“SEIO DE ABRAÃO”: O PARAÍSO ANTECIPADO DOS JUSTOS
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A tradução da Bíblia utilizada é a Tradução do Novo Mundo, de 1986, salvo outra indicação. E os colchetes de todas as citações foram acrescentados.

Para os antigos judeus o paraíso não se restringia apenas ao céu. A própria história do Éden demonstra que pode haver outros paraísos nos vastos domínios do Criador, e o “seio de Abraão” era entendido como sendo um deles. Por isso que Jesus o apresentou como um lugar de vida consciente juntamente com o Hades, sendo que este impinge sofrimentos aos seus habitantes e o outro dá revigoramento:

“Havia um homem rico, que se vestia de púrpura.... Um mendigo chamado Lázaro, coberto de chagas, fora deitado ao seu portão.... Morreu o mendigo, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico, e foi sepultado. No Hades, estando em tormentos, levantou os olhos e viu ao longe a Abraão e a Lázaro no seu seio. Clamou: Pai Abraão, tem compaixão de mim!.... Mas Abraão respondeu: Filho, lembra-te que recebeste os teus bens na tua vida, e Lázaro do mesmo modo os males; agora, porém, ele está consolado, e tu em tormentos. Demais, entre nós e vós está firmado um grande abismo, de modo que os que querem passar daqui para vós não podem, nem os de lá passar para nós”. – Lucas 16:19-26, Sociedade Bíblica Britânica (Tradução Brasileira).

Seio de Abraão – um paraíso para os justos

Sem adentrar na origem histórica da expressão (que tem a ver com uma refeição entre amigos), o conceito vigente entre os judeus da época de Cristo era que o “seio de Abraão” também é um paraíso, conforme a Hagadá pré-talmúdica já dizia:

“[E o anjo disse a Abraão:] A paz esteja contigo, ó justa alma, amigo do Altíssimo, aquele que recebeu os santos anjos quais convidados, sob seu teto hospitaleiro!.... [E Deus disse aos anjos:] Levem o meu amigo Abraão ao Paraíso, à morada dos meus justos, as residências dos meus santos, onde não há nem trabalho, nem luto, nem pesar, mas sim paz, e alegria, e vida sem fim”. – A Hagadá Pré-Talmúdica, The Jewish Quarterly Review, vol. 7, nº 4 (Jul., 1895), pp. 589, 591, colchetes acrescentados.

O historiador judeu Flávio Josefo mencionou a separação de almas que ocorre no Hades, a fim de levar algumas delas para o seio de Abraão:

“Há uma só descida para esta região, em cujo portão acreditamos estar postado um arcanjo.... quando aqueles passam por tal portão são conduzidos para baixo pelos anjos nomeados sobre as almas, mas não seguem o mesmo caminho, pois os justos são guiados para a direita.... até uma região de luz, em que o justo tem habitado desde o início do mundo.... [onde] desfrutam a perspectiva das coisas boas que eles vêem.... enquanto esperam por aquele descanso e a nova vida eterna no céu, que é o que vem após esta região. Este é o lugar que chamamos o seio de Abraão.... já para os injustos, eles são arrastados à força para a esquerda pelos anjos.... como prisioneiros guiados pela violência.... e os lançam ainda mais para baixo.... para a vizinhança do próprio inferno.... não ficam livres do calor.... a partir de uma grande perspectiva terrível e superior de fogo, eles são atingidos com uma expectativa terrível de um julgamento futuro: e, com efeito, são assim punidos”. – Discurso de Flávio Josefo aos gregos a respeito do Hades.

Como se vê, é em essência o mesmo cenário da parábola do rico e Lázaro. E sobre essa “uma só descida” mencionada por Josefo (já que todos desciam invariavelmente ao Hades/Seol), lemos no livro de Jó o seguinte:

“Elas [as duas esperanças antes mencionadas] descerão às barras do Seol, quando juntos tivermos de descer ao próprio pó”. – Jó 17:16.

É óbvio que, em geral, várias pessoas não são enterradas juntas no mesmo caixão ou na mesma sepultura. Então o versículo está evidentemente falando de outro lugar. No caso, o mundo dos mortos, o qual tem recebido outras nomenclaturas ao longo do tempo, a exemplo de “poço”, “Abismo”, “Abadon”, “profundezas”, “mansão dos mortos” etc.

Existe uma referência na literatura cristã do século II que parece indicar uma continuidade desse pensamento judaico entre os cristãos, a respeito dos justos que vão para o Hades ficarem numa região melhor feita apenas para eles, antes mesmo da futura ressurreição geral (física) dos mortos que antecederá a vida eterna no céu:

“Após a exibição, Trifena a recebeu novamente, pois sua filha Falconila, que havia morrido, disse para ela em um sonho: ‘Mãe, deves colocar esta estranha Tecla em meu lugar, para que ela ore por mim, e eu possa ser transferida para o lugar dos justos’.”. – Atos de Paulo e Tecla, c. 160 d.C.

Nota-se que, na verdade, o conceito foi até ampliado, pois algumas pessoas poderiam ficar numa situação intermediária, entre o paraíso abraâmico e o Hades de sofrimento. Ao que parece, este é o protoconceito de purgatório que se firmou depois na doutrina da Igreja.

Embora o conceito de seio de Abraão ainda não estivesse consolidado no Antigo Testamento, já havia entre os hebreus antigos um esboço da esperança de que Deus livraria os justos das partes mais baixas do Hades (ou Seol) e que apenas os ímpios padeceriam lá:

“A seca, bem como o calor, arrebatam as águas da neve; assim faz também o Seol com os que pecaram”. – Jó 24:19.

“O justo tem esperança de uma vida melhor depois da morte”. – Provérbios 14:32, A Bíblia Viva.

“Pois grande é a tua benignidade para comigo e livraste a minha alma do mais profundo Cheol”. – Salmos 86:13, Sociedade Bíblica Britânica (Tradução Brasileira).

“De novo me farás reviver. Das profundezas da terra, de novo me levantarás”. – A Bíblia do Peregrino.

Mais uma vez o cenário acima é inferido na parábola do rico e Lázaro, pois nela os personagens estavam em uma única região, porém dividida em dois setores distintos. O ex-mendigo estava mais acima e o ex-rico mais abaixo. Lázaro foi livrado do lugar de sofrimento para desfrutar da companhia de Abraão.


‘Na morada dos justos não há trabalho, luto ou pesar, mas apenas paz, alegria e vida sem fim’

Vislumbres na imagética hebraica sobre o mundo dos mortos

No entanto, exatamente porque o cenário descrito na literatura rabínica (que foi confirmado por Jesus) não estar tão claro no Antigo Testamento, os aniquilacionistas costumam se valer de determinadas passagens negativas do texto hebraico na tentativa de encontrarem lá a confirmação do que acreditam. Mas, em geral, os trechos que eles citam provam de maneira sutil exatamente o contrário! É o caso do seguinte lamento do patriarca Jó:

“Afasta-te de mim, para que eu tenha um instante de alegria, antes que eu vá para o lugar do qual não há retorno, para a terra de sombras e densas trevas, para a terra tenebrosa como a noite, terra de trevas e de caos, onde até mesmo a luz é escuridão.... o homem morre, e morto permanece; dá o último suspiro e deixa de existir.... assim o homem se deita e não se levanta até quando os céus já não mais existirem, os homens não acordarão e não serão despertados do seu sono”. – Jó 10:20-22, 14:10, 12, Nova Versão Internacional.

Sobre o “deixar de existir” acima mencionado, queira ler o artigo “Linguagem materialista não é necessariamente aniquilacionismo”. Lá você verá com mais detalhes que isso é apenas uma referência à existência humana, que é totalmente diferente da existência consciente no mundo inferior dos mortos. Se esses versículos de Jó fossem tomados integralmente ao pé da letra, nem esperança de ressurreição física haveria, pois Jó diz que não há retorno do Seol e os mortos nunca mais despertarão de lá.

O caso é que esse trecho bíblico faz parte de uma literatura chamada de “literatura da Sabedoria”, ou “literatura dos problemas”, em que o mundo dos mortos é apresentado de uma maneira altamente negativa e sem esperança. Mas não de absoluta inconsciência! Tal estilo literário surgiu na Mesopotâmia, e não em Israel. Por isso existem alguns pontos de contato entre obras mesopotâmicas e a Bíblia hebraica, embora a teologia de ambas seja completamente diferente. Abaixo um exemplo:

“Gilgamesh, aonde vais com tanta pressa? Jamais encontrarás a vida que procuras. Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em seu próprio poder. Quanto a ti, Gilgamesh, enche tua barriga de iguarias; dia e noite, noite e dia, dança e sê feliz, aproveita e deleita-te. Veste sempre roupas novas, banha-te em água, trata com carinho a criança que te tomar as mãos e faze tua mulher feliz com teu abraço; pois este também é o destino do homem”. – Épico de Gilgamesh, Tabuleta X, Coluna III, linha 90.

Essa morte e destino tristes não significavam inexistência ou inconsciência absoluta no mundo inferior, nem na literatura mesopotâmica nem na hebraica!, conforme os textos a seguir deixam muito claro. Visto que o cenário pós-morte ainda não estava tão esclarecido como na época de Jesus, o que Jó e Gilgamesh esperavam encontrar no mundo dos mortos era uma situação triste e sombria que não poderia ser apropriadamente chamada de vida, mesmo sendo uma existência consciente.

“Neti, o porteiro-chefe do mundo subterrâneo, perguntou a Inana: ‘Quem é você?’. ‘Eu sou Inana indo para o oriente [leste]’. ‘Se você é Inana indo para o Oriente, por que viajou até a terra da qual não há retorno? Por que apontou o seu coração para a estrada onde os viajantes nunca voltam?’.”. – A Descida de Inana ao Mundo Inferior, 78-84.

Note que foi usada a mesma expressão dita por Jó para se referir ao mundo dos mortos, a saber, ‘a terra da qual não há retorno’. E da mesma forma que os hebreus, na Mesopotâmia as pessoas achavam que esse lugar fica no subterrâneo profundo da Terra.

A título de informação, Inana era a deusa sumeriana da fertilidade, chamada de Istar em Babilônia. Era irmã de Eresquigal, a deusa que cuidava do mundo subterrâneo. Ao chegar lá, Inana passou por sete portões onde teve que se despojar gradualmente de tudo o que levava, até ficar completamente despida. Sem poderes e humilhada, foi morta por Eresquigal e pendurada em um gancho, condenada a nunca mais sair do mundo das sombras. Mas depois de três dias reviveu e saiu de lá, com ajuda de um deus do mundo externo chamado Enki. No entanto, foi exigido alguém em troca e foi-lhes entregue Dumuzi.

“Ele [Nergal] libertou Enkidu para falar mais uma vez com seus parentes e mostrou a Gilgamesh como descer a meio caminho do mundo dos mortos, que fica nas entranhas da terra. E a sombra de Enkidu levantou-se lentamente em direção dos vivos e de seus irmãos. Fraca e emocionada tentou abraçá-los, tentou falar, tentou e falhou ao tentar tudo, mas soluçou. ‘Fale comigo, meu irmão’, sussurrou Gilgamesh. ‘Conte-me da morte e onde você está’. ‘Não estou disposto para falar da morte’, respondeu Enkidu numa vagarosa resposta. ‘Mas se você desejar sentar um pouco, eu descreverei o lugar onde estou’.” – Épico de Gilgamesh, Tabuleta XII, linha 80 em diante.

Esclarecendo o contexto, Nergal era o deus babilônio do mundo subterrâneo dos mortos, cujo domínio era exercido juntamente com sua consorte Eresquigal. E sobre o retorno da sombra (ou alma) de Enkidu, o texto diz literalmente: “Ele fez a sombra de Enkidu subir do mundo dos mortos feito um fantasma” (ú-tuk-ku sa Enkidu ki zaqiqi ultu erseti ustela). – The Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago (2010), vol. 20, p. 341.

Agora textos bíblicos, começando sobre como a Bíblia descreve a morte do rei de Babilônia e sua ida para o Seol.

“Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço. Os que te virem [no Seol] te fitarão; examinar-te-ão de perto, [dizendo:] ‘É este o homem que agitava a terra, que fazia tremer os reinos, que fez o solo produtivo como o ermo, que lhe derrubou as próprias cidades, que nem aos seus prisioneiros abriu o caminho para casa?’ Todos os outros reis das nações, sim, todos eles, deitaram-se em glória, cada um na sua própria casa. Mas, no que se refere a ti, foste lançado fora sem sepultura para ti, qual rebentão detestado, revestido de homens mortos, traspassados com a espada, que descem às pedras de um poço, como um cadáver calcado”. – Isaías 14:15-19.


‘No Seol, os reis das nações ergueram-se dos
tronos para recepcionar o rei de Babilônia’

Situação semelhante a Bíblia descreve sobre a morte do faraó, rei do Egito:

“Os principais homens dos poderosos falarão do meio do Seol até mesmo a ele [ao faraó], com os seus ajudantes [que também morreram]. É ali [no Seol] que estão a Assíria e toda a sua congregação”. – Ezequiel 32:21, 22.

O descanso da morte – o que ele realmente significa

Como se nota, apesar do Seol ser apresentado no Antigo Testamento como uma terra sombria e desprovida de contentamento, os seus habitantes são pessoas que estão conscientes do que acontece lá (embora não tenham consciência do que acontece aqui) e se movimentam se quiserem. É uma terra sonolenta onde seus habitantes são meras sombras, porém ainda assim são pessoas que realmente existem e interagem umas com as outras. Sendo assim, o ‘deitar-se em glória’ mencionado no texto supracitado de Isaías em relação aos reis que morreram significa que seus corpos ficaram em suas respectivas sepulturas após um enterro digno e suas almas foram para o Seol, nas profundezas da Terra.

Mas como seria o “deitar-se” dos justos após a morte? Resultaria no mesmo destino sombrio dos ímpios ou pagãos? O salmo a seguir descreve belamente que não seria da mesma maneira, embora seu autor talvez não estivesse pensando nisso quando escreveu essas palavras:

“Jeová é o meu Pastor. Nada me faltará. Ele me faz deitar em pastagens relvosas; conduz-me junto a lugares de descanso bem regados. Refrigera a minha alma. Guia-me nos trilhos da justiça por causa do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra tenebrosa, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; tua vara e teu bastão são as coisas que me consolam”. – Salmo 23:1-4; compare com Isaías 58:9-12.

A palavra hebraica que foi vertida por ‘pastagens’ significa também “lugar agradável” (A Sentinela, 01/11/05, p. 17), e “vale da sombra tenebrosa” pode ser traduzido por “vale da sombra da morte”, conforme uma nota da Tradução do Novo Mundo, de 1986.


‘Ele me deita em pastagens relvosas, em lugares de descanso regados e refrigera minha alma’

Portanto, o verdadeiro contexto bíblico mostra que o “deitar” significa apenas uma transferência de lugar da alma, que deixa o corpo físico para trás, sendo que o “levantar” tem o sentido oposto:

1. Deitar = adormecer = ida temporária para o Seol (morte)

2. Levantar = acordar = saída definitiva do Seol (por transferência da alma ou ressurreição física)

Enquanto os seres humanos não acordam da sepultura, suas almas aguardam no Seol ou em outro lugar que Deus determinar. Se Deus nada fizer, elas ficam no mundo das “sombras” (rephaim, em hebraico, palavra usada no Antigo Testamento para se referir às almas dos que morreram).

“Ali [no Seol] os próprios iníquos deixaram da agitação, e ali descansam os cansados de poder. Juntos, os próprios prisioneiros estão despreocupados; realmente não ouvem a voz de alguém os compelindo a trabalhar”. – Jó 3:17, 18.

“Quem se extravia do caminho da prudência descansará na assembléia das almas [ou ‘sombras’, conforme outras traduções]”. – Provérbios 21:16, Bíblia do Peregrino.*

* Nota desta Bíblia sobre o versículo: “No contexto, ‘descansar’ tem sentido irônico, quase sarcástico, porque ‘as almas’ são os mortos no Hades”. Ou seja, o “descanso” lá não será nada agradável.

“Por que não passei a morrer desde a madre? Por que não saí do próprio ventre, expirando então?.... Pois agora eu já estaria deitado para ter sossego; então dormiria; estaria descansando com reis e conselheiros da terra, os que constroem para si lugares desolados, ou com príncipes que têm ouro, os que enchem as suas casas de prata”. – Jó 3:11, 13-15.

“E [os de Meseque e Tubal] não se deitarão com os poderosos, caindo dentre os incircuncisos, que desceram ao Seol com as suas armas de guerra?”. – Ezequiel 32:26-28.

A comparação da morte com o ato de dormir do corpo ou o descanso é absolutamente natural, pois quem morre descansa de suas obras terrenas e, ao vermos um corpo morto, temos a exata impressão de que a pessoa está dormindo (João 11:11-13; Apocalipse 14:13). A literatura mesopotâmica também fazia uso desse recurso, conforme se vê nos exemplos a seguir, extraídos do Dicionário Assírio do Instituto Oriental da Universidade de Chicago:

“Quando o destino tiver me carregado eu descansarei nesta tumba”. – Era IV 101.

“Quando PN morrer eles o enterrarão onde quer que ele indicar, e então descansará no lugar de sua preferência”. – ADD 647, r. 23.

“Você não terá nenhuma paz, sem descanso, seus ossos não ficarão juntos”. – Wiseman Treaties 640.

“[O mundo dos mortos é a] casa de descanso, tumba do repouso, morada eterna”. – OIP 2 151, nº 14:1.

Nota-se acima a típica linguagem “aniquilacionista” que os aniquilacionistas (ou condicionalistas) gostam de mencionar em favor de sua conclusão equivocada sobre o que acontece depois da morte, a respeito da qual disse o livro da Sabedoria:

“As almas dos justos estão na mão de Deus, e nenhum tormento os tocará. Aparentemente, estão mortos aos olhos dos insensatos, a sua saída deste mundo é considerada uma desgraça, a sua morte como uma destruição: mas eles estão em paz.... sua esperança está cheia de imortalidade.... Mas os ímpios terão o castigo, que merecem os seus pensamentos”. – Sabedoria 3:1-3, 10, Missionários Capuchinhos.

É óbvio que, considerando o contexto histórico desses textos mesopotâmicos, eles não denotam o que os condicionalistas desejam. Isto é assim tanto na literatura babilônica quanto na Bíblia, embora os que negam o conceito bíblico só admitam isso em relação à primeira. Sono ou descanso no modo de se expressar daqueles antigos povos não era evidência de que eles acreditavam na inexistência imediata de quem morre ou no sono da alma, conforme fica também evidente nos textos seguintes, citados no mesmo dicionário:

“Seu espírito não está em descanso no mundo inferior”. – Gilg. XII, 152. 154

“Aquele que morreu em batalha descansa em uma cama e bebe água limpa”. – Gilg. XII, 147.

“Vocês, espíritos da minha família, todos vocês descansam no mundo inferior”. – LKA 89, r. 5.

The Assyrian Dictionary of the Oriental Institute of the University of Chicago (2010), vol. 16, pp. 67, 69

Mesma situação se observa no relato bíblico sobre quando o falecido profeta Samuel foi incomodado em seu descanso para atender o infiel rei Saul. Samuel, ao sair do Seol e subir para a superfície, perguntou:

“Por que me chamaste, perturbando o meu descanso?” – 1 Samuel 28:13-15, Bíblia do Peregrino.

Importante lembrar que comentaristas bíblicos livres de preconceito em relação à possibilidade de contatos eventuais com mortos dizem que, na realidade, a necromante que chamou o falecido profeta não tinha poder para isso (por isso se apavorou quando viu a alma de Samuel), e que o seu retorno se deveu somente à permissão especial de Deus, conforme é ensinado pela Igreja. E isso está de acordo com o próprio livro de Samuel onde foi registrado o episódio:

“Jeová é Quem faz morrer e Quem preserva a vida, quem faz descer ao Seol, e Ele faz subir”. – 1 Samuel 2:6, 7.

Mais detalhes sobre isso no artigo “O aparecimento do falecido Samuel à necromante foi verídico?

Abaixo mais dois textos bíblicos que mostram que o Seol não é um mundo de completa inatividade:

“Gritai de júbilo, ó céus, pois Jeová tomou ação! Bradai em triunfo, partes mais baixas da terra! Ficai animados, ó montes, com clamor jubilante, ó floresta e todas as árvores nela! Porque Jeová resgatou a Jacó e mostra a sua beleza em Israel”. – Isaías 44:23.

“Para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai”. – Filipenses 2:10,11.

Sobre esse texto de Filipenses, disse o exegeta Stewart Salmond:

“A expressão vertida por ‘dos debaixo do chão’ (καταχθονιίων) ocorre somente nesta passagem, no que se refere ao assunto no Novo Testamento. Mas é usada nos clássicos gregos para se referir aos que moram no Hades, e não é desarrazoado concluir que ela se refere aqui aos mortos no mundo subterrâneo (Conforme concluíram Meyer, Alford, Ellicott, Lipsius e a maioria dos comentaristas)”. – A Doutrina Cristã da Imortalidade (1896), p. 542.

O ‘juntar-se ao seu povo’

Por fim, há outra expressão figurativa que se refere à ida da alma para o Seol, que é o ‘fulano juntou-se ao seu povo’. Novamente, uma ideia de coletividade que não se refere ao cemitério ou uma tumba coletiva, mas ao amplo, invisível e inacessível mundo dos mortos, que pode inclusive não ser no profundo subsolo do nosso planeta, mas em algum outro lugar. Neste caso, a inferioridade desse local não seria física, mas espiritual.

“Abraão expirou então e morreu numa boa velhice, idoso e satisfeito, e foi ajuntado ao seu povo.... E estes são os anos de vida de Ismael, cento e trinta e sete anos. Então expirou e morreu, e foi ajuntado ao seu povo”. – Gênesis 25:8, 17.

“E Jeová passou a falar a Moisés naquele mesmo dia, dizendo: Sobe a este monte de Abarim, o monte Nebo, que está na terra de Moabe, defrontando com Jericó, e vê a terra de Canaã que dou como propriedade aos filhos de Israel. Morre então lá no monte ao qual sobes e sê ajuntado ao teu povo, assim como Arão, teu irmão, morreu no monte Hor e foi ajuntado ao seu povo”. – Deuteronômio 32:48-50.

Moisés sequer foi enterrado pelos israelitas que seguiram viagem rumo à terra prometida. Mesmo assim isso não impediu que Deus o ‘juntasse ao seu povo’, pois o local desse ajuntamento não é neste mundo, mas em outro lugar de natureza espiritual. Sendo que os textos acima e outros sugerem que o Seol é dividido de acordo com as nações de onde saíram as pessoas que morreram, e com subdivisões de acordo com cada família. Este cenário combina bastante com a expressão ‘ser ajuntado ao seu povo’. Ou seja, se um israelita morresse na Babilônia ele não precisava se preocupar em ficar longe de sua gente, pois Deus o levaria para onde ela estivesse no Seol:

“Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço. Os que te virem te fitarão; examinar-te-ão de perto, [dizendo:] ‘É este o homem que agitava a terra, que fazia tremer os reinos, que fez o solo produtivo como o ermo, que lhe derrubou as próprias cidades, que nem aos seus prisioneiros abriu o caminho para casa?’ Todos os outros reis das nações, sim, todos eles, deitaram-se em glória, cada um na sua própria casa. Mas, no que se refere a ti, foste lançado fora sem sepultura para ti, qual rebentão detestado, revestido de homens mortos, traspassados com a espada, que descem às pedras de um poço, como um cadáver calcado”. – Isaías 14:15-19.

Ao que parece, o rei de Babilônia não foi beneficiado com o ‘ajuntar-se ao seu povo’...

Conclusão

É certamente uma dificuldade para os aniquilacionistas o fato de Jesus ter se valido de um conceito judaico de seu tempo a fim de elaborar a parábola do rico e Lázaro, onde o seio de Abraão é mencionado. Alguns dizem que ela não deve ser levada ao pé da letra porque é só uma ficção. Todas as ilustrações que Jesus contou podem ser também ficcionais, entretanto TODOS os elementos que as compõem existem de fato: trigo, noivas, virgens, pérolas, celeiros etc., bem como histórias semelhantes da vida real. Jesus não usou situações inverossímeis ou figuras mitológicas nessas histórias.

E tão significativo quanto à materialidade dos elementos parabólicos é que o público-alvo de Jesus, os judeus, em geral acreditava na veracidade da existência do seio de Abraão e do Hades de sofrimento para os maus, conforme evidenciam as referências extrabíblicas citadas. Dificilmente Jesus lançaria mão de algo levado a sério para descrever algo que não existe efetivamente. Isto enfraqueceria até a lição que ele pretendia dar. A menos que a referência utilizada fosse apenas um folclore, o que não era o caso. O judaísmo possuía à época algumas lendas, mas o seio de Abraão e o Hades de tormentos não faziam parte delas. Basta ler a literatura judaica daquele tempo para constatar isso.

E o mais importante é que os indícios desses conceitos já estavam no Antigo Testamento, conforme indicam os vários textos bíblicos aqui apresentados. Talvez só não sejam percebidos tão facilmente por um leitor contemporâneo da Bíblia, visto que ela é muito discreta quando o assunto é o mundo dos mortos. Diferentemente do que ocorre na mitologia da literatura mesopotâmica, que descreve com riqueza de detalhes o que as pessoas acreditavam desse lugar.

Mas esse nevoeiro cognitivo não existia para um leitor da Bíblia dos tempos antigos. Eles entendiam prontamente tais passagens. Basta consultar os escritos extrabíblicos daquela época para averiguar a maneira que judeus e cristãos entendiam os versículos pertinentes ao assunto. Quase sempre não coincide em nada com o que pensam os aniquilacionistas modernos. Por isso que é imperativo para eles desacreditar essa literatura complementar, mas sob a justificativa de que “não é inspirada por Deus”. Arrancam a Bíblia de seu contexto histórico e exegético no afã de obter um entendimento “puro”, mas o que conseguem é se engodarem em entendimentos anacrônicos que não correspondem ao que geralmente as pessoas do antigo mundo judaico-cristão acreditavam.

A prática mais corriqueira é “simbolizar” outras passagens que os cristãos primitivos entendiam literalmente, a exemplo dos anjos rebeldes no Tártaro e o sofrimento dos maus no Hades ou na Geena, também mencionado por Jesus. – 2 Pedro 2:4; Mateus 11:21-24; Marcos 9:43-48.

Por fim, um último detalhe referente ao “seio de Abraão” é que alguns teólogos acreditam que esse lugar deixou de existir depois da ressurreição de Jesus, pois todos os justos que estavam lá foram levados por Jesus para o céu, em cumprimento da seguinte profecia:

“Ascendeste ao alto, levaste contigo cativos, tomaste dádivas em forma de homens. Sim, mesmo os obstinados, para residir entre eles, ó Jah, Deus”. – Salmos 68:18.

O apóstolo Paulo fez precisamente essa aplicação, em sua carta aos cristãos efésios:

“Por isso é que foi dito: ‘Quando ele subiu em triunfo às alturas, levou cativo muitos prisioneiros, e deu dons aos homens’. (Que significa ‘ele subiu’, senão que também havia descido às profundezas da terra?’)”. – Efésios 4:8, 9, Nova Versão Internacional.

Para mais informações sobre isso, consulte o artigo “A descida de Jesus ao Hades e sua subida para o Céu

Neste caso, Abraão não receberia mais os justos no lugar onde estava, mas no próprio céu, cumprindo assim a seguinte profecia:

“Mas, eu vos digo que muitos virão das regiões orientais e das regiões ocidentais e se recostarão à mesa junto com Abraão, Isaque e Jacó, no reino dos céus; ao passo que os filhos do reino serão lançados na escuridão lá fora”. – Mateus 8:11, 12.

Embora essa interpretação da transferência integral do “seio de Abraão” para o céu tenha sentido em um primeiro momento, referências antigas, a exemplo da história de Falconila mencionada no primeiro tópico, sugerem que não foi exatamente isso o que aconteceu. Pessoas que ainda não estão prontas para o céu ficam em uma região temporária que não é aquela de tormentos destinada aos maus. Até mesmo Abraão pode não ter ido ainda para a morada excelsa de Deus, o céu dos céus. Para uma consideração sobre isto, queira ler o capítulo 3 do livro “Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma”, de minha autoria.

De qualquer maneira, o importante é saber que Deus sempre guardou os justos falecidos em um lugar que é uma antecipação daquilo que os aguardava nos céus e que ainda será ampliado após a futura ressurreição física dos mortos.

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Autor: Adelmo Medeiros

Fortaleza, 18 de março de 2020.

 

CRÉDITOS DAS IMAGENS

1) Lugar paradísico (casa de madeira com flores)

Lovely House Pictures

2) Lugar de relvas e descanso (paisagem):

Infinity Fine Art

3) Morte do rei de Babilônia e sua descida ao Seol:

Isaiah’s Book Club

 

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