A DESCIDA DE JESUS AO HADES E SUA SUBIDA PARA O CÉU
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Já estariam no fim os meus poucos dias? Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é trevas.

Jó 10:20-22.

[Deus disse:] Você já foi até as nascentes do mar, ou já passeou pelas obscuras profundezas do abismo? As portas da morte lhe foram mostradas? Você viu as portas das densas trevas?

Jó 38:16, 17

Por isso que foi dito: ‘Quando ele [Jesus] subiu em triunfo às alturas, levou cativos muitos prisioneiros, e deu dons aos homens’. (Que significa ‘ele subiu’, senão que também havia descido às profundezas da terra?....)”.

Efésio 4:8, 9

Quem descerá ao abismo? (isto é, para fazer Cristo subir dentre os mortos).

Romanos 10:7

De acordo com Mateus 12:40, Jesus afirmou que depois de sua morte ele passaria três dias e três noites no coração da Terra, numa região ampla e única que o Novo Testamento chama de “Hades”, para onde vão as almas* dos que falecem (ao passo que seus corpos ficam em suas respectivas sepulturas). Para mais detalhes sobre isso, considere os dois artigos abaixo:

Seol e sepultura são a mesma coisa?

Seol, ou Hades, e Conceitos Relacionados

O quadro que a Bíblia apresenta é que essa moradia dos mortos é um lugar tão profundo que fica abaixo das próprias águas oceânicas, numa região chamada Abismo (ou Abadon). De modo que parece não haver nenhuma dúvida de que os quatro textos bíblicos do cabeçalho acima se referem exatamente ao mesmo lugar para onde Jesus desceu após a morte, uma terra abismal de trevas e de caos. No entanto, a depender da tradução da Bíblia utilizada, pode haver alguma dúvida com relação ao que está dito no texto supracitado de Efésios.

* No Antigo Testamento as almas dos mortos no Seol são chamadas de “sombras”. E o Novo Testamento chama o Seol de “Hades”, palavra emprestada da antiga cultura grega que se referia à morada das almas dos mortos, que os gregos também achavam estar no mais profundo subterrâneo. Algumas traduções da Bíblia costumam traduzir “Seol” ou “Hades” por sepultura, porém esta é uma tradução imprecisa e normalmente inadequada, pois nas sepulturas ficam apenas os corpos mortos, ao passo que o Hades recebe as almas dos que morreram. Outro costume de alguns tradutores é verter Hades por “Inferno”, palavra que significa “mundo inferior”. Embora seja uma opção melhor do que a palavra sepultura, o ideal é manter a forma grega (ou hebraica) para não se confundir com o conceito de tormento eterno destinado aos maus, situação pela qual certamente Jesus não passou quando desceu para o “inferno”.

ESCLARECENDO EFÉSIOS 4:8, 9

Tanto Efésios quanto Romanos foram cartas escritas pelo apóstolo Paulo e ao confrontarmos as duas passagens acima transcritas, extraídas da Nova Versão Internacional (NVI), percebe-se sem grande dificuldade que Paulo está falando do mesmo episódio e dos mesmos lugares. No entanto, se o texto de Efésios for lido na Tradução do Novo Mundo (TNM) o sentido das palavras de Paulo será outro:

“Por isso ele diz: ‘Quando ele ascendeu ao alto, levou consigo cativos; deu dádivas em homens.’ Ora, a expressão, ‘ele ascendeu’, o que significa senão que ele também desceu às regiões mais baixas, isto é, à terra?”.

De modo que há, respectivamente, duas ideias distintas* na NVI e na TNM:

1) Jesus desceu às profundezas da Terra (porque morreu e passou 3 dias no Hades).

2) Jesus desceu à Terra (porque seu espírito vivia no céu antes de nascer qual ser humano).

* Mas a parte inicial do texto tem o mesmo sentido nas duas traduções, ou seja, que ao retornar para o céu Cristo levou cativos com ele. Paulo não se refere a esta retirada de pessoas como sendo um evento ainda futuro, mas sim algo que já tinha acontecido.

Antes de analisar o versículo propriamente, é bom que se diga que as duas afirmações anteriores estão corretas. São duas realidades que a Bíblia realmente apresenta. Nenhuma delas depende desse texto de Efésios, pois estão claramente explicadas em outras partes da Bíblia. A questão é saber a qual das duas situações Paulo estava se referindo. Mas seja qual for delas não anula a verdade da outra. Há quem pense até que o versículo está mencionando as duas situações ao mesmo tempo.

Pois bem, a edição de 1986 da TNM contradisse sua própria tradução de Efésios, pois cometeu um “deslize” em suas referências cruzadas (aquelas que interligam entre si versículos que mencionam um mesmo assunto) ao remeter o leitor de Efésios 4:8, 9 para o textos de Mateus 12:40, onde Jesus disse que passaria três dias no coração da Terra, ou seja, nas profundezas dela. No entanto, essa referência foi retirada na edição de 2015.

Além disso, conforme reproduzido abaixo, a edição interlinear da Tradução do Novo Mundo, que tem uma tradução literal palavra por palavra do Novo Testamento em grego, mostra que a maneira que o versículo está no grego original não corresponde ao que foi traduzido para o português:

Percebe-se que o grego diz literalmente “ele desceu às partes mais baixas da terra”, e não “desceu às regiões mais baixas, isto é, à terra”. A expressão “isto é” nem aparece no texto grego. Portanto, baseando-se nas duas evidências acima, a versão apresentada na tradução regular da TNM não está correta e ela mesma ‘se entregou’. O sentido do versículo 9 que a TNM deveria ter apresentado é o que está nas duas versões abaixo:

“Que quer dizer ‘subiu’? Quer dizer que primeiro desceu aos lugares mais baixos da terra”. – Edição Pastoral.

‘Ele subiu’ que quer dizer isto, senão que Ele também desceu, às regiões inferiores da terra?”. – José Raimundo Vidigal.

Mas note que quando os tradutores vertem da maneira acima, eles não estão querendo dizer ‘as partes ou regiões inferiores onde, por acaso, a Terra está’. Fazendo alusão ao conceito bíblico sobre o Seol, o segundo tradutor acima citado, José Raimundo Vidigal, traz a seguinte nota de rodapé sobre a expressão “regiões inferiores da terra” que ele utilizou em sua tradução:

“Cristo, que tinha descido à terra pela Encarnação, desceu até à região dos mortos, imaginada como subterrânea (1 Pd 3, 9); subindo ao céu pela Ascensão, mandou o Espírito Santo com seus dons, para realizar o crescimento da Igreja”. – José Raimundo Vidigal.

Sendo assim, as “regiões inferiores” é o lugar onde os mortos estão. Ou seja, o Hades, no profundo subterrâneo da Terra. É por esta razão que a Nova Tradução na Linguagem de Hoje verte Efésios 4:9 assim:

Quer dizer que ele também desceu até os lugares mais baixos da terra, isto é, até o mundo dos mortos”.

O texto de Pedro a que Raimundo Vidigal fez referência é o de 1 Pedro 3:19 (não 3:9), que diz:

“Com efeito, também Cristo morreu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de vos conduzir a Deus. Morto na carne, foi vivificado no espírito, no qual foi também pregar aos espíritos em prisão, a saber, aos que foram incrédulos outrora, nos dias de Noé, quando Deus, em sua longanimidade, contemporizava com eles, enquanto Noé construía a arca, na qual poucas pessoas, isto é, oito, foram salvas por meio da água”. – 1 Pedro 3:18, 19, Bíblia de Jerusalém.

Uma nota da Bíblia de Jerusalém sobre esse texto de 1 Pedro 3:19 diz:

“Alusão provável à descida de Cristo ao Hades (cf. Mt 16,18+), entre sua morte e sua ressurreição (Mt 12,40; At 2,24.31; Rm 10,7; Ef 4,9; Hb 13,20)”.

Sendo assim, Cristo realmente desceu ao Hades, nas partes subterrâneas da Terra. E se em tal ocasião ele pregou mesmo aos que lá estavam, é razoável supor que as palavras de Paulo em Efésios 4:9 também se referem a tal episódio. Neste caso, os que foram receptivos às palavras de Jesus poderiam ser os prisioneiros que foram libertados.

“Como dizem as Escrituras Sagradas: ‘Quando ele subiu aos lugares mais altos, levou consigo muitos prisioneiros e deu dons às pessoas.’ O que quer dizer ‘ele subiu’? Quer dizer que ele também desceu até os lugares mais baixos da terra”. – Efésios 4:9, Nova Tradução na Linguagem de Hoje.

Além disso, conforme já mencionado, o próprio apóstolo Paulo associa em outra carta o verbo “descer” à morte de Cristo:

“Mas a justiça resultante da fé fala da seguinte maneira: ‘Não digas no teu coração: “Quem ascenderá ao céu?” isto é, para fazer descer a Cristo; ou: “Quem descerá ao abismo?” isto é, para fazer subir a Cristo dentre os mortos’.”. – Romanos 10:6, 7.

E como também foi visto anteriormente, o “abismo” é um termo relacionado ao Seol/Hades, frequentemente empregado para se referir aos que estão presos nas regiões inferiores da Terra, às quais nenhum ser humano tem acesso.* Novamente, Paulo contrasta o céu com a região inferior mencionada, o que significa que esta fica muito abaixo ao passo que o lugar celeste fica muito acima. Ou seja, vemos aqui um cenário semelhante ao que está em Efésios 4:9.

* Mesmo que fosse possível chegar ao centro da Terra, ninguém seria encontrado lá, pois são as almas espirituais que vão para o Hades, portanto, invisíveis aos olhos humanos. Da mesma maneira que os anjos rebeldes aprisionados no Tártaro e os espíritos impuros que estiverem no Abismo.

Pelos motivos acima, é absolutamente natural que muitos comentaristas bíblicos achem que em Efésios 4:9 Paulo estava mesmo se referindo à descida de Cristo ao Hades, apesar de outros acharem que não, e que ele estaria se referindo a Terra qual “lugar inferior” em relação ao céu. É sobre esses dois entendimentos distintos que as duas notas de rodapé abaixo comentam:

“As ‘profundezas’ podem referir-se à terra dos vivos, em comparação com o céu (Is 44,23; cf. ‘debaixo do sol’ Ecl 4,7.15 etc.); neste caso se refere à encarnação. Também pode designar o mundo subterrâneo, abissal, dos mortos (Dt 32,22; Ez 31,14; Sl 63,10), em cujo caso se refere à morte e sepultura”. – Bíblia do Peregrino.

“As regiões subterrâneas, onde se situa o reino dos mortos (cf. Nm 16,33+) e onde desceu Cristo antes de ressuscitar e de subir ‘acima de todos os céus’ (cf. 1 Pd 3,19+) Ou, segundo outros, as regiões terrestres qualificadas de ‘inferiores’ em comparação com os céus”. – Bíblia de Jerusalém.

Em suma, as duas versões se referem às seguintes situações gramaticais:

a) Possessivo genitivo: significando as profundezas da terra

b) Aposto genitivo: significando a própria terra

Visto que Jesus afirmou claramente que iria para o coração (ou centro) da Terra quando morresse, o que nada mais é do que as profundezas da Terra, parece muito mais razoável traduzir esse trecho de Efésios por um possessivo genitivo. Consultei 40 traduções diferentes da Bíblia e apenas oito delas contêm uma fraseologia semelhante ao que está na TNM. As demais, quando utilizam expressões do tipo “as regiões inferiores da terra” não estão querendo dizer “regiões inferiores onde a Terra está”, mas regiões inferiores dela mesma. Tal sentido é mantido usando-se ou não a palavra “profundezas”.

Sobre essa divergência quanto à tradução desse versículo de Efésios, o exegeta cristão S. D. F. Salmond disse o seguinte:

“Muitos dos Pais da Igreja, e de fato a maioria dos intérpretes até o tempo de Calvino, entenderam que isto se refere à descida de Cristo ao Hades. A grande maioria dos teólogos luteranos (com algumas notáveis exceções, incluindo Harless) defende o mesmo ponto de vista. Alguns pensam que o relato implica em uma visita de Cristo ao Hades com o intuito de liberar almas”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), p. 530.


‘A cor se foi, no Seol restam cópias pálidas e enfraquecidas’ – Salmond.

AS DESCIDAS E SUBIDAS DE CRISTO

Ao lermos o contexto de Efésios 4:8, 9 percebemos que Paulo indica quatro situações distintas:

1) Que Cristo desceu às partes inferiores da Terra.

2) Que depois subiu ao céu, após a ressurreição.

3) Que na sua subida levou cativos com ele.

4) E, em seguida, deu dons aos homens.

Por que não encarar literalmente os quatro pontos acima? Não é obrigatório que os itens 3 e 4 se refiram à mesma coisa (neste caso seria preciso dar um sentido figurado ao ponto 3: Ele levou cativos). Essas duas situações podem ser dois momentos distintos do relato. Aceitando-se de maneira literal essas quatro afirmações, é possível até acomodar as duas referidas leituras “conflitantes”, conforme indicado a seguir:

1) Jesus vivia antes no céu.

2) Desceu à Terra pelo nascimento.

3) Foi assassinado e desceu para o Hades.

4) Três dias depois ressuscitou e subiu para a Terra.

5) Depois retornou ao céu levando pessoas antes presas no Hades.

6) De volta ao céu distribuiu dons aos discípulos que ficaram na Terra.

7) Além disso, ascendeu para um lugar ainda mais alto do que o próprio céu.

Percebe-se que a trajetória descrita nas sete fases acima é bastante ampla, demonstrando que Cristo se fez presente em todos os lugares, duma “extremidade” à outra. A continuação daquela nota da Bíblia do Peregrino apresenta um comentário que culmina justamente nessa ideia da presença plena de Cristo em todas as partes do Universo:

“As ‘profundezas’ podem referir-se à terra dos vivos, em comparação com o céu (Is 44,23; cf. ‘debaixo do sol’ Ecl 4,7.15 etc.); neste caso se refere à encarnação. Também pode designar o mundo subterrâneo, abissal, dos mortos (Dt 32,22; Ez 31,14; Sl 63,10), em cujo caso se refere à morte e sepultura. Ver a viagem cósmica da Sabedoria em Eclo 24,5 e contexto. ‘Todos os céus’ (plural): os três ou sete, segundo diversas representações”. – Nota da Bíblia do Peregrino sobre Efésios 4:7-11.

Vejamos o que diz Eclesiástico 24:5, o texto mencionado nessa nota que descreve a viagem cósmica da Sabedoria*:

“A Sabedoria louva a si mesma, gloria-se no meio de seu povo, abre a boca na assembleia do Altíssimo e se gloria diante de suas potestades: Eu saí da boca do Altíssimo e como névoa cobri a terra, habitei no céu, com meu trono sobre coluna de nuvens; somente eu rodeei o arco do céu e passei pela fundura do abismo, regi as ondas do mar e os continentes e todos os povos e nações. Entre todos eles busquei onde descansar e uma herança em que habitar. Então o Criador do universo me ordenou, aquele que me criou estabeleceu minha residência: Reside em Jacó, seja Israel tua herança. Desde o princípio, antes dos séculos me criou, e jamais cessarei. Na santa morada, na presença dele ofereci culto, e em Sião me estabeleci”. – Eclesiástico 24:1-10, Bíblia do Peregrino.

* A Sabedoria também é personificada em Provérbios 8:22-36. De acordo com uma antiga interpretação cristã, ela representa a pessoa de Cristo, conforme os textos de Mateus 11:19 e 1 Coríntios 1:24.

O cenário acima descrito em Eclesiástico se ajusta bem à tradução de Efésios 4:9, 10 que está na Bíblia do Peregrino, por isso seus autores cruzaram entre si os dois relatos: “(Que significa ‘subiu’, senão que desceu às profundezas da terra?) Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima dos céus para plenificar o universo”. Este amplo cenário da presença de Cristo em todos os níveis do universo está apresentado na gravura a seguir. Jesus estava inicialmente no céu, desceu para a Terra e em seguida desceu para o Hades, subindo logo após para a Terra de onde, finalmente, voltou para o céu novamente, mas para uma posição ainda mais superior.


“Aquele que desceu é o mesmo que subiu acima
dos céus para plenificar o universo” - Ef. 4:9, 10

Essa gravura também faz lembrar o que Paulo disse aos filipenses:

“Por esta mesma razão, também, Deus o enalteceu a uma posição superior e lhe deu bondosamente o nome que está acima de todo outro nome, a fim de que, no nome de Jesus, se dobre todo joelho dos no céu, e dos na terra, e dos debaixo do chão, e toda língua reconheça abertamente que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus, o Pai”. – Filipenses 2:10, 11.

Naturalmente, os aniquilacionistas entendem de maneira literal apenas o que é dito sobre os que estão no céu e na terra. Já a referência aos que estão debaixo do chão (no Hades) é vista em sentido figurado, ou no máximo que diria respeito aos que morreram e serão ressuscitados no futuro para finalmente se submeterem a Cristo. Mas, levando em consideração o conceito correto sobre o Hades, tal interpretação materialista não se ajusta ao cenário bíblico. Note o que escreveu o erudito já citado sobre esse trecho de Filipenses:

“A expressão vertida por ‘dos debaixo do chão’ (καταχθονιίων) ocorre somente nesta passagem, no que se refere ao assunto no Novo Testamento. Mas é usada nos clássicos gregos para se referir aos que moram no Hades, e não é desarrazoado concluir que ela se refere aqui aos mortos no mundo subterrâneo”.* – A Doutrina Cristã da Imortalidade, S. D. F. Salmond, p. 542.

* Nota de Salmond sobre sua conclusão acima: “Conforme concluíram Meyer, Alford, Ellicott, Lipsius e a maioria dos comentaristas”.

Portanto, o texto de Efésios pode muito bem comportar todas as etapas referentes à trajetória de Cristo, que se iniciou no Céu, passou pelo Hades e chegou acima de todos os céus. É um quadro perfeitamente possível, ainda mais levando em consideração outras informações da Bíblia, a exemplo da pregação feita aos espíritos em prisão, da existência do seio de Abraão e da acolhida que este daria às pessoas no reino dos céus. – 1 Pedro 3:19; Lucas 16:22; Mateus 8:11.


“Somente eu rodeei o arco do céu e passei pela fundura do abismo” - Eclo. 24:5

O MESMO ENTENDIMENTO POR OUTRO CAMINHO

Jesus disse:

“Ademais, nenhum homem ascendeu ao céu, senão aquele que desceu do céu, o Filho do homem. E assim como Moisés ergueu a serpente no ermo, assim tem de ser erguido o Filho do homem, para que todo o que nele crer tenha vida eterna”. – João 3:13-15.

“Contudo, eu, quando for erguido da terra, atrairei a mim toda sorte de homens. Dizia isso realmente para indicar de que sorte de morte estava para morrer”. – João 8:31.

Tendo em mente o contexto até aqui apresentado, ao combinarmos o que há nos dois textos acima, é possível inferir que:

1) Jesus desceu do céu mediante seu nascimento.

2) Foi para debaixo da terra quando morreu.

3) Em seguida foi erguido de lá.

4) Depois ascendeu ao céu.

Sendo assim, na sequência dos eventos, antes de Jesus subir para o céu ele primeiro teve que descer ao coração da Terra (Mateus 12:40). De acordo com algumas traduções, é exatamente isto o que Efésios diz:

“Que quer dizer ‘subiu’? Quer dizer que primeiro desceu aos lugares mais baixos da terra”. – A Bíblia na Linguagem de Hoje.

“Que quer dizer ‘subiu’? Quer dizer que primeiro desceu aos lugares mais baixos da terra”. – Edição Pastoral.

“O que quer dizer ‘Ele subiu’, exceto que Ele primeiro desceu às partes mais baixas da terra?”. – The New Testament in the Language of the People, de Charles B. Williams.

“O que significa ‘ele subiu’? Significa que primeiro ele desceu para as partes mais profundas da terra”. – Good News Bible.

“Agora este ‘Ele ascendeu’ - o que significa a não ser que Ele também primeiro desceu às partes mais baixas da terra?”. – New King James Version.

Alguns manuscritos antigos da Bíblia omitem a palavra “primeiro” destacada acima em negrito. É por isso que esse termo não é visto em todas as traduções.

Imagine que você fosse um dos discípulos de Jesus que ouviram ele dizendo que (1) passaria três noites no coração da Terra, (2) mas que seria levantado de lá, (3) para depois subir ao céu. Ao se deparar com Efésios 4:9, conforme está nas versões acima, o que viria à sua mente? Que Jesus antes de ir para o céu desceu primeiro à Terra? Ou que desceu primeiro às partes inferiores da Terra antes de subir para o céu? Esta última conclusão parece se encaixar melhor com o relato, pois Jesus já morava na Terra há mais de 30 anos. Sua presença no mundo já era uma realidade e um fato estabelecido. A novidade foi a sua morte (descida ao Hades) seguida por sua ressurreição e subida aos céus. – Mateus 12:40.

Portanto, nada impede que as palavras de Paulo em Efésios se refiram ao item 2 em diante da sequência abaixo:

1) Jesus viveu no mundo mediante seu nascimento.

2) Foi para debaixo da terra quando morreu.

3) Em seguida foi erguido de lá.

4) Depois ascendeu ao céu.

“Que quer dizer ‘subiu’? Quer dizer que primeiro desceu aos lugares mais baixos da terra”.

O EFEITO EM CADEIA DE UM CONCEITO ERRADO

“Ao passo que o apóstolo Pedro mostra que Jesus Cristo pregou a estes ‘espíritos em prisão’, ele também indica que Jesus o fez, não durante os três dias em que se achava sepultado no Hades (Seol), mas depois de ser ressuscitado do Hades”. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 3, p. 673, enciclopédia bíblica das “Testemunhas de Jeová”.

Não há nenhuma dúvida de que o Hades qual receptáculo das almas dos mortos existe de fato, e que a Bíblia informa que ele fica nas profundezas da Terra. De modo que a citação do “Perspicaz” contém um erro que pode passar despercebido para alguns. Ninguém é sepultado no Hades, mas apenas em uma sepultura. No caso de Jesus, em um sepulcro, acima do nível do solo. O corpo dele nunca esteve nas profundezas do abismo da morte, ou seja, no coração da Terra.


Corpo de Jesus depositado no sepulcro

Além do mais, visto que para as “Testemunhas de Jeová” a morte é a própria inexistência, o Hades nada mais é do que o símbolo dessa situação. Então, enquanto Jesus estava morto seu espírito não poderia pregar para ninguém, pois não haveria nenhum espírito consciente de Jesus que pudesse fazer isso, embora, de alguma forma, esse espírito tenha realmente existido antes de Jesus nascer na Terra.*

* Será que Deus teria tirado a vida de seu Filho no céu para ressuscitá-lo dentro do ventre de Maria? E o que teria acontecido com o corpo espiritual que Jesus possuía na morada celeste?

Não é que seja errado achar que Jesus não fez nenhuma pregação no Hades, embora a igreja primitiva realmente tenha ensinado isso e continuou ensinando até os tempos de hoje (Igreja Católica). O problema é a motivação por trás dessa conclusão. Alguns comentaristas bíblicos, a exemplo do próprio Salmond, não acreditavam que tal evento possa ter acontecido, mas essa opinião não foi porque eles negaram a existência literal do Hades nas profundezas da Terra, ou por não acharem que tal lugar é a habitação das almas invisíveis e conscientes dos mortos. Não! As razões deles eram de outra ordem. Mesmo não acreditando que houve tal pregação, eles nunca negaram a crença de que o homem possui uma alma espiritual que sobrevive à morte do corpo e vai para o lugar inacessível aos humanos chamado Hades.

Já os aniquilacionistas, como é o caso das “Testemunhas de Jeová”, chegam à mesma conclusão por não terem compreendido a verdadeira natureza do Hades e por negarem o que o Cristianismo sempre ensinou a respeito desse lugar. Ou seja, o ponto de partida do entendimento deles está errado, causando um “efeito dominó” nos demais conceitos relacionados. É isto o que explica aquilo que foi afirmado erroneamente na enciclopédia supracitada da Torre de Vigia (‘enterrar no Hades’).

Logo, talvez seja uma perda de tempo conversar com os aniquilacionistas sobre as possibilidades de entendimento de Efésios 4:8-10. Já que eles não entendem (ou não querem entender) o que é o Hades, a questão sobre se Jesus tirou ou não pessoas de lá para viverem no céu torna-se irrelevante. A mente deles travou em uma ideia preconcebida, o que inviabiliza discutir esse detalhe.

 

Fortaleza, 02 de março de 2020.

Autor: Adelmo Medeiros

 

CRÉDITOS DAS IMAGENS

1) Texto grego-inglês de Efésios 4:9

The Kingdom Interlinear Translation of the Greek Scriptures (1969), publicado pela Sociedade Torre de Vigia dos EUA.

2) Almas pálidas no Seol

As almas dos glutãos no Purgatório (Divina Comédia), de Gustave Doré (1857).

3) Corpo de Jesus no sepulcro

Maria Madalena depositando o corpo de Jesus no sepulcro, de Arnold Bocklin (1867).

 

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