A TRADUÇÃO CORRETA DE LUCAS 23:43
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Infelizmente, os leitores da Tradução do Novo Mundo (TNM) não estarão aptos a compreender o que foi dito por Jesus ao malfeitor na cruz, pois ela traduz o texto de Lucas da seguinte maneira:

“Deveras, eu te digo hoje: Estarás comigo no Paraíso.”

No entanto, nenhum dos textos gregos atualmente disponíveis para tradução, a exemplo daquele publicado por Westcott e Hort, texto-base da Tradução do Novo Mundo, possui a estrutura acima. No grego o versículo está assim:

“E disse-lhe Jesus: Deveras eu te digo, hoje comigo estarás no paraíso.”

E está desse jeito aí mesmo, com dois pontos depois do nome de Jesus e uma vírgula antes de “hoje”. Veja abaixo. Os dois pontos no grego são representados por esse pontinho indicado pela seta da esquerda:


“Deveras eu te digo, hoje comigo estarás no paraíso” – Emphatic Diaglott, de Benjamin Wilson.

O texto grego acima é da Emphatic Diaglott, uma tradução interlinear grego-inglês publicada atualmente pela Torre de Vigia. Originalmente, a primeira edição saiu em 1864. Depois o autor doou os direitos para a editora atual. Isto foi bem antes dela publicar sua própria versão Interlinear, chamada Kingdom Interlinear. Em ambas edições o texto grego está conforme indicado acima. No entanto, na coluna com a tradução não literal o Novo Testamento de Benjamin Wilson difere da Tradução do Novo Mundo, pois diz:

“E disse a ele: ‘Deveras, eu te digo. Neste dia estarás comigo no paraíso.” – Lucas 23:43, Emphatic Diaglott.

Visto que Lucas 23:43 na TNM está em desacordo com o texto-base que ela utiliza e com a Diaglótica Enfática, o que a Torre de Vigia alega para justificar a mudança que faz em sua tradução? Ela diz:

“Vírgulas não eram usadas nos manuscritos unciais gregos, por isso, em harmonia com o contexto nós omitimos.” – Kingdom Interlinear, em uma nota de Lucas 23:43.

Mas que contexto? Veremos a seguir. E para uma consideração sobre o real contexto bíblico que justifica a promessa de Jesus ao criminoso arrependido, queira ler o artigo recomendado no final. Conforme ficará claro, o verdadeiro contexto da Bíblia nada tem a ver com aquilo que imaginaram os autores da TNM.

Os editores da TNM teorizaram que se a vírgula já existisse na época de Lucas ele não a teria usado antes do advérbio “hoje”. Mas isto é apenas uma suposição que não pode ser provada, sem contar o fato de que não goza do apoio de especialistas. Por isso, a ausência de vírgulas nos manuscritos unciais é apenas uma desculpa para “harmonizar” o versículo com o “contexto”. E qual seria este? Não há outro senão a crença aniquilacionista que não permite concluir que as almas de Jesus e do criminoso tenham ido para o Seio de Abraão* (ou paraíso) naquele mesmo dia. E visto que a ressurreição de Jesus aconteceu somente depois do dia seguinte, o ex-malfeitor estaria até hoje aguardando o cumprimento da promessa, pois, segundo a Torre de Vigia (entidade dirigente das “Testemunhas de Jeová”), o paraíso vai ser aqui mesmo na Terra, num momento incerto do futuro. E como se não bastasse, Jesus não estará realmente com aquele homem arrependido. Ficará apenas olhando para ele lá de cima, no céu.

* Note que Lucas foi o único escritor bíblico que mencionou o Seio de Abraão, para o qual Lázaro foi levado pelos anjos no dia que morreu. E foi justamente esse evangelista que nos contou sobre a promessa de Jesus: “Hoje estarás comigo no paraíso.” Isto não é mera coincidência. Ambas as passagens falam de vida imediata após a morte. – Lucas 16:19-31.

Será que a gramática grega permite mesmo essa mudança do texto proposta na “Tradução do Novo Mundo”? Os que sabem grego dizem que não. Veja um exemplo abaixo:

“Com a flexão do verbo eimi (ser, estar: sou, estou) no modo ese (estará – futuro médio), identifica um período imediatamente posterior à crucificação (hoje) e não incerto, como quer a TNM.” – nota de Lucas 23:43 na Bíblia Apologética, Editora Fiel.

Para uma consideração adicional a respeito da gramática grega envolvida no texto de Lucas 23:43 e aspectos históricos sobre este versículo, queira consultar os dois artigos abaixo:

A pontuação de Lucas 23:43

Lucas 23 e a hora da ida ao ladrão aos céus

Mas não é preciso saber grego para perceber que existe alguma coisa estranha nessa versão da TNM. Por que Jesus usaria essa linguagem? Por que ele daria ênfase ao dia da promessa que fez? Não existe nenhum outro versículo onde haja essa mesma estrutura. E houve ocasiões em que Jesus até poderia ter falado dessa maneira, pois nelas há um contraste entre o dia da fala com algum evento bem mais adiante no futuro. Entretanto, de acordo com a escrita dos evangelistas, Jesus não fez isso. Leia a seguir cinco exemplos, com colchetes onde poderia haver a palavra “hoje”:

1. “Deveras, eu vos digo [           ]: No Dia do Juízo será mais suportável para a terra de Sodoma e Gomorra do que para essa cidade.” – Mateus 10:15.

2. “Conseqüentemente, eu vos digo [           ]: No Dia do Juízo será mais suportável para Tiro e Sídon do que para vós. E tu, Cafarnaum, serás por acaso enaltecida ao céu? Até o Hades descerás”. – Mateus 11:22, 23.

3. “Também, eu te digo [           ]: Tu és Pedro, e sobre esta rocha construirei a minha congregação.” – Mateus 16:18.

4. “Deveras, eu vos digo [           ]: De modo algum beberei mais do produto da videira, até o dia em que o beberei novo no reino de Deus.” – Marcos 14:25.

5. “Deveras, eu vos digo [           ]: Esta geração de modo algum passará até que todas estas coisas ocorram.” – Lucas 21:32.

Percebe-se, então, que incluir a palavra “hoje” como preâmbulo de uma declaração sobre um evento no futuro distante não era costumeiro. Essa palavra geralmente só aparece quando o evento futuro é muito próximo, de maneira quase imediata, como é o caso do versículo abaixo, sobre Pedro trair Jesus:

“Deveras, eu te digo: Hoje, sim, esta noite, antes de o galo cantar duas vezes, até mesmo tu me terás repudiado três vezes.” – Marcos 14:30.

Note a similaridade do trecho acima com o texto de Lucas, conforme está em todas as Bíblias, à exceção da TNM e uma ou outra tradução com a mesma releitura equivocada:

“Em verdade te digo: ainda hoje estarás comigo no paraíso.” – Lucas 23:43, Vozes.

Veja outro texto escrito por Lucas onde ele também usou o advérbio “hoje”, mas desta feita se referindo a algo que já estava acontecendo:

“Chefes do povo e anciãos, ouvi-me: se hoje somos interrogados a respeito do benefício feito a um enfermo….” – Atos 4:8, 9, Ave Maria.

Mesmo em tal versículo a ideia permanece: quando o advérbio “hoje” está próximo de uma afirmação qualquer, ele se refere a ela e não ao dia da fala de quem a proferiu. Além do mais, o evento para o qual o discurso aponta acontece dentro do mesmo dia, e não no futuro a perder de vista.

Não obstante o peso das evidências acima, é claro que aqueles que não querem acreditar no que está em Lucas 23:43 tentarão elaborar argumentos para justificar uma releitura do texto. É o caso do pastor adventista Wilson Paroschi que escreveu um artigo onde comenta várias fontes antigas que supostamente autorizariam uma reinterpretação do texto. Mas ele próprio admite que uma parte delas aponta na direção contrária. Sendo assim, elas não podem ser consideradas como fator determinante para uma eventual mudança de entendimento. Então, o que resta de seguro é apenas analisar as próprias evidências bíblicas, que estão explicadas com detalhes no artigo recomendado no final do presente texto.

Conforme uma leitura das explicações desse pastor revela, ele não consegue mostrar verdadeira evidência interna no Novo Testamento que viesse a autorizar uma mudança da leitura amplamente aceita de Lucas 23:43. Paroschi faz a mesmíssima confusão que é vista em outros escritores aniquilacionistas (ou condicionalistas) e menciona a ressurreição como “prova” de que Jesus não poderia estar naquele mesmo dia no Paraíso. Ele diz:

“Por ‘Paraíso’, não deve haver qualquer dúvida de que Jesus quis dizer céu …. Ele [Paulo] nunca tenta consolar os vivos afirmando que os falecidos já se encontram com Jesus no céu. Pelo contrário, ele tenta trazer a paz aos seus corações, lembrando-os da ressurreição.” – colchetes acrescentados.

E paraíso é só no céu? O jardim do Éden não ficava no lugar onde Deus costuma estar, mas mesmo assim é um paraíso. Conforme Jesus disse, “na casa do pai há muitas moradas” (João 14:1, 2). Apesar de alguns acharem que o paraíso mencionado em Lucas 23:43 e o “Seio de Abraão” de Lucas 16:19-31 se referem ao céu dos céus, a morada excelsa de Deus, existe uma explicação melhor que está comentada no mesmíssimo artigo indicado mais adiante.

Mas enfim, os dois principais argumentos que Paroschi utiliza são que (1) Jesus não poderia estar naquele mesmo dia no céu, pois foi ressuscitado só depois, e (2) a ressurreição dos fiéis seria no futuro, numa data incerta. Perfeito! Quem é que discordaria disso? Será que temos aqui a figura do “espantalho”? Paroschi comete o mesmo equívoco de outros ao misturar esses conceitos. E o motivo é sempre o mesmo. Não entender corretamente o que a Bíblia informa sobre Seol / Hades e alma. Ele também discorre um pouco sobre supostas evidências linguísticas, porém não cita nenhuma autoridade em grego. Portanto, ele não consegue provar coisa alguma, e o que escreveu serve apenas para satisfazer pessoas que pensam parecido com ele.

O que foi feito na TNM, em Lucas 23:43, é uma subversão, conforme define o dicionário Caldas Aulete, dentre as várias acepções possíveis da palavra:

“Subversão, . . . . revolta contra os princípios estabelecidos.”

“Subverter, . . . . confundir, perturbar completamente; transtornar, desordenar.”

É justamente o que fizeram na TNM com respeito ao versículo em apreço. Desordenaram o texto e se voltaram contra os princípios estabelecidos referentes às boas práticas de tradução.

Portanto, traduzir esse versículo não se trata apenas de mera escolha de pontuação, a ser decidida livremente pelos tradutores. É preciso se ater de maneira consistente a todos os fatores envolvidos, e não apenas a um único detalhe para sustentar uma teoria que contradiz o que especialistas do grego dizem e a própria coerência interna da Bíblia. E os principais fatores estão apresentados no artigo já recomendado.


“Ainda hoje estarás comigo no paraíso”

Conclusão

Interessante como é forte a influência de um conceito religioso sobre a mente humana. É uma demonstração de que o auto-engano não tem relação direta com a falta de formação acadêmica ou baixa cultura. Wilson Paroschi, o autor supracitado, é Ph.D em Teologia do Novo Testamento pela Andrews University, nos EUA. Então, é muito provável que ele saiba do conceito predominante sobre alma e Seol / Hades, e as razões que não só o justificam, mas que também explicam porque Jesus pôde prometer o paraíso a um criminoso arrependido para o mesmo dia de sua morte. Mesmo sabendo tais coisas, isso não é suficiente para demover esse autor de seu erro.

Outra informação, com a qual talvez Paroschi tenha se deparado em seus estudos, é que para os antigos judeus o paraíso não se restringia apenas ao céu. A própria história do Éden demonstra que pode haver outros paraísos no vasto domínio do Criador. Um desses lugares prazenteiros é o “seio de Abraão”, tema do artigo abaixo já recomendado.

“Seio de Abraão”: o paraíso antecipado dos justos

 

Autor: Adelmo Medeiros

Fortaleza, 17 de março de 2020

 

CRÉDITOS DAS GRAVURAS

1) Trecho interlinear grego-inglês de Lucas 23:43

Emphatic Diaglott (1864), de Benjamin Wilson, publicado pela Torre de Vigia

2) Jesus perdoa malfeitor na cruz

Venerável Ordem Terceira do Carmo de Sergipe

 

 

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