base no que foi visto nas seções 2, 3, 4 e 8, e resumido nesta seção:

 

A REFERÊNCIA APOIA O ANIQUILACIONISMO MATERIALISTA OU SE APROXIMA DESSE OBJETIVO?

 

 

 

SIM

 

 

NÃO

1. Commentary Critical... on the Old and New Testaments

0

1

2. The Jewish Encyclopedia

0

1

3. The International Standard Bible Encyclopedia

0

1

4. Jewish Theology: Systematically and Historically...

0

1

5. Die Letzten Dienge: Lehrbuch der Eschatologie

1

0

6. Dictionnaire Encyclopedique de la Bible

0

1

7. The Distinctive Ideas of the Old Testament

0

1

8. The Interpreter’s Dictionary of the Bible

0

1

9. The Encyclopedia Americana

0

1

10. Studies In Dogmatics. Man: The Image of God

0

1

11. The New Bible Dictionary

0

1

12. A Theological Word Book of the Bible

0

1

13. Theological Dictionary of the New Testament

0

1

14. Dictionary of the Bible

0

1

15. The New Catholic Encyclopedia

0

1

16. Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament

0

1

17. Christian Doctrine

0

1

18. The Religious Ideas of the Old Testament

0

1

19. Anthropologie des Alten Testaments

0

1

20. As Grandes Religiões

0

1

21. The Zondervan Encyclopedia of the Bible

0

1

22. Calvinism and Scholasticism in Vermigli's Doctrine…

0

1

23. Jewish Ideas & Concepts

0

1

24. The Concise Jewish Encyclopedia

0

1

25. Genesis – Volume I

0

1

26. The Parables of the Kingdom, Grace and Judgment

0

1

27. Harper’s Bible Dictionary

0

1

28. The Eerdmans Bible Dictionary

0

1

29. New Dictionary of Theology

0

1

30. The True Image: The Origin and Destiny of Man...

0

1

31. Word Biblical Commentary: Ecclesiastes

0

1

32. A Theology of the New Testament

0

1

33. Enciclopédia Mirador

0

1

34. New Testament Theology

0

1

35. What Do Jews Believe? – The Spiritual Foundations...

0

1

36. New Bible Dictionary

0

1

37. “Christianity and The Survival of Creation”

1

0

38. The Death of Death – Resurrection and Immortality...

0

1

39. The Encyclopaedia of Judaism

0

1

40. Baker Encyclopedia of Psychology…

1

0

41. Eerdmans Dictionary of the Bible

0

1

42. Christ and the Future in New Testament History

1

0

43. Tyndale Bible Dictionary

0

1

44. Care for the Soul:…Intersection of Psychology...

0

1

45. Encyclopædia Britannica

0

1

46. Grande Enciclopédia Barsa

0

1

47. The Modern Theologians:… Christian Theology...

1

0

48. Old Testament Theology, de John Goldingay (2006)

0

1

49. Ancient Near Eastern… World of the Hebrew Bible

0

1

50. Encyclopaedia Judaica – Second Edition

0

1

51. A Hebrew and English Lexicon Without Points

0

1

52. Theologische Realenzyklopädie

0

1

53. The Oxford Dictionary of the Christian Church

0

1

54. Evangelisches Kirchenlexikon

0

1

55. Holman Bible Dictionary

0

1

56. Expository Dictionary of Bible Words

0

1

57. The Authority of the Bible

0

1

58. Paulus, Ontwerp van zijn theologie

0

1

59. The Theology of Paul The Apostle

0

1

60. Essentials of Christian Theology

0

1

61. Philosophy of Plotinus

0

1

62. The Concept of the Soul in Plato and in Early Judeo...

0

1

63. Biblical and Classical Views of Personality

0

1

64. The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious...

0

1

65. The Christian Element in Plato and the Platonic...

0

1

66. Imortalidade ou Ressurreição? - Uma Abordagem...

1

0

67. The SCM Press A-Z of Patristic Theology

0

1

68. The Biblical Meaning of Man

0

1

69. Christianity: History, Belief, and Practice

0

1

70. Corpo e Alma, de Pedro Laín Entralgo

0

1

71. The Pauline View of Man in Relation to its Judaic...

0

1

72. “The Biblical View of Man”, Indian Journal...

1

0

73. Christian Words and Christian Meanings

0

1

74. A Study of Hebrew Thought

0

1

75. How To Enjoy The Bible

1

0

76. The Pattern of New Testament Truth

0

1

77. El Hombre y Su Cuerpo

0

1

78. The Westminster Theological Wordbook...

0

1

79. The Standard Jewish Encyclopedia

0

1

80. Only Human: Christian Reflections…

1

0

81. Death and the Afterlife in the New Testament

0

1

82. Three Essays. On the Intermediate State...

1

0

83. La Parole de Dieu. Approches du mystère...

0

1

84. Law and Grace: Must a Christian Keep...

0

1

85. The Old Testament View of Man

0

1

86. Der Geist des lebens

0

1

87. The Living Soul: A Study of the Meaning...

0

1

88. Have Faith In God

0

1

89. Life After Death – The Biblical Doctrine...

0

1

90. The Witness of Jesus, Paul and John...

0

1

91. Implications of the Nature of Immortality for...

0

1

92. Life and Immortality: An Examination of…

1

0

93. Das Kommen Gottes: Christliche Eschatologie

0

1

94. Nuevo Diccionario Ilustrado de la Biblia

0

1

95. Themes in Old Testament Theology

0

1

96. How Came Our Faith: a Study of the Religion...

0

1

97. The Siege Perilous: Essays in Biblical...

0

1

98. The Perfectibility of Human Nature in Eastern...

0

1

99. The Hopes of the Church of God – In Connection...

0

1

100. I Believe In...

0

1

 

TOTAL

 

 

11

 

89

Vemos que 89% do material que o autor do MB citou não corrobora o aniquilacionismo. Sendo que há dúvidas se cinco das obras incluídas nos 11% restantes realmente advogam tal conceito. Eu as classifiquei como sendo aniquilacionistas apenas por precaução. Mas se essas seis publicações forem retiradas da lista a proporção será de 6 para 100. Ou seja, apenas 6%. Além disso, o livro nº 47 apresenta um aniquilacionismo peculiar, que poderia ser chamado de “aniquilacionismo imortalista” (!), segundo o qual a cópia do novo ser com lembranças daquele que morreu é feita imediatamente depois da morte, de modo a não haver interrupção da “vida”. Já o aniquilacionismo materialista diz que isso só ocorrerá em um futuro longínquo (com exceção de 144.000 pessoas que são replicadas imediatamente no céu, de acordo com as “Testemunhas de Jeová”). Não obstante o resultado desse levantamento, veja as seguintes afirmações do “bereano”:

“Reconhecemos que qualquer pessoa é livre para crer e defender o que quiser, incluindo os conceitos relacionados com a ‘imortalidade inerente da alma’. Porém, se tal pessoa realmente examinou o assunto com um nível razoável de profundidade, ela deverá necessaria e coerentemente reconhecer que tais conceitos não têm base bíblica. Toda e qualquer tentativa de insinuar o contrário está em contradição direta com todas as evidências apresentadas por uma grande proporção de eruditos bíblicos”.

Essa declaração que ele fez é bastante enganosa. Conforme visto na tabela, a verdadeira proporção demonstra o inverso do que é dito acima. É bem pequena a proporção de eruditos que apoiam a crença de que a morte resulta na inexistência total de quem morreu (extinção). É nisto que o autor do MB acredita. Lembre-se sempre disto! Ele não enxergar a verdadeira realidade se deve basicamente aos seguintes motivos:

1) Mencionar críticas à ideia grega de imortalidade da alma como se elas se referissem à antiga crença cristã de sobrevivência imediata depois da morte.

2) Citar autores que também acreditam na vida imediata após a morte, porém não chamam a parte sobrevivente de “alma”, mas de “homem inteiro”, devido a uma visão holística ou integralista sobre o ser humano. Neste caso, a ressurreição é imediata. (Ver citação da obra nº 29).

3) Se valer da argumentação de alguns eruditos que não creem na punição eterna do inferno de fogo e dizem que os maus serão simplesmente destruídos. Embora a ortodoxia cristã os considere aniquilacionistas, eles não são materialistas, porque acreditam que o homem (ou a alma) sobrevive à morte e que Deus, por enquanto, não extingue ninguém.

4) Recorrer a eruditos de sólida formação que, infelizmente, abraçaram o aniquilacionismo materialista. Eles são bem poucos.

5) Por fim, recorrer à literatura de religiões que são abertamente aniquilacionistas ou psicopaniquistas, como é o caso do Adventismo.

Se o autor do MB quisesse realmente apresentar um trabalho minimamente coerente com sua crença, ele devia se limitar apenas às duas últimas fontes de informação e descartar todas as demais. Antes ele não tinha percebido que os autores que citou se subdividem nas 5 categorias acima, e só está sabendo disso agora, depois que eu mostrei neste livro. O motivo é porque ele não fez uma análise meticulosa das obras, a fim de descobrir a intenção autoral delas. Não verificou a continuação dos trechos que citou e nem os demais textos escritos por esses mesmos autores. Houve algumas exceções, porém não porque quisesse determinar melhor o que é ensinado pelo erudito. Mas porque viu mais coisas “aproveitáveis” em outras obras dele. Além disso, não deu a menor importância a determinados pontos que há nas próprias citações, os quais contradizem o objetivo pretendido. Em suma, fez uma pesquisa deficiente devido ao desejo de engrossar a lista de citações.

Naturalmente, mesmo que um dia ele se convença da real situação, ele vai relutar em abandonar os autores que não estão alinhados com o aniquilacionismo materialista, pois se fizesse isso a “evidência” acadêmica em prol do que ele acredita minguaria substancialmente e ficaria conforme apresentado na tabela. A não ser que ele começasse a citar maciçamente obras adventistas ou dos “Estudantes da Bíblia”, ramo dissidente das “Testemunhas de Jeová”. Alguns dos materiais de ambos os grupos já estão publicados no site dele, mas não figuram ainda no rol de citações que foi analisado aqui. Mas talvez não fosse interessante para ele citar somente tais publicações, pois geralmente elas possuem pouca ou nenhuma projeção no meio acadêmico.

Por tudo o que foi considerado aqui, o mesmo “efeito bumerangue” ocorre na crítica final que o autor do MB fez a mim, quer dizer, “aos imortalistas”... Lembre-se que o “código de conduta” dele não permite o tratamento ad hominem (os colchetes foram acrescentados):

“Na presente discussão, a forma lógica da argumentação [do ‘wishful thinking’] pode ser expressa deste modo:

Eu quero que a Bíblia ensine que a "alma" sobrevive à morte, permanece ativa e consciente, e pode até interagir com os vivos. Logo, a Bíblia ensina isso de fato.’

“Ou deste:

‘Tanto os judeus da antiguidade como os primitivos cristãos acreditavam realmente nessas coisas, porque eu quero que seja assim.’

“Em toda situação em que uma determinada crença baseia-se no desejo pessoal, e não em fatos ou evidências objetivas, o indivíduo que mantém tal crença se recusará terminantemente a aceitar qualquer informação que a contradiga, quer por tentar neutralizar tal informação (apelando às mais diversas formas de raciocínio falacioso), quer por simplesmente desconsiderá-la, banindo-a para os mais profundos recessos da mente”.

Para uma consideração mais abrangente do quanto ele realmente não manifesta desejo pessoal em sua crença e só se baseia em fatos e evidências objetivas, além de nunca apelar para argumentos falaciosos, recomendo que leia as seções 2, 3, 4 e 8. Caso não possua o tempo necessário para isso, leia pelo menos a consideração sobre a obra nº 99. Ela é bem representativa da real situação em que se encontra o autor do MB. Além disso, leia novamente as breves citações que estão transcritas antes da tabela. Elas resumem de maneira rápida os pontos mais relevantes das 100 obras analisadas.

Portanto, aí está. Com tudo posto e devidamente esclarecido, quem vier a ler este trabalho poderá tirar suas próprias conclusões sobre o que foi apresentado. Estará apto para opinar se os aniquilacionistas usam ou não referências bibliográficas de maneira incorreta com o intuito de promover uma falsidade religiosa. Dentre as várias afirmações confiantes que fez, o “bereano” disse que os leitores perceberão o erro de quem defende o “imortalismo” porque eles ‘não são desprovidos de inteligência ou senso crítico’. Mas será mesmo que é isso o que a maioria dos leitores costuma concluir? Algo me diz que não... O que foi visto aqui poderá ajudá-los nessa avaliação.

 

APÊNDICE

A. O conceito grego sobre a imortalidade da alma

Muitos alegam que o conceito cristão sobre a sobrevivência da alma depois da morte do corpo, chamada por alguns de “imortalidade da alma”, é influência direta da filosofia grega, em especial do neoplatonismo. Este é o mantra de todo aniquilacionista. A primeira obrigação dos que compraram essa ideia seria verificar o que os filósofos gregos ensinaram sobre a alma e comparar com aquilo que o Cristianismo primitivo dizia. Pelo menos é isso o que um estudo minimamente sério requereria. Mas, infelizmente, nota-se que a maioria dos que se apegam à referida teoria conhece muito pouco do que está escrito nas antigas literaturas grega e cristã. Não sabem se realmente há fundamento para a opinião de que o entendimento dos antigos cristãos sobre a alma foi importado da Grécia.

Embora os gregos, em geral, sempre tenham acreditado que alma sobrevive à morte e desce para um lugar subterrâneo chamado Hades, é com o filósofo Sócrates que tem início um desenvolvimento mais refinado dessa crença, que foi divulgado por seus discípulos, começando por Platão (427-347 a.C.). Alguns séculos depois a figura que mais se notabilizou por escrever sobre a imortalidade da alma foi Plotino, que pertenceu a uma fase chamada neoplatonismo, quando o Cristianismo estava em plena expansão no Império Romano, não obstante as frequentes perseguições.

Ainda que o neoplatonismo tenha algumas diferenças em relação ao platonismo original, no que diz respeito à alma e sua natureza eles ensinam basicamente a mesma coisa. O primeiro ponto importante defendido por eles é que o corpo é inerentemente mau e a alma o odeia. Por isso quer se livrar dele pelo mecanismo da morte. Isto é chamado de dualismo, sobre o qual disseram Platão e Plotino:

“As preocupações dessa pessoa [o filósofo], não visam ao corpo, porém tendem, na medida do possível, a afastar-se dele para aproximar-se da alma... Nisto, por conseguinte, antes de mais nada, é que o filósofo se diferencia dos demais homens: no empenho de retirar tanto quanto possível a alma da companhia do corpo... a alma pensa melhor quando não tem nada disso a perturbá-la, nem a vista nem o ouvido, nem dor nem prazer de espécie alguma, e concentrada ao máximo em si mesma, dispensa a companhia do corpo, evitando tanto quanto possível qualquer comércio com ele, e esforça-se por apreender a verdade... Por consequência, continuou, ao vires um homem revoltar-se no instante de morrer, não será isso prova suficiente de que não se trata de um amante da sabedoria, porém amante do corpo? Um indivíduo nessas condições, também será, possivelmente, amante do dinheiro ou da fama, se não o for de ambos ao mesmo tempo”. – Fédon, de Platão, domínio público, p. 7-11, diálogo de Símias com Sócrates, colchetes acrescentados.

“As almas, ligadas ao corpo, são aptas à punição do corpo, as almas limpas são as que já não atraem em si mesmas qualquer vestígio do corpo, pelo seu próprio ser, pois ficam fora da esfera corporal. Livre do corpo, não contendo nada de corpo - onde a Essência está, e o Ser, e o Divino dentro da Divindade, entre Aqueles, dentro daquilo, tal alma deve estar”. – Quarta Enéada, Tratado III, seção 24, de Plotino.

Esse ponto de vista não era defendido pelos primitivos cristãos, pois eles valorizavam o corpo. Daí a importância que eles davam à sua ressurreição. Abaixo dois exemplos:

“Vocês foram comprados por alto preço. Portanto, glorifiquem a Deus com o corpo de vocês”. – 1 Coríntios 6:20, NVI.

“Nenhum homem jamais odiou a sua própria carne; mas ele a alimenta e acalenta, assim como também o Cristo faz com a congregação”. – Efésio 5:29, TNM.

No entanto, os cristãos também mencionaram uma oposição, porém era o contrário do que os filósofos gregos ensinavam:

“Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11, ibid.

A carne odeia a alma, e guerreia contra ela... A alma ama a carne que a odeia, e ama também os membros do corpo; da mesma maneira os cristãos amam aqueles que os odeiam”. – Carta de Matetes a Diogneto, cap. 6, c. 125 d.C.

A alma é odiada pelo corpo porque este sofre os efeitos do pecado, que só serão anulados depois da ressurreição. Ou seja, não é um dualismo natural, mas forçado pelas circunstâncias resultantes da queda do Paraíso.

Os platonistas também possuíam diversas outras concepções em relação à alma e ao corpo. Note a seguir algumas delas:

1) Não haverá ressurreição do corpo

“Porque toda a Alma que está no corpo está adormecida e o verdadeiro levantar não é corporal, mas despertar do corpo. Em qualquer movimento que leva o corpo com ela, não há mais do que uma passagem de um sono para outro sono, de uma cama para outra cama. O verdadeiro despertar ou ressurreição é livrar-se de coisas corpóreas, pois estas, pertencentes ao Tipo diretamente oposto à Alma, apresentam-lhe o que se opõe diretamente à sua existência essencial: a sua origem, o fluxo e o perecimento delas são a advertência da sua exclusão do Tipo cujo Ser é o Autêntico”. – Terceira Enéada, Tratado VI, seção 6, de Plotino.

2) A alma já existia antes da existência do corpo

“No Cosmos intelectual reside a Essência Autêntica, com o Princípio-Intelectual [Mente Divina] como o mais nobre de seu conteúdo, mas também contendo almas, já que toda alma nesta esfera inferior veio de lá: esse é o mundo dos espíritos desencarnados enquanto que ao nosso mundo pertencem aqueles que entraram no corpo e sofreram divisão corporal”. – Quarta Enéada, Tratado I, seção 1.

3) A alma reencarna novamente em vários corpos

“Assim, um homem [na reencarnação], uma vez governante, será escravo porque abusou do seu poder e porque a queda é para o seu bem futuro. Aqueles que têm dinheiro serão pobres - e a boa pobreza não é obstáculo. Aqueles que mataram injustamente serão, por sua vez, mortos injustamente em relação ao assassino, mas justamente quanto à vítima, e aqueles que estão a sofrer serão lançados no caminho daqueles que administram o merecido tratamento. Não é por acidente que um homem se torna um escravo. Ninguém é um prisioneiro por acaso. Cada ultraje corporal tem sua causa devida. O que o homem fez uma vez é o que agora sofre. Um homem que assassina sua mãe se tornará mulher e será assassinado por um filho. Um homem que faz uma mulher errar vai se tornar uma mulher para ser injustiçado”. – Terceira Enéada, Tratado III, seção 13.

4) As almas dos maus reencarnam em animais irracionais

“Aqueles que mantiveram o nível humano se tornarão homens uma vez mais. Aqueles que viveram inteiramente de acordo com os sentidos [da carne] tornam-se animais - correspondendo em espécie ao temperamento particular da vida [que tiveram] - animais ferozes, quando [na vida anterior] a sensualidade foi acompanhada por uma certa dose de espírito, animais gulosos e lascivos quando tudo foi apetite e saciedade do apetite... Reis que governaram irracionalmente, mas sem outro vício, tornam-se águias. Os fúteis e visionários inconstantes que sempre se elevam em direção ao céu, se tornam pássaros de alta direção. A observância da virtude cívica e secular torna [a alma] homem novamente, ou onde o mérito é menos marcado [a torna] um dos animais de tendência comunal, a exemplo de uma abelha ou algo parecido”. – Terceira Enéada, Tratado IV, seção 2, colchetes acrescentados.

5) A alma viverá de maneira incorpórea no mundo das ideias

“Existe um menor poder da Alma, o mais próximo da Terra, e este está entrelaçado em todo o universo: uma outra fase possui sensação, enquanto outra inclui a Razão que se refere aos objetos da sensação: esta fase superior se mantém Esférica, voltada para o Alto, mas pairando sobre a Alma menor e dando-lhe uma efluência que a torna mais intensamente vital”. – Segunda Enéada, Tratado II, seção 3.

“Um comentário posterior sobre a Ilíada de Homero diz que Antístenes sustentou que ‘as almas têm a mesma forma que os corpos que as contêm’. Contra isso, de acordo com o mesmo comentarista, o estoico Crisipo de Solis (279-206 a.C.) insistiu que ‘depois da separação do corpo, as almas assumem a forma de uma esfera’.” – O Real Cassiano Revisitado: Vida Monástica, Paideia Grega, e Origenismo no Sexto Século, Brill, 2012, de Panayiotis Tzamalikos.

Nota-se, portanto, que a diferença do ensino cristão em relação ao grego não se limita apenas à questão do dualismo. O Cristianismo primitivo ensinava precisamente o contrário de todos os pontos acima descritos:

1) Haverá uma ressurreição do corpo.

2) A alma não existia antes do nascimento.

3) A alma não reencarna em novos corpos, apenas aguarda a ressurreição.

4) Os maus não reencarnam em animais.

5) A alma terá um corpo físico depois da ressurreição, porém melhorado e glorificado, apto a viver tanto no céu quanto na Terra, em imitação à ressurreição de Jesus. E enquanto isso não ocorre a alma desencarnada também possui algum tipo de corpo, mesmo sendo invisível a nós.

E ainda há outras diferenças substanciais. O único entendimento seguramente em comum entre os dois sistemas (Cristianismo e platonismo) é que de acordo com ambos a alma continua viva depois da morte do corpo. Mesmo assim não era uma equivalência perfeita, pois para os gregos a alma está com a vida eterna assegurada, pois é indestrutível e imortal em sentido absoluto (sempre existiu e sempre vai existir). Para os cristãos não é assim. Não só ela foi criada como poderá perder a vida eterna se a pessoa for julgada desfavoravelmente por Deus no Juízo Final. – Mateus 10:28; 25:31-46; Marcos 9:43, 44.

Se quiser ver mais detalhes sobre esse assunto, leia o texto abaixo indicado:

A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?

Um fato interessante é que os gregos, mesmo crendo que a alma permanece viva depois que o corpo morre, às vezes usavam uma linguagem materialista para se referir a ela, de maneira semelhante ao que se vê no Antigo Testamento. Considere isso no próximo apêndice.

 

B. Linguagem materialista não é necessariamente aniquilacionismo

“A morte e a vida não são a mesma coisa, minha filha... [A morte] é a aniquilação, a outra mantém um lugar para a esperança”. – As Mulheres Troianas, de Eurípedes.

“Ele demandou do primeiro: ‘Quais se mostraram mais numerosos, os que estão vivos ou os que estão mortos?’ Ele respondeu: ‘Os vivos, porque os mortos não existem mais’.”. – Vidas, de Plutarco.

“Quem louvará o Altíssimo na moradia dos mortos, e em lugar dos vivos que lhe rendem graças? Quando um homem morre e cessa de existir, termina a ação de graças: é quando vive e está com saúde, que pode louvar o Senhor”. – Eclesiástico 17:27, 28, 30, TEB.

“Por que não perdoas as minhas ofensas e não apagas os meus pecados? Pois logo me deitarei no pó; tu me procurarás, mas eu já não existirei”. – Jó 7:21, NVI.

Das quatro citações acima, as duas primeiras são da antiga literatura grega e as duas últimas da Bíblia. O que todas elas têm em comum está bastante óbvio: todas afirmam que a morte é o fim da existência, a própria aniquilação!

Se o ponto de partida desse debate entre imortalistas e aniquilacionistas se desse neste momento, haveria a nítida impressão de que os aniquilacionistas estão certos em seu materialismo “cristão”. No entanto, conforme é de amplo conhecimento, tal conclusão não está de acordo com o pensamento grego, pois todos sabem que os gregos eram imortalistas por excelência. E também, como foi visto nas seções deste livro, seria um erro dizer que a Bíblia atesta o aniquilacionismo materialista, já que vimos perfeitamente que ela não faz isso. Então como explicar as afirmações acima?

Elas se referem à pessoa humana que vive e respira neste mundo. Ou seja, o cenário apresentado é do ponto de vista terrestre e material. Nenhuma dessas declarações anula o fato de que uma alma invisível e imaterial sobrevive à morte do corpo físico. Se isto é indubitavelmente verdade no caso grego, no bíblico não menos. Note o que disseram Jó e Eclesiástico em outras partes:

“Samuel foi amado pelo seu Senhor; profeta do Senhor, ele estabeleceu a realeza e ungiu os chefes estabelecidos sobre seu povo. . . Até depois de morrer profetizou, anunciou ao rei seu fim; do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo”. – Eclesiástico 46:13-20, BJ.

“O homem, nascido de mulher, é de vida curta e está empanturrado de agitação. Como a flor, ele brota e é cortado, e foge como a sombra.... Quem dera que me escondesses no Seol, que me mantivesses secreto até que a tua ira recuasse, que me fixasses um limite de tempo e te lembrasses de mim! Morrendo o varão vigoroso, pode ele viver novamente? Esperarei todos os dias do meu trabalho compulsório, até vir a minha substituição. Tu chamarás e eu mesmo te responderei. Terás saudades do trabalho das tuas mãos... Tu o levas de vencida para sempre, de modo que ele se vai embora; Desfiguras-lhe a face, mandando-o embora. Seus filhos são honrados, mas ele não o sabe; E tornam-se insignificantes, mas ele não os considera. Apenas a sua própria carne [a do varão vigoroso], enquanto estiver nele, continuará a sentir dores, e a sua própria alma, enquanto estiver nele [no varão vigoroso], continuará a prantear”. – Jó 14:1, 2, 13-15, 20-22, TNM, colchetes acrescentados.

Como se nota, embora Eclesiástico afirme que a morte implica no fim do homem (ser humano), ele também disse que o falecido profeta Samuel profetizou do seio da terra (o Seol, o mundo dos mortos), de modo que ele existia de alguma maneira e em algum lugar. O mesmo está implícito nas palavras do combalido Jó, conforme foi explicado na seção 5, pois ele indica que continuaria existindo no mesmo seio da terra de onde Samuel profetizou. Sendo assim, a “não existência” mencionada pelos escritores de Jó e Eclesiástico não se refere ao fim da alma invisível que toda pessoa possui, mas apenas o de sua manifestação material quando está no corpo físico. Da mesma maneira pode ser compreendido o texto a seguir, que é bastante citado por aniquilacionistas:

“A alma que pecar — ela é que morrerá”. – Ezequiel 18:4, TNM.

Essa alma é simplesmente a criatura humana que está sujeita à morte, com seu corpo perecível. Ou seja, o texto acima apresenta apenas uma das acepções da palavra “alma”, ainda que seja a mais comum no texto hebraico. Não se refere à alma que toda pessoa tem e que sai do corpo quando este morre. Perceba isso no texto supracitado de Jó, que deixa implícito que uma alma abandona o corpo depois da morte, alma esta que pranteia por causa do sofrimento desse mesmo corpo. Conforme alguns concluem equivocadamente, essa alma não é simplesmente a vida que deixa de existir quando os mecanismos físicos param de funcionar, pois a vida em si não é alguém que sofre devido aos padecimentos de um corpo doente, como era o caso de Jó. Essa alma a que ele se referiu é a mesma que a Bíblia mencionou em outro texto, em referência à morte de uma pessoa:

“E o resultado foi que, enquanto sua alma partia (porque estava morrendo), ela chamou-o pelo nome de Ben-Oni, mas seu pai chamou-o de Benjamim”. – Gênesis 35:18, Ibid.

Biblicamente falando, a realidade da existência humana é dual, ora se refere ao corpo em pleno funcionamento, ora à alma que dá vida e consciência ao corpo. Por ocasião da morte dele, essa alma deixa o mundo físico e desce ao Seol / Hades (Salmo 16:10; Atos 2:22-28), caso não seja levada para o “seio de Abraão” (paraíso; Lucas 16:22) ou para o céu (Apocalipse 20:4), uma possibilidade que se abriu depois da época de Cristo. Como visto na seção 5, ser o mundo dos mortos retratado nas profundezas da Terra comprova que a alma que vai para lá é imaterial e não se refere ao corpo que fica na sepultura. Naturalmente, a literatura grega apresenta também o mesmíssimo quadro duplo, desde os tempos homéricos:

a) Almas que morrem, são poupadas ou se ferem:

“As almas que morreram em combate são mais puras do que as que morrem de doenças”. – Fragmento 96b = B 136, de Heráclito.

“Quanto a mim eu continuei com o pensamento intrigante de qual seria a melhor maneira de salvar minha própria alma e a de meus companheiros”. – Odisseia 9:423, de Homero.

“Brilhante foi o escudo que o guerreiro Saian levantou, mas que, acidentalmente, eu joguei no mato.... então salvei minha alma”. – Paz, vv. 1299, 1300, de Aristófanes.

Neste verso de Aristófanes, os tradutores costumam traduzir o acusativo psykhén por “vida”, ao invés de “alma”, da mesma maneira que fazem em 1 João 3:16.

“Nenhuma alma generosa quererá depois de si um nome vil... apenas para não morrer”. – Electra, v. 785, de Sófocles.

“Não estou falando sobre bens materiais; se você salvar minha alma, você salvará o meu bem mais prezado”. – Orestes, v. 640, de Eurípides.

“Agora eu vejo o objetivo da vida aqui do meu lugar…. eu me lançarei desta rocha com um salto para o fogo lá embaixo, para misturar as minhas cinzas com as de meu marido nas chamas escarlates, para estar deitada ao lado dele, do divã de Perséfone, pois eu nunca irei, para salvar minha alma, provar a você não ser verdade onde você se deita em seu túmulo”. – As Suplicantes 1012, de Eurípides.

“Outro, passando por um túmulo à noite, e imaginando que viu um fantasma, correu para ele com lança erguida, e, quando ele a empurrou nele, exclamou: ‘Para onde você está fugindo de mim, você alma que deve morrer duas vezes?’.”. – Apophthegmata Laconica (Citações de Lacônia), Provérbios Espartanos, v. 69, de Plutarco.

“Tais foram os males pelos quais passei, conduzidos pelos deuses, que penso: a alma de meu pai, se ela voltasse a viver, não iria me contradizer”. – Édipo em Colono, v. 995, de Sófocles.

“Um sorriso efêmero iluminou seus lábios, e logo em seguida sua alma renunciou à vida”. – Píramo e Tisbe, mitologia grega.

“Não cause dano à sua alma por se consumir em preocupações”. – De liberis educandis (Da Educação dos Filhos), v. 17, de Plutarco.

b) Almas invisíveis que descem ao Hades:

“Então, assim que eles pegaram um homem derrubado ou recém-ferido, um deles iria fincar suas grandes garras sobre ele, e sua alma iria para baixo ao Hades para esfriar o Tártaro”. – Escudo de Héracles, v. 245, de Hesíodo.

“Gostaria que eu fosse capaz de roubar-te a alma e a vida, e enviar-te para a casa do Hades”. – Odisseia 9:525, de Homero.

“Cante, deusa, a ira do filho de Peleu, Aquiles, a ira destrutiva que trouxe incontáveis desgraças sobre os aqueus, e que enviou para o Hades muitas almas valentes de heróis, e fez de todos eles chão para cães e todo tipo de pássaro”. – Ilíada 1:1, de Homero.

Esse trecho da Ilíada é uma alusão aos corpos físicos dos que caíram mortos e que, com o tempo, se misturaram com o solo, sobre o qual bichos caminhavam. Sentido semelhante há em um salmo bíblico: “Eis o destino dos que confiam cegamente em si, o futuro dos que se comprazem nos seus discursos: estão encurralados no Sheol como ovelhas, a Morte os leva a pastar. No dia seguinte, homens retos os calcam aos pés, seus traços apagam-se no Sheol, estão longe dos seus palácios”. – Salmos 49:14, 15, TEB.

“Seus joelhos fraquejaram pela última vez, e sentiu que sua alma começava a descer ao Hades sombrio para ir fazer companhia aos companheiros mortos”. – A morte de Aquiles, mitologia grega.

“Ele amarrou uma corda que pendia no alto de uma grande árvore e se enforcou nela, e a alma dele desceu ao Hades”. – As Vidas dos Filósofos Eminentes 8:2, de Diógenes Laércio.

“Mas se alguém esconde tesouros em casa, e ataca outros com zombaria, ele falha ao considerar que está renunciando sua alma para o Hades sem glória”. – Ístmico 1:65, de Pindar.

Um antigo escritor cristão do século 2 fez referência a esse tratamento duplo, e aparentemente contraditório, que os gregos davam à palavra “alma”. Ele mencionou isso numa tentativa de convencer um descrente da Grécia de que determinadas verdades bíblicas podem ser vistas esporadicamente na literatura grega:

“Certamente [os poetas e filósofos gregos] disseram coisas confirmadoras dos profetas... E entre os profetas, Salomão disse dos mortos: ‘Haverá cura para a vossa carne, e cuidado com os vossos ossos’. [Provérbios 3:8] E o mesmo diz Davi: ‘Os ossos que quebrastes se alegrarão’. E de acordo com estes ditos foram os de Timocles: ‘Os mortos são lamentados pelo Deus amoroso’... E os defensores da impunidade confessaram que haveria um julgamento, e aqueles que negaram que há uma sensação após a morte reconheceram que [tal sensação] existe. Homero, portanto, embora tivesse dito: ‘Como visão passageira a alma faleceu’, disse em outro lugar: ‘Para o Hades foi a alma desencarnada’, e novamente: ‘Para que eu possa passar rapidamente pelas portas do Hades, me enterrem’.”. – Para Autólico, Livro II, cap. 38, c. 180 d.C., colchetes acrescentados.

Portanto, a linguagem materialista vista no início, que pode acalentar o desejo dos aniquilacionistas sobre o assunto, na verdade é apenas um dos lados de uma mesma “moeda”. Quando devidamente contextualizada ela não tem nada a ver com ideais materialistas. Apenas dizem respeito à existência física da pessoa, sem negar sua existência espiritual. Não enxergarem essa realidade dupla é uma evidência de que os aniquilacionistas ainda estão no “jardim da infância” desse assunto. Até certo ponto isso é normal, pois é fácil cair na armadilha da linguagem materialista e eles geralmente desconhecem quase que completamente as explicações a favor da crença de que a alma sobrevive à morte do corpo. Na verdade, elas nem seriam necessárias, uma vez que a Bíblia deixa isso claro em vários momentos.

Quanto aos aniquilacionistas que já leram explicações que esclarecem cabalmente esses fatos relacionados à dualidade da existência humana, a exemplo do que está apresentado neste texto, mas mesmo assim não arredam o pé de sua opinião materialista são convidados à reflexão. Não estariam eles agindo com orgulho e teimosia? As evidências são tão fortes e convincentes contra o que eles defendem que é deveras surpreendente eles não caírem em si e reconhecerem que estão errados.

 

C. Sobre o encontro do rei Saul com o falecido profeta Samuel

O rei disse-lhe:

— Não temas. O que vês?

[A necromante] respondeu:

— Um espírito que sobe do fundo da terra.

Saul perguntou-lhe:

— Que aspecto tem?

Respondeu:

— O de um ancião que sobe, envolto num manto.

Então Saul compreendeu que era Samuel e inclinou-se com o rosto por terra, prostrando-se.

Samuel lhe disse:

— Por que me chamaste, perturbando o meu descanso?

1 Samuel 28:13-15, Bíblia do Peregrino.

A arte da necromancia, que nos tempos antigos era praticada predominantemente por mulheres, consistia em indagar dos mortos informações sobre o futuro. Isto por si só é um indicativo de que as pessoas naquele tempo não acreditavam que a morte resulta na inexistência completa de quem morre. Elas não só achavam que os mortos continuam existindo em algum lugar, mas também que eles podem interagir com o mundo dos vivos se convocados. Embora isso não seja nenhuma novidade, o detalhe importante a ser destacado aqui é que tais crenças existiam em Israel, cuja lei nacional proibia consultar os mortos. Por mais que a lei proibisse os israelitas de praticarem a necromancia, e até reis tenham empreendido campanhas para banir esse costume do país, ela persistiu na clandestinidade.

Tal cenário na própria nação escolhida é mais uma evidência, dentre tantas, de que os hebreus jamais acreditaram na inexistência total dos que morrem, independentemente de como os mortos eram chamados (“sombras”, “almas”, “espíritos”, “aparições” etc.) Aliás, a própria proibição de se consultar os mortos é uma admissão tácita de que eles realmente existem, porém estão confinados em outro lugar. Não se pode consultar quem não existe. Deste modo, o motivo da vedação não era porque os espíritos que se manifestavam eram forçosamente demônios se fazendo passar por quem já morreu. Se fosse isso não haveria porque a lei mosaica não dar especificamente tal informação. As razões mais prováveis eram (1) o “ciúme” da Divindade, que não permitia outros meios de saber o futuro que não fossem os autorizados pela Lei, (2) práticas degradantes que podiam ocorrer juntamente com a necromancia, a exemplo do sacrifício de crianças e (3) a própria idolatria, pois os mortos também eram cultuados.

Porém o fato mais importante contra a opinião bastante difundida hoje em dia de que o encontro do falecido Samuel com o rei Saul foi obra de demônios é o próprio relato bíblico. Conforme visto no trecho supracitado de 1 Samuel, a Bíblia afirma categoricamente que era mesmo Samuel. São necessários muitos artifícios interpretativos para se esgueirar deste fato. A Tradução do Novo Mundo, por exemplo, que é a Bíblia oficial das testemunhas “de” Jeová, coloca “Samuel” entre aspas para indicar ao leitor que ali não se tratava realmente de Samuel, ainda que o texto original não contenha tais aspas. E há diversos outros subterfúgios para induzir os leitores da Bíblia a não aceitar o encontro em Endor da maneira que ele é apresentado. Não é o objetivo aqui discorrer sobre eles. Caso queira ver uma consideração mais abrangente sobre esse assunto, sugiro a leitura do capítulo 22 do meu livro “Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma”.

De qualquer modo, essa divergência quanto à veracidade do relato não é exclusividade do nosso tempo. Não há notícia de antigas obras judaicas lançando dúvidas sobre o relato do aparecimento de Samuel, mas entre as primeiras obras cristãs já não foi assim. Alguns escritores acreditavam no relato, outros não. A lista abaixo mostra como esse episódio único da Bíblia hebraica foi encarado na história inicial da igreja:

1. Justino (100-165 d.C.)

Era a favor do relato. Acreditava que realmente foi Samuel que apareceu para a necromante.

2. Tertuliano (120-220 d.C.)

Era contra, e achava que foi um espírito maligno que se fez passar por Samuel.

3. Orígenes (?-254 d.C.)

Era a favor, tendo a mesma opinião de Justino.

4. Basílio (330-379 d.C.)

Era contra e seguiu Tertuliano em sua opinião.

5. Gregório de Nissa (335-394 d.C.)

Também era contra, da mesma maneira que Basílio.

6. Ambrósio (340-397 d.C.)

Era a favor. Acreditava na veracidade da narrativa.

7. Jerônimo (347-420 d.C.)

Era contra, porém, não atribuía a demônios. Achava que foi uma encenação da necromante.

8. Agostinho (354-430 d.C.)

No início foi contra e tinha a mesma opinião de Jerônimo, mas depois mudou de ideia e passou a acreditar que Samuel realmente veio do Hades emitir seu último parecer contra Saul. O texto de Eclesiástico 46:13-20 foi decisivo para Agostinho mudar de opinião.

9. Teodoreto (393-457 d.C.)

Era contra, mas achava que foi uma encenação. Porém acreditava que a profecia relatada pela necromante veio de Deus.

Não obstante essa variabilidade de opiniões, há um versículo bíblico que está no próprio livro de 1 Samuel (e certamente isto não é coincidência) que se tivesse recebido a devida atenção talvez tivesse feito todos os escritores acima concordarem unanimemente de que realmente Samuel subiu do mundo subterrâneo para a superfície terrestre. Diz o texto:

“Jeová é quem faz morrer e quem preserva a vida, quem faz descer ao Seol, e ele faz subir”. – 1 Samuel 2:6, TNM.

E a primeira pergunta de Samuel a Saul foi feita exatamente em tais termos:

“Por que me perturbaste, fazendo-me subir?” – 1 Samuel 28:15, TEB.

É claro que na mente de Saul ele achava que foi o responsável, por meio da necromante, pela “subida” de Samuel, que fez sua pergunta refletindo essa crença. Mas ao confrontarmos o ocorrido em Endor com a oração registrada no capítulo 2 de 1 Samuel, chegamos à conclusão de que quem, na verdade, fez Samuel subir foi o próprio Deus! Não porque ele tenha se sujeitado ao desejo de Saul ou da necromante, mas para fazer cumprir a sua palavra e dar um último parecer ao rei infiel. Sobre isso, disse a Enciclopédia Católica:

“A Igreja não nega que, com uma permissão especial de Deus, as almas dos falecidos possam aparecer para os vivos, e até manifestar coisas desconhecidas para estes últimos. Mas, entendida como a arte ou ciência de evocar os mortos, a necromancia é considerada pelos teólogos como algo proveniente da ação de espíritos malignos, pois os meios utilizados são inadequados para produzir os resultados esperados. Supostas evocações de mortos podem advir de muitas coisas naturalmente explicáveis ou ainda fraude; o quanto é real e o quanto deve ser atribuído à imaginação e ao engano não pode ser determinado, mas os fatos reais da necromancia, com o uso de encantamentos e ritos mágicos, são encarados pelos teólogos, depois de St. Tomás, II-II, xcv Q., aa. III, IV, como modos especiais de adivinhação, devido à intervenção demoníaca, e a adivinhação é em si uma forma de superstição”.

E há um detalhe no relato de 1 Samuel que aponta para o ineditismo do que aconteceu em Endor e para o fato de que a necromante não tinha poder algum para evocar os mortos. Tal como geralmente acontece hoje em dia com os que alegam falar com os mortos, talvez aquela mulher fosse uma farsante que nunca tinha visto um espírito na vida. Note a seguir:

“Vendo Saul o arraial dos filisteus, temeu e estremeceu muito o seu coração. Pelo que consultou Saul ao Senhor, porém o Senhor não lhe respondeu, nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas. Então disse Saul aos seus servos: Buscai-me uma necromante, para que eu vá a ela e a consulte. Disseram-lhe os seus servos: Eis que em En-Dor há uma mulher que é necromante. Então Saul se disfarçou, vestindo outros trajes; e foi ele com dois homens, e chegaram de noite à casa da mulher. Disse-lhe Saul: Peço-te que me adivinhes pela necromancia, e me faças subir aquele que eu te disser... A mulher então lhe perguntou: Quem te farei subir? Respondeu ele: Faze-me subir Samuel. Vendo, pois, a mulher a Samuel, gritou em alta voz... Ao que o rei lhe disse: Não temas; que é que vês? Então a mulher respondeu a Saul: Vejo um deus que vem subindo de dentro da terra”. – 1 Samuel 28:5-8, 11-13.

De posse de todas as informações acima é que se entende o motivo de judeus e cristãos do passado terem se posicionado a favor da veracidade do encontro do falecido Samuel com o rei Saul. Esta certamente é a conclusão mais coerente com o teor das Escrituras Sagradas. Veja a seguir alguns desses testemunhos:

“Então Saul morreu por causa de suas transgressões, as quais ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, porque ele não a manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, Septuaginta Grega, século III a.C., versão da tradução de Sir Lancelot Brenton.

“Samuel foi amado pelo seu Senhor; profeta do Senhor, ele estabeleceu a realeza e ungiu os chefes estabelecidos sobre seu povo. . . Até depois de morrer profetizou, anunciou ao rei seu fim; do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo”. – Eclesiástico 46:13-20, século II a.C., BJ.

“Tão logo ele [Saul] a convenceu através deste juramento que não havia motivo para temor, ele pediu que ela [a necromante] fizesse subir a alma de Samuel. Ela, mesmo sem saber quem Samuel era, o convocou do Hades. Quando ele apareceu, e a mulher viu que era alguém muito venerável, e com divina forma, ela entrou em desordem. . . E quando ele [Saul] pediu a ela que dissesse qual era a sua aparência, em qual vestimenta apareceu, e que idade tinha, ela disse que era um homem já idoso, de figura gloriosa, e que tinha um manto sacerdotal. Então o rei descobriu por estas visões que era Samuel, e se prostrou em terra, prestando-lhe homenagem. E a alma de Samuel perguntou a ele o motivo de tê-lo perturbado e o feito subir. . .”. – Antiguidades Judaicas 6:327, de Flávio Josefo, século I d.C., colchetes acrescentados.

“Quando chegarmos ao fim da nossa vida [terrena], poderemos pedir o mesmo de Deus [que proteja nossas almas, conforme o Salmo 7:2], aquele que é apto para impedir que qualquer vergonhoso anjo do mal leve nossas almas. E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou. E parece também que todas as almas de semelhantes homens justos e profetas estão [potencialmente] sujeitas ao domínio de tais poderes, conforme pode ser inferido de todos os fatos expostos no caso daquela bruxa. Então Deus também nos ensina através do Seu Filho, por causa destas coisas que parece que eram feitas, a sempre nos esforçar sinceramente, e na morte orar para que nossas almas não caiam nas mãos de tais poderes, pois quando Cristo entregou Seu espírito na cruz Ele disse: ‘Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito’.” – Justino, o Mártir, em Diálogo com Trifão, cap. 105, século II d.C., colchetes acrescentados.

Ter Justino concluído que o evento aconteceu devido à operação de forças do mal contraria a essência do texto supracitado de 1 Samuel 2:6. No entanto, é preciso considerar que, mesmo crendo no relato de Endor, ele talvez tenha sido um dos que não se debruçou sobre a verdade do referido versículo bíblico. Ao expor sua opinião, Justino raciocinou apenas com base na necromancia em si, que pode ser classificada como uma atividade maligna de adivinhação, que era abertamente praticada em nações pagãs na Antiguidade. De qualquer maneira, tanto a opinião de Justino quanto as demais estão em perfeito acordo com o relato canônico no aspecto que mais interessa, que é o da realidade do aparecimento de Samuel:

“Saul reconheceu então que era Samuel. Inclinou-se com a face por terra e se prostrou. Samuel disse a Saul: ‘Por que me perturbaste, fazendo-me subir?”. – 1 Samuel 28:14, 15, TEB.

Portanto, ao invés de ser um acontecimento demoníaco, como pensam erroneamente alguns cristãos, o que lemos no capítulo 28 do primeiro livro de Samuel é, em última instância, mais uma prova de que a Bíblia não advoga o aniquilacionismo materialista e que os mortos só morreram para nós. Eles continuam vivos em outro lugar e, ocasionalmente, Deus poder autorizar a interação de algum deles com alguém do nosso mundo. Pensar assim está em perfeita harmonia com os fatos bíblicos aqui expostos, mesmo que isso venha a ferir a suscetibilidade de determinados cristãos, em especial os mais “fundamentalistas”.

 

D. Será que os pais apostólicos e seus sucessores eram promotores de heresias?

Da mesma maneira que os demais aniquilacionistas, o autor do MB supõe que a crença de que o homem possui uma alma que sobrevive à morte do corpo é uma falsidade religiosa que foi importada para dentro do cristianismo primitivo, cumprindo assim determinadas advertências proféticas dos apóstolos, a exemplo desta:

“No passado surgiram falsos profetas no meio do povo, como também surgirão entre vocês falsos mestres. Estes introduzirão secretamente heresias destruidoras, chegando a negar o Soberano que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina destruição. Muitos seguirão os caminhos vergonhosos desses homens e, por causa deles, será difamado o caminho da verdade. Em sua cobiça, tais mestres os explorarão com histórias que inventaram. Há muito tempo a sua condenação paira sobre eles, e a sua destruição não tarda.” – 2 Pedro 2:1-3, NVI.

Se o leitor bem notar, o texto não menciona absolutamente nada sobre alma ou expectativas do que acontece depois da morte. Sendo apenas um mero exercício de imaginação concluir que Pedro tinha tais assuntos em mente ao escrever suas advertências. De fato, não há razão para conjecturas, pois vários eruditos bíblicos explicam que os alertas apostólicos geralmente visavam influências judaizantes ou seitas gnósticas que ameaçavam a integridade doutrinal da igreja primitiva, algumas das quais se “cristianizaram” com o objetivo de conquistar os cristãos. Sobre o trecho bíblico citado, diz um desses comentaristas:

E muitos seguirão seus caminhos perniciosos... ao que parece diz respeito à conversa impura dos seguidores de Simão Mago, os Nicolaítas, os Gnósticos, os Carpocratianos e outros, que se entregaram a todas as concupiscências e impurezas antinaturais. E geralmente, quando os homens fazem naufrágio da fé, eles também o fazem de boa consciência, e se tornam imorais em suas conversas. E, além disso, tão destrutivos quanto seus princípios, e tão desonrosos e escandalosos quanto suas práticas, assim eram e são muitos de seus seguidores. Assim foi predito por Cristo (Mateus 24:11), e assim aconteceu (Apocalipse 13: 3). O caminho do erro e de maldade é largo, no qual muitos andam. E uma multidão não é prova da verdade de uma igreja ou dos princípios dos homens, nem para ser seguida”. – John Gill's Exposition of the Bible, sobre 2 Pedro 2:2.

Mais um exemplo é o que disse o apóstolo João:

“Entretanto, muitos enganadores têm saído pelo mundo, os quais não confessam que Jesus Cristo veio em carne. Esse é o modo de ser do mentiroso e do anticristo”. – 2 João 7, KJV.

Novamente, a advertência remete aos ensinamentos das heresias gnósticas, em especial uma chamada Docetismo, segundo a qual Jesus não tinha um corpo humano verdadeiro. De acordo com essa corrente, ele assumiu uma forma aparentemente física apenas para que as pessoas achassem que ele era realmente um homem de verdade, ao invés de um poderoso espírito. Sobre isso, diz outro erudito:

‘Jesus Cristo veio em carne’. Estes enganadores persistem em seus falsos ensinamentos sobre a pessoa de Cristo. O verso repete a exortação de João 4:1-6 sobre ‘testar os espíritos’, sobretudo se eles se relacionam com a plena humanidade de Jesus (João 1:14, 1 João 1:14) O Gnosticismo afirmou dualismo entre ‘espírito’ (Deus) e ‘matéria’ (carne). De acordo com eles, Jesus não poderia ser totalmente Deus e totalmente homem. Ao que parece havia dentro do pensamento gnóstico primitivo pelo menos duas correntes teológicas: (1) a que negava a humanidade de Jesus (docetismo), indicando que parecia humano mas era realmente um espírito, e a (2) que negava que Jesus tinha morrido na cruz, em que afirmaram (os cerentistas) que ‘o espírito de Cristo’ veio sobre o homem Jesus no batismo e deixou-o antes de sua morte na cruz. É possível que a forma verbal do presente ‘veio na carne’ seja a expressão com a qual João rechaça o gnosticismo de Cerinto, e em 1 João 4:1-6 ele repele o gnosticismo docetista”. – Comentário bíblico de Bob Utley, sobre 2 João 7.

Logo, torna-se claro que os alertas que foram dados pelos apóstolos sobre falsos ensinos não se referem ao que o autor do MB imaginou. Para uma consideração dos demais versículos bíblicos que apresentam advertências semelhantes, leia o artigo do link abaixo:

O verdadeiro conteúdo das advertências apostólicas sobre falsos ensinos

Consequentemente, a insinuação abaixo do autor do MB é uma completa distorção da realidade, o que pode ser confirmado na literatura patrística:

“Ensinos falsos provenientes de homens voluntariosos e arrogantes* começou muito cedo na história da igreja. Não foi, de jeito, nenhum no tempo de Agostinho de Hipona, lá pelo quarto e quinto séculos. Pelo contrário, conforme se pode ver na citação que incluímos da Enciclopédia Católica (para a qual remetemos o leitor), ‘a grande maioria dos filósofos cristãos até S. Agostinho era platonista’.”.

* Depois que chamei atenção para esse veredicto ofensivo, o autor do MB alterou o que disse, estando agora assim: “O trecho que citamos desta obra erudita constitui um testemunho adicional de que a corrupção interna do cristianismo, decorrente de sua mistura com o platonismo começou muito cedo na história da igreja. Não foi, de jeito nenhum, no tempo de Agostinho de Hipona, lá pelo quarto e quinto séculos. Pelo contrário, conforme se pode ver na citação que incluímos da Enciclopédia Católica (para a qual remetemos o leitor), ‘a grande maioria dos filósofos cristãos até S. Agostinho era platonista’.” Mas a suavização desse trecho é um tanto irrelevante, pois há várias outras afirmações ofensivas do autor do MB, conforme foi visto na seção 7 e na conclusão. Ainda mais inépcia ele demonstra ao reivindicar dizeres da Enciclopédia Católica, uma vez que esta obra mostra que os primeiros pais da igreja mantiveram o discurso simples da era apostólica, sem uso da filosofia grega, porém mesmo assim fizeram declarações claras a respeito do cristão continuar vivo depois da morte, usando a mesma linguagem dos apóstolos Pedro e Paulo. É claro que o autor do MB não sabe disso (ou pelo menos não sabia até agora), por isso é que costuma fazer declarações tão imprecisas a respeito da antiga literatura cristã. É apenas ignorância combinada com o enganoso sentimento de que ler aquilo que os eruditos falam das obras patrísticas é suficiente para conhecê-las bem. Vamos torcer que isso comece a mudar daqui por diante...

Vemos que a opinião do “bereano” é que a crença na sobrevivência da alma seria um dos ensinos falsos supostamente levados para dentro da igreja pelos filósofos platonistas. No entanto, se os escritos cristãos do século II forem examinados, descobriremos que seus autores mantiveram o mesmo senso de preservação do ensinamento verdadeiro e rejeitaram conceitos filosóficos (e gnósticos), que representavam uma ameaça para o Cristianismo. Note a seguir três exemplos:

“Alguns o negam ignorantemente, ou melhor, foram negados por Ele, sendo os defensores da morte e não da verdade. Essas pessoas nem os profetas têm persuadido, nem a lei de Moisés, nem o Evangelho até hoje, nem os sofrimentos que temos suportado individualmente. Pois eles pensam também a mesma coisa em relação a nós. Pois, de que me aproveita alguém se ele me elogia, mas blasfemar contra o meu Senhor, não confessando que Ele estava [verdadeiramente] possuído de um corpo? Mas aquele que não reconhece isso, de fato o negou completamente, sendo envolvido na morte. Contudo, não achei bom escrever os nomes de tais pessoas, na medida em que são incrédulos. Sim, longe de mim fazer qualquer menção deles, até que eles se arrependam e voltem para [uma crença verdadeira] na paixão de Cristo, que é a nossa ressurreição”. – Carta aos Esmirnianos, Inácio de Antioquia, cap. 5, c. 107 d.C., referência ao conceito gnóstico do docetismo.

Você aceita as vãs e estúpidas doutrinas daqueles que são considerados filósofos confiáveis? Dos quais alguns disseram que o fogo era Deus, chamando esse Deus ao qual eles mesmos foram e vieram. E alguns [dizem que Ele é] água. E outros, algum dos demais elementos formados por Deus. Mas se alguma dessas teorias for digna de aprovação, cada uma das outras coisas criadas também pode ser declarada Deus. Mas tais declarações são simplesmente afirmações surpreendentes e errôneas dos enganadores”. – Carta de Matetes a Diogneto, cap. 20, colchetes acrescentados, c. 125 d.C.

“‘Pois quem não confessa que Jesus Cristo veio em carne, é anticristo’, e quem não confessa o testemunho da cruz, é do diabo. E qualquer que perverte as pronunciações do Senhor às suas próprias concupiscências, e diz que não há nem uma ressurreição nem um julgamento, ele é o primogênito de Satanás. Portanto, abandonando a vaidade de muitos e suas falsas doutrinas, voltemos à palavra que nos foi transmitida desde o princípio; ‘Vigiando em oração’, e perseverando em jejum, implorando em nossas súplicas ao Deus que tudo vê, ‘para não nos conduzir à tentação’, como o Senhor disse: ‘O espírito verdadeiramente deseja, mas a carne é fraca’.” – Carta aos Filipenses, Policarpo de Esmirna, cap. 7, c. 155 d.C.

A mesma literatura também revela que os escritores cristãos da era pós-apostólica apenas deram continuação ao entendimento que sempre houve relacionado à vida imediata depois da morte, conforme revela a comparação dos textos abaixo:

“Porque para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Caso continue vivendo no corpo, terei fruto do meu trabalho. E já não sei o que escolher! Estou pressionado dos dois lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é muito melhor; contudo, é mais necessário, por causa de vocês, que eu permaneça no corpo”. – Filipenses 1:21-24, NVI, c. 61 d.C.

“É justo despertar-vos com as minhas admoestações, enquanto estou nesta tenda terrena [o corpo], sabendo que em breve hei de despojar-me dela. . . Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, BJ, c. 64 d.C.

“Tomemos os exemplos nobres fornecidos em nossa própria geração... [Quando Pedro] sofreu o martírio, partiu para o lugar de glória que lhe era devido... Paulo também obteve a recompensa da perseverança... [Por ter] sofrido o martírio sob os magistrados. Assim foi removido do mundo, e entrou no lugar santo, tendo provado ser um exemplo impressionante de paciência”. – Carta aos Coríntios, Clemente de Roma, cap. 5, c. 96 d.C., compare com Apocalipse 20:4.

Clemente conheceu pessoalmente ambos os apóstolos, sendo inclusive mencionado por Paulo em uma de suas cartas. Nota-se uma perfeita gradação dos acontecimentos, conforme o entendimento que eles tinham sobre a morte, desde a expectativa nutrida quando ainda estavam no corpo até a consumação dela quando partiram para o céu. O que demonstra que os dois textos bíblicos abaixo estão falando exatamente da mesma coisa, e nada têm a ver com as reinterpretações mirabolantes dos aniquilacionistas, a exemplo do que vem sendo divulgado pelo autor do MB:

“Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos... irmão entregará irmão à morte... O que eu vos digo na escuridão, dizei na luz; e o que ouvis sussurrado, pregai dos altos das casas. E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma, antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:16, 21, 27, 28, TNM.

“E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus”. – Apocalipse 20:4, ibid.

Os textos acima se referem aos cristãos assassinados, os que são chamados de mártires. Exatamente o que aconteceu com Pedro, Paulo e talvez Clemente, possibilitando assim que eles fossem removidos do mundo e entrassem no lugar de glória junto ao Pai, conforme resume o relato sobre o martírio do cristão Policarpo, discípulo do apóstolo João:

“Pois, tendo [Policarpo] pacientemente superado o injusto governador, e assim adquirido a coroa da imortalidade, agora, com os apóstolos e todos os justos [no céu], glorificam alegremente a Deus”. – O Martírio de Policarpo, cap. 19, c. 155 d.C.

Na verdade, o que foi resumido até aqui é apenas a “ponta do iceberg”, pois existe uma quantidade avassaladora de evidências na antiga literatura cristã que atesta, sem nenhuma margem de erro, que todos os cristãos desde a época dos apóstolos jamais advogaram o aniquilacionismo. É o próprio sepultamento das pretensões aniquilacionistas! Para confirmar isso, recomendo novamente a leitura do texto abaixo indicado:

O que Ensinaram os Escritores Cristãos do Segundo Século?

No artigo acima, além de ser apresentado um grande número de citações de obras patrísticas, o leitor é remetido para os textos completos dos pais da igreja de onde os trechos foram extraídos.

 

E. A sinonímia entre “corpo” e “carne” no Novo Testamento

- As citações bíblicas deste apêndice são da Tradução do Novo Mundo (1986), exceto quando houver outra indicação.

Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma.

1 Pedro 2:11.

Como já foi visto no decorrer deste trabalho, o dualismo grego consiste na ideia de que existe uma forte oposição entre a alma e o corpo, que são elementos interdependentes. O corpo, porém, é tido como inferior e mau, e a alma anseia livrar-se dele para alcançar as esferas superiores. Fora da filosofia, este conceito esteve também presente no chamado gnosticismo cristão, e foi até ampliado em práticas de ascetismo. O mesmo já não aconteceu com as igrejas cristãs sob liderança dos apóstolos e seus designados. No entanto, um tipo de dualismo corpo-alma é mencionado em alguns versículos do Novo Testamento, a exemplo do que Pedro disse em sua primeira carta.

Ainda que seja um dualismo moderado e com o sentido do ódio invertido, ou seja, é o corpo que odeia a alma e não o contrário, como acreditavam os gregos, alguns cristãos “platofóbicos” não se sentem à vontade quando alguém diz que essa passagem de Pedro foi influenciada pelo dualismo grego. O mesmo desconforto surge se o mesmo for dito sobre os versículos que mencionam o corpo e a alma separadamente, conforme foi visto na seção 6.

Porém um detalhe chama mais atenção nesse texto supracitado de Pedro. É que ele apresentou o dualismo corpo-alma de maneira mais explícita, pois usou a palavra “alma”. Em outros versículos com argumento semelhante a alma está apenas implícita. Por isso, mesmo que não sejam aniquilacionistas, os que não querem enxergar nada do pensamento grego no Novo Testamento se esforçam para contradizer o fato óbvio de que existe mesmo algum dualismo corpo-alma na Bíblia, mesmo não sendo exatamente igual ao grego. Sobre esse da carta de Pedro, eles costumam dizer que carne (sarx, em grego) não deve ser tomada com sentido de corpo (soma). Abaixo um exemplo:

“É fácil ver como surgiu a confusão sobre o pensamento de Paulo acerca do corpo e da alma. As pessoas vêem a palavra sarx usada neste último sentido [o físico], e a identificam com o corpo físico. Paulo, como um bom hebreu, jamais poderia dizer que qualquer coisa que Deus tinha feito era intrinsecamente má. Neste uso da palavra sarx ainda vemos a mesma unidade da personalidade. A personalidade se pôs contra Deus. O conflito no homem entre espírito e sarx é um conflito moral e não um choque metafísico”. – Biblical and Classical Views of Personality, tese de mestrado, de Dana Prom Smith, Universidade do Arizona, EUA, 1958, pp. 15, 16, colchetes acrescentados.

Embora seja verdade que o uso que os autores bíblicos fizeram dessas palavras tenha uma gama variada de aplicações, e não é o objetivo aqui discorrer sobre isso, o ponto importante a destacar é que “carne” e “corpo” são palavras nitidamente intercambiáveis, ficando a critério do escritor usar uma ou outra. É o mesmo que ocorre na sinonímia eventual das palavras “alma” e “espírito”. A literatura patrística também está repleta de exemplos de ambos os casos.

Para começar, note a seguir dois exemplos bíblicos:

“Nossa velha personalidade foi pregada na estaca com [ele], para que o nosso corpo pecaminoso ficasse inativo, a fim de que não fôssemos mais escravos do pecado. Pois aquele que morreu foi absolvido do seu pecado”. – Romanos 6:5-7.

“Pois eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não mora nada bom; porque a capacidade de querer está presente em mim, mas a capacidade de produzir o que é excelente não está [presente]... Eu realmente me deleito na lei de Deus segundo o homem que sou no íntimo, mas observo em meus membros outra lei guerreando contra a lei da minha mente e levando-me cativo à lei do pecado que está nos meus membros. Homem miserável que eu sou! Quem me resgatará do corpo que é submetido a esta morte?... Vós estais em harmonia, não com a carne, mas com o espírito, se o espírito de Deus verdadeiramente morar em vós... [Se] Cristo está em união convosco, o corpo, deveras, está morto por causa do pecado, mas o espírito é vida, por causa da justiça”. – Romanos 7:18,21-25; 8:9,10, colchetes acrescentados.

Perceba que a parte má do ser humano, devido ao pecado, é chamada de “meus membros”, “corpo” e “carne”. Ou seja, a própria manifestação física da pessoa, que está em conflito com a parte imaterial, que foi chamada de “homem que sou no íntimo” e “minha mente”. Paulo fez o mesmo uso de “carne” e “corpo” ao falar de outro assunto:

“Pois, no meu caso, viver é Cristo, e morrer [é] ganho. Ora, se for para continuar a viver na carne, é isto fruto da minha obra — e ainda assim não dou a conhecer que coisa a selecionar. Estou sob pressão destas duas coisas; mas o que desejo é o livramento e o estar com Cristo, pois isto, decerto, é muito melhor. No entanto, para mim é mais necessário permanecer na carne por vossa causa”. – Filipenses 1:21-24.

“Portanto, temos sempre confiança e sabemos que, enquanto estamos no corpo, estamos longe do Senhor... preferimos estar ausentes do corpo e habitar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:1-10.

Como se vê, ao mencionar que estaria com Cristo depois que morresse, em um momento Paulo disse que enquanto isso não acontecesse ele ficaria no corpo, já em outro disse que ficaria na carne. O que denota que esses dois termos foram usados como sinônimos.

Veja outros exemplos:

“Não obstante, alguém dirá: ‘Como hão de ser levantados os mortos? Sim, com que sorte de corpo hão de vir?’... mas Deus lhe dá um corpo assim como lhe agrada, e a cada uma das sementes o seu próprio corpo... Nem toda a carne é a mesma carne, mas uma é a da humanidade, e outra é a carne do gado, e outra [é] a carne de aves, e outra de peixes. E há corpos celestes e corpos terrestres; mas a glória dos corpos celestes é de uma sorte e a dos corpos terrestres é de sorte diferente. A glória do sol é de uma sorte e a glória da lua é de outra, e a glória das estrelas é de outra; de fato, estrela difere de estrela em glória”. – 1 Coríntios 15:35-41.

No texto acima o uso da palavra “carne” não se refere à pecaminosidade humana, nem sua alienação de Deus, mas apenas a tipos de corpos físicos diferentes.

“Não sabeis que aquele que se junta a uma meretriz é um só corpo? Pois: ‘Os dois’, diz ele, ‘serão uma só carne’.”. – 1 Coríntios 6:16.

Nota-se que Paulo, mesmo ‘sendo um bom hebreu’ equipara corpo e carne, fazendo inclusive referência aos dizeres de Deus em Gênesis, sobre o homem e a mulher se tornarem “uma só carne” quando se unem. Ou seja, um só corpo. Nesse caso, quando a união acontece por fornicação, um corpo entregue ao pecado. E justamente por ser um bom hebreu, Paulo sabia que carne está relacionada ao corpo (aliás, qualquer um sabe disso), pois um hebreu antigo dissera:

“Daqui a três dias, Faraó te levantará a cabeça de cima de ti e certamente te pendurará num madeiro; e as aves hão de comer a tua carne de cima de ti”. – Gênesis 40:19.

E resume a história fazendo alusão ao fato de que também pregaram o Senhor em um madeiro:

“Deveras, a vós, os que outrora estáveis apartados e éreis inimigos, porque as vossas mentes se fixavam nas obras iníquas, ele reconciliou agora novamente, mediante o corpo carnal daquele, por intermédio da morte dele”. – Colossenses 1:21, 22.

“Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos”. – Gálatas 5:24, NVI.

Evento que também foi relembrado por Pedro:

“Ora, até mesmo Cristo morreu uma vez para sempre quanto aos pecados, um justo pelos injustos, a fim de conduzir-vos a Deus, sendo morto na carne, mas vivificado no espírito”. – 1 Pedro 1:18.

“Vós fixastes numa estaca pela mão de homens contrários à lei e o eliminastes. Mas Deus o ressuscitou... Davi diz com respeito a ele: ‘... minha carne residirá em esperança; porque não deixarás a minha alma no Hades’.”. – Atos 2:23-28.

A ‘carne que residirá em esperança’ é o corpo de Jesus que não ficaria morto por tempo indeterminado e seria ressuscitado, o que se concretizou no terceiro dia após sua morte:

“No primeiro dia da semana, muito cedo, dirigiram-se ao sepulcro com os aromas que haviam preparado. Acharam a pedra removida longe da abertura do sepulcro. Entraram, mas não encontraram o corpo do Senhor Jesus”. – Lucas 24:3, AM.

Além do mais, “carne” também é usada com o sentido de um corpo que vive de acordo com a vontade de Deus, apartado do pecado pelo sacrifício de Jesus:

“Deveras, a vida que agora vivo na carne, eu a vivo pela fé que é para com o Filho de Deus, o qual me amou e se entregou por mim”. – Gálatas 2:20.

“Deste modo, os maridos devem estar amando as suas esposas como aos seus próprios corpos. Quem ama a sua esposa, ama a si próprio, pois nenhum homem jamais odiou a sua própria carne; mas ele a alimenta e acalenta, assim como também o Cristo faz com a congregação”. – Efésios 5:28, 29.

Portanto, nota-se que em todos os textos acima mencionados “corpo” e “carne” são equiparados, possuindo um único significado. De modo que é imprudente ignorar o uso intercambiável dessas palavras com o único objetivo de não admitir que a Bíblia possui declarações que lembram o pensamento grego, no caso aqui o dualismo alma-corpo.

 

F. O conceito cristão sobre a imortalidade da alma e o monismo

Muitos fazem uma confusão tremenda sobre o que significa a imortalidade da alma do ponto de vista do cristianismo primitivo. E isto não ocorre somente com leigos que se aventuram a escrever sobre o assunto, pois, conforme vimos, até alguns eruditos escorregam ocasionalmente nessa questão. E os que representam os aniquilacionistas, então, nem se fala, como é o caso do adventista e Phd John Roller, uma das fontes de pesquisa do autor do MB. Eles chegam a dizer que alguns dos pais da igreja citados mais adiante não eram “imortalistas”!

O motivo de todo esse engodo não parece ser outro senão a falta de uma leitura completa da literatura patrística. Parece que a maioria dessas pessoas prefere o comodismo de ficar apenas citando o que outros escreveram a respeito e ninguém sabe ao certo a verdadeira origem da informação. É como se fosse aquela brincadeira do “telefone sem fio”, cujo resultado é bem conhecido. Nosso autor “bereano” se tornou o exemplo mais notório que eu já vi dessa prática, conforme demonstrou esse grande “elefante branco” que ele construiu com suas incansáveis citações de eruditos. Na contramão dessa tendência, eu só me senti seguro em opinar sobre o que disseram os autores patrísticos depois que eu mesmo li o que foi escrito por eles, algo que venho fazendo nos últimos anos e ainda não consegui terminar (estou seguindo a ordem cronológica dos mais antigos para os mais recentes). O que eu apresentei no texto “O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?” é apenas uma amostra dessa leitura. De modo que eu tenho absoluta certeza que todos os autores cristãos do século II eram “imortalistas”. Mais adiante explicarei porque sempre deixo esta palavra entre aspas.

Mas isso não significa que eu mesmo já não tenha caído na armadilha de mencionar algo errado de um pai da igreja por realmente não conhecê-lo. Isto aconteceu quando em um artigo (hoje corrigido) eu disse que Orígenes acreditava na reencarnação. Asseverei tal coisa porque fui induzido por várias “referências” na Internet que dão essa informação equivocada e não me dei conta que os tais “méritos da vida passada” que Orígenes falava não se referem à transmigração das almas. Só depois que li tudo o que está disponível desse autor patrístico foi que descobri a verdade sobre esse ponto. Não foi lendo obras eruditas. Esse episódio foi uma lição para mim, e reforçou a minha convicção atual de que nunca alguém deveria defender com veemência algum ponto de vista sem antes cobrir pessoalmente todas as fontes primárias do assunto em análise. Os erros retumbantes dos aniquilacionistas quando citam autores patrísticos só acontecem porque eles não fazem isso. Quando muito, leem só alguns trechos e depositam total confiança em fontes que cometem o mesmíssimo erro. Daí um círculo vicioso de desinformação travestida de esclarecimento se instala em suas apologias.

A crença na imortalidade da alma dos cristãos primitivos, pelo menos os mais antigos, não tinha praticamente nada a ver com o conceito grego. No entanto, todos acreditavam que a alma continua viva e consciente depois da morte do corpo (Mateus 10:28), mesmo não sendo absolutamente indestrutível ou por ter havido um tempo em que ela não existia. Os platonistas negavam esse dois pontos, dentre outros. Tanto achavam que a alma sempre existiu como é impossível ela ser destruída (veja o apêndice A ou o artigo “A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?”). Se não está acreditando, deixarei que os próprios autores patrísticos contem para você:

“Ora, a alma participa da vida, porque Deus quer que ela viva. Assim, então, nem sequer participará [da vida] quando Deus não quiser que ela viva. Pois viver não é seu atributo, como é de Deus. Mas como o homem não vive para sempre, e a alma não está para sempre unida ao corpo, pois, sempre que esta harmonia deva ser quebrada a alma deixa o corpo, e o homem não existe mais. Mesmo assim, sempre que a alma deva cessar de existir, o espírito da vida é removido dela, e não há mais alma, mas ela volta para o lugar de onde foi tomada”. – Diálogo com Trifão (c. 155 d.C.), Justino de Roma, cap. 6.

“Pois quando chegarmos ao fim da nossa vida [terrena], poderemos pedir o mesmo de Deus [que proteja nossas almas], aquele que é apto para impedir que qualquer vergonhoso anjo do mal leve nossas almas. E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou. E parece também que todas as almas de semelhantes homens justos e profetas estão [potencialmente] sujeitas ao domínio de tais poderes, conforme pode ser inferido de todos os fatos expostos no caso daquela bruxa. Então, Deus também nos ensina através do Seu Filho, por causa destas coisas que parece que eram feitas, a sempre nos esforçar sinceramente, e na morte orar para que nossas almas não caiam nas mãos de tais poderes”. – Diálogo com Trifão (c. 155 d.C.), Justino de Roma, cap. 105, colchetes acrescentados.

A ressurreição é a ressurreição da carne que morreu. Pois o espírito não morre. A alma está no corpo, e sem alma não pode viver. O corpo, quando a alma o abandona, [já] não é [um ser vivo]. Porque o corpo é a casa da alma, e a alma, a casa do espírito. Estes três, em todos aqueles que apreciam uma esperança sincera e uma fé inquestionável em Deus, serão salvos. Considerando, portanto, até mesmo os argumentos que são adequados a este mundo, e descobrindo que, mesmo de acordo com eles, não é impossível que a carne seja regenerada, e vendo que, além de todas essas provas, o Salvador em todo o Evangelho mostra que há salvação para a carne, por que ainda toleramos esses argumentos incrédulos e perigosos, e não vemos que estamos retroagindo quando ouvimos um argumento tal como este: que a alma é imortal, mas o corpo mortal, e incapaz de ser revivido? Para isso, costumávamos ouvir Pitágoras e Platão, mesmo antes de termos aprendido a verdade. Se, então, o Salvador disse isso e proclamou a salvação somente à alma, que coisa nova, além do que ouvimos de Pitágoras, Platão e toda o seu pessoal, Ele nos trouxe?”. – Sobre a ressurreição dos Mortos (c. 160 d.C.), Justino de Roma, cap. 10, colchetes acrescentados.

A alma não é em si mesma imortal, ó gregos, mas mortal. No entanto, é possível que ela não morra. Se, de fato, não conhece a verdade ela morre e se dissolve com o corpo, mas ressurge finalmente no fim do mundo com o corpo, recebendo a morte por castigo na imortalidade. Mas, novamente, se ela adquire o conhecimento de Deus, ela não morre, embora por algum tempo seja dissolvida. Em si, é escuridão, e não há nada de luminoso nela. E este é o significado do ditado: ‘As trevas não compreendem a luz’. Pois a alma não preserva o espírito, mas é preservada por ele, e a luz compreende as trevas. O Logos, na verdade, é a luz de Deus, mas a alma ignorante é escuridão. Por isso, se continua solitária [sem o Logos ou o espírito], vai para baixo em direção à matéria [possível alusão ao Seol] e morre com a carne; mas, se entra em união com o Espírito Divino, já não está desamparada, mas ascende às regiões para onde o Espírito a guia: porque a morada do espírito está acima, mas a origem da alma é de baixo”. – Discurso aos gregos (c. 165 d.C.), Taciano [discípulo de Justino], cap. 13, colchetes acrescentados.

“Além disso, além do que já dissemos, afirmando que se Deus desejasse qualquer coisa que não fosse desejável seria destrutivo à Sua existência como Deidade... Ele é a fonte de tudo o que é bom. E reconhecemos que Ele é capaz de proporcionar uma vida imortal para a alma. E que Ele possui não apenas o ‘poder’, mas o ‘desejo’. Em vista, portanto, dessas considerações, não nos sentimos angustiados pela afirmação de Heráclito, adotada por Celso, de que ‘os cadáveres devem ser rejeitados como sendo mais inúteis do que o esterco’. E, no entanto, com referência a isso, pode-se dizer que o esterco, de fato, deve ser rejeitado, enquanto os cadáveres dos homens, por causa da alma que neles habitou, especialmente se tiver sido virtuosa, não deveriam ser rejeitados. Pois, em harmonia com as leis que se baseiam nos princípios da equidade, os corpos são considerados dignos da sepultura, com as honras concedidas em tais ocasiões, sem nenhum insulto, tanto quanto possam ser ajudados, em consideração à alma que habitava dentro do corpo, e não descartá-los (depois que a alma partiu) como se fossem corpos de animais. Não seja então contrário à razão dizer que é a vontade de Deus declarar que, embora o grão de trigo não seja imortal, as espiga que brota dele será, da mesma maneira que o corpo semeado na corrupção não é imortal, mas o que é levantado dele na incorrupção será”. – Contra Celso, de Orígenes (c. 248 d.C.), Livro V, cap. 24.

Muito claro, não acha? Por isso até hoje eu sempre fico admirado quando eu vejo “pesquisadores” escrevendo um monte de bobagens na Internet contradizendo o que as pessoas acima acreditavam. Um deles, que já escreveu alguns livros sobre o assunto (!), diz que Justino é um dos exemplos mais perfeitos na Antiguidade de um cristão que defendeu o aniquilacionismo. E ainda expõe o que acredita de maneira petulante e desrespeitando os “adversários imortalistas”, nos quais ele disse que gosta de “bater”. Por isso que quando eu digo que ninguém deveria perder tempo com tais “estudiosos” não se trata de preconceito ou porque eu quero menosprezar o cristianismo de alguém, conforme o autor do MB frequentemente alude. É porque essa gente não merece mesmo um mínimo de atenção. A qualidade do trabalho deles é no mínimo deplorável, pelo menos nesse assunto da alma.

Um último detalhe que convém ressaltar é o motivo porque os cristãos acabaram aceitando a expressão “imortalidade da alma”, mesmo sabendo que essa imortalidade está condicionada à vontade de Deus. Penso que é porque a Bíblia realmente informa que todas as almas ficarão sempre vivas, seja em felicidade no paraíso celeste ou em angústia nas chamas da Geena ardente. Mesmo sendo uma visão questionada por alguns cristãos antigos, a “destruição” de Mateus 10:28 é entendida com sentido de inutilização e não como aniquilação, pois alguém que Deus queria que fosse feliz estará sofrendo (Mateus 8:11-13; Apocalipse 20:7-10). Conforme disse um dos eruditos que o autor do MB citou inadequadamente, parece que para Deus aniquilar pessoas não é uma opção. De modo que a possibilidade da alma deixar de existir (no caso dos maus) ficou mesmo só na possibilidade. Então, no final das contas, toda alma será mesmo imortal, por decreto divino. Sendo assim, os que recriminam o “namoro” de teólogos da antiga igreja com o platonismo deveriam buscar compreender o contexto desse acontecimento, e não apenas emitir veredictos preconceituosos. E a primeira coisa que deveriam fazer é ler o que tais teólogos escreveram, e não ficar apenas repetindo coisas das quais só ouviram falar.

E sobre o monismo? O que podemos dizer dele? Bem, o primeiro fato que normalmente é omitido pelos aniquilacionistas, é que tal conceito parece ter estreita relação com o materialismo e o cientificismo. E isto tem sido observado por vários autores. Veja abaixo um exemplo:

O movimento céptico principiado pela filosofia moderna, que surge enquanto resposta ao dualismo cartesiano, permitiu o desenvolvimento de correntes filosóficas e antropológicas monistas. Se, ao longo da história do pensamento da alma, encontramos exemplos de teorias que procuram defender um monismo espiritualista, o séc. XVIII é também marcado pela afirmação de um  certo monismo materialista. Esta concepção consiste em ‘deixar ir a alma, mantendo-se apenas o corpo enquanto conexo entre si, única realidade experimentável  e consistente’. A opção por correntes de pensamento desta natureza encontra  também fundamento nos empirismos do século XVII e da necessidade ulterior da verificação experimental e sensível que passa a ser exigida de forma  tácita para uma progressão do conhecimento segura e verdadeira. Perde-se a alma,  descartada ou diluída na razão humana. exaltação  da matéria relega a vida psíquica para uma série de fenómenos ligados  a processos estritamente orgânicos, ou seja, confinada aos trâmites e leis  próprias da natureza e por isso mesmo passível de ser analisada, experimentada  e verificada. ‘A alma reduzia-se a um eco nobre do corpo, a uma ressonância  dos seus eventos, dos seus estados, dos seus mecanismos, das suas modificações’.”. – A alma (ou psique), de Miguel Romão Rodrigues, Lisboa, 2015, pp. 16, 17.

Quando cristãos “se apaixonam” por esse discurso do monismo, porque ele parece estar em sintonia com a consciência ecológica e humanista que o mundo hoje enfatiza, eles não percebem que estão, de certa forma, cometendo o mesmo erro de Tomé, o apóstolo que só acreditou no Cristo ressuscitado quando tocou no corpo dele e viu as feridas da cruz. O sensível falou mais alto que o inteligível. As coisas vistas mais que as não vistas. O corpo mais que o espírito. Mesmo assim é possível adequar essa visão monista a uma percepção verdadeiramente cristã. O artigo a seguir dá uma dica:

“A antropologia cristã concebe o ser humano como uma unidade na pluralidade de suas dimensões. O ser humano, enquanto corpo e alma, é uma uni-pluralidade. A antropologia cristã não compactua com o dualismo antropológico porque o ser humano não é um espaço no qual o corpo e a alma coabitam sem nenhum tipo de vínculo; corpo e alma não são duas instâncias autônomas e independentes que coexistem juntas, como preconiza o dualismo antropológico. Por outro lado, a antropologia cristã, também, não comunga com o monismo antropológico, pois defende que o ser humano não pode ser reduzido a um princípio material ou espiritual. Para a antropologia cristã, o ser humano é carne animada e alma encarnada... O ser humano não é produto de uma equação antropológica: corpo mais alma. Também não é fruto do ajustamento destas duas partes. A unidade múltipla do ser humano não é formada por duas camadas que se acomodam, nem por duas engrenagens que se encaixam e nem por dois estratos que se justapõem. Reagindo a esta visão dualista, o teólogo protestante K. Barth (1961, p. 73), defende um ‘monismo concreto’ que não considera o corpo e nem a alma ‘como duas partes, mas como dois fatores da natureza humana, una e indivisível’.”. – Da relação corpo-alma à mente-cérebro: a antropologia cristã e as novas antropologias, de Renato Alves de Oliveira, Perspectiva Teológica, Belo Horizonte, v. 46, n. 129, p. 223-224 (9 e 10 do pdf), Mai./Ago. 2014.

Mas não pense que o autor desse texto está defendendo aquela opinião inflexível que o autor do MB destacou em suas citações, de que essa unidade concreta do ser humano impede que a alma continue viva depois da morte do corpo. Isto não está em discussão. Pelo contrário, os elementos motivadores do trabalho supracitado tocam justamente nas questões resultantes de se acreditar que a alma continua viva:

“No período patrístico, a antropologia cristã estava em função da cristologia. Já no período medieval a antropologia cristã se situa no horizonte escatológico. ‘Foi a determinação cristológica da antropologia que na época patrística ditou a recuperação do corpo na compreensão do humano; agora será a escatologia [...] que determinará a consideração da unidade substancial corpo-alma’ (RUIZ DE LA PEÑA, 1988, p. 102). Os teólogos medievais quando indagam sobre a essência humana estão movidos por um interesse escatológico. Se, com a morte, a alma se separa do corpo, então é preciso interpelar: que tipo de união (acidental ou substancial?) há entre o corpo e a alma? Neste contexto, é pertinente perguntar: a salvação está destinada a qual sujeito? À alma imortal que se separou do corpo com a morte ou ao ser humano todo? Pode-se, ainda, indagar: A alma separada do corpo representa o ser humano todo? O corpo está excluído da vida pós-mortal? Como se dará a reconstituição da unidade do ser humano na ressurreição?”. – Ibid., p. 219 (5 do pdf).

Visto que a Bíblia não aborda todos esses detalhes, e pouco sabemos através dela como funciona a realidade espiritual, os filósofos propuseram diversas respostas a tais perguntas ao longo do tempo, especialmente os de formação cristã. Se ater ou não a esses pormenores pouco afeta o conceito essencial de que há uma alma que sobrevive à morte, sejam quais forem os mecanismos que a regem aqui ou em outros lugares.

Dizer que Deus tem o poder para manter a alma viva, ainda que óbvio, é mais do que suficiente para fechar a questão. Mas, além disso, vemos que até mesmo a suposta cláusula pétrea dos aniquilacionistas, o texto de Gênesis 2:7, mostra que é de origem celeste o espírito que Deus insuflou na matéria que se tornou o corpo animado de Adão. Um espírito que se deslocou literalmente até o corpo sem vida daquele que se tornou o primeiro homem. Não se refere à partida elétrica de uma máquina para que ela começasse a funcionar, como supõem os adeptos do materialismo “cristão”.

De qualquer maneira, o relato bíblico indica que a intenção de Deus era realmente que o homem nunca tivesse perdido a imortalidade e acionado o “seguro” do espírito integrado nele, pois a queda do Paraíso gerou muita dor e uma situação anômala talvez não prevista. Por isso os antigos autores cristãos, mesmo acreditando na “imortalidade” da alma, diziam que a existência dela à parte do corpo é um estado excepcional que seria revertido somente na ressurreição, quando a pessoa seria plenamente humana novamente. E junto com essa explicação vemos declarações que podem ser tranquilamente identificadas com o monismo, no caso um monismo cristão, e não um antropológico ou qualquer outro que tenham concebido na era moderna. Veja a seguir alguns exemplos:

“Mas, na verdade, ele mesmo chamou a carne para a ressurreição, e promete a ela a vida eterna, pois onde Ele promete salvar o homem, ali Ele dá a promessa à carne. Pois o que é o homem, senão o animal razoável composto de corpo e alma? A alma é por si só homem? Não, mas a alma do homem. O corpo seria chamado homem? Não, mas é chamado o corpo do homem. Se, portanto, nenhum deles é por si só homem, mas o que é constituído pelos dois juntos é chamado homem, e Deus chamou o homem à vida e ressurreição, Ele não chamou uma parte, mas o todo, que é a alma e o corpo... E por Deus e Sua proclamação, não só sua alma ouviu e acreditou em Jesus Cristo, e com ela a carne, mas ambos foram lavados, e ambos fizeram justiça. Eles [os filósofos] fazem Deus, então ingrato e injusto... dizem... a alma é incorruptível, sendo parte de Deus e inspirada por Ele, e portanto Ele deseja salvar o que é peculiarmente Seu e afim de Si mesmo. Mas a carne é corruptível, e não dele, como a alma é. Então, que agradecimentos são devidos a Ele, e que manifestação de Seu poder e bondade é essa, se Ele se propôs salvar o que é por natureza salvo e existe como parte de Si mesmo? Pois ela tinha sua salvação de si mesma. De modo que em salvar a alma, Deus não faz grande coisa, pois ser salva é seu destino natural, porque é uma parte de si mesmo, sendo sua inspiração”. – Sobre a Ressurreição, Justino de Roma (c. 160 d.C.), cap. 8, colchetes acrescentados.

“Mas, além disso, isso nos faz buscar o que uma vez tivemos, mas perdemos, unir a alma com o Espírito Santo e nos esforçar depois por essa união com Deus. A alma humana consiste em muitas partes, e não é simples; ela é composta, de modo a se manifestar através do corpo; pois nem ela poderia aparecer por si mesma sem o corpo, nem a carne ressuscitar sem a alma. O homem não é, como dizem os filósofos, apenas um animal racional, capaz de compreender e de conhecer, pois, de acordo com eles, até mesmo as criaturas irracionais parecem possuídas de compreensão e conhecimento. Mas somente o homem é a imagem e semelhança de Deus... O Deus perfeito é sem carne, mas o homem é carne. O laço da carne é a alma. Onde a alma fica é a carne. Tal é a natureza da constituição do homem. E, se é como um templo, Deus tem prazer em habitar nele pelo espírito, Seu representante.... Mas os homens, depois da perda da imortalidade, conquistaram a morte submetendo-se à morte na fé. E por arrependimento foi-lhes dado um chamado, de acordo com a palavra que diz: ‘Desde que eles foram feitos um pouco menor do que os anjos.’ E, para cada um que foi conquistado, é possível novamente conquistar, se ele rejeita a condição que traz a morte”. – Discurso aos gregos (c. 165 d.C.), Taciano, cap. 15, colchetes acrescentados.

“Pois se assim como um vaso, ao ser modelado, tem alguma falha, ele é remodelado ou refeito, para que ele possa se tornar novo e inteiro, assim também acontece com o homem pela morte. De alguma forma, ele é quebrado, para que ele possa ressuscitar na ressurreição. Quero dizer imaculado, justo e imortal. E quanto ao chamado de Deus, dizendo: ‘Onde estás, Adão?’ Deus fez isso, não como se ignorasse isso [ou seja, que não sabia onde ele estava]. Mas, sendo longânimo, deu-lhe uma oportunidade de arrependimento e confissão”. – Para Autólico, Teófilo de Antioquia (c. 170 d.C.), Livro II, cap. 26, colchetes acrescentados.

“Novamente nem é a felicidade da alma separada do corpo, pois não estamos perguntando sobre a vida ou a causa final de qualquer das partes de que o homem consiste, mas do ser que é composto por ambos, pois tal é cada homem que tem uma parte nesta existência presente, e deve haver algum fim apropriado proposto para esta vida. Mas se é o fim de ambas as partes juntas, e isso não pode ser descoberto nem enquanto eles ainda estão vivendo no estado atual de existência através das numerosas causas já mencionadas, nem quando a alma está em um estado de separação, porque não se pode dizer que o homem existe quando o corpo é dissolvido e, na verdade, totalmente disperso, embora a alma continue por si mesma - é absolutamente necessário que o fim do ser de um homem apareça em alguma reconstituição dos dois juntos e do mesmo ser vivo. E, como isso se segue necessariamente, deve haver uma ressurreição dos corpos mortos, mesmo que inteiramente dissolvidos, e os mesmos homens devem ser formados de novo, uma vez que a lei da natureza ordena o fim não de modo absoluto... Mas é impossível que os mesmos homens sejam reconstituídos a menos que os mesmos corpos sejam restaurados às mesmas almas”. – Sobre a ressurreição dos mortos, Atenágoras de Atenas (c. 180 d.C.), cap. 25.

“Reconhecemos duas variedades de espírito, uma das quais é chamada de alma, mas a outra é maior que a alma, uma imagem e semelhança de Deus: ambas existiam nos primeiros homens, que em certo sentido poderiam ser materiais, e em outro superior à matéria... há certas diferenças de dignidade nele [no corpo], e o olho é uma coisa e outra a orelha, e outra o arranjo dos cabelos e a distribuição dos intestinos, e a compactação conjunta da medula e dos ossos e dos tendões. E embora uma parte difira da outra, há ainda toda a harmonia de um concerto de música em seu arranjo - do mesmo modo é o mundo, de acordo com o poder de seu Criador, contendo algumas coisas de esplendor superior, mas algumas ao contrário destas, recebidas pela vontade do Criador um espírito material... Há, então, um espírito nas estrelas, um espírito nos anjos, um espírito nas plantas e nas águas, um espírito nos homens, um espírito nos animais. Mas, embora sendo o mesmo, tem diferenças em si mesmo. E enquanto dizemos essas coisas não por simples rumores, nem por prováveis conjecturas e raciocínios sofísticos, mas usando palavras de um certo discurso divino, você fica disposto a apressar-se em aprender”. – Discurso aos gregos (c. 170 d.C.), Taciano, cap. 12, colchetes acrescentados.

Percebe-se, portanto, que esses cristãos antigos entendiam perfeitamente que o homem só é completo se estiver na exata condição de sua criação e subsequente mudança para o Éden, sem prejuízo à crença da continuidade da alma enquanto a restauração não acontece. Isso é um monismo no qual o cristão pode acreditar sem contradizer o contexto geral da Bíblia ou o legado da igreja primitiva, embora os autores patrísticos não tenham feito tal conceituação, pois isso é algo recente.

 

G. Exemplo adicional de uma pesquisa deficiente fruto de ideia preconcebida

Outro exemplo que atesta o descuido do autor do MB, ao citar eruditos com o objetivo de apoiar aquilo em que acredita, foi quando ele comentou em uma nota a questão do cânon da Bíblia, a fim de rebater a afirmação que eu fiz de que foi preciso a igreja primitiva definir quais livros fariam parte do Novo Testamento. A fim de “provar” que isso não aconteceu, ele citou o erudito F. F. Bruce:

“Uma coisa deve ser declarada enfaticamente. Os livros do Novo Testamento não se tornaram autoritativos para a Igreja porque foram formalmente incluídos em uma lista canônica; pelo contrário, a Igreja incluiu-os em seu cânon porque já os considerava divinamente inspirados, reconhecendo seu valor inato e, em geral, a autoridade apostólica, direta ou indireta. Os primeiros concílios eclesiásticos para classificar os livros canônicos foram ambos mantidos no norte da África – em Hipo Régio em 393 e em Cartago em 397 – mas o que esses concílios fizeram não foi impor algo novo às comunidades cristãs, e sim codificar o que já era a prática geral dessas comunidades”. – The New Testament Documents: Are They Reliable?, Eerdmans, 1960, de F. F. Bruce, p. 27.

Como já virou rotina, o autor do MB não entendeu completamente o que foi dito acima (e nem o que foi dito por mim!). Está correta a informação de que a igreja primitiva já considerava todos os livros do Novo Testamento como sendo inspirados, bem antes dos referidos concílios, os quais apenas formalizaram o que já era praticado, com apenas uma ressalva. Houve outra razão porque os concílios foram necessários.

A igreja do segundo e terceiro séculos, que era a mesma igreja dos séculos IV e V (ainda que com feições diferentes), fazia uso de outros livros que não entraram no Novo Testamento, a exemplo do Pastor de Hermas, que foi tido como inspirado e era citado por Irineu, Clemente, Orígenes e outros, e faz parte do Códice Sinaítico. A Didaqué – A Doutrina dos Doze Apóstolos é outro manuscrito que, pela sua antiguidade (séc. I) e uso nas igrejas, poderia até ter entrado no testamento cristão. Ela pode ser ainda mais antiga que os escritos atribuídos ao apóstolo João. Tal cenário demonstrou que se fazia necessário definir quais livros deveriam ser canonizados. Alguns dos que eram estimados pelas comunidades cristãs acabaram sendo excluídos desse cânon em formação. E até alguns do Novo Testamento só foram aceitos depois de muita resistência e debates, tais como a carta de Judas e o livro de Apocalipse. E note que tudo isso aconteceu em uma época que o núcleo da liderança original da igreja já não existia mais.

Sendo assim, um debate sobre o cânon cristão estava em andamento, antes mesmo dos concílios, e isso não é lenda de maneira alguma. Se o autor do MB tivesse lido os documentos mais antigos da igreja primitiva, ele saberia disso. Se aceitaria o fato ou não, já é outra história... A julgar pelo recorrente comportamento obstinado dele, talvez não. Veja a seguir mais algumas informações sobre isso:

“Os primeiros passos no sentido da formação de um cânon de livros cristãos havidos como dotados de autoridade, dignos de figurar ao lado do cânon do Velho Testamento, a Bíblia do Senhor Jesus e Seus apóstolos, parecem haver sido tomados por volta do começo do segundo século, época em que há evidência da circulação de duas coleções de escritos cristãos na Igreja”. – Merece Confiança o Novo Testamento?, Vida Nova, 1965, de F. F. Bruce, p. 31.

“Dionísio de Alexandria, discípulo de Orígenes, menciona que, enquanto a igreja ocidental desde o início aceitava o livro de Apocalipse, sua situação na igreja oriental era variável. No caso da Epístola aos Hebreus, as circunstâncias eram reversas. Revelou ter uma posição mais insegura no Ocidente do que no Oriente. Quando chega a vez dos outros livros disputados, entre as assim chamadas ‘epístolas católicas’, Dionísio aprova Tiago e 2 e 3 João, mas não 2 Pedro ou Judas (note, incidentemente, que todos nessa categoria têm a última posição em nossas Bíblias atuais — de Hebreus a Apocalipse). Em outras palavras, mesmo ao final do século III, havia a mesma falta de finalidade com relação ao cânon como em seu início... A versão, conhecida hoje como Bíblia Peshita... ainda hoje é a Bíblia oficial dos cristãos das igrejas da antiga região assíria e, em sua maioria, não tem os livros de 2 Pedro, 2 e 3 João, Judas e Apocalipse... Até o século XII, as igrejas da Armênia não aceitavam o livro de Apocalipse como parte integrante do cânon”. – A Origem da Bíblia, CPAD, 1998, de Milton Fischer, F. F. Bruce e outros, pp. 106, 278, 428-431.

Como se nota, houve um processo gradual e não uniforme para se determinar quais manuscritos fariam parte do cânon cristão. Essa avaliação foi feita por pessoas da igreja dos primeiros três séculos. Os concílios apenas ratificaram o que já vinha sendo decidido pelo uso cotidiano dessa literatura. Mas algumas disputas persistiram, porém foram paulatinamente perdendo força, contudo sem desaparecer completamente. De qualquer maneira, o ponto a destacar aqui é que todo esse histórico foi protagonizado por indivíduos do segundo século em diante. Os apóstolos não estabeleceram qual deveria ser a coletânea final, embora nunca tenha havido dúvida de que determinados livros deveriam compor a lista oficial, a exemplo dos evangelhos. O cânon foi sendo organizado com o tempo, conforme os cristãos iam decidindo o que deveria ficar e o que deveria sair. E nem sempre isso aconteceu de maneira suave. Ressalte-se que até o nome “Novo Testamento” foi ideia de cristãos do século II, assim como a palavra “católica”.

Resumidamente, o que foi relatado até aqui é o cenário realista da formação do Novo Testamento. Agora veja qual é a visão do autor do MB sobre o ocorrido (os colchetes foram acrescentados):

“Os cristãos primitivos de origem judaica [1] – que viveram muito antes da institucionalização da igreja [2] – sempre souberam o que constitui a Palavra de Deus...[3] jamais precisaram que algum homem ou grupo de homens ‘decidisse’ isso arbitrariamente para eles em algum momento [4]. Essa conversa de que o cânon da Bíblia foi ‘decidido’ por homens não passa de mais uma lenda originada na imaginação de pretensos ‘eruditos bíblicos’ [5]. Esta declaração irrefletida – emitida impulsivamente [6] – manifesta não só pesquisa inadequada [7], como também, o que é pior, falta de respeito ao Autor divino das Escrituras [8]”.

O trecho acima é uma mistura de várias coisas: [1] desinformação, [2] preconceito, [3] suposição, [4] distorção de fatos, [5] arrogância, [6] cegueira ante os próprios erros (Mat. 7:1-5), [7] acusação falsa e [8] julgamento adverso. Em suma, apenas declarações infundadas e baseadas no próprio ego. É esta a erudição que ele tanto diz apreciar? O discurso “de nível” de um pesquisador cristão?

Diante do exposto, entendemos o motivo do autor do MB não conseguir assimilar o que diz a maioria das obras que ele buscou na Internet para citar, com o objetivo de “provar” o aniquilacionismo por outros meios que não seja apenas o desejo de acreditar em algo (wishful thinking).

 

H. Lista das obras comentadas e das que foram recentemente incluídas

Neste livro eu analisei e comentei apenas 100 das obras citadas pelo autor do MB. O motivo é porque o padrão utilizado por ele ao buscar apoio acadêmico para o aniquilacionismo materialista será sempre o mesmo, pois não há novidade na “metodologia” utilizada. Por isso não há necessidade de analisar e comentar todas as referências que ele citou no vão intento de contradizer a Bíblia e o ensinamento do cristianismo primitivo. Mas as citações que não foram comentadas estão mencionadas mais adiante, com uma breve indicação dos erros cometidos.

Naturalmente, nesse amplo rol de publicações o espectro de opiniões varia, desde eruditos que não apoiam nada do aniquilacionismo até aqueles que estão de pleno acordo, pois fazem parte da “escola” que o autor do MB frequenta. E entre os dois extremos há também aqueles que estão numa espécie de limbo, os teólogos “monistas” ou “progressistas”, os quais, embora não advoguem o aniquilacionismo, dizem coisas que são aproveitadas pelos que combatem o ensino cristão sobre a alma. Os dessa ala aparecem bastante na segunda parte das obras analisadas.

Parte 1 (comentadas nas seções 2, 3 e 4):

1. Commentary Critical... on the Old and New Testaments, de Robert Jamieson e outros (1871)

2. The Jewish Encyclopedia, de William Popper e outros (1901-1906)

3. The International Standard Bible Encyclopedia, de James Orr e outros (1915)

4. Jewish Theology: Systematically and Historically Considered, de Kaufmann Kohler (1918)

5. Die Letzten Dienge: Lehrbuch der Eschatologie, de Paul Althaus (1926)

6. Dictionnaire Encyclopedique de la Bible, de Alexandre Westphal e outros (1935)

7. The Distinctive Ideas of the Old Testament, de Norman H. Snaith (1944)

8. The Interpreter’s Dictionary of the Bible, de George Arthur Buttrick (1952)

9. The Encyclopedia Americana (1959)

10. Studies In Dogmatics. Man: The Image of God, de G. C. Berkouwer (1962)

11. The New Bible Dictionary, de J. D. Douglas (1962)

12. A Theological Word Book of the Bible, de Alan Richardson, editor (1962)

13. Theological Dictionary of the New Testament, de G. Kittel e G. Friedrich (1964-1976)

14. Dictionary of the Bible, de John L. McKenzie (1965)

15. The New Catholic Encyclopedia (1967)

16. Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament, de Lothar Coenen e Klaus Haacker (1967)

17. Christian Doctrine, de Shirley C. Guthrie, Jr. (1968)

18. The Religious Ideas of the Old Testament, de Henry Wheeler Robinson (1968)

19. Anthropologie des Alten Testaments, de Hans Walter Wolff (1973)

20. As Grandes Religiões, Abril Cultural (1973)

21. The Zondervan Encyclopedia of the Bible, de Merrill C. Tenney & Moisés Silva, eds. (1975)

22. Calvinism and Scholasticism in Vermigli's Doctrine…, de John Patrick Donnelly (1976)

23. Jewish Ideas & Concepts, de Steven T. Katz (1977)

24. The Concise Jewish Encyclopedia, de Cecil Roth (1980)

25. Genesis – Volume I, de John C. L. Gibson (1981)

26. The Parables of the Kingdom, Grace and Judgment, de Robert Farrar Capon (1985-1989)

27. Harper’s Bible Dictionary, de Paul J. Achtemeier e outros (1985)

28. The Eerdmans Bible Dictionary, de Allen C. Myers e outros (1987)

29. New Dictionary of Theology, de Sinclair B. Ferguson e outros (1988)

30. The True Image: The Origin and Destiny of Man in Christ, de Philip Edgcumbe Hughes (1989)

31. Word Biblical Commentary: Ecclesiastes, de Roland E. Murphy (1992)

32. A Theology of the New Testament, de George Elton Ladd (1993)

33. Enciclopédia Mirador (1994)

34. New Testament Theology, de George Bradford Caird and L. D. Hurst (1994)

35. What Do Jews Believe? – The Spiritual Foundations of Judaism, de David S. Ariel (1995)

36. New Bible Dictionary, de D. R. W. Wood e outros (1996)

37. “Christianity and The Survival of Creation”, de Wendell Berry

38. The Death of Death – Resurrection and Immortality in Jewish Thought, de Neil Gillman (1997)

39. The Encyclopaedia of Judaism, de Jacob Neusner e outros (1999)

40. Baker Encyclopedia of Psychology…, de David G. Benner & Peter C. Hill, orgs., (1999)

41. Eerdmans Dictionary of the Bible, de David Noel Freedman e outros (2000)

42. Christ and the Future in New Testament History, de E. Earle Ellis (2000)

43. Tyndale Bible Dictionary, de Philip W. Comfort e Walter A. Elwell (2001)

44. Care for the Soul:…Intersection of Psychology & Theology, de M. R. McMinn e T. R. Phillips, orgs. (2001)

45. Encyclopædia Britannica (2004)

46. Grande Enciclopédia Barsa (2004)

47. The Modern Theologians:… Christian Theology Since 1918, de D. F. Ford e R. Muers, edits. (2005)

48. Old Testament Theology, de John Goldingay (2006)

49. Ancient Near Eastern… World of the Hebrew Bible, de John H. Walton (2006)

50. Encyclopaedia Judaica – Second Edition, Thompson Corporation (2007)

51. A Hebrew and English Lexicon Without Points, de John Parkhurst (2015)

Parte 2 (comentadas na seção 8):

52. Theologische Realenzyklopädie, Fundação Walter de Gruyter (2006)

53. The Oxford Dictionary of the Christian Church, Oxford University Press (2005)

54. Evangelisches Kirchenlexikon, de E. Fahlbusch e outros (2001)

55. Holman Bible Dictionary, Holman Bible Publishers (1991)

56. Expository Dictionary of Bible Words, de Lawrence O. Richards (1991)

57. The Authority of the Bible, de Charles Harold Dodd (1978)

58. Paulus, Ontwerp van zijn theologie, de Herman Ridderbos (1966)

59. The Theology of Paul The Apostle, de James D. G. Dunn (1998)

60. Essentials of Christian Theology, de William C. Placher, ed. (2003)

61. Philosophy of Plotinus, de William Ralph Inge (2014)

62. The Concept of the Soul in Plato and in Early Judeo-Christian Thought, de Lester I. Newman (1958)

63. Biblical and Classical Views of Personality, de Dana Prom Smith (1958)

64. The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge (2012)

65. The Christian Element in Plato and the Platonic Philosophy, de Constantin Ackermann (2010)

66. Imortalidade ou Ressurreição? - Uma Abordagem Bíblica..., de Samuelle Bacchiocchi (2007)

67. The SCM Press A-Z of Patristic Theology, de John Anthony McGuckin (2004)

68. The Biblical Meaning of Man, de Dom Wulstan Mork (1967)

69. Christianity: History, Belief, and Practice, de Matt Stefon, ed., (2012)

70. Corpo e Alma, de Pedro Laín Entralgo (2003)

71. The Pauline View of Man in Relation to its Judaic and Hellenistic Background, de Walter Stacey (1956)

72. “The Biblical View of Man”, Indian Journal of Theology, de Gnana Robinson (1978)

73. Christian Words and Christian Meanings, de John Burnaby (1955)

74. A Study of Hebrew Thought, de Claude Tresmontant, ed. (1960)

75. How To Enjoy The Bible, de Ethelbert William Bullinger (2007)

76. The Pattern of New Testament Truth, de George Eldon Ladd (1968)

77. El Hombre y Su Cuerpo, de Xavier Zubiri (1973)

78. The Westminster Theological Wordbook of the Bible, de Donald E. Gowan, ed. (2003)

79. The Standard Jewish Encyclopedia, Cecil Roth, ed. (1970)

80. Only Human: Christian Reflections…, David P. Gushee (2005)

81. Death and the Afterlife in the New Testament, Jaime Clark-Soles (2006)

82. Three Essays. On the Intermediate State of the Dead..., Walter Balfour (2010)

83. La Parole de Dieu. Approches du mystère des Saintes Écritures, Georges Auzou (1960)

84. Law and Grace: Must a Christian Keep the Law of Moses?, George Angus Fulton Knight (1962)

85. The Old Testament View of Man, G. M. Fernandez (1978)

86. Der Geist des lebens, Jürgen Moltmann (1991)

87. The Living Soul: A Study of the Meaning of the Word Næfæš…, A. Murtonen (1958)

88. Have Faith In God, Norman Henry Snaith (1935)

89. Life After Death – The Biblical Doctrine of Immortality, Norman Henry Snaith (1947)

90. The Witness of Jesus, Paul and John: An Exploration in Biblical Theology, Larry R. Helyer (2008)

91. Implications of the Nature of Immortality for the Final Judgment, Norman H. Althausen (2014)

92. Life and Immortality: An Examination of…, Basil Ferris Campbell Atkinson (1969)

93. Das Kommen Gottes: Christliche Eschatologie, Jürgen Moltmann (1995)

94. Nuevo Diccionario Ilustrado de la Biblia, Wilton M. Nelson (1998)

95. Themes in Old Testament Theology, William A. Dyrness (1989)

96. How Came Our Faith: a Study of the Religion of Israel..., William A. L. Elmslie (1948)

97. The Siege Perilous: Essays in Biblical Anthropology and Kindred Subjects, Samuel Henry Hooke (1956)

98. The Perfectibility of Human Nature in Eastern and Western Thought, Harold Coward (2008)

99. The Hopes of the Church of God – In Connection..., John Nelson Darby (1840)

100. I Believe In..., Norman H. Snaith (1949).

Quando eu comecei a escrever este meu texto o autor do MB tinha citado até então 32 obras de referências, e quando eu terminei a quantidade já estava em 115 obras. Obviamente isso atrasou a conclusão do meu trabalho, pois eu tive que verificar também os livros adicionados. Nesse ínterim, publiquei também alguns textos ampliando a abordagem de determinados assuntos que são apenas tangenciados pelo autor do MB em suas citações ou notas de rodapé. Ou seja, em um espaço de alguns meses ele aprofundou ainda mais o poço de incoerência e contradições... Incoerência porque em quase todos os casos os estudiosos citados não advogam o aniquilacionismo materialista. E as contradições se devem ao fato deles, em geral, ensinarem explicitamente o contrário do que as citações postas da maneira que estão pelo autor do MB podem dar a entender. É claro que ele não se deu conta desse abismo que ele apresenta e certamente achou que estava fazendo uma ótima pesquisa.

Pois bem, visto que o autor do MB citou mais referências além das 100 que eu me propus analisar e comentar incluí também neste apêndice as 15 obras que ele acrescentou recentemente, além de indicar os erros cometidos por ele ao citá-las, aqueles que estão explicados na seção 4 e transcritos resumidamente a seguir:

Erro 1 – Não entender as críticas contra o conceito grego de imortalidade da alma tendo como foco o ensino cristão

Erro 2 – Deslocar o centro da discussão para se esquivar da ideia primária (sobrevivência imediata x concepção grega)

Erro 3 – Usar de maneira errônea o enfoque da Bíblia hebraica sobre o termo “alma” (nefesh)

Erro 4 – Ignorar o que comentaristas disseram sobre o mundo dos mortos

Erro 5 – Valer-se de peculiaridades de cada autor ou de teorias formuladas por teólogos liberais

Eventualmente eu poderei fazer observações sobre alguma das referências adicionadas por último. Mas enquanto isso não acontece (se é que ocorrerá um dia), você mesmo poderá rastrear nas publicações citadas os erros indicados pela numeração 1, 2, 3, 4 ou 5. Mas antes disso, compare o(s) número(s) com os breves trechos que foram extraídos das citações feitas pelo autor do MB. Na maioria dos casos isso será suficiente para você perceber como ele continua a cometer os mesmíssimos erros, que revelam uma profunda negação dos fatos e falta de razoabilidade. Ou então ignorância mesmo, caso as falhas não sejam propositais. O que foi visto no comentário à obra nº 99 é um ótimo exemplo de que o autor do MB pode estar em um dos dois extremos: (1) o de plena consciência que está sustentando mentiras ou (2) o de que continua ignorando informações importantes por puro desconhecimento. Infelizmente, devido ao tamanho que a “pesquisa” dele ficou, a primeira situação é a mais provável. Vamos torcer que não!

Se você resolver fazer um exame mais aprofundado das recentes inclusões e de outras que ele provavelmente ainda fará, sugiro que não apenas consulte as publicações citadas, mas procure saber também a formação religiosa e/ou acadêmica dos respectivos autores, além de ler outros trabalhos que eles escreveram. Isto ajuda a determinar melhor o que eles estão ensinando, pois contextualiza de maneira mais ampla a produção deles e também suas motivações.

Em alguns casos onde eu não indiquei o número “5” o autor citado pode ser alguém alinhado com aniquilacionismo materialista, porém eu não indiquei isso, porque não analisei a obra em si e me ative apenas à citação. Você mesmo poderá fazer esse “ajuste” caso resolva verificar as referências diretamente na fonte. Diferentemente do que eu fiz na seção 8, nas obras que defendem o aniquilacionismo (ou algo próximo disso) eu não indiquei apenas o erro nº 5. Eu também apontei outras falhas que foram cometidas pelos próprios escritores.

Por fim, saiba que a tendência que o “bereano” tem demonstrado ultimamente é citar cada vez mais autores abertamente aniquilacionistas, talvez porque ele já viu que não adianta muito recorrer a eruditos isentos, exceto, é claro, aqueles que apenas parecem apoiar o aniquilacionismo, devido a uma leitura deficiente dos mesmos. Fazer uso de escritores “mortalistas” também é mais vantajoso do que citar os que apenas possuem discurso monista ou integralista, mas que são, na realidade, “imortalistas”.

- Para ver trechos da citação clique no título da obra e para voltar faça o mesmo.

101. Life, Death and Destiny, The Westminster Press, Roger Lincoln Shinn (1957) 1 e 3.

102. Body, Soul, and Human Life: The Nature of Humanity in the Bible, Baker Academic, Joel B. Green (2008) 4 e 5.

103. Backgrounds of Early Christianity, Eerdmans Publishing, Everett Ferguson (1987) 1.

104. The Biblical View of the Soul, Longmans, Green and Co., de George Waller (1904) 1 e 5.

105. Body and Soul: A Study on the Christian View of Man, Westminster Press, de Derwyn Randolp Grier Owen (1956) 1 e 5.

106. Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead?, Epworth Press, de Oscar Cullmann (1958) 1 e 5.

107. The Problem of the Self in Buddhism and Christianity, Palgrave Macmillan, de Lynn A. De Silva (1978) 2 e 5.

108. Passion of the Western Mind: Understanding the Ideas... , Ballantine Books, de Richard Tarnas (1991) 1.

109. I Believe in the Resurrection of Jesus, Eerdmans, de George Eldon Ladd (1975) 1 e 4.

110. Paul, Apostle of the Heart Set Free, Eerdmans, de Frederick Fyvie Bruce (1977) 1.

111. The Pocket Commentary of the Bible, Part One: Book of Genesis, de Basil Ferris Campbell (1954) 5.

112. Death and the Soul After Life, ZOE-Life Books, de George Wisbrock (1954) 3 e 5.

113. Synonyms of the Old Testament, Longmans, de Robert Baker Girdlestone (1871) 3 e 4.

114. Immortality: A Clerical Symposium on What Are the Foundations..., James Nisbet & Co (1975) 1 e 4.

115. A Critical Lexicon and Concordance to the English..., Longmans, de Ethelbert William Bullinger (1895) 1 e 5.

TRECHOS SELECIONADOS

- Os links nos trechos remetem para outras referências que explicam os pontos mencionados, inclusive explicações das outras 100 obras.

- Na versão on line deste livro, ao acessar um link para obter explicações adicionais, para voltar use a seta de retorno do seu navegador.

- Os negritos e grifos são meus. Os que estiverem em azul é para destacar algum erro ou inconsistência.

- Para voltar à lista geral clique no título da obra.

101: Os judeus nunca acreditaram que uma pessoa é uma alma mais um corpo – uma combinação separável conectada temporariamente. Hoje praticamente todos os psicólogos concordam com os judeus neste assunto.... Na história cristã, Agostinho fez o mesmo quando ele disse, nas palavras que todo o nosso conhecimento moderno justifica: ‘Pois o corpo não é um ornamento ou uma ajuda procedente do exterior, e sim parte da própria natureza do homem’... pessoas de ‘mentalidade espiritual’ argumentaram contra essa crença cristã. Elas citaram o Fédon, de Platão... ‘E o que é a purificação, senão a separação da alma do corpo?’ Para os cristãos isto era uma fraude completa. Significava aversão doentia do corpo e cegueira para com os pecados do espírito... a Igreja apegou-se à sua preocupação com uma pessoa completa, e não com uma alma mais um corpo separável. Ela pregou a salvação de pessoas reais por Deus, não de almas místicas que poderiam ser absorvidas em alguma alma divina”. – Life, Death and Destiny, pp. 81-84.

102: “O termo de interesse mais imediato, repā’îm [“sombras”]... aparece apenas oito vezes na Bíblia hebraica no sentido de ‘os mortos’... Rephaim refere-se àqueles cuja morada é o Seol, o lugar dos mortos... os rephaim são simplesmente os mortos humanos cujo lugar é a sepultura. Para Provérbios, as referências aos rephaim são usadas para dramatizar o fim de um modo de vida oposto aos caminhos justos de Deus. Aqui, os rephaim são associados ao lugar dos mortos, ao Seol ou, simplesmente, à ‘morte’.”. Body, Soul, and Human Life..., p. 155.

103:Para Platão, a alma é imortal, possuindo a preexistência e a pós-existência contínua... Esta doutrina filosófica da imortalidade da alma deve ser distinguida da doutrina judaica e cristã de uma ressurreição do corpo e da doutrina patrística de uma imortalidade criada ou condicional da alma dependente da Graça e do Poder de Deus... A teologia patrística tomou forma em grande parte na estrutura da filosofia platônica. Não só o pensamento cristão, como também alguns judeus (principalmente Filo) e, posteriormente, a filosofia islâmica deveram muito a ele. A ênfase de Platão [é] na realidade não-material.... – Backgrounds of Early Christianity, p. 335.

104: “‘A Imortalidade da Alma’ é uma doutrina de origem pagã... isso foi ensinado por Sócrates... depois dele, por Platão e os platônicos, a partir dos quais surgiram algumas das primeiras heresias da igreja cristã dos primeiros quatro séculos... a grande esperança central da igreja cristã... O conceito bíblico da morte, portanto, é uma cessação completa de todos os poderes e faculdades da mente e do corpo, que eram exercidos em um Organismo ou corpo material vivente”. – The Biblical View of the Soul, pp. 65, 67, 68.

105: “Se nos voltarmos para a Bíblia... não há dualismo e dificilmente alguma ideia da imortalidade da alma individual e independente... Esse dualismo corpo-alma era uma ideia implícita necessária para a doutrina grega da imortalidade da alma... há alguns trechos bíblicos isolados que podem sugerir a ideia da imortalidade da alma, no sentido grego, mas o conceito bíblico... é a ressurreição do corpo que está enfatizada... Porque, então, os Pais [da Igreja] se inclinaram para essa noção em grande parte não bíblica?... Ela considera o corpo como o túmulo ou prisão da alma da qual ela anseia por se libertar”. – Body and Soul: A Study on the Christian View of Man, pp. 29, 41, 59, 61, 62, 77, 163, 164, 177 e 178.

106: “... para os primitivos cristãos a alma não é inerentemente imortal, mas só se tornou imortal por meio da ressurreição de Jesus Cristo, e através da fé nele... a ressurreição já realizada não é o estado de cumprimento, pois este é futuro, momento em que o corpo é também ressuscitado, o que só ocorrerá no ‘último dia.”. – Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead?

107: “Há, porém, alguns casos [na Bíblia] que parecem sugerir uma dicotomia ou uma tricotomia... [Ex.: Mat. 10:28]... Oscar Cullmann comenta este versículo da seguinte maneira:... ‘Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena tanto a alma como o corpo.’ Ou seja, temei a Deus, que é capaz de entregar completamente à morte, a saber, quando Ele não ressuscita uma pessoa para a vida... A alma não pode permanecer para sempre sem um corpo. E, por outro lado, ouvimos Jesus dizendo... que a alma pode ser morta. A alma não é imortal. Tem de haver uma ressurreição para ambos... as ‘almas dos mártires’ [Apoc. 6:9] significam seu sangue vital derramado no altar”. – The Problem of the Self in Buddhism and Christianity, pp. 82, 83.

108: “A estrutura filosófica neoplatônica, que se desenvolveu simultaneamente ao lado da teologia cristã primitiva em Alexandria, parecia oferecer uma linguagem metafísica particularmente adequada dentro da qual a visão judaico-cristã poderia ser melhor compreendida... Indicativo desta intimidade entre platonismo e cristianismo é que Plotino e Orígenes... A filosofia de Plotino, por sua vez, foi fundamental na conversão gradual de Agostinho para o cristianismo. [Agostinho encarava Platão] como em perfeita concordância [link] com a fé cristã”. – Passion of the Western Mind: Understanding the Ideas..., pp. 102-104.

109: “O conceito de homem do Antigo Testamento... está em nítido contraste com a concepção grega do homem... Paulo jamais concebe a salvação da alma separada do corpo. Salvação significa o resgate do corpo, bem como de toda a ordem criada... o conceito do Antigo Testamento sobre o homem é que ele é um corpo animado em vez de uma alma encarnada... [No Antigo Testamento] ‘Morte’ significa o fim da vida, mas não a cessação da existência. Os mortos existem no Seol como ‘sombras’... Uma ‘sombra’ é... é o próprio homem, ou melhor, uma pálida réplica de um homem”. – I Believe in the Resurrection of Jesus, p. 44-49.

110: “Paulo evidentemente não poderia contemplar a imortalidade à parte da ressurreição; para ele um corpo de algum tipo era essencial para a personalidade. Nosso pensamento tradicional... [é] herança greco-romana... é sempre ao corpo ressuscitado que ela [a imortalidade] é atribuída, nunca à alma. É, sem dúvida, uma simplificação exagerada afirmar que enquanto para os gregos o homem era uma alma encarnada, para os hebreus ele era um corpo animado... estar sem um corpo de algum tipo seria uma forma de nudez ou isolamento espiritual do qual a mente dele recuou”. – Paul, Apostle of the Heart Set Free, p. 311.

111: “Pensou-se às vezes que a transmissão do princípio da vida... implicou imortalidade do espírito ou da alma. Afirma-se que, ser feito à imagem de Deus envolve a imortalidade. A Bíblia nunca diz isso... O fôlego da vida não foi soprado no coração do homem, e sim em suas narinas. Ele envolveu vida física... Os pensadores gregos tendiam a conceber o homem como uma alma imortal aprisionada num corpo. Esta ênfase é oposta à da Bíblia, mas encontrou um amplo espaço no pensamento cristão”. – The Pocket Commentary of the Bible, Part One: Book of Genesis, p. 32.

112: “O tipo de morte que lhes foi prometida foi... remoção imediata do Jardim do Éden e a sentença imediata de por fim saírem totalmente da consciência da vida assim que parassem de tomar o fôlego da vida... eles, consequentemente, receberam a realidade de uma morte espiritual instantânea que os separou da presença de seu Deus... a morte do homem, conforme a Bíblia ensina, não é seguida imediatamente por uma continuação ininterrupta da consciência em qualquer um dos seus supostos reinos de existência incorpórea ou sem corpo... O conceito divino de morte a declara como a própria causa da partida do homem de TODA a vida, consciente ou algo do gênero... [Há] evidências mais do que suficientes para demonstrar a diferença entre o significado bíblico de ‘nephesh’ e o significado contemporâneo de alma”. – Death and the Soul After Life, pp. 38- 55, 71-92, 108-131, 146-150, 230, 231, 331.

113: “Quando o escritor da Epístola aos Hebreus diz que a palavra de Deus penetra ‘na divisão da alma e do espírito’... esboça-se uma divisão psicológica da parte imaterial da natureza humana... A Bíblia segue na suposição de que há duas esferas da existência, que podem ser chamadas mente e matéria... As Escrituras trazem o mundo imaterial para bem próximo de cada um de nós... Um homem sente-se, às vezes tentado a dizer: ‘acreditarei apenas no que vejo’; mas o primeiro sopro de vento ou o primeiro choque de eletricidade diz que ele deve ampliar seu credo... ele é obrigado a reconhecer que seu corpo físico é a casa de um ser extra físico, que ele chama de ego... Este ego... um habitante de uma esfera imaterial... [tem que] viver, crescer e se desenvolver dentro do tabernáculo da carne... A alma [Nephesh] é... o princípio animador do corpo... Em alguns trechos no Pentateuco, nephesh foi traduzido como ‘alguém’... num sentido indefinido, a alma representando a pessoa... [No AT] alma é o centro pessoal do desejo, inclinação e apetite, e que a condição normal dela é estar operando em ou por meio de uma organização física... Quando a alma parte (Gen. 35:18), o corpo fica desocupado, e o ego que se desenvolveu com o desenvolvimento do corpo em meio às circunstâncias da vida terrestre é desalojado da sua morada. Ele pode, todavia, retornar novamente ao seu antigo lar por meio da operação de Deus, como foi o caso do filho da viúva (1 Reis 17:21)... Em Mateus 10:28, faz-se uma distinção entre a destruição do corpo, que o homem pode trazer, e a perdição ou ruína da alma na Geena, que só Deus pode causar... Em Atos 2:27, Pedro cita o Salmo (16:10), ‘Não deixarás a minha alma no Hades.’ Este trecho certamente, pode ser entendido como significando, ‘Pois não deixarás o meu cadáver na sepultura’; mas está bem mais de acordo com o uso das duas importantes palavras alma e Hades entendermos que o princípio animador, o ego [ou: eu, a pessoa] de nosso Salvador não deveria ser consignado ao mundo inferior como um lugar permanente de moradia”. – Synonyms of the Old Testament, p. 92-100.

114: “No relato bíblico da criação e da queda do homem não há nada indicando que o homem era por criação um ser imortal. Pelo contrário, sua imortalidade é representada como dependente, não de sua condição de criação, e sim de algo fora dele... Não há nada indicando que a ‘morte’... afetou só uma parte de sua natureza, ou era algo menos do que a eliminação total... Os que trazem para a interpretação desses trechos [do NT] uma noção preconcebida da imortalidade natural do homem são obrigados a dar à expressão ‘vida eterna’ um sentido figurado, e eliminar dela a ideia comum da vida como existência. Pois claramente não se ofereceria como um presente o que já se possui... todos serão levantados novamente, mas não que haverá uma ressurreição de vida eterna para todos. Para os ímpios será apenas uma ressurreição de julgamento. O destino deles é um sobre cujos detalhes lança-se um véu, mas a linguagem na qual isso se expressa e as imagens pelas qual se ilustra parecem apontar para uma destruição miserável, e em todo caso, indicam algo bem terrível... A doutrina da imortalidade natural, independentemente de ressurreição levaria a uma conclusão bem diferente”. – Immortality: A Clerical Symposium on What Are the Foundations..., pp. 118-124.

115: “HADES. Esta é uma palavra pagã e chegou até nós [através do Novo Testamento] cercada de tradições pagãs, que tiveram sua origem em Babel, e não na Bíblia, e chegaram até nós por meio do judaísmo e do romanismo. Como Hades (uma palavra de origem humana) é usada no Novo Testamento, é a equivalente do hebraico seol (uma palavra de origem divina), seu significado pode ser extraído, não da imaginação humana, e sim a partir de seu uso divino no Antigo Testamento... sepultura destaca-se como a tradução melhor e mais comum... O estudante descobrirá que ‘sepultura’, tomada literalmente, bem como figurativamente, satisfaz todas as exigências do Seol hebraico... Portanto, Seol significa a condição de morte; ou a condição dos mortos, da qual a sepultura é uma evidência tangível”. – A Critical Lexicon and Concordance to the English..., pp. 367-369 (da edição de 1999).

 

LEGENDA DAS VERSÕES BÍBLICAS UTILIZADAS

AM – Ave Maria

AN – Álvaro Negromonte

ARA – Almeida revista e atualizada

ARIB – Almeida Revisada Imprensa Bíblica.

BJ – Bíblia de Jerusalém

BEV – Bíblia da Editora Vozes.

CBC – Centro Bíblico Católico

KJV – King James Version (Rei Jaime), versão em português

MD – Mensagem de Deus

NBV – A Nova Bíblia Viva

NTLH – Nova Bíblia na Linguagem de Hoje

HNV – Hebrew Names Version

NJB – New Jerusalem Bible

NKJV – New King James Version (em tradução própria para o português)

NVI – Nova Versão Internacional

PER – Bíblia do Peregrino

SBB – Sociedade Bíblica Britânica

TEB – Tradução Ecumênica da Bíblia

TNM – Tradução do Novo Mundo (1986)

 

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