SEOL E SEPULTURA SÃO MESMA COISA?

Publicações teológicas costumam afirmar que a punição dos maus será o sofrimento eterno num "inferno de fogo", e chamam de "aniquilacionistas" os que repudiam tal ensino e não acreditam na imortalidade da alma. O conceito de aniquilacionismo que utilizei neste artigo é uma definição mais restrita, que se refere apenas à crença de que a pessoa deixa de existir por completo quando morre, não havendo, portanto, uma alma espiritual que sobrevive à morte do corpo físico, ficando a pessoa fiel na dependência de ser "recriada" por Deus.

No entendimento da maioria dos cristãos, as almas dos que morrem vão para o Seol, também chamado de Hades, porém seus corpos ficam na sepultura. No entanto, alguns pensam que Seol e sepultura se referem ao mesmo lugar. Qual o ponto de vista correto?

Um dos motivos que induzem à opinião minoritária é que, ocasionalmente, alguns tradutores da Bíblia tomam a liberdade de traduzir “seol” por “sepultura”. Porém, não é assim que está no texto original. Em hebraico, há outra palavra para sepultura. O mais recomendado seria sempre considerar a palavra “seol” intraduzível e mantê-la como está originalmente. O mesmo se aplica à palavra Hades, em grego. Às vezes, eles também traduzem essas palavras por "inferno". Essa variabilidade de traduções pode confundir alguns leitores da Bíblia.

Essa questão deveria ser um ponto pacífico porque a Bíblia fornece o esclarecimento necessário. Quem se atém exclusivamente ao que diz o texto bíblico não poderá chegar a outra conclusão que não seja a que está abaixo explicada.

Seol / Hades – o profundo lugar de habitação dos mortos

Uma análise rápida de alguns textos bíblicos é suficiente para demonstrar qual a natureza do Seol e se há possibilidade dele ser o mesmo que sepultura. Considere-os a seguir:

“Cercaram-me as cordas da morte e acharam-me as próprias circunstâncias aflitivas do Seol”. – Salmo 116:3.

Do ponto de vista dos que ficam na Terra, os que vão para o Seol são silenciados (é por isso que o Salmo 115:17, 18 associa o silêncio ao Seol). Entretanto, para quem está no Seol a situação é diferente. É o que indica o texto acima. Ele está de acordo com Lucas 16:22, 23, que menciona um pecador no Hades: “Também o rico morreu e foi enterrado. E no Hades, ele ergueu os olhos, estando em tormentos.”

“Tua justiça chega às alturas, ó Deus... Tu, que me fizeste passar muitas e duras tribulações, restaurarás a minha vida, e das profundezas da terra de novo me farás subir”. – Salmos 71:19, 20, NVI. Compare com 1 Samuel 28:8.

Até onde se sabe, nunca ninguém foi enterrado nas profundezas da Terra, mas o enterro "padrão" se limita a alguns palmos debaixo do chão. O que demonstra que o Seol não é uma simples sepultura.

“Você já foi até as nascentes do mar, ou já passeou pelas obscuras profundezas do abismo? As portas da morte lhe foram mostradas? Você viu as portas das densas trevas?” – Jó 38:16, 17, NVI.

Conforme sugere o texto acima, o Seol fica nas profundezas da Terra, num lugar de densas trevas.

“[E Deus disse a certos pecadores:] Se cavarem até o Seol, de lá os tirará a minha própria mão; e se subirem aos céus, de lá os farei descer”. – Amós 9:2, colchetes acrescentados.

O Seol está tão profundo na Terra quanto o céu está distante de nós. Se esconder-se em uma sepultura fosse o mesmo que se esconder no Seol, Deus não seria o único capaz de arrancar um fugitivo escondido de lá. O ser humano poderia fazer o mesmo.

Jesus disse: “Porque, assim como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do enorme peixe, assim estará também o Filho do homem três dias e três noites no coração da terra.” – Mateus 12:40.

As palavras acima se referem ao período no qual Jesus estaria morto, antes de ser ressuscitado. Mas, quando isso aconteceu, Jesus não foi enterrado no coração da Terra, mas seu corpo foi colocado em um sepulcro, um tipo de câmara mortuária usada nos tempos antigos, mostrada na fotografia abaixo. A descrição feita por Jesus, porém, se ajusta perfeitamente ao Seol, que está nas profundezas da Terra.

“Quando ele [Jesus] subiu em triunfo às alturas, levou cativo muitos prisioneiros, e deu dons aos homens”. (Que significa “ele subiu”, senão que também havia descido às profundezas da terra?”).” – Efésios 4:8, 9, NVI.

“Quem descerá ao abismo? (isto é, para fazer Cristo subir dentre os mortos)”. – Romanos 10:7, NVI.

Como foi mencionado, o corpo de Jesus Cristo sequer foi enterrado. Os discípulos o depositaram no sepulcro, acima do nível do solo. Se o Seol fosse apenas a sepultura onde o corpo dele estava, ele não teria ido para as profundezas da Terra. Mas ele foi, mesmo não tendo sido enterrado debaixo do chão. A Bíblia predisse que Jesus iria para o Seol quando morresse, porém não seria deixado lá:

“Não deixarás a minha alma no Seol.” – Salmo 16:10; Atos 2:31.

Sim, o corpo de Jesus ficou no sepulcro, porém sua alma foi para o Seol, nas profundezas da Terra, exatamente como afirmou o apóstolo Paulo no texto de Efésios transcrito anteriormente. Consulte o apêndice 1 para ver um comentário adicional.

Em qual forma ele esteve no Seol durante os três dias incompletos que passou "morto"? Morto do ponto de vista dos homens, mas vivo do ponto de vista do Pai celestial, aquele que é Deus de vivos e não de mortos. (1 Pedro 4:5, 6; Lucas 20:37, 38) Se as almas vão para o Seol depois da morte, e o corpo de Jesus ficou no sepulcro, obviamente ele esteve no Seol na forma espiritual, assim como sugere o texto abaixo:

“Sendo morto na carne, mas vivificado no espírito. Neste estado, também, ele [Jesus] foi e pregou aos espíritos em prisão, os quais outrora tinham sido desobedientes, quando a paciência de Deus esperava nos dias de Noé.” – 1 Pedro 3:18-20.

(Para uma consideração adicional do texto acima, queira consultar o item 2 do apêndice ao final deste artigo)

Em espírito, Jesus pregou no Hades aos que foram desobedientes nos dias de Noé:

Enquanto isso, o corpo dele aguardava a ressurreição no sepulcro, onde fora colocado:

Portanto, está muito claro que não existe possibilidade de sepultura ser o mesmo que Seol. São dois conceitos totalmente distintos, embora relacionados. Para a sepultura vão os corpos dos que morrem, e para o Seol (ou Hades) vão suas almas espirituais.

Há outros textos na Bíblia que também demonstram que Seol não é o mesmo que sepultura. Por exemplo, quando Jacó achou que tinha perdido seu filho José para a morte*, ele disse:

“Quero descer de luto ao Xeol, para junto do meu filho.” – Gênesis 37:35, Mensagem de Deus.

* Na verdade, José foi vendido pelos próprios irmãos, que em seguida banharam uma veste dele no sangue de um animal para induzir Jacó a acreditar que ele tinha sido dilacerado por uma fera.

O paradeiro de José era desconhecido. Não se sabia onde o corpo dele poderia estar. Então, como seria possível a morte de Jacó fazê-lo ficar junto de seu filho? O corpo de José não estava num sepulcro ao lado onde Jacó pudesse ser “enterrado” junto dele. No entanto, Jacó sabia que se morresse iria para o Seol, onde seu filho estaria aguardando, se realmente tivesse morrido. Jacó não esperava se juntar a ele em alguma sepultura.

Para mais detalhes sobre esse assunto consulte o artigo abaixo:

SEOL, OU HADES, E CONCEITOS RELACIONADOS

APÊNDICE:

1. A alma morre ou vai para o Hades?

Muitos de mentalidade aniquilacionista dizem que quando o homem morre, sua alma também morre. Sendo assim, caso considerem que o sepulcro onde Jesus foi “enterrado” é o Seol, significa dizer que sua alma não esteve realmente em tal lugar, mas apenas seu corpo morto. O que contradiz a profecia do Salmo 16:10, que disse:

“Não deixarás a minha alma no Seol.” – Salmo 16:10; Atos 2:31.

Isso demonstra que, na Bíblia, a palavra alma (néfesh, em hebraico) não tem somente aquela acepção de Gênesis 2:7 e Ezequiel 18:4, referente aos seres humanos com sua finitude por ocasião da morte. No entanto, os aniquilacionistas se apegam dogmaticamente a tais versículos e desconsideram o outro significado de alma, a substância imaterial presente no homem que continua existindo depois da morte no Seol, aguardando a ressurreição.

O Seol é literalmente um lugar, e não uma condição que representa a inexistência completa. Até mesmo uma enciclopédia publicada pelas "Testemunhas de Jeová" admite isso:

“Samuel Peake, em A Compendious Hebrew Lexicon (Léxico Compendioso do Hebraico), declara que [Seol] é ‘o receptáculo comum ou região dos mortos; chamado assim por causa da insaciabilidade da sepultura, a qual como que sempre pede ou quer mais’. (Cambridge, 1811, p. 148) Isto indica que o Seol é o lugar (não uma condição) que pede ou exige todos sem distinção, porque recebe em si os mortos da humanidade”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, volume 3, p. 575, colchetes e sublinhado acrescentados.

Note que para o teólogo citado nessa obra, Seol não é uma sepultura individual, mas refere-se a um lugar coletivo, que recebe a “todos sem distinção”.

Portanto, a alma de Jesus Cristo esteve realmente em um lugar chamado Seol (ou Hades) e de lá saiu quando ressuscitou.

2. A quem Jesus pregou em espírito?

Outra corrente de interpretação diz que os espíritos a quem Jesus pregou foram os anjos rebeldes que coabitaram com mulheres da Terra na época de Noé. No entanto, segundo a Bíblia, tais anjos foram lançados no Tártaro e não no Hades, a prisão natural das almas – 2 Pedro 2:4; Salmo 49:15.

Desde os primórdios da Igreja essa questão é debatida entre os teólogos. Talvez o pronunciamento mais antigo sobre essa pregação de Jesus seja o que disse Clemente de Alexandria, no final do século 2: “Cristo foi para o inferno [Hades] em seu espírito para proclamar a mensagem da salvação para as almas dos pecadores que haviam sido presos lá desde o tempo do dilúvio.” (Stromateis 6:6, colchetes acrescentados). É exatamente esse cenário descrito por Clemente que tem sido reproduzido em pinturas ao longo dos séculos. Ele também está em harmonia com o que disse o apóstolo Pedro em outras passagens:

“Estas pessoas prestarão contas àquele que está pronto para julgar os viventes e os mortos. De fato, com este objetivo se declararam as boas novas também aos mortos, para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus.” – 1 Pedro 4:5, 6.

“[O Senhor] não quer que ninguém seja destruído, mas deseja que todos se arrependam dos seus pecados.” (2 Pedro 3: 9, BLH)

Isto é especialmente bem-vindo para as pessoas do passado que nunca tiveram oportunidade de conhecer a Deus e pecaram por pura ignorância, ou porque não ouviram o coração sobre o que é certo ou errado (Romanos 2:14, 15). Não é razoável supor que Noé tenha conseguido conversar com cada habitante de seu tempo.

Há críticos apologéticos que descartam esta conclusão e se apegam a determinadas conjecturas. Dizem que essas palavras de 1 Pedro 4:5, 6 “são de difícil compreensão”. Tais afirmações, no entanto, parecem mais fruto de preconceitos tradicionais, que não permitem uma leitura natural dos referidos textos. Se alguém que nunca viu as mencionadas críticas lesse pela primeira vez esses versículos de Pedro não deveria chegar a outro entendimento senão o de que Jesus também pregou aos mortos que já tinham morrido. Embora seja uma interpretação possível, se Pedro estivesse se referindo a pessoas que ouviram a pregação de Jesus quando ainda estavam vivas, mas que no momento da escrita de sua carta já estavam mortas, provavelmente ele não teria lançado mão desse jogo de palavras. Ele teria afirmado isso claramente. Isto faz lembrar o que certa vez disse Salomão, em Eclesiastes 4:1-3, visto abaixo em duas versões:

“Congratulei os mortos que já tinham morrido, em vez de os vivos que ainda viviam.” – TNM.

“E eu felicito os mortos, os que já morreram, antes que aos vivos, ainda em vida.” – TEB.

Ele não falou “congratulei os mortos quando eles ainda estavam vivos”, mas disse que os congratulou quando já tinham morrido. Tais maneiras de se expressar de Salomão e de Pedro não parecem ser recursos estilísticos, mas sim exatamente o que elas dizem, literalmente.

De qualquer maneira, se Jesus pregou a espíritos, independentemente quem tenham sido, ele deve ter feito isso nesse mesmo estado, isto é, o espiritual, conforme indicado em 1 Pedro 3:18-20. E possivelmente o fez na mesma oportunidade quando foi para o Hades e resgatou de lá cativos para si, conforme comentou Paulo em Efésios 4: 8, 9. Muitos teólogos atuais acham que foi nesse momento que o Seio de Abraão foi transferido do Hades para o céu.

3. Qual era o conceito dos cristãos antigos sobre a alma?

Além do Novo Testamento, existe uma vasta literatura cristã que foi escrita do final do primeiro século até o século III que fornece uma “radiografia” bem razoável das crenças dos primeiros cristãos, inclusive sobre o que acontece com a alma depois da morte do corpo. O que eles escreveram pode ser de ajuda para entender algo que, certa vez, Jesus Cristo falou, ao alertar os que seriam assassinados por pregarem o Evangelho no mundo. Ele disse:

“O que eu vos digo na escuridão, dizei na luz; e o que ouvis sussurrado, pregai dos altos das casas. E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo. Não se vendem dois pardais por uma moeda de pequeno valor? Contudo, nem mesmo um deles cairá ao chão sem o conhecimento de vosso Pai. Porém, os próprios cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Portanto, não temais; vós valeis mais do que muitos pardais.” – Mateus 10:27-31.

O que Jesus quis dizer com as palavras acima? É o que está posto aí mesmo. Não há necessidade de conjecturas ou contorcionismos mentais. A alma continua a existir depois da morte. Ela é a garantia de preservação daqueles que morrem por levarem o nome de Jesus. Somente Deus tem o poder de destruir a alma. O mundo não tem. Sobre isso um cristão do século II, chamado Taciano, disse:

“Mesmo que o fogo destrua toda a minha carne, o mundo recebe a matéria evaporada; se me disperso nos rios e mares, ou sou despedaçado pelas feras, permaneço depositado nos armazéns de um Senhor rico. E mesmo que o pobre e o ateu nada saibam desses depósitos, mesmo assim, Deus, o Soberano, quando quiser restabelecerá a substância que é visível somente a Ele à sua antiga forma.” – Diálogo com os Gregos, cap. 6, Taciano (c. 120 - 180 d.C.)

Usando outra linguagem, Taciano confirma justamente o que Jesus disse, que o mundo pode matar o corpo do cristão (a carne, nas palavras de Taciano), porém sua alma (substância visível apenas para Deus) está preservada no Seol (o depósito do Senhor rico) e poderá ser trazida de volta na ressurreição (restabelecimento).

No entanto, para os aniquilacionistas não sobra substância alguma depois da morte. Não existe nada depositado em lugar nenhum. Depois da morte, a alma deixa de existir. Segundo eles, o Seol também não existe de fato, quando muito é a sepultura. Tudo isso seriam simbolismos ou alguma coisa próxima disso.

O que Taciano disse faz lembrar um texto bíblico:

“[E Abigail disse a Davi:] Quando um homem se levantar para te perseguir e para procurar a tua alma*, a alma do meu senhor certamente mostrará estar embrulhada na bolsa da vida junto a Jeová, teu Deus.” – 1 Samuel 25:29, colchetes acrescentados.

* Ou “conspirar contra a tua vida”, Missionários Capuchinhos.

Sobre a expressão “bolsa da vida”, uma nota da New American Bible diz que “essa figura de linguagem talvez tenha sido tirada do costume de se guardar itens valiosos num lenço ou numa bolsa visando protegê-los.” Com tais palavras, certamente Abigail queria que Davi fosse protegido ali mesmo. Entretanto, se ele perdesse a vida às mãos de inimigos certamente aconteceria o que ela disse. A alma de Davi estaria preservada na “bolsa da vida”, ou “depósitos de tesouros”, na figura usada por Taciano.

Para Taciano e os demais antigos Pais da Igreja a alma continua a existir depois da morte e fica aguardando a ressurreição, momento em que ela é reunida novamente a um corpo carnal*, seguindo o exemplo do que aconteceu com Jesus Cristo, quando retornou do Hades ao ser ressuscitado. Mesmo tendo havido na história do Cristianismo variações no entendimento sobre o que é a ressurreição, não houve alteração na crença de que existe literalmente uma alma que sobrevive à morte do corpo, e que somente pela ressurreição ela pode viver novamente na Terra ou ir para o céu.

* Atualmente, uma explicação dada é que o corpo carnal ressuscitado será adaptado para viver no céu, da mesma maneira que aconteceu com Jesus, segundo dizem os defensores de tal entendimento.

Incrivelmente, existem aniquilacionistas que tentam achar na literatura dos Pais da Igreja (Patrística) evidências a favor do conceito que defendem, como se ela não estivesse repleta de referências de que a alma é algo à parte do corpo físico e que continua existindo depois da morte do corpo. Veja abaixo alguns exemplos:

“Ó Senhor, Deus Todo-poderoso, o Pai de seu amado e abençoado Filho Jesus Cristo, através de quem recebemos o conhecimento de Ti, o Deus dos anjos e poderes, e de toda criatura, e de toda a raça de justos que vivem diante de ti, eu Te agradeço por me teres contado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre Teus mártires, no copo do teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna tanto da alma quanto do corpo, através da incorruptibilidade comunicada pelo Espírito Santo.” – Oração de Policarpo (c. 69 - 155 d.C), Martírio de Policarpo, cap. 14.

“O que é o homem, senão um ser vivo dotado de inteligência, composto por uma alma e um corpo? …. Ora, foi o homem todo que Deus chamou à vida e à ressurreição; não chamou apenas uma parte dele, chamou todo o homem, ou seja, a alma e o corpo.” – Sobre a ressurreição, cap. 5, Justino (c.100 - 160 d.C)

“Mas acreditamos que nossa crença descansa sob uma garantia infalível – o propósito Daquele que nos fez, de que o homem foi feito da união entre uma alma imortal e um corpo.” – A ressurreição dos mortos, cap. 13, Atenágoras (c.133 - 190 d.C.)

“Após a exibição, Trifena a recebeu novamente, pois sua filha Falconila, que havia morrido, disse para ela em um sonho: ‘Mãe, deves colocar esta estranha Tecla* em meu lugar, para que ela ore por mim, e eu possa ser transferida para o lugar dos justos’.” – Atos de Paulo e Tecla, c. 160 d.C.

* Segundo a tradição que havia naquele tempo, amplamente divulgada em documentos da comunidade cristã do século II, Tecla realizou um ministério intenso comparável ao do apóstolo Paulo.

“O irmão que o ler por acaso, ore por Abércio. E ninguém erga túmulo sobre o meu.” – Epitáfio da sepultura de Abércio, Bispo de Hierápolis, na Frígia, c. 205 d.C.)

Uma das objeções dos atuais cristãos aniquilacionistas a se orar pelos mortos é que estes não estão em lugar algum, por isso não necessitam de orações. Mas, conforme pode ser visto no epitáfio de Abércio, não era isso que os cristãos do segundo século pensavam. E o que está no seu epitáfio concorda com a mensagem que Trifena recebeu de sua filha do mundo dos mortos: “Que ela [Tecla] ore por mim, e eu possa ser transferida para o lugar dos justos.”

Não se sabe por quanto tempo Abércio foi Bispo na Frígia, e nem a data de sua conversão. No entanto, ele diz em seu epitáfio que estava com 72 anos quando mandou esculpi-lo. Digamos que ele foi cristão durante 40 anos. Se a lápide é datada em cerca de 167 d.C., significaria que desde o ano 127 d.C. Abércio mantinha as diversas opiniões registradas naquela pedra, que encontram paralelo com certas doutrinas da Igreja Católica, a exemplo da Eucaristia (o que está acima transcrito é apenas um pequeno trecho). Então, veja só. A morte do apóstolo João é datada em cerca de 103 d.C. Neste caso, então, apenas uns 25 anos separariam o cristão Abércio do último dos apóstolos. Caso João fosse aniquilacionista, como seria possível que num espaço de tempo tão curto tal “verdade” tivesse sido perdida? Além disso, o primeiro cristão acima mencionado, Policarpo, foi discípulo direto do próprio apóstolo João. Policarpo era Bispo da cidade de Esmirna. Ter ele aprendido o Cristianismo diretamente de João demonstra que a ligação discipular entre os cristãos do primeiro e do segundo século não seria rompida tão facilmente. Por isso, quando nos deparamos com os textos bíblicos transcritos abaixo, um deles escrito pelo apóstolo João, deveríamos lê-los exatamente dentro do contexto apresentado pelos cristãos do século II:

“E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus.” – Apocalipse 20:4.

“Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?” – Mateus 6:25.

“Que em todo respeito sejam preservados sãos o espírito, e a alma, e o corpo de vós, dum modo inculpe, na presença de nosso Senhor Jesus Cristo.” – 1 Tessalonicenses 5:23.

Ao tentarem formular uma releitura dos textos acima, de acordo com suas opiniões peculiares, o que os aniquilacionistas fazem, na verdade, é jogar na latrina um contexto histórico que possui um elo coerente que interliga os séculos I e II. Se isto é assim por contra da “grande apostasia”, a que os aniquilacionistas tanto se referem, então significa que ela já existe desde a última metade do primeiro século e aconteceu debaixo das barbas dos apóstolos, que nada puderam fazer para contê-la. Ou seja, o Cristianismo teria sido o mero sonho de um homem de Nazaré, e durou pouco mais de 50 anos. Tal cenário deprimente não parece combinar com aquele Jesus que disse a Pedro que estabeleceria sua Igreja na rocha. – Mateus 16:18.

Naturalmente, essa teoria de que a “grande apostasia” teria corrompido o Cristianismo já em sua fase inicial é insustentável, devido aos vários pontos de contato do Novo Testamento com a literatura da época, que compreende um período de 400 anos, de 200 a.C. até 200 d.C. Não há como remover “cirurgicamente” a Bíblia de tal contexto. Talvez os aniquilacionistas sejam os únicos a acreditar neste absurdo.


Epitáfio de Abércio: ‘Ore por mim’

As poucas “evidências” que os aniquilacionistas encontram na Patrística "a favor" do aniquilacionismo não passam de aplicações errôneas do que disseram aqueles antigos cristãos. Por exemplo, mencionam que os Pais da Igreja disseram que a vida eterna se dará apenas depois da ressurreição. Isto é totalmente verdadeiro. O tempo que a alma passa no Hades ainda não é a vida eterna prometida por Deus. O foco da questão não é esse. O que importa saber é se a alma continua a existir ou não depois da morte. A ressurreição não está sendo questionada.

Se os Pais da Igreja realmente tivessem ensinado alguma coisa sobre a alma desaparecer depois da morte do corpo, certamente a Torre de Vigia* teria feito uso dessas referências em suas publicações. Mas, ao invés disso, veja o que ela afirma:

“Considere o ensino da imortalidade da alma, uma crença de que uma parte do homem continua viva depois de o corpo morrer. De novo, os Pais da Igreja foram usados para introduzir esta ideia numa religião que não tinha nenhum ensino de que a alma sobrevive à morte.” – A Sentinela, 15/04/01, p. 20.

(O que ela diz no final do comentário acima é por conta e risco dela...)

* Entidade dirigente das “Testemunhas de Jeová”.

Em outro artigo, ao mencionar o que pensava o escritor cristão Taciano sobre a alma, a Torre de Vigia disse:

“Exatamente o que Taciano queria dizer com essas declarações não é claro. Será que, ao passo que se apegava a certos ensinos bíblicos, ele também procurava agradar os seus contemporâneos, e por isso misturava as verdades bíblicas com filosofias pagãs?” – A Sentinela, 15/05/03, p. 29.

A revista citou um comentário de Taciano no qual ele disse que a alma não é imortal, mas também pode não morrer, se conhecer a verdade. O que ele quis dizer é que a alma não é imortal em sentido absoluto. Nem os anjos são imortais, embora não morram. Os cristãos antigos não acreditavam que a alma é absolutamente indestrutível. Criam que ela é imortal apenas em sentido relativo. Quando se diz que a alma é imortal significa apenas que ela continua a existir depois da morte do corpo biológico. Ela não é imortal de eternidade a eternidade. A alma não foi formada no momento da criação do universo, conforme está descrito em obras gregas, a exemplo da Sibila e As Regiões Infernais. Nem tampouco é totalmente indestrutível, pois Deus tem o poder de destruí-la, como foi dito por Jesus em Mateus 10:28. Mas Ele é o único com essa capacidade.

Outra misturada que alguns fazem é confundir o conceito platônico de alma com o conceito cristão. Eles não entendem que são ideias distintas (ou fingem não entender). O que Platão ensinou sobre a natureza da alma não era o mesmo que os cristãos primitivos entendiam. Na filosofia platônica, os antigos gregos concebiam a alma como sendo incorpórea, esvoaçando por aí feito uma borboleta. Aliás, este é um dos significados da palavra psiqué, em grego. Esse conceito é completamente alheio à Bíblia e não era aceito pelos cristãos. É óbvio que as almas que estão no Hades possuem um corpo apropriado para estarem nesse lugar. Se não fosse assim, o mendigo da ilustração de Jesus não poderia ter sido acolhido por Abraão depois que morreu. (Lucas 16:19-31). A alma não é uma energia disforme que fica pairando solta no ar. Os gregos também não acreditavam na conexão entre alma e ressurreição, que proporcionaria a verdadeira vida eterna. Portanto, as ideias que eles tinham sobre alma não era a mesma defendida pelos cristãos. As lendas da mitologia referentes à alma não eram aceitas pela comunidade cristã. Era isso o que os antigos Pais da Igreja combatiam, e não o ensinamento de que a alma do homem vai para o Hades depois da morte e subsiste por lá pelo tempo que Deus determinar.

Além disso, quando os mencionados aniquilacionistas se deparam com algum cristão antigo sendo mais claro ao afirmar que a alma é imortal, racionalizam: “Esse aqui não serve, porque já aderiu ao platonismo.” É o caso de um contemporâneo de Taciano, o cristão Clemente de Alexandria, considerado um dos Pais da Igreja mais importantes da antiguidade, aquele “que assevera como ensino direto das Escrituras que nosso Senhor pregou o evangelho aos mortos”. Ele também era da opinião que “as almas dos apóstolos devem ter assumido a mesma tarefa quando eles morreram.” – The Expositor’s Greek Testament, ed. W. Robertson Nicoll (1897), p.59.

A opinião adicional de Clemente, mencionada na obra acima, está transcrita a seguir:

“Os apóstolos, seguindo o Senhor, evangelizaram também aqueles que se encontravam no Hades; evidentemente era necessário que os melhores discípulos se tornassem imitadores do Mestre também lá.” – Stromateis 6:6.

Portanto, está claro que os Pais da Igreja acreditavam que a alma continua a existir depois da morte, e permanece no Hades até ser ressuscitada. Tais homens viveram numa época muito próxima ao tempo dos apóstolos. A linha histórica que é possível traçar daquele período demonstra que a crença sobre a alma dos cristãos do século II era exatamente a mesma daqueles do século I.

Por fim, um detalhe que escapa aos que rejeitam o entendimento da existência da alma após a morte, e procuram alguma comprovação disto nos Pais da Igreja, é que todas essas obras de antigos padres cristãos fazem parte do acervo da Igreja Católica. Ela tem sido a depositária da maior parte desses escritos*, desde os primórdios de sua história. Se houvessem realmente fortes evidências nesse antigo material que viessem a desabonar a crença na imortalidade da alma, os especialistas em Patrística já teriam percebido isso. E, ao invés de ser intimidada por tais obras, a Igreja as tem divulgado amplamente ao redor do mundo, em vários idiomas.

* Naturalmente, tal acervo é compartilhado, por exemplo, com a Igreja Ortodoxa, que foi criada depois do grande Cisma do Oriente.

CRÉDITOS DAS IMAGENS, RESPECTIVAMENTE:

1 - Túmulo vazio

2 - Jesus pregando no Hades

3 - Corpo de Jesus no sepulcro

4 - Epitáfio de Abercius

 

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