O APARECIMENTO DO FALECIDO SAMUEL À NECROMANTE FOI VERÍDICO?
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LISTA DE TÓPICOS

Introdução

1. O que diz a obra "Biblical Commentary on the Books of Samuel"

2. Argumentações apresentadas contra a legitimidade do relato bíblico

3. Evidências de que Saul morreu no dia seguinte à profecia

4. É sábio ficar vasculhando em busca de evidências desfavoráveis?

5. Sobre a peça chamada urim e as formas autorizadas de esclarecimento

6. O que disseram na igreja primitiva e a opinião de hoje

7. Sobre uma citação truncada feita pela Torre de Vigia

Créditos das imagens

 

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INTRODUÇÃO

Então a mulher perguntou [a Saul]: – Quem é que você quer que eu faça subir? – Samuel! – respondeu ele. Quando a mulher viu Samuel, deu um grito e disse... Estou vendo um espírito subindo da terra!... Saul entendeu que era Samuel...  Então Samuel disse a Saul: — Por que é que você foi me incomodar? Por que me fez voltar? 

1 Samuel 28:11-15, Nova Tradução na Linguagem de Hoje.

Amado por seu Senhor, Samuel, profeta do Senhor, estabeleceu a realeza, e ungiu governantes sobre o seu povo... Mesmo depois de ter adormecido, profetizou ainda e anunciou ao rei o seu fim: do seio da terra elevou a voz, profetizando para apagar a iniquidade do povo. 

Eclesiástico 46: 13, 20, TEB. 


Samuel disse a Saul: "Por que é que você foi me incomodar?"

Não obstante os textos bíblicos acima serem muito claros no que diz respeito ao aparecimento do falecido profeta Samuel para o rei Saul, hoje em dia são muitos os leitores da Bíblia que não acreditam nesse relato e, por essa razão, tentam dar outro sentido aos versículos supracitados. Será que realmente há base para isso? Ou essa postura se deve a mero preconceito? A julgar pela maneira que a Septuaginta grega traduziu um versículo do livro de Crônicas, nota-se que nos tempos antigos não houve essa preocupação:

“Então Saul morreu por causa de suas transgressões, as quais ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, porque ele não a manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, LXX.

O objetivo deste artigo é analisar com profundidade essa questão para se chegar a uma conclusão exegética bem fundamentada. O texto inteiro da presente análise foi extraído do capítulo 22 do livro “Sobre o Aniquilacionismo e a Imortalidade da Alma”, de minha autoria. É requisito prévio para esta leitura conhecer as informações bíblicas e históricas que estão resumidas nos seguintes artigos:

O que a Bíblia realmente ensina sobre a morte (link)

A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade? (link)

As armadilhas da “imortalidade da alma” e da literatura dos problemas (ou literatura da sabedoria) (link)

Cristãos católicos, protestantes ou ortodoxos em geral já têm ao menos uma noção dos assuntos acima. No entanto, os que estão ligados a movimentos aniquilacionistas carecem desse conhecimento mínimo. O caso mais notório é o das “Testemunhas de Jeová”, nome fantasia da Sociedade Torre de Vigia dos EUA.

 

O QUE DIZ A OBRA “BIBLICAL COMMENTARY ON THE BOOKS OF SAMUEL”

Autores: Carl Friedrich Keil e Franz Delitzsch. Ano de publicação: 1876. Trecho: pp. 265-269.

Esta é uma obra sobre o Antigo Testamento publicada em vários volumes. Os seus autores são dois renomados eruditos bíblicos. Abaixo uma breve biografia sobre eles:

Carl Friedrich Keil

Karl Fredreich Keil (1807-1888) foi um exegeta protestante alemão. Muitos anos depois que terminou seus estudos teológicos em Dorpat e Berlin, aceitou o convite da faculdade de teologia de Dorpat, onde trabalhou por 25 anos nas funções de palestrante e professor de exegese do Antigo e do Novo Testamento e de línguas orientais. Em 1859 se estabeleceu em Leipsic, onde se devotou a obras literárias e assuntos práticos da Igreja Luterana. Em 1887 mudou-se para Rodlitz, onde prosseguiu com suas atividades literárias até sua morte.

Ele se manteve estritamente ligado à escola conservadora e ortodoxa de Hengstenberg. Ignorando quase que completamente o criticismo moderno, todos os seus escritos  representam a  visão de que  os livros do Antigo e  Novo  Testamentos são para ser aceitos como a palavra revelada de Deus. Ele considerava o desenvolvimento da ciência teológica alemã como um erro de fase passageira.

O carro-chefe de sua obra é o comentário sobre o Antigo Testamento (1866), que escreveu em parceria com Franz Delitzsch. Ele contribuiu para ela com os comentários de todos os livros de Gênesis até Ester, Jeremias, Ezequiel, Daniel e os profetas menores.

Franz Delitzsch

Franz Delitzsch (1813-1890) foi um luterano de Leipsic. De origem judia, estudou em Leipsic onde se tornou professor particular em 1842. Assumiu a posição de professor universitário em Rostock no ano de 1846, depois em Erlangen em 1850, e em seguida Leipsic novamente, em 1867.

Sua atividade exegética começou seriamente em Erlangen, onde ele preparou de maneira independente e em parceria com Karl Keil um dos melhores comentários sobre o Antigo Testamento (Jó, Salmos, Provérbios, Cânticos de Salomão, Eclesiastes e Isaías, em 1866) que foi produzido na Alemanha. Logo em seguida eles foram traduzidos para o inglês e publicados em Edimburgo.

Delitzsch se opunha à ideia “da teologia cercar-se da Fórmula de Concórdia*”. Numa introdução ao comentário sobre Gênesis, publicado em 1887, ele deixou claro que a Bíblia, como literatura da revelação divina, não pode se permitir ser ameaçada por falta de veracidade ou se furtar de sua base histórica.

Em 1886 ele fundou um seminário em Leipsic no qual os candidatos de teologia eram preparados para atividade missionária direcionada aos judeus. Em homenagem a ele é hoje chamado de Institutum Judaicum Delitzschianum.**

* A Fórmula de Concórdia (1577) é uma obra que foi escrita com o objetivo de definir “ainda mais a posição luterana em referência a controvérsias dentro e fora de suas fileiras”. Ela e mais cinco outras obras formaram o que ficou conhecido por “Livro da Concórdia”, o qual apresenta as confissões de fé da Igreja Luterana, com referências aos antigos credos do Cristianismo, a exemplo do credo niceno. É basicamente uma coleção de padrões doutrinais que servem de parâmetro para as Igrejas Luteranas de todo o mundo. – Britannica.com

** Delitzsch também traduziu o Novo Testamento para o hebraico, e sua versão é considerada uma das melhores já feitas. Para adquiri-la entre aqui: Archive.org. A Enciclopédia Judaica contesta a informação que Delitzsch tenha vindo de uma família judia, e informa que ele apenas nutria simpatia pelo povo judeu e teve uma formação voltada para o judaísmo porque o padrinho dele era judeu.

Biografias publicadas em: Studylight.org (notas de rodapé acrescidas).

Logo abaixo apresento a transcrição do trecho que foi selecionado da obra de Keil & Delitzsch, que está disponível para download no link das biografias. Sobre a transcrição ressalto o seguinte:

1) O que está transcrito é apenas um trecho do comentário. Sugiro a leitura das demais considerações diretamente no livro.

 

2) Os colchetes intercalares em azul são meus, a fim de deixar a tradução mais clara.

 

3) Todas as notas explicativas da citação são minhas, com exceção das duas que foram indicadas com o número “1”. Estas são do próprio comentário bíblico.

 

4) O que está apresentado a seguir foi escrito no livro em apenas dois parágrafos. Mas, para tornar a leitura mais agradável, achei melhor aumentar essa quantidade para que os parágrafos ficassem menores.

INÍCIO DA TRANSCRIÇÃO:

Esta narrativa, quando lida sem preconceito, faz lembrar de imediato a impressão transmitida pela Septuaginta em 1 Crônicas 10:13*: ἐπηρώτησε Σαοὺλ  ἐν τῷ ἐγγατριμύθῳ του ξητῆσαι, και ἀπεκρίνατο αὐτῷ Σαμουὴλ ὁ προφήτης; e ainda mais claramente em Eclesiástico 46:20, onde se diz de Samuel: “Até depois de sua morte profetizou, e mostrou ao rei seu fim; e levantou sua voz da terra ao profetizar, para apagar a iniquidade do povo”. Entretanto, os pais [da Igreja], os reformadores e os primitivos teólogos cristãos, com muito poucas exceções, assumiram que não foi uma real aparição de Samuel, mas apenas uma imaginária. De acordo com a explicação dada por Efraém, o Sírio, uma imagem aparente de Samuel foi apresentada ao olho de Saul através de artes demoníacas. Lutero e Calvino adotaram a mesma visão, e os mais antigos teólogos protestantes os seguiram em considerar o aparecimento como não sendo nada mais do que um espectro diabólico, um fantasma, ou um espectro diabólico na forma de Samuel, e o anúncio de Samuel como sendo uma revelação diabólica feita com permissão divina, na qual a verdade está misturada com a falsidade.1

* O texto mencionado de Crônicas diz: “Então Saul morreu por causa de suas transgressões, que ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, que ele não manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, Septuaginta Grega (LXX), versão da tradução de Sir Lancelot Brenton.

1 Assim diz Lutero (na sua obra sobre os abusos da Missa, 1522): “O levantamento de Samuel por uma vaticinadora ou bruxa, em 1 Samuel 28:11, 12, certamente foi meramente um espectro do diabo; não somente porque as Escrituras declaram que foi algo feito por uma mulher que estava cheia de diabos (pois, quem acreditaria que as almas dos crentes, que estão na mão de Deus, Eclesiástico 3:1#, e no seio de Abraão, Lucas 16:32, estaria sob o poder do diabo, e de simples homens?), mas também porque evidentemente era contrário à ordem de Deus Saul e a mulher inquirirem os mortos. O Espírito Santo por si mesmo não pode fazer nada contra isto, nem pode Ele ajudar os que agem em oposição a ele.” Calvino também considera a aparição apenas como um espectro (Hom. 100(a) em 1 Sam. [pp. 649-660]): “Isto é certo”, diz ele, “que não foi realmente Samuel, porque Deus nunca teria permitido que Seus profetas fossem sujeitos a tal conjura diabólica. Porque aqui uma feiticeira convoca o falecido da sepultura. Alguém imaginaria que Deus desejou que Seu profeta fosse exposto a tal ignomínia; como se o diabo tivesse poder sobre os corpos e as almas dos santos guardados por Ele? É dito que as almas dos santos estão repousando e vivem em Deus, aguardando a sua feliz ressurreição. Além disso, deveríamos acreditar que Samuel levou consigo a sua capa à sepultura? Por todas estas razões, parece evidente que a aparição não era nada mais que um espectro, e que os sentidos da própria mulher foram assim enganados, a ponto dela pensar que via a Samuel, quando na realidade não era ele”. Os antigos teólogos ortodoxos também disputaram a realidade da aparição do falecido Samuel tão somente pelos mesmos motivos; exs. Seb. Schmidt (Comm.); Aug. Pfeiffer; Sal. Deyling; and Buddeus, Hist. Eccl. V. T. ii p. 243, e muitos mais.

# Na verdade, o texto a que Lutero se refere é o de Sabedoria 3:1, e não Eclesiástico 3:1.

Foi somente no século XVII que essa opinião sem qualquer fundamento real foi expressa novamente, de que a aparição de Samuel tinha sido meramente uma ilusão produzida pela bruxa. Após Reginald Scotus(a) e Balth. Becker(b) terem se manifestado por tal ideia, ela recebeu um tratamento mais elaborado por Ant. van Dale*, em sua dissert. divinatipnihus idololatricis sub VT(c). No assim chamado Iluminismo tal opinião era a prevalecente, de modo que Thenius ainda considera como um fato estabelecido não só que a mulher era uma impostora, mas que o próprio narrador considerava a coisa toda como um embuste. Atualmente não há necessidade de refutar esta opinião. Até mesmo Fr. Boettcher(d) (de inferis, pp. 111 em diante), que considera o episódio como uma impostura, admite que quem primeiro registrou o ocorrido realmente “acreditava que Samuel apareceu e profetizou, contrário à expectativa da bruxa”, e que o autor dos livros de Samuel estava convencido de que o profeta foi levantado e profetizou, de modo que mesmo depois de sua morte, ele provou ser o verdadeiro profeta de Jeová, mesmo que através da intervenção de artes ímpias (cf. Ez. 14: 7, 9**).

* Dissertationes . . . . (1696): De vera ac falsa prophetia; uti et de divinationibus idololatricis judaeorum (1696), de Antonius van. Dale.

** O texto mencionado de Ezequiel diz: “Quando um israelita ou um estrangeiro que mora em Israel se afastar de mim, e for tentado a adorar ídolos e deixar que eles o façam pecar, e então for consultar um profeta – eu, o SENHOR, é que lhe darei a resposta! . . . Se um profeta for enganado e der uma resposta falsa, fui eu, o SENHOR, quem o enganou. Eu o tirarei do meio do povo de Israel”. – Nova Bíblia na Linguagem de Hoje.

Mas o ponto de vista sustentado pela igreja primitiva não faz justiça à narrativa bíblica; e, portanto, os mais modernos comentaristas ortodoxos são unânimes na opinião de que o profeta realmente apareceu e anunciou a destruição de Saul, não, contudo, em consequência das artes mágicas da bruxa, mas através de um milagre operado pela onipotência de Deus. Isto é mais decididamente favorecido pelo fato da maneira que o narrador profético fala sobre a aparição, dizendo que não era um fantasma, mas o próprio Samuel.* Ele faz isso não somente no ver. 12, “Quando a mulher viu Samuel, ela gritou em voz alta”, mas também nos vers. 14, 15, 16 e 20.

* Conforme visto no capítulo 20, tal linguagem é muito presente em toda a Bíblia, e Moisés foi o primeiro escritor bíblico a utilizá-la, seguindo assim a maneira egípcia de se referir aos mortos.

É também informado no episódio que ela não apenas reproduz as palavras de Samuel para Saul, nos vers. 16-19, criando a impressão de que é o próprio Samuel quem está falando, como também seu anúncio contem de maneira bem nítida uma profecia sobre a morte de Saul e de seus filhos, que é impossível imaginar que tenha se originado da boca de uma impostora, ou que tenha sido uma inspiração de Satanás.

Por outro lado, a observação de Calvino, sobre o entendimento de que “Deus às vezes dá aos diabos o poder de revelar segredos para nós, os quais aprenderam do Senhor”, poderia ser considerada como uma objeção válida, desde que a narrativa nos desse algum indício de que a aparição e a fala foram nada mais que uma ilusão diabólica.  Mas ela não faz nada disso. É verdade, a opinião de que a bruxa conjurou o profeta Samuel foi muito apropriadamente debatida pelos primeiros teólogos, e rejeitada por Teodoreto como “profana, e até mesmo ímpia”, mas o texto da Escritura indica de modo suficientemente claro que o caso foi exatamente o oposto, pois se observa que a própria bruxa ficou apavorada com a aparição de Samuel (ver. 12).

Shöbel* está, portanto, bastante correto ao dizer: “Não foi pelo chamado do rei idólatra que Samuel veio, nem pelo comando da bruxa, nem do de ninguém que tinha o poder de trazê-lo para cima, ou nem mesmo o de fazê-lo ouvir suas vozes na sepultura de descanso; nem foi sua vinda meramente pela ‘permissão’ divina, que é o mínimo que se poderia dizer. Não, ao invés disso foi pela ordem de Deus que ele deixou a sepultura (?), tal como um servo fiel a quem seu mestre desperta à meia-noite, para deixar entrar um morador da casa que se reteve fora até tarde, e está batendo na porta. ‘Por que você perturba o meu sono?’ seria sempre a pergunta feita ao indesejado que chegou, embora não fosse por seu barulho que o servo se levantou, mas sim pela autoridade de seu mestre. Samuel fez a mesma pergunta”.

* Provável referência ao teólogo indicado neste link: Archive.co.uk, que é coautor de um livro sobre Patrística chamado “Manual de Patrologia”, o qual pode ser adquirido aqui: Archive.org.

A proibição da bruxaria e da necromancia. (Deut. 28:11; Isa. 8:9), cujos os textos são citados por antigos escritores contra tal conclusão, não exclui a possibilidade de Deus, por Suas próprias razões especiais, ter feito Samuel aparecer. Pelo contrário, o aparecimento em si foi de uma maneira tal que não falharia em mostrar à bruxa e ao rei que Deus não permite que Suas proibições sejam infringidas impunemente. Exatamente a mesma coisa aconteceu quando Deus ameaçou idólatras por intermédio de Ezequiel (ch. 14:4, 7, 8): “Se eles vêm para o profeta, vou respondê-los à minha maneira”.

Muito menos ainda existe alguma força [humana em ação] no apelo registrado em Lucas 16:27, quando Abraão se recusa a atender o pedido do homem rico no Hades, para que ele enviasse Lázaro para a casa de seu pai, a fim de pregar o arrependimento a seus irmãos que ainda estavam vivos, dizendo: “Eles têm Moisés e os profetas, ouçam-nos. Se não ouvem a Moisés e aos profetas, tampouco se deixarão persuadir, ainda que alguém se levante dentre os mortos”. Por isso não se pode afirmar que o aparecimento em si de um homem morto é algo impossível, pois a descrição feita retrata apenas algo inútil e ineficaz, tanto quanto a preocupação de converter os ímpios.

A realidade da aparição de Samuel vindo do reino dos mortos não pode, portanto, ser posta em questão, especialmente porque ela tem um correspondente análogo que é o aparecimento de Moisés e Elias na transfiguração de Cristo (Mat. 17:3; Luc. 9:30, 31); exceto por uma diferença que não deve ser esquecida, que Moisés e Elias apareceram “em glória”, ou seja, em uma forma glorificada, enquanto Samuel apareceu na corporalidade terrena com o manto de profeta que ele usara na terra.

Visto que a transfiguração de Cristo foi uma antecipação fenomenal de Sua futura glória celestial, na qual Ele iria entrar após a Sua ressurreição e ascensão, então podemos pensar da aparição de Moisés e Elias “em glória” sobre o monte da transfiguração como uma antecipação da transfiguração celeste deles na vida eterna com Deus. Foi diferente com Samuel, a quem Deus fez subir do Hades por um ato de Sua onipotência. Este aparecimento não é para ser considerado como a aparência de alguém que tinha subido em um corpo glorificado, embora tivesse alguma característica de espírito em sua manifestação externa, de modo que era visível apenas para a bruxa, e não a Saul. Era meramente uma aparência da alma de Samuel, que tinha ido repousar no Hades, [que se apresentou] com as roupas da corporalidade terrena e vestido qual profeta, que foram reassumidas com o objetivo de torná-las visíveis [para a bruxa].

Neste respeito, a aparição de Samuel não se assemelhou às aparições de anjos [que mesmo sendo materialmente] incorpóreos [apareceram] na forma humana e com vestimenta, tais como os três anjos que vieram a Abraão no bosque em Mamre (Gen. 18), e o anjo que apareceu a Manoá (Juíz. 13); ao invés disso, Samuel apareceu com a forma espiritual dos habitantes do Hades, ao invés daquela exceção dos anjos terem se manifestado com aparência humana, os quais se mostraram visíveis aos olhos físicos [ou seja, se materializaram]. Em todos esses casos, a forma corporal e o vestuário foram apenas um arranjo escolhido para a alma ou o espírito, e destinava-se a facilitar a percepção, de modo que tais aparições não fornecem nenhuma prova de que as almas dos homens que partiram possuem uma corporalidade* imaterial.1

* O que o autor talvez quis dizer foi: “Tais aparições não fornecem nenhuma prova de que as almas dos homens que partiram possuem uma corporalidade [de aspecto humano] imaterial”. Isto porque há quem opine que os seres espirituais podem não ter uma aparência humana, e que a Bíblia os apresenta assim porque faz uso de uma linguagem antropomórfica. Compare com o comentário de Keil e Delitzsch sobre Jó 4:12-17: Bible Hub.

1 Delitzsch (bibl. Psychol, pp. 427 em diante) tem muito apropriadamente rejeitado não só a opinião de que Samuel# e Moisés foram levantados dentre os mortos, com o objetivo de terem uma aparência transitória, e depois morreram novamente, mas também a ideia de que eles apareceram em seus corpos materiais, uma noção sobre a qual Calvino baseia seu argumento [utilizado] contra a realidade do aparecimento de Samuel. Mas quando menciona sua opinião sobre os anjos que apareceram em forma humana (que ele acha terem assumido esta forma devido aos seus próprios poderes, visto que podem se fazer visíveis para quem quiserem, e infere ainda mais disso, “que a forma externa em que Samuel# e Moisés apareceram {o que corresponde à forma deles quando estavam deste lado da sepultura}  foi a produção imaterial de suas naturezas espiritual e psíquica”), ele ignora o fato de que não só Samuel, mas também os anjos, nos casos mencionados, apareceram em roupas de homens, o que não pode ser considerado como uma produção de sua natureza espiritual e psíquica. A vestimenta terrena não é indispensável para a existência de um homem. Adão e Eva não tinham roupas antes da Queda, e não haverá nenhuma roupa material no reino da glória; porque o “linho fino, puro e branco”, com o qual se adorna a noiva para a ceia do casamento do Cordeiro, é “a justiça dos santos”. (Apoc. 19:8).

# Aparentemente houve um erro aqui, pois não foi Samuel que apareceu juntamente com Moisés na transfiguração. Foi Elias. Estas duas menções de Samuel podem ser resultado de um equívoco de João Calvino ou do autor do texto. Em apoio a esta minha conclusão há o fato de que Calvino não acreditava na veracidade do relato bíblico de que Samuel aparecera realmente para a necromante, pois ele não se fez visível para todos os presentes, da maneira que fizeram anjos materializados, e teriam feito Moisés e Elias. (Ainda há outra possibilidade no caso destes últimos. Veja 2 Reis 6:15-17). Eu não localizei a obra que traz a mencionada declaração de Calvino, de modo que não pude averiguar esse pormenor, para confirmar ou não a minha suposição.

(FIM DA TRANSCRIÇÃO)

 

ARGUMENTAÇÕES APRESENTADAS CONTRA A LEGITIMIDADE DO RELATO BÍBLICO

Daqui em diante, se não houver outra indicação, a versão da Bíblia utilizada é a Tradução do Novo Mundo (1986).

“Uma coisa é muito clara: não foi o profeta Samuel quem apareceu a Saul”

“Razões Bíblicas que nos mostram que a Sessão de En-Dor foi forjada por Satanás”

“Não podemos defender que seja verdadeiro e vindo de Deus uma ação vinda do inferno e pela eficácia de satanás”

As declarações acima são apenas alguns exemplos do que muitos cristãos, geralmente evangélicos, costumam concluir sobre a narrativa do aparecimento de Samuel para a necromante. Como se nota, são opiniões muito fortes e de tom condenatório. Os que se expressam dessa maneira certamente devem se sentir muito seguros quanto à base bíblica para tais opiniões. O objetivo aqui é comentar brevemente qual seria esse fundamento. Antes de fazer isso, porém, releia a essência do relato:

“Então a mulher perguntou: – Quem é que você quer que eu faça subir? – Samuel! – respondeu ele. Quando a mulher viu Samuel, deu um grito e disse a Saul: – Por que o senhor me enganou? O senhor é o rei Saul! – Não tenha medo! – respondeu o rei. – O que é que você está vendo? – Estou vendo um espírito subindo da terra! – disse ela. – Como é o jeito dele? – perguntou Saul. – É um velho que está subindo! – respondeu ela. – Ele está todo enrolado numa capa. Aí Saul entendeu que era Samuel: ajoelhou-se e encostou o rosto no chão, em sinal de respeito”. – 1 Samuel 28:11-14, Nova Tradução na Linguagem de Hoje.

A primeira conclusão que se tira é que quem escreveu o texto acima realmente acreditava que ali era Samuel. Devido a isto, como alguém se sentiria à vontade para dizer que foi o aparecimento de um demônio, ao passo que o autor do texto informa que foi Samuel? Certamente ninguém. Pelo menos não alguém que diga acreditar na Bíblia qual Palavra inspirada de Deus. Então, qual foi a “solução” encontrada para esse problema? Veja a seguir as argumentações normalmente apresentadas.

1. O registro foi feito por uma testemunha ocular infiel

Alguns dizem que o séquito que acompanhou Saul era composto de israelitas que não ligavam muito para as leis de Jeová, sendo geralmente de famílias de origem estrangeira que introduziram furtivamente conceitos das nações pagãs nos lares israelitas. Por isso a necromancia seria uma prática aceitável para muitos israelitas. A Bíblia informa que o próprio Saul tomou medidas para que essa prática fosse banida da nação. Ironicamente, ele mesmo acabou recorrendo à necromancia quando se viu desesperado. Mas qual seria a evidência bíblica para essa suposição do testemunho ocular infiel?

Um dos textos citado em favor dela é aquele que menciona um dos interlocutores de Jó, que expressou opiniões erradas registradas na Bíblia e foi repreendido por Deus. Diz o relato:

“E sucedeu que, depois de Jeová ter falado estas palavras a Jó, Jeová passou a dizer a Elifaz, o temanita: ‘Minha ira se acendeu contra ti e contra os teus dois companheiros, pois não falastes a verdade a meu respeito assim como fez meu servo Jó. E agora, tomai para vós sete novilhos e sete carneiros, e ide ao meu servo Jó, e tereis de oferecer um sacrifício queimado em vosso próprio favor; e o próprio Jó, meu servo, orará por vós. Somente aceitarei a face dele, para não cometer uma ignominiosa insensatez convosco, pois não falastes a verdade a meu respeito assim como fez meu servo Jó.’ Por conseguinte, Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita, foram e fizeram assim como Jeová lhes falara; e, assim, Jeová aceitou a face de Jó”. – Jó 42:7-9.

Não é difícil concluir que as duas situações não têm relação entre si, ainda mais levando em consideração os comentários que se seguirão. As opiniões de Elifaz, Bildade e Zofar eram, como o próprio nome diz, apenas opiniões. Nenhum deles foi o narrador da história de Jó. O que é contado em 1 Samuel já é um caso bem diferente. O que lá está expresso saiu das mãos de quem escreveu o relato. Além disso, a própria Bíblia esclarece que as opiniões dos três falsos amigos de Jó estavam erradas. O que já não acontece sobre o que foi dito sobre o episódio em En-dor.

Logo, considerando o princípio bíblico de que ‘não se deve ir além do que está escrito’ (1 Coríntios 4:6), esse primeiro argumento dos que se opõem ao relato não passa de uma opinião sem nenhuma garantia de estar correta.

2. A identificação foi só uma maneira de dizer

Outra explicação que formularam é que o espírito foi chamado de “Samuel” porque seria uma peculiaridade bíblica, como se fosse um recurso estilístico. Citam como exemplo dessa teoria os anjos materializados que apareceram para humanos. Eles foram chamados de “homens” apenas porque se pareciam com homens. Era a impressão visual que se tinha deles.

A única “vantagem” dessa explicação é que ela elimina a desconfortável conclusão que Deus teria inspirado seu escritor registrar uma mentira que fez os antigos judeus acreditarem naquele retorno temporário de Samuel. O que explicaria a maneira que 1 Crônicas 10:13 foi traduzido na Septuaginta e o que foi dito em Eclesiástico 46:13, 20. A desvantagem é que esse argumento é bastante forçado e, novamente, sem fundamentação bíblica segura, já que o livro de Samuel não tem tal esclarecimento ou algo que sugira esse ponto de vista.

Se apenas citar exemplos de textos que tratam de outras situações envolvendo seres espirituais é um critério válido, aquele de Atos 12:13-15 serve para demonstrar precisamente o entendimento contrário. Quando a serva Rode disse que achava que Pedro estava do lado de fora, ela nem tinha aberto a porta ainda. Ela o reconheceu por sua voz. E quando os discípulos que estavam dentro da casa chegaram à conclusão que era o anjo de Pedro, eles não tinham visto ninguém. Eles apenas expressaram uma crença que tinham, que não dependia de qualquer impressão visual.

Sendo assim, qual é a melhor opção? Acreditar na Bíblia ou em teorias propostas por quem quer “demonizar” o relato? Muitos escolhem a segunda opção porque é a única maneira do caminho ficar livre para as demais críticas, que serão agora comentadas.

3. Uma seguidora de demônios não teria poder sobre um profeta de Deus

Conforme visto na obra de Keil e Delitzsch é um equívoco achar que Samuel veio do Seol pela ordem da necromante. Embora ela não tivesse noção disso, quem supõe ter algum tipo de poder, na verdade não tem. O verdadeiro detentor de poderes é Deus, conforme se pode concluir do diálogo de Jesus com Pilatos:

“Pilatos lhe disse então: ‘É comigo que te recusas a falar? Não sabes que eu tenho o poder de te soltar como tenho poder de te crucificar? Mas Jesus lhe respondeu: ‘Não terias poder algum sobre mim se não te houvesse sido dado do alto’.”. – João 19:10, 11, TEB.

E no caso específico do aparecimento de Samuel se aplica o texto abaixo, que se encontra precisamente no mesmo livro que nos conta a história de En-dor:

Jeová é Quem faz morrer e Quem preserva a vida, quem faz descer ao Seol, e Ele faz subir”. – 1 Samuel 2:6, 7.

Note que o texto não diz “levantar”, que seria uma alusão mais específica à ressurreição, mas sim “subir”, o mesmo verbo utilizado na pergunta da necromante ao rei: “Quem é que você quer que eu faça subir?”. Além disso, não é dito que Deus “pode” fazer subir, mas sim que ele faz subir. Certamente não é coincidência haver esse esclarecimento no próprio livro de Samuel. Coisa que não acontece com nenhuma das teorias propostas pelos que não creem no relato.

Os que defendem a “demonização” desse registro bíblico deveriam ficar bastante preocupados por terem aderido a essa opinião, pois é muito sério atribuir ao Diabo o que é de Deus. Isto se nota quando Jesus comentou o pensamento dos fariseus, segundo os quais Jesus expulsava demônios por meio de Satanás:

“Ouvindo isso, os fariseus disseram: ‘Este não expulsa os demônios senão por meio de Belzebu, o governante dos demônios.’ Conhecendo os pensamentos deles, [Jesus] disse-lhes: ‘Todo reino dividido contra si mesmo cai em desolação, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não permanece. . . Por esta razão, eu vos digo: Toda sorte de pecado e blasfêmia será perdoada aos homens, mas a blasfêmia contra o espírito não será perdoada’.”. – Mateus 12:24-31, colchetes acrescentados.

4. Deus se recusou a responder a Saul

Se Deus não quis esclarecer a Saul pelos meios autorizados, por qual motivo ele permitiria que Samuel fizesse isso depois de morto? Neste caso, se aplica o princípio do texto abaixo:

“Não te precipites, para que não saias de diante dele. Não fiques de pé numa coisa má. Pois fará tudo o que se agradar de fazer, porque a palavra do rei é o poder do controle; e quem lhe pode dizer: ‘Que estás fazendo?’. ”. – Eclesiastes 8:3, 4; compare com Malaquias 1:14.

Sim, Deus é o grande Rei do universo, e o que ele decide fazer ele faz, e ninguém pode contestar. Ele é incapaz apenas de mentir (Hebreus 6:18). Ele executa o que quiser, por suas próprias razões e à sua própria maneira, conforme nos lembrou Carl F. Keil ao citar o texto a seguir:

“Assim diz o SENHOR Deus: Se alguém da casa de Israel instalar ídolos no coração, colocar diante de si o tropeço que o faz pecar e depois se dirigir a um profeta, eu, o SENHOR, lhe darei a resposta por causa da multidão de seus ídolos. . . Voltarei minha face contra tal pessoa e farei dela um exemplo proverbial, exterminando-a do meio do meu povo. Assim sabereis que eu sou o SENHOR. . . Quanto ao profeta que se deixar seduzir e pronunciar um oráculo, fui eu quem o seduziu. Estenderei a mão contra ele e o exterminarei do meio do meu povo Israel. Ambos serão culpados; a culpa do consulente será idêntica à do profeta consultado”. – Ezequiel 14:4, 8, 9, 10, CNBB.

O que aconteceu no relato sobre Saul foi exatamente isso. Deus respondeu a ele no meio de “ídolos” (necromancia), porém o eliminou no meio do povo, como forma de exemplo e de punição por seus pecados, inclusive o de ter consultado uma necromante (“profeta”).*

* De acordo com várias referências, o objetivo primário da necromancia nos tempos antigos era convocar espíritos para que eles previssem o futuro do interessado. Era a arte do vaticínio. Então, os vaticinadores eram vistos como se fossem oráculos ou “profetas”. É interessante que nem sempre os profetas de Deus foram chamados assim. A Bíblia diz: “Antigamente, em Israel, era assim que o homem falava ao ir buscar a Deus: ‘Vinde e vamos ao vidente.’ Pois o profeta de hoje costumava ser chamado outrora de vidente”. A mudança na linguagem talvez tenha sido para diferenciar os que profetizavam em nome de Deus daqueles que previam em nome de qualquer espírito. – 1 Samuel 9:9.

Sobre esse ponto, sugiro ainda que leia novamente a nota da Bíblia do Peregrino que está transcrita no capítulo 16, na página 187.

5. Saul não pode ter ido para o mesmo lugar de Samuel

De acordo com o texto bíblico, Samuel disse para Saul:

“Amanhã tu e teus filhos estarão comigo”. – 1 Samuel 28:18.

Alguns raciocinam que Saul jamais poderia ir para onde Samuel estava, pois Samuel estaria no céu e Saul teria que obrigatoriamente ir para o inferno porque se matou. É opinião muito comum nas religiões que o lugar de todos os suicidas é no inferno*. Mas tais conclusões se baseiam mais em concepções religiosas atuais do que propriamente na Bíblia, pois não existe nela essa regra de que todos que se matam vão para o “inferno” e todos os bons vão para o céu.

* Particularmente, eu não acho que isso estaria de acordo com a justiça de Deus. Sabemos que muitos que chegam ao ponto de tirar a própria vida estão mentalmente perturbados, mergulhados em tristezas e com forte depressão. Então, não bastasse esse sofrimento em vida ainda teriam que sofrer terrivelmente debaixo da terra e para sempre? Pessoas em seu estado normal não se matam. O que Saul fez é uma exceção. E há registros de outros que preferiram o suicídio ao invés de se entregar aos inimigos. Foi o caso, segundo dizem, de Adolf Hitler, quando viu que a guerra estava perdida para ele.

Outra argumentação semelhante, porém mais de acordo com o que a Bíblia informa, é que Samuel estava no Seio de Abraão, e não seria de se esperar que Saul fosse para lá também. E isto é verdade. No entanto, de acordo com a Bíblia, tanto os justos quanto os ímpios vão para o Seol. Então, a conclusão mais natural é que Samuel se referiu ao Seol de uma maneira geral. Ele não devia ter em mente esse detalhe da divisão do Seol em vários setores, conforme explicado no livro apócrifo de Enoque e em outras fontes judaicas.

Sim, diferentemente do que pensam alguns, o Seio de Abraão não fica no céu, pelo menos não o céu onde Deus está.* Pela concepção judaica, o mundo de bem-aventurança e o de sofrimento ficavam ambos debaixo da Terra, conforme explicou o historiador judeu Flávio Josefo:

“Eles crêem que almas têm poder de sobreviver à morte e que há recompensas e punições debaixo da terra para os que levaram uma vida de virtude ou uma de vício: encarceramento eterno é o destino das almas más, ao passo que as almas boas recebem passagem fácil para uma nova vida”. – Jewish Antiquities, XVIII, 14 [i, 3], tradução da Torre de Vigia, que aparece no Estudo Perspicaz, vol. 2, p. 107.

* Com base em Efésios 4:8, 9, há teólogos que sugerem que o Seio de Abraão foi transferido para o céu depois que Cristo foi ressuscitado e voltou para lá. É uma forte possibilidade, conforme visto no capítulo 7 deste livro.

Portanto, Saul foi para o mesmo lugar que qualquer pessoa iria ao morrer: o Seol, ou Hades.

6. O verdadeiro Samuel não teria aceitado a reverência de Saul

Outra coisa que dizem é que Samuel não fez nenhuma objeção ao gesto de Saul em se prostrar, em reverência ao profeta. Um verdadeiro profeta de Deus recusaria tal homenagem porque só Deus pode ser saudado dessa maneira, pois é o único que merece adoração.

Sobre essa questão do que viria a ser um verdadeiro ato de adoração seria necessário no mínimo um artigo para analisar o assunto. Há evidências que indicam uma visão um pouco diferente sobre o ato de adorar, e que este não é exatamente o que muitas pessoas supõem. Mas tratar desse ponto não é o objetivo aqui.

Confesso que fico admirado em pessoas postularem esse argumento da inércia de Samuel por não dizer nada contra a atitude de Saul. Será que elas não se lembram que era um ato comum nos tempos antigos se curvar diante de reis e autoridades? Não vejo na atitude de Samuel nada mais do aceitar tal costume. E há vários textos na Bíblia que podem ser usados como exemplo. Note um deles:

“Então o próprio Rei Nabucodonosor lançou-se com o rosto por terra e prestou homenagem a Daniel, e ele disse que se lhe oferecessem um presente e incenso. O rei respondeu a Daniel e disse: ‘Verdadeiramente, vosso Deus é Deus de deuses e Senhor de reis, e Revelador de segredos, porque pudeste revelar este segredo.’ Conseqüentemente, o rei fez de Daniel alguém grande e deu-lhe muitas dádivas grandes, e o fez governante de todo o distrito jurisdicional de Babilônia e prefeito supremo sobre todos os sábios de Babilônia. E Daniel, da sua parte, fez uma solicitação ao rei e este designou Sadraque, Mesaque e Abednego sobre a administração do distrito jurisdicional de Babilônia, mas Daniel estava na corte do rei”. – Daniel 2:46-49.

O relato acima é muito mais amplo do aquele cumprimento de Saul a Samuel. Nota-se que o rei não apenas se curvou diante de Daniel, mas também mandou acender incenso para ele, deu-lhe presentes e lhe conferiu grande poder político no país. Daniel recusou qualquer uma dessas coisas? Evidentemente, não. Mas isso não caracterizou uma postura inadequada da parte dele qual profeta.

7. A Bíblia diz que Saul morreu porque buscou a necromante

“Saul pereceu por se ter mostrado infiel para com Iahweh: não seguira a palavra de Iahweh e, além disso, interrogara e consultara um espectro”. – 1 Crônicas 10:13, 14, BJ.

Certamente, um dos motivos que o levou à morte foi procurar uma necromante. Mas, como se nota no texto acima, não foi o único. Primariamente, ele pereceu porque se mostrou infiel a Iahweh. Este foi o verdadeiro motivo. É o que revela uma leitura completa de sua história.

O que Saul fez claramente foi errado, pois a Lei era muito clara em proibir a prática da necromancia. Mas isto em si não impediria um retorno temporário de Samuel se fosse da vontade de Deus. As duas situações não são mutuamente exclusivas. Elas coexistiram no relato, como se percebe ao considerar todos os pontos deste capítulo.

A propósito, de acordo com muitas traduções da Bíblia a parte final do versículo diz que o pecado de Saul foi consultar uma necromante (“médium”), e não consultar um espectro ou espírito. No entanto, mesmo não havendo unanimidade, me parece que a melhor tradução em 1 Crônicas 10:13, 14 é “espírito” mesmo.*

* A palavra hebraica heb pode ser traduzida tanto por “espírito” quanto por “necromante” (ou “vaticinadora”). Mas na maioria das vezes se refere a espíritos. – Veja Womens’s Divination in Biblical Literature – Prophecy, Necromancy and other Arts of Knowledge (2015), Universidade de Yale, de Esther J. Hamori, pp. 106-110.

E, conforme visto antes, a Septuaginta grega traduz essa passagem assim:

“Então Saul morreu por causa de suas transgressões, as quais ele transgrediu contra Deus, contra a palavra do Senhor, porque ele não a manteve, porque Saul procurou o conselho de uma feiticeira, e Samuel, o profeta lhe respondeu”. – 1 Crônicas 10:13, LXX.

Visto que o próprio livro de Samuel diz que foi ele quem apareceu, a parte final da tradução acima está em perfeito acordo com a narrativa, e não deve ser desqualificada.

8. A profecia não foi novidade porque Saul já tinha ouvido o mesmo antes

Quando o profeta Samuel estava vivo na terra, ele informou a Saul que Deus o havia rejeitado como rei e iria transferir o reinado para outra pessoa, pois Saul não obedecera a ordem de Deus para destruir Amaleque completamente (1Samuel 15: 10-29). Ao retornar do mundo dos mortos, Samuel recapitulou o acontecido:

“Iahweh fez por outro como te havia dito por meu intermédio: tirou das tuas mãos a realeza e a entregou a Davi, porque não obedeceste a Iahweh e não executaste o ardor de sua ira contra Amalec. Foi por isso que Iahweh te tratou hoje assim. Como consequência, Iahweh entregará, juntamente contigo, o teu povo Israel nas mãos dos filisteus. Amanhã tu e os teus filhos estareis comigo; e o exército de Israel também: Iahweh o entregará nas mãos dos filisteus”. – 1 Samuel 28:17-19, Bíblia de Jerusalém.

Alguns demonizadores da narrativa dizem que as informações apresentadas para Saul não eram nenhuma novidade, mas apenas uma repetição do que o profeta Samuel havia dito antes de morrer. Entretanto, uma simples comparação entre 1 Samuel 28:17-19 e 15:10-29 demonstra que esse argumento é apenas parcialmente verdadeiro. De fato, Samuel recapitulou o que havia falado para Saul. No entanto, algumas coisas ditas em En-dor não tinham sido mencionadas por Samuel quando ele estava vivo, sendo elas:

1) Que Davi foi o rei escolhido para substituir Saul.*

* Esta informação também não era novidade, porém, no encontro anterior que Samuel tivera com Saul, ele apenas disse que a realeza seria transferida para outro, mas sem identificar o escolhido. Só depois é que Davi foi escolhido, quando Samuel ainda estava vivo.

2) Que Saul seria entregue aos filisteus e morreria.

3) Que os filhos de Saul morreriam também.

4) E que o exército de Israel sucumbiria às mãos dos filisteus.

Note qual foi a reação de Saul ao ouvir essas palavras:

“Imediatamente, Saul caiu estendido no chão, terrificado pelas palavras de Samuel, e também enfraquecido por não ter se alimentado todo o dia e toda a noite”. – 1 Samuel 28:20, BJ.

Foi bem diferente da maneira que ele se comportou no penúltimo encontro com o profeta. Depois que Samuel comunicou o fim precoce de sua dinastia, Saul disse apenas o seguinte:

“Eu pequei, contudo, eu te suplico, honra-me diante dos anciãos do meu povo e diante de Israel e volta comigo para que eu adore a Iahweh teu Deus”. – 1 Samuel 15:30, BJ.

Nesse encontro anterior com Samuel, o rei Saul ainda não sabia sobre o seu fim trágico. Ele só foi informado disso quando o profeta apareceu para a necromante.

Portanto, como é que alguns podem dizer que não houve nenhuma novidade naquilo que Saul ouviu em En-dor? A meu ver, a única coisa que justifica tal conclusão é o forte desejo de querer, por fim da força, que a Bíblia desqualifique o que ela própria está informando.

E sobre as profecias ouvidas por Saul, as quais também são objeto de crítica, comentarei mais adiante.

9. Não foi pelos meios autorizados

Que não foi pelos meios autorizados por Deus que Saul soube do seu fim, isto é mais do que óbvio. Ele não recebia mais informações por tais canais. Ele foi à busca da necromante devido a isso, e escutou o que não queria ouvir.

O que foi comentado no ponto 4 também se aplica aqui. Deus tem autoridade para usar os meios que quiser para expor suas verdades. O “autorizado” e o “não autorizado” se aplica somente aos que estão sujeitos à sua lei. Desde que ele próprio não decida para si alguma limitação, não se pode alegar determinados aspectos da lei mosaica como justificativa para desqualificar o relato inspirado.

Recordemos como se deu a morte do bom rei Josias, que reuniu um exército para lutar contra Neco, o idólatra faraó do Egito. Neco disse que estava com Deus e pediu a Josias que desistisse da batalha. Mas Josias não o escutou e foi mesmo assim. Acabou morrendo no combate. Sobre esse evento, note o que a Bíblia diz:

“Josias não virou sua face dele, mas disfarçou-se para lutar contra ele e não escutou as palavras de Neco provenientes da boca de Deus”. – 2 Crônicas 35:22.

Quem conhece as crenças dos antigos egípcios sabe muito bem quão idólatras e praticantes de artes mágicas eles eram. O próprio faraó era considerado um deus. Entretanto, a Bíblia informa que Deus fez um pedido a Josias através do faraó Neco. Por não escutá-lo pagou com a vida.

Portanto, Deus pode usar excepcionalmente pessoas “no meio de ídolos” para expor sua palavra, conforme Ele mesmo disse em Ezequiel 14:4-9.

A propósito, você sabe quais eram os meios autorizados mencionados pelos que desabonam o relato bíblico sobre a visita de Samuel a En-dor? Eram os sonhos, os profetas e uma peça sagrada chamada Urim, que era consultada em caso de necessidade. Num tópico mais à frente há um comentário sobre isso. – 1 Samuel 28:6.

10. Se fosse Samuel ele não teria se poluído em uma sessão espírita

Esta conclusão claramente é uma consequência da visão atual que geralmente se tem sobre o assunto. Novamente, é uma tentativa de impor ao texto bíblico uma conclusão de natureza religiosa que não está especificada na Bíblia, pelo menos não nesses termos.

A Bíblia não chama aquilo que houve de “sessão espírita”. E nem haveria como, pois tal expressão ainda não existia. Embora essa comparação seja naturalmente inevitável, fiando-se somente no relato bíblico e em obras de referência, chegar-se-á à conclusão que a necromancia era outra coisa. 

Além disso, cabem aqui os mesmos comentários dos pontos 4 e 9. Deus, por suas próprias razões, pode mudar algumas coisas, de maneira provisória ou permanente. Por exemplo, apenas para comparar, a mesma lei que proibia o vaticínio e a consulta aos mortos, restringia também alguns alimentos para os judeus, a exemplo de carne de porco. Note agora o que aconteceu certa vez com o apóstolo Pedro, que era judeu:

“Mas, enquanto preparavam a comida, [Pedro] entrou em êxtase. Viu o céu aberto e algo como um grande pano ser baixado pelas quatro pontas para a terra. Dentro do pano havia toda espécie de quadrúpedes e répteis da terra e de aves do céu. E uma voz lhe disse: ‘Levanta-te, Pedro, mata e come!’ Mas Pedro respondeu: ‘De modo algum, Senhor! Nunca comi coisa profana ou impura. A voz lhe falou pela segunda vez: ‘Não chames de impuro o que Deus tornou puro’. Isso se repetiu por três vezes. Depois, o objeto foi imediatamente recolhido ao céu.

“Enquanto Pedro tentava descobrir o significado da visão que acabava de ter, os homens enviados por Cornélio [um pagão], tendo-se informado sobre a casa de Simão, apresentaram-se à porta. Chamaram para perguntar se aí se hospedava Simão, conhecido como Pedro. Pedro estava ainda refletindo sobre a visão, mas o Espírito lhe disse: ‘Estão aqui três homens que te procuram. Levanta-te, desce e vai com eles, sem hesitar, pois fui eu que os mandei’. Pedro desceu ao encontro dos homens e disse: ‘Sou eu a quem estais procurando. Qual é o motivo que vos traz aqui?’ Eles responderam: ‘O centurião Cornélio, homem justo e temente a Deus, estimado por toda a população judaica, recebeu de um anjo santo a ordem de te convidar à sua casa, a fim de ouvir o que podes dizer-lhe’. Pedro então os fez entrar e lhes ofereceu hospedagem.

“. . . [Ao entrar na casa de Cornélio] encontrou muitas pessoas reunidas e disse-lhes: “Vós bem sabeis que a um judeu é proibido relacionar-se com um estrangeiro ou entrar em sua casa. Ora, Deus me mostrou que não se deve dizer que algum homem é profano ou impuro. Por isso, logo que me mandastes chamar, eu vim sem hesitar. Agora pergunto: por que motivo me mandastes chamar?”. – Atos 10:9-23, 27-29, CNBB, colchetes acrescentados.

11. Jeová é Deus dos vivos e não dos mortos

“Mas, que os mortos são levantados, até mesmo Moisés expôs, no relato sobre o espinheiro, quando ele chama Jeová ‘o Deus de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó’. Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem”. – Lucas 20:37, 38.

Temos aqui outro exemplo de aplicação forçada de um texto bíblico, segundo a qual Jeová jamais poderia apresentar alguma informação mediante um morto, porque ele é Deus somente de vivos. Quem pensa nesse texto dessa maneira parece se esquecer que os vivos a que os versículos se referem são os mortos do ponto de vista humano.

Os “mortos” a quem Jesus se referiu na verdade estão vivos na realidade espiritual de Deus. Então, se Ele desejar que algum deles se apresente para olhos humanos assim acontecerá. De fato, foi o que ocorreu também na transfiguração de Cristo. Por que não fazer a mesma aplicação do texto de Lucas 20:38 à transfiguração? Afinal, temos ali também dois “mortos” conversando com Jesus. Se tanto no relato da transfiguração quanto no de En-dor o narrador informa quem eram os personagens, por que aceitar um e rejeitar o outro? – Compare com Filipenses 2:10, 11.

12. A necromante apresentou três descrições conflitantes do que viu

Segundo o capítulo 28, a necromante teria dito que viu primeiramente Samuel (v. 12), depois deuses (v. 13) e em seguida um velho com uma capa (v. 14). Então, isso seria uma evidência da falta de coesão do que foi informado.

Há uma clara distorção na maneira que essas informações foram colocadas. Basta ler o relato para perceber. Será que os que dão esse tipo de explicação acham que o leitor não irá verificar diretamente na Bíblia o que foi dito?

Primeiro, a mulher não disse que viu Samuel. O que a Bíblia informa é que quando Samuel apareceu, ela soltou um grito terrível. Certamente porque se deparou com uma figura que não esperava ver.* Ao ser indagada sobre quem estava vendo, ela disse que era um “deus” subindo da terra. Ela não disse que estava vendo Samuel subindo da terra, até porque ela nem deve tê-lo conhecido quando estava na Terra. 

* Isto é outra evidência que aquilo ocorrido em En-dor não equivale ao que se poderia chamar de “sessão espírita”, pois atualmente os médiuns “incorporam” o espírito e este passa a comandar a fala e os movimentos do incorporado. Embora eu nunca tenha visto uma sessão mediúnica, até onde eu sei os médiuns kardecistas não enxergam ninguém diante deles, e nem ficam repetindo aquilo que ouvem para os interessados, o que parece ter acontecido em En-dor.

Afirmar que a mulher disse que estava vendo “deuses”, ao invés de “um deus”, só é uma leitura possível porque no hebraico realmente consta o plural Elohim. No entanto, quem conhece esse termo sabe que ele é traduzido para os outros idiomas no singular, quando é usado em referência a Deus. Ele normalmente só é vertido no plural quando claramente se aplica a mais de uma pessoa, como é o caso do Salmo 8:5, onde Elohim se refere aos anjos. Mas não é o caso do que aconteceu em En-dor, mesmo considerando que originalmente o verbo foi colocado no plural também.

Embora algumas traduções tenham “deuses” em 1 Samuel 28:13, esta não é a tradução mais acertada, se consideramos o contexto. Sem dúvida alguma a narrativa se refere apenas a um indivíduo: o profeta Samuel. A necromante não variou a quantidade do que estava vendo. Era sempre uma só pessoa, do início ao fim.

Quando ela se referiu a Samuel como sendo um deus, certamente foi porque ele se fez visível para ela de uma maneira que chamou muito sua atenção, talvez algo que lembrasse um pouco a maneira que Moisés e Elias apareceram para os apóstolos, durante a transfiguração de Cristo. Pela reação dela, aquela mulher nunca tinha visto nada igual. O judeu Flávio Josefo, do primeiro século, disse que quando Samuel “apareceu, e a mulher viu que era alguém muito venerável, e com divina forma, ela entrou em desordem”. Foi assim que os antigos entenderam o relato.

Depois que o rei pediu para ela não ter medo, ela se recompôs e deu maiores detalhes da visão. Disse que o ser a quem estava vendo era um homem idoso vestindo um manto. Com esse detalhamento foi Saul quem concluiu que era Samuel. E o diálogo que se seguiu, além dos eventos subsequentes, comprovou isso.

Portanto, não houve contradição alguma na sequência de eventos relatada. Basta que se leia o texto sem preconceitos em mente para visualizá-lo da maneira correta.

13. Samuel não poderia ter reclamado caso Deus o tivesse enviado

Sim, acredite. Isto também é alegado... Como sabemos, a primeira coisa que Samuel disse ao chegar foi perguntar o motivo de Saul tê-lo incomodado. Sendo um profeta consagrado de Deus, Samuel jamais reclamaria de uma missão, caso realmente tivesse sido enviado por Ele. Será que as pessoas que pensaram nisso não se lembraram das queixas de Jonas e de outros profetas? – Jonas 1:3; 4:1; Jeremias 12:1.

De qualquer maneira, Samuel fez uma simples pergunta: “Por que me inquietaste, fazendo-me subir?”. Por que ela denotaria má vontade do profeta? É muito melhor entender essas palavras de acordo com a ilustração que foi apresentada na obra de Keil e Delitzsch, citada na página 283.

14. Quem sobe vem do inferno e não do céu

Ou seja, se tivesse sido Samuel ele tinha descido e não subido.

Aqui é outra confusão que se faz devido à crença comum que se tem hoje em dia de que os justos estão no céu e os ímpios e demônios estão no “inferno de fogo”. Mas, como foi visto no ponto 5, o subir de Samuel é uma referência ao Seol bíblico, para onde vão as almas de quem morre. E se alguém sair temporariamente de lá, sem ser mediante a ressurreição, é pelo poder de Deus, Aquele que faz descer e subir do Seol. – 1 Samuel 2:6, 7.

Samuel e outros profetas até podem estar no céu atualmente, mas não existe nada na Bíblia que nos leve a crer que eles estavam lá no tempo de Saul. O lugar de onde qualquer um deles viria seria lá de baixo, do Seol.

15. As profecias não se cumpriram de maneira perfeita

Falas e profecias de Samuel:

“Samuel disse a Saul: ‘Por que perturbas o meu descanso evocando-me?’ Saul respondeu: ‘É que estou em grande angústia. Os filisteus guerreiam contra mim. Deus se afastou de mim, não me responde mais, nem pelos profetas, nem por sonhos. Respondeu Samuel: ‘Por que me consultas, se Iahweh se afastou de ti e se tornou teu adversário? Iahweh fez por outro como te havia dito por meu intermédio: tirou das tuas mãos a realeza e a entregou a Davi, porque não obedeceste a Iahweh e não executaste o ardor de sua ira contra Amalec. Foi por isso que Iahweh te tratou hoje assim. Como consequência, Iahweh entregará, juntamente contigo, o teu povo Israel nas mãos dos filisteus. Amanhã tu e os teus filhos estareis comigo; e o exército de Israel também: Iahweh o entregará nas mãos dos filisteus”. – 1 Samuel 28:17-19, Bíblia de Jerusalém.”. – 1 Samuel 28:15-19, BJ.

Cumprimento das profecias:

“Os filisteus estavam lutando contra Israel e os homens de Israel puseram-se em fuga diante dos filisteus, e caíam mortos no monte Gilboa. E os filisteus seguiam de perto a Saul e a seus filhos; e os filisteus, por fim, golpearam a Jonatã, e a Abinadabe, e a Malquisua, filhos de Saul. E a luta ficou muito intensa contra Saul, e os atiradores, os arqueiros, por fim o acharam, e ele foi seriamente ferido pelos atiradores . . . Saul tomou, pois, a espada e lançou-se sobre ela. Quando seu escudeiro viu que Saul tinha morrido, lançou-se também sobre a sua própria espada e morreu junto com ele. Assim vieram a morrer juntos naquele dia Saul e seus três filhos, e seu escudeiro, sim, todos os seus homens”. – 1 Samuel 31:1-7.

“Problemas” encontrados pelos críticos do relato:

1 - Saul não foi entregue nas mãos dos filisteus, mas se matou.

Note no registro bíblico que Saul foi atingido seriamente pelos arqueiros do exército filisteu. Se ele não tivesse se matado provavelmente teria morrido pouco tempo depois. É tanto que uma referência a tal acontecimento que se encontra no segundo livro de Samuel informa que “os filisteus golpearam a Saul em Gilboa”. (2 Samuel 21:12). De qualquer maneira, para Saul era o fim da linha. Sua morte foi consequência direta da ação dos filisteus, que foram os vencedores ao derrotar completamente os homens de Israel. Então, não há nenhuma dúvida que aconteceu exatamente o que foi previsto pelo profeta.

Mas os que fincam o pé em dizer que não, devido ao suicídio de Saul, e atribuem o ‘ser entregue nas mãos dos filisteus’ uma referência obrigatória a que os filisteus deveriam ter não só golpeado a Saul, mas também se certificado de sua morte, poderiam refletir em um detalhe mencionado mais adiante. Os corpos de Saul, seus filhos e outros foram encontrados no dia seguinte pelos filisteus. De modo que as palavras de Samuel acabaram se cumprindo de uma maneira mais literal: todos eles foram parar nas mãos dos filisteus. – 1 Samuel 31:8.

2 - Saul tinha pelo menos 8 filhos. Mas morreram três filhos, e não todos.

E quando foi que Samuel disse que morreriam todos os filhos de Saul? Ele não disse isso. Ele falou “tu e os teus filhos”. Somente os filhos que estavam na batalha é que morreram. Foi nesse contexto da guerra que as palavras do profeta ressoaram. Naturalmente, os filhos de Saul que estiveram longe do calor da batalha e protegidos em algum lugar distante não viram a morte naquele momento.*

* A expressão “toda a sua casa”, ou “toda a sua família”, em 1 Crônicas 10:6, é entendida por alguns como se referindo aos filhos de Saul que ele teve com sua primeira esposa, os quais morreram todos na luta com os filisteus. – 1 Samuel 14:49; 31:12.

Mesmo que a palavra “todos” tivesse sido usada na profecia, poderia significar apenas que todos os filhos dele que estivessem em combate é que morreriam. Seria uma linguagem possível, à semelhança daquilo que Deus disse a Noé:

“Para mim chegou o fim de toda carne! Pois, por causa dos homens, a terra está repleta de violência e eu vou destruí-los junto com a terra”. – Gênesis 6:13, TEB.

Como sabemos, o Dilúvio não trouxe o fim de toda a carne, isto é, todos os seres humanos, pois Noé e sua família se salvaram. Mas todos os que estavam fora da arca morreram. Além do mais, a terra não foi destruída. Será então que poderíamos supor que essa profecia feita diretamente por Deus não teve um cumprimento perfeito? Que respondam os que querem desacreditar o relato inspirado de 1 Samuel 28:11-19. 

3 - Saul não morreu no dia seguinte.

De todas as alegações que são feitas contra a história de Samuel em En-dor esta é a única que oferece alguma dificuldade para ser esclarecida. Há duas possibilidades para entender o que realmente aconteceu.

A primeira está bem debaixo de nossos narizes, se a tradução utilizada ajudar. Retorne ao relato e observe que Saul desfiou uma série de queixas para Samuel: que os filisteus o hostilizavam, que Deus o havia abandonado e que não lhe respondia mais. Em seguida Samuel fez um retrospecto dos atos de infidelidade de Saul e disse que eles eram o motivo das dificuldades pelas quais passava. Mas observe a escolha de palavras no esclarecimento dado a Saul:

“Foi por isso que Iahweh te tratou hoje assim”. – 1 Samuel 28:18, BJ.

Certamente tudo o que Saul descreveu não acontecera naquele único dia. Eram problemas que se arrastavam já há algum tempo. Sendo assim, o “hoje” que aparece no versículo não se refere ao dia em que ele ouviu as palavras do profeta, mas significa “agora” ou “atualmente”. Semelhantemente, o “amanhã” que Samuel menciona logo no versículo seguinte pode significar “futuramente” ou “em breve”. Isto seria uma solução para os que preferem acreditar que a morte de Saul aconteceu somente alguns dias depois do que acontecimento de En-dor.

Há passagens na Bíblia que realmente utilizam a palavra “amanhã” com o significado de momento futuro, breve ou distante. É o caso do texto abaixo, que foi citado pelo apóstolo Paulo séculos depois e que também se tornou o lema dos epicureus:

“E o Soberano Senhor, Jeová dos exércitos, convocará naquele dia ao choro, e ao lamento, e à calvície, e ao cingimento de serapilheira. Mas, eis que há exultação e alegria, a matança de gado vacum e o abate de ovelhas, o consumo de carne e o beber de vinho: ‘Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos.’ ”. – Isaías 22:12, 13.

E a outra possibilidade tem a ver com a sequência narrativa dos acontecimentos. Existem evidências que os eventos dos livros de Samuel não foram postos sempre em ordem cronológica, mas aproximadamente por temas. Por exemplo, muito antes da parte onde aparece o caso de En-dor, os capítulos 13 e 14 apresentam o reinado inteiro de Saul, desde quando começou até o seu fim. De modo que os capítulos seguintes são detalhamentos do que foi mostrado antes apenas de maneira resumida.* Além disso, eventos que são contados em 1 Samuel são recontados em 2 Samuel de outra maneira. – 1 Samuel 31:4; 2 Samuel 1:6-10.

* Tal estilo de escrita não é incomum na Bíblia. Por exemplo, o capítulo 1 de Gênesis relata a criação do homem e o capítulo seguinte também. Só que no primeiro é de maneira resumida, e no segundo com mais detalhes.

Um reflexo dessas dificuldades é que não existe unanimidade entre os críticos do relato sobre quantos dias exatamente depois do encontro em En-dor Saul morreu. Uns dizem 3 dias, outros 5 dias, e há quem proponha até 18 dias. Os relatos paralelos e sobrepostos a respeito dos mesmos eventos, que estão espalhados em lugares diferentes do livro, dificultam um cálculo preciso. Várias Bíblias comentam em notas de rodapé essas lacunas presentes nesses livros atribuídos a Samuel.

Portanto, a constatação de que Saul não morreu no dia seguinte à profecia de Samuel pode estar errada. Os eventos narrados foram postos de tal maneira que inviabiliza uma certeza absoluta de tal conclusão.* É tanto que um escritor chamado Paulo Sérgio de Araújo, ao fazer um exame minucioso dos acontecimentos registrados, concluiu que a morte de Saul foi precisamente no dia seguinte após o aparecimento de Samuel em En-dor.

* O historiador Flávio Josefo parece seguir o entendimento de que realmente foi no dia seguinte que Saul morreu. – Antiguidades Judaicas 6:340.

O texto de Paulo Sérgio é interessante não só pelos muitos detalhes comentados por ele, mas também pelo fato dele pertencer a uma igreja Batista. No seu livro, ele segue um caminho contrário daquele adotado aparentemente pela maioria dos evangélicos. E por esta razão tem sido criticado pelos próprios irmãos de fé. Mas a verdade é que ele demonstra bastante coerência no que escreveu. Ao invés de ficar esbravejando palavras condenatórias, tais como aquelas vistas no início deste tópico, analisou o assunto de maneira simples e objetiva. Veja a seguir a explicação dele sobre o dia da morte de Saul.

 

EVIDÊNCIAS DE QUE SAUL MORREU NO DIA SEGUINTE À PROFECIA

Livro “Quem falou com o rei Saul em En-Dor” (2009), de Paulo Sérgio de Araújo, pp. 60-65.

INÍCIO DA TRANSCRIÇÃO:

Um argumento muitíssimo apresentado para tentar negar que Samuel apareceu diz que aquele ser espiritual teria errado ao profetizar que Saul morreria no dia seguinte: “amanhã, tu e teus filhos estareis comigo” (28.19). E por quê? Porque Saul teria morrido diversos dias após essas palavras. Algumas pessoas, analisando 1Samuel 28—31, realizam cálculos e afirmam que Saul morreu três dias após essa profecia; outros cálculos, porém, chegam a elevar esse número de dias para até dezoito.30 E se aquele ser espiritual errou, então ele não poderia ser Samuel.

30 LOPES, Hernandes Dias. É possível comunicar-se com os mortos?, Ed. Betânia, 1ª edição, 2003, pgs. 51, 52; Bíblia Shedd. Ed. Edições Vida Nova, 1ª edição, 1998, pgs. 431-37.

Porém, esse argumento é forçado e seletivo demais, pois os incidentes registrados nos capítulos 28—31 de 1Samuel não aconteceram, necessariamente, na seqüência em que estão dispostos. Alguns deles encontram-se sobrepostos, ou seja, aconteceram simultaneamente, enquanto outros, em dias diferentes. O escritor bíblico não quis ser cronologicamente rigoroso ao registrar os eventos desses quatro capítulos. Essa é uma prática bastante comum nas narrativas bíblicas.

A fim de entender perfeitamente os preparativos para a batalha, e a batalha em si, deve ser notado que a narrativa bíblica não se encontra em ordem cronológica exata, mas passa de evento para evento, a fim de manter um registro das atividades de Saul e Davi... A ordem apropriada dos eventos é: os filisteus se reuniram em Afeque na planície de Sarom, como era seu costume quando faziam suas campanhas para o norte (1Sm 29.1); dali os filisteus avançaram para Suném aos pés da colina de Moré [1Sm 28.4a], enquanto Saul dispunha o seu exército em posição oposta à deles no monte Gilboa [1Sm 28.4b], favorecendo a região montanhosa como mais conveniente para seus guerreiros que portavam armas leves. Ele acampou numa fonte perto de Jezreel [1Sm 29.1b]; foi dali que Saul procurou a médium de En-Dor na escuridão da noite [1Sm 28.7-25]. No dia seguinte ele teve a morte de um herói no monte Gilboa [1Sm 31.1-7], junto com três dos seus filhos. 31 (as referências bíblicas entre colchetes foram acrescentadas)

Antes de analisar minuciosamente as informações dos capítulos 28—31 de 1Samuel, primeiro seria interessante descrever os acontecimentos registrados nesses capítulos, do jeito que eles se encontram, sem nos preocupar com qualquer ordem cronológica. Assim, acompanhem o panorama geral. No capítulo 28, vemos que, assim que os exércitos dos filisteus e de Israel estavam bem próximos, Saul visitou, à noite, a pitonisa de En-Dor, ouvindo aquela terrível mensagem de Samuel. Após relatar isso, o escritor deixa Saul de lado para, nos dois próximos capítulos, concentrar seu foco narrativo em Davi. No capítulo 29 ele registra o diálogo entre Davi e o rei filisteu Aquis, em que ficou decidido que Davi não poderia participar daquela batalha ao lado dos filisteus. Por isso, ele deveria sair do meio dos filisteus na madrugada do dia seguinte. No capítulo 30 o narrador fala como Davi, três dias após ter saído do meio dos filisteus, chegou à cidade filistéia de Ziclague, encontrando-a destruída e saqueada pelos amalequitas. Em resposta, Davi organizou um contra-ataque e recuperou tudo aquilo que havia sido roubado, repartindo entre o povo os despojos de guerra. E, no capítulo 31, o escritor “finaliza” seu livro voltando a falar de Saul, mostrando como que esse rei veio a morrer na batalha contra os filisteus.

Agora, examinemos detalhadamente as informações de 1Samuel 28—31. Para tanto, propomos abaixo uma seqüência cronológica dos acontecimentos relatados nesses capítulos, de tal modo que todos os dados bíblicos sejam harmonizados coerentemente. Naturalmente, essa seqüência cronológica servirá para determinar se Saul morreu ou não no dia seguinte à previsão feita por aquele ser espiritual.

31 AHARONI, Yohanan, et al. Atlas Bíblico, Ed. CPAD, 1ª edição, 1999, pg. 75.

Seqüência cronológica dos acontecimentos narrados em 1Samuel 28—31 32

Segunda: 1Sm 28.1, 2;

29.1, 2

Terça: 1Sm 28.4-25; 29.3-10

Quarta: 1Sm 29.11;

31.1-7 (1Cr 10.1-7)

Sexta: 1Sm 30

 Os filisteus, juntamente com Davi, reuniram suas tropas em “Afeque” (1Sm 28.1, 2; 29.1a), enquanto os israelitas acamparam-se “junto à fonte que está em Jezreel” (29.1b). Foi de Afeque que os filisteus iniciaram sua marcha rumo a “Jezreel”: “os príncipes dos filisteus se foram para lá [para Jezreel]...” (29.2).

 Vindo de Afeque, os filisteus e Davi chegaram a “Suném” (1Sm 28.4a), acampando-se bem próximos dos israelitas. Estes estavam no monte “Gilboa” (v. 4b), mais especificamente “junto à fonte que está em Jezreel” (cf. 29.1b). A distância entre os acampamentos desses dois exércitos inimigos era tão pequena, que um contato visual mútuo já era possível (“Vendo Saul o acampamento dos filisteus...”, 28.5).

 Assim que Davi saiu do meio dos filisteus, de madrugada, (1Sm 29.11a), estes imediatamente “subiram a Jezreel” (29.11b); ou seja, foram para o mesmo lugar onde os israelitas estavam (cf. 29.1b), dando início à batalha na qual Saul morreu (31.1-7).

 Três dias após ter saído do meio dos filisteus (1Sm 30.1a), Davi chegou a Ziclague, encontrando essa cidade arrasada e saqueada pelos amalequitas (vs. 1b-6). Em seguida, vemos a ofensiva liderada por Davi, na qual ele derrotou os amalequitas e tomou de volta tudo que fora roubado (vs. 7-31).

 

 Em Suném, ocorreu o diálogo entre os príncipes filisteus e o rei Aquis (1Sm 29.3-5), e entre Aquis e Davi (vs. 6-10), em que ficou decidido que este não poderia participar da batalha. Aquis orienta Davi a passar a noite em Suném e, na madrugada do dia seguinte (“amanhã de madrugada”, v. 10), ele deveria partir.

 

 

 

 Assim que viu os filisteus acampados em Suném (1Sm 28.5), Saul ficou com muito medo e consultou ao SENHOR em busca de ajuda, porém não obteve resposta alguma (v. 6). Por conta disso, ele resolveu visitar, naquele mesmo dia, à noite, a pitonisa de En-Dor (vs. 7-25). Lá, Samuel disse a Saul que ele (Saul) morreria no dia seguinte (“amanhã, tu e teus filhos estareis comigo”, v. 19), ou seja, na quarta-feira. Após ouvir essa mensagem, Saul retornou ao acampamento israelita “naquela mesma noite” (v. 25).

 

 

32 A seqüência de dias da semana utilizada nessa tabela tem um caráter puramente didático, a fim de que a ordem cronológica proposta possa ser melhor compreendida pelos leitores. Dessa maneira, é evidente que a visita de Saul à pitonisa de En-Dor, por exemplo, pode não ter ocorrido, na realidade, numa terça-feira, como mostra a tabela, mas talvez numa quarta, quinta, etc.

Com esse quadro cronológico sempre em mente, deixamos a seguir três considerações. Em primeiro lugar, é completamente arbitrário e biblicamente insustentável defender que a batalha entre filisteus e israelitas, na qual Saul morreu, começou vários dias após a visita que ele fez à pitonisa de En-Dor. Incorrem em erro aqueles que alegam, com base em 1Samuel 30.1, que essa batalha só tenha começado no dia em que Davi chegou a Ziclague, ou seja, três dias após a saída dele do meio dos filisteus. Eis o que este versículo diz: “Sucedeu, pois, que, chegando Davi e seus homens, ao terceiro dia, a Ziclague...” Esse texto diz, claramente, que Davi demorou três dias para chegar a Ziclague, e não que a batalha entre filisteus e israelitas só tenha começado após esses três dias. É isso o que a expressão “ao terceiro dia” diz objetivamente, de modo que qualquer conclusão diferente dessa pode ser considerada uma conclusão puramente subjetiva e extrabíblica, destituída de qualquer fundamentação textual. Portanto, de forma alguma a expressão “ao terceiro dia” pode ser usada nalgum cálculo para determinar quando começou a batalha na qual Saul morreu.

Em segundo lugar, 1Samuel 29.11 deixa subentendido que, no mesmo dia em  que Davi saiu do meio dos filisteus, estes foram para o mesmo lugar onde estavam os israelitas: “Então, Davi de madrugada se levantou, ele e os seus homens, para partirem [de Suném] e voltarem à terra dos filisteus [a Ziclague]. Os filisteus, porém, subiram a Jezreel”. E onde estavam os israelitas? Em “Jezreel” (29.1b). Ou seja, no mesmo dia em que Davi partiu, os filisteus foram para Jezreel e começaram a batalha na qual Saul pereceu. Cronologicamente falando, portanto, o início dessa batalha, registrado em 1Samuel 31.1-7, está diretamente ligado ao dia da saída de Davi do meio dos filisteus, relatado em 1Samuel 29.11. Esses dois trechos falam de dois eventos que ocorreram no mesmo dia. Temos aí uma prova de que o escritor bíblico não foi cronologicamente exato em seu relato. Uma seqüência cronológica correta joga os acontecimentos relatados em 1Samuel 30 para depois dos acontecimentos registrados em 1Samuel 31.1-7.

Em terceiro lugar, reparem num detalhe que normalmente passa despercebido: na madrugada em que Davi saiu do meio dos filisteus (1Sm 29.11a), ele estava em “Suném” (28.4a), e não em “Afeque” (29.1a). E nem poderia ser diferente, visto que Suném ficava ao lado de Jezreel/Gilboa, o palco onde ocorreu a luta.33 Ou seja, Davi chegou a Suném e pernoitou nessa cidade, deixando-a só na madrugada do dia seguinte, horas antes de os filisteus irem para Jezreel/Gilboa e deflagrarem o combate no qual Saul pereceu.

33 Qualquer mapa bíblico deixa bem claro que a cidade de “Afeque” (1Sm 29.1a), onde os filisteus juntaram suas tropas e iniciaram sua marcha para irem de encontro aos israelitas, ficava muito mais longe do monte Gilboa do que “Suném” (1Sm 28.4a). Isso explica por que Saul, que reunira suas tropas no monte Gilboa, só conseguiu ver os filisteus quando estes chegaram e acamparam-se em “Suném” (1Sm 28.4, 5). Suném ficava ao lado desse monte, ao passo que Afeque, a muitos quilômetros de distância. Esse detalhe é muito relevante, pois demonstra que o narrador bíblico não quis ser cronologicamente exato em seu relato. Uma simples análise do sentido da marcha dos filisteus rumo ao monte Gilboa já comprova isso: Afeque (1Sm 29.1a, 2) → Suném (1Sm 28.4a) → Jezreel/Monte Gilboa (1Sm 29.11b). A seqüência dessa marcha deixa claro que o texto de 1Samuel 29.1a, 2 vem antes de 1Samuel 28.4a, demonstrando que o escritor não organizou sua narrativa em uma seqüência cronológica exata.

Para sintetizar tudo aquilo que foi dito nessas três considerações, acompanhem as perguntas e respostas abaixo, que seguem a seqüência de dias da semana empregada no quadro cronológico apresentado anteriormente.

1. Em que dia da semana os filisteus chegaram a Suném? Resposta: chegaram na terça-feira.

2. Davi estava em Suném, junto com os filisteus? Resposta: Sim (1Sm 29.11).

3. Onde os filisteus estavam acampados, quando Saul os viu (28.5)? Resposta: estavam acampados em “Suném” (28.4a).

4. Ao ver os filisteus em Suném, em que dia Saul decidiu visitar a pitonisa de En-Dor? Resposta: Saul visitou a pitonisa na noite do mesmo dia em que os filisteus chegaram a Suném (28.5-8), ou seja, visitou-a na terça-feira.

5. Após ouvir aquela profecia de Samuel, em que dia Saul retornou ao acampamento israelita, que ficava em Jezreel/Gilboa? Resposta: Saul retornou ao acampamento “naquela mesma noite” (28.25) de terça-feira.

6. Para não participar da batalha contra seus irmãos israelitas, em que dia Davi deixou a cidade de Suném, seguindo a recomendação do rei Aquis (29.10)? Resposta: Davi deixou Suném na madrugada da quarta-feira (29.11a).

7. Em que dia os filisteus “subiram a Jezreel” (29.11b), para iniciarem a batalha contra os israelitas (31.1-7)? Resposta: os filisteus foram para Jezreel na quarta-feira, ou seja, no mesmo dia em que Davi saiu do meio deles.

Ora, essa seqüência de perguntas e respostas leva-nos a duas constatações:

1. Os itens de 1 a 5 falam de eventos que ocorreram num mesmo dia: uma terça-feira. Ou seja, no mesmo dia em que Davi e os filisteus chegaram a Suném, Saul visitou a pitonisa de En-Dor.

2. Os itens 6 e 7 também falam de eventos que ocorreram num mesmo dia: uma quarta-feira. Ou seja, no mesmo dia em que Davi saiu do meio dos filisteus, estes deram início à batalha que resultou na morte de Saul.

Portanto, a profecia de Samuel, concernente à morte de Saul, cumpriu-se perfeitamente. Na terça-feira, à noite, Samuel disse que Saul morreria no dia seguinte: “amanhã [quarta-feira], tu e teus filhos estareis comigo” (1Sm 28.19). E as palavras do falecido profeta não caíram por terra: na quarta-feira, instantes após Davi ter saído do meio dos filisteus (29.11a), estes “subiram a Jezreel” (29.11b) e imediatamente iniciaram o combate no qual Saul morreu (31.1-7). O autor do livro de Eclesiástico tinha toda a razão ao declarar que “mesmo depois de sua morte, ele [Samuel] profetizou, predizendo ao rei [Saul] o seu fim” (Ecl 46.20)!

Somente um manuseio seletivo de 1Samuel 28—31, em que a ordem dos acontecimentos registrados nesses capítulos é convenientemente manipulada a fim de apoiar um ponto de vista particular, pode fazer alguém concluir que Saul morreu três, cinco, dez, quinze ou até dezoito dias após as predições de Samuel. A análise aqui apresentada contesta tal interpretação, comprovando que a batalha que resultou no falecimento de Saul ocorreu um dia após a visita que ele fez àquela pitonisa.

FIM DA TRANSCRIÇÃO (QUE FOI AUTORIZADA PELO AUTOR)

Link do trecho citado (que está nas páginas 29 a 34 do PDF).

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Sobre o autor:

“Paulo Sérgio de Araújo estudou Teologia na Faculdade de Teologia Metodista Livre, na cidade de São Paulo, e é membro da Igreja Batista do bairro do Jardim Rincão, nessa mesma cidade. Dentro da Teologia, sua área de especialização é a Imortalidade da Alma. Esse fascinante tema bíblico, pelo qual Paulo Araújo é apaixonado desde sua adolescência, é abordado em seus dois livros: ‘Qual o Destino do Homem? Compreendendo a vida após a morte’, publicado em 2007, e ‘Quem falou com o rei Saul em En-Dor: o falecido profeta Samuel ou um demônio? Compreendendo 1Samuel 28’, lançado em 2009. Além de escritor, revisor e pesquisador na área teológica, Araújo também é pregador, palestrante e sempre atuou na área de ensino cristão. Atualmente, é estudante do curso de Letras da Universidade de São Paulo (USP)”.

Biografia extraída do blog pessoal do autor.

 

É SÁBIO FICAR VASCULHANDO EM BUSCA DE EVIDÊNCIAS DESFAVORÁVEIS?

“Triste época! É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”. – Albert Einstein.

Depois de analisadas todas as “evidências” geralmente apresentadas pelos que não querem aceitar o que a Bíblia informa sobre Samuel em En-dor, acredito que ficou bastante claro que elas não passam de tentativas de encontrar a todo custo detalhes que desabonem o relato. Algumas são tão infundadas que nem havia necessidade de serem mencionadas.

Mas o que aconteceria se os mesmos critérios adotados pelos que criticam o aparecimento de Samuel fossem aplicados a outras passagens bíblicas acreditadas como autênticas? Note a seguir alguns exemplos.

1. Profecia sobre o destino de Babilônia

“E Babilônia, ornato dos reinos, beleza do orgulho dos caldeus, terá de tornar-se como quando Deus derrubou Sodoma e Gomorra. Nunca mais será habitada, nem residirá ela por geração após geração”. – Isaías 13:19, 20.

Quando, afinal, tal profecia se cumpriria? Pelo visto não foi nos tempos antigos, pois quando Babilônia caiu ante os persas ela não foi destruída. Quando chegou a época de Jesus ela ainda existia, conforme se nota numa carta do apóstolo Pedro:

“Aquela que está em Babilônia, escolhida igual a vós, manda-vos os seus cumprimentos, e assim também Marcos, meu filho”. – 1 Pedro 5:13.*

* Há comentaristas que sustentam que “Babilônia” aqui seria uma referência à cidade de Roma.

Foram necessários muitos e muitos séculos para que Babilônia virasse uma cidade desabitada. Neste caso, alguém poderia alegar que a profecia foi muito vaga, pois, afinal de contas, muitas cidades gloriosas sobre as quais não se falou nada tiveram o mesmo destino: viraram ruínas.* É um processo que ocorria naturalmente com o passar do tempo.

* No caso de Babilônia parece que ela nunca ficou completamente abandonada. Sempre houve pessoas por lá. Havia até um projeto do antigo regime iraquiano para reconstruí-la e virar atração turística.

Portanto, Babilônia não foi “riscada do mapa” da mesma maneira que Sodoma e Gomorra. Mas será que tais detalhes são suficientes para se concluir que a profecia falhou? Se houvesse algo semelhante na profecia de Samuel em En-dor, não tenho dúvida que todas essas particularidades seriam utilizadas contra ela.

2. Profecia sobre a cidade de Tiro

“Pois assim disse o Soberano Senhor Jeová: ‘Quando eu fizer de ti uma cidade devastada, igual às cidades que realmente não são habitadas, quando eu fizer subir sobre ti a água de profundeza e tiveres sido coberta por vastas águas, também vou fazer-te descer com os que descem ao poço, ao povo de há muito tempo, e vou fazer-te morar na terra mais baixa, igual aos lugares devastados por muito tempo, com os que descem ao poço, para que não sejas habitada; e vou pôr um ornato na terra dos viventes”. – Ezequiel 26:19, 20.

A cidade de Tiro não afundou no mar feito a mítica Atlântida.* Mas não é exatamente isso o que esse texto parece estar dizendo? Neste caso, teríamos aqui outro exemplo de uma profecia “imperfeita”? Se utilizássemos os mesmos critérios usados pelos críticos de 1 Samuel 28:8-19 seria possível chegar a tal conclusão.

* Sabe-se que Alexandre, o Grande, mandou que “seu exército ajuntasse os escombros da cidade continental e os lançasse no mar”. Mas tal evento não se refere à cidade inteira submergir e ser coberta pelas águas de profundeza. Pode ser apenas o cumprimento de outro pormenor dito na mesma profecia: “E elas [as nações] certamente arruinarão as muralhas de Tiro e derrubarão as suas torres”. (Ezequiel 26:4, colchetes acrescentados). Em seguida Alexandre destruiu a cidade, porém ela foi reconstruída depois. – Estudo Perspicaz das Escrituras, vol. 3, p. 720.

Portanto, a cidade de Tiro não desapareceu. Ela continua no mesmo lugar onde sempre esteve, no atual Líbano, conforme podemos ver na fotografia a seguir, que mostra inclusive as ruínas de suas antigas construções:

Então, essa profecia não deve ser compreendida literalmente, a menos que Deus estivesse se referindo à futura submersão pela qual passará muitas cidades litorâneas, devido à constante elevação do nível do mar ou em razão de algum tsunami de proporções gigantescas.

Quando se diz que a cidade desceria como quem desce ao poço, até a “terra mais baixa”, é uma referência da descida de seus habitantes ao Seol, lugar descrito como sendo tão profundo debaixo da Terra que se assemelha às profundezas oceânicas:

 “Tu vais me dar a vida novamente, me erguendo das águas profundas do mundo subterrâneo”. – Salmos 71:20, Bible in Basic English.

“[Deus disse:] Você já foi até as nascentes do mar, ou já passeou pelas obscuras profundezas do abismo? As portas da morte lhe foram mostradas? Você viu as portas das densas trevas?”. – Jó 38:16, 17, NVI, colchetes acrescentados.

Embora fisicamente falando a cidade antiga nunca tenha saído de onde estava, espiritualmente ela foi transferida para o reino dos mortos. Sentido semelhante está nas palavras a seguir de Jesus:

“Ai de ti, Corazim! Ai de ti, Betsaida! Porque se tivessem ocorrido em Tiro e Sídon as obras poderosas que ocorreram em vós, há muito se teriam arrependido em saco e cinzas. Conseqüentemente, eu vos digo: No Dia do Juízo será mais suportável para Tiro e Sídon do que para vós. E tu, Cafarnaum, serás por acaso enaltecida ao céu? Até o Hades descerás; porque, se as obras poderosas que ocorreram em ti tivessem ocorrido em Sodoma, ela teria permanecido até o dia de hoje. Conseqüentemente, eu vos digo: No Dia do Juízo será mais suportável para a terra de Sodoma do que para ti”. – Mateus 11:21-24.

Perceba que Jesus se referiu a uma cidade que não existia mais como se ela ainda existisse. Isto é assim porque ele não estava falando literalmente de cidades físicas que virariam ruínas, mas de seus habitantes que aguardariam julgamento no Hades.

3. Profecia sobre a destruição do templo em Jerusalém

“Ao sair do templo, um dos seus discípulos disse-lhe: ‘Instrutor, vê que sorte de pedras e que sorte de edifícios! No entanto, Jesus disse-lhe: ‘Observas estes grandes edifícios? De modo algum ficará aqui pedra sobre pedra sem ser derrubada’.”. – Lucas 13:1, 2.

Às vezes a expressão “não ficará pedra sobre pedra” é utilizada para se referir à segunda destruição de Jerusalém. Mas nós sabemos que ela não foi completamente destruída. Além disso, restaram algumas pedras sobre pedras daquela construção que motivou os comentários de Jesus e seus discípulos. É o que hoje chamam de “muro das lamentações”, a única coisa que sobrou do antigo templo judaico.

Sendo assim a profecia de Jesus não teria se cumprido perfeitamente?

4. Quando Jesus foi secretamente para a Judeia

“ ‘Pois, ninguém faz nada em secreto enquanto ele mesmo busca ser conhecido publicamente. Se fazes estas coisas, manifesta-te ao mundo.’ Seus irmãos, de fato, não estavam exercendo fé nele. Portanto, Jesus disse-lhes: ‘Meu tempo devido ainda não está presente, mas o vosso tempo devido já está aqui. O mundo não tem razão para vos odiar, mas odeia a mim, porque dou testemunho dele de que as suas obras são iníquas.  Subi para a festividade; eu ainda não vou a esta festividade, porque o meu tempo devido ainda não veio plenamente.’ Assim, depois de dizer-lhes estas coisas, permaneceu na Galiléia. Mas, quando os seus irmãos tinham subido para a festividade, então ele mesmo subiu também, não abertamente, mas em secreto”. – João 7:4-10.

Será que pelo relato acima poderíamos concluir que Jesus não foi honesto com seus irmãos e mentiu para eles?

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Naturalmente, os detalhes mencionados nos textos supracitados poderiam ser todos ignorados, ou então melhor explicados à luz de outras passagens bíblicas. O que é absolutamente aceitável, devido à grandeza das passagens mencionadas e seu caráter divino.

O objetivo aqui foi apenas demonstrar que “problemas” surgiriam em outras partes da Bíblia se adotássemos sobre elas a mesma visão inflexível dos que desacreditam o episódio de En-dor. Em qualquer um dos casos não é um procedimento sábio ficar buscando defeitos para desqualificar o que é dito claramente na Palavra de Deus.

 

SOBRE A PEÇA CHAMADA URIM E AS FORMAS AUTORIZADAS DE ESCLARECIMENTO

O Urim, o objeto que não estava mais dando respostas para Saul, talvez fosse uma peça onde havia em suas faces as palavras “sim” e “não”. Ao ser jogado indicava a resposta de Deus, depois de feita uma pergunta simples que precisasse apenas de um sim ou de um não. – Êxodo 28:30; Levítico 8:8; 1 Samuel 28:6.

Há quem pense também que o Urim pode ter sido um artefato que se movia de maneira sobrenatural*, pois a Bíblia informa que Saul não estava mais obtendo respostas dele. Se fosse apenas um tipo de dado, sempre haveria uma resposta, dentre as duas possíveis. Ou seja, seria apenas uma tentativa de adivinhar o que Deus pensava sobre o que foi perguntado. E o Antigo Testamento dizia: “Não pratiqueis a adivinhação”. – Levítico 19:31, TEB.

* Se o Urim fosse mesmo alguma coisa que dependesse de uma força inexplicável somente o dono desse poder decidiria se dava a resposta, que não seria, portanto, resultado apenas de uma probabilidade.

Mas seja lá o que tenha sido o Urim, talvez na visão da maioria dos cristãos de hoje tais formas de esclarecimento (sonhos, profetas e objetos especiais) lembram mais o espiritismo que o cristianismo. Até mesmo a linguagem que já foi usada pelo antigo povo de Deus é vista com reservas por alguns cristãos de nosso tempo. Note dois exemplos no próprio livro de Samuel:

“Em Israel, era assim que o homem falava ao ir buscar a Deus: ‘Vinde e vamos ao vidente’. Pois o profeta de hoje costumava ser chamado outrora de vidente.” – 1 Samuel 9:9.

“Davi fugiu e pôs-se a salvo. Foi ter com Samuel, em Ramá, e contou-lhe tudo o que Saul lhe fizera. E foram ambos residir em Naiot. Saul foi informado de que Davi estava em Naiot de Ramá. Então Saul mandou emissários com a ordem de prender Davi. Mas, ao ver a comunidade dos profetas em transe, com Samuel à frente, foram tomados pelo espírito de Deus e começaram também a cair em transe. Quando isto foi relatado a Saul, mandou outros emissários, e também esses caíram em transe. Novamente, enviou um terceiro grupo, os quais também caíram em transe. Foi então pessoalmente a Ramá. Chegou à grande cisterna que está em Soco e perguntou: ‘Onde se encontram Samuel e Davi?’ Disseram-lhe: ‘Estão em Naiot de Ramá’. Foi então para Naiot em Ramá. Sobreveio-lhe o espírito de Deus, e ele começou a caminhar em estado de transe até chegar a Naiot em Ramá. Despiu também suas vestes, estando em transe com os outros, na presença de Samuel; ficou caído por terra, nu, durante todo o dia e toda a noite – de onde o ditado: ‘Também Saul está entre os profetas?’. ”. – 1 Samuel 19:18-24, CNBB.

Qual seria o seu pensamento caso presenciasse cenas como essas relatadas no segundo texto acima?

 

O QUE DISSERAM NA IGREJA PRIMITIVA E A OPINIÃO DE HOJE

Apenas para dar uma ideia de como o assunto foi encarado pelos antigos cristãos, listo a seguir alguns exemplos, em ordem cronológica:

1. Justino (100-165 d.C.):

Era a favor do relato. Acreditava que realmente foi Samuel que apareceu para a necromante.

2. Tertuliano (120-220 d.C.):

Era contra, e achava que foi um espírito maligno que se fez passar por Samuel.

3. Orígenes (???-254 d.C.):

Era a favor, tendo a mesma opinião de Justino.

4. Basílio (330-379 d.C.):

Era contra e seguiu Tertuliano em sua opinião.

5. Gregório de Nissa (335-394 d.C.):

Também era contra, da mesma maneira que Basílio.

6. Ambrósio (340-397 d.C.):

Era a favor. Acreditava na veracidade da narrativa.

7. Jerônimo (347-420 d.C.):

Era contra, porém, não atribuía a demônios. Achava que foi uma encenação da necromante.

8. Agostinho (354-430 d.C.):

No início foi contra e tinha a mesma opinião de Jerônimo, mas depois mudou de ideia e passou a acreditar que Samuel realmente veio do Hades emitir seu último parecer contra Saul.

9. Teodoreto (393-457 d.C.):

Era contra, mas achava que foi uma encenação. Porém acreditava que a profecia relatada pela necromante veio de Deus.*

* Este ponto de vista também faz lembrar aquele episódio bíblico sobre a morte do rei Josias, citado num tópico anterior, quando Josias foi advertido por Deus pela boca de um idólatra.

Sobre a mudança de opinião de Agostinho, a Enciclopédia católica diz:

“A última interpretação da realidade da aparição de Samuel é favorecida tanto pelos detalhes da narrativa como por outro texto bíblico, os quais convenceram St. Agostinho: ‘Depois disso, [Samuel] adormeceu e apareceu ao rei, e lhe mostrou seu fim (próximo); levantou a sua voz do seio da terra para profetizar a destruição da impiedade do povo’(Ecclos. xlvi, 23)”.

E sobre a prática da necromancia acrescenta:

“A Igreja não nega que, com uma permissão especial de Deus, as almas dos falecidos possam aparecer para os vivos, e até manifestar coisas desconhecidas para estes últimos. Mas, entendida como a arte ou ciência de evocar os mortos, a necromancia é considerada pelos teólogos como algo proveniente da ação de espíritos malignos, pois os meios utilizados são inadequados para produzir os resultados esperados. Supostas evocações de mortos podem advir de muitas coisas naturalmente explicáveis ou ainda fraude; o quanto é real e o quanto deve ser atribuído à imaginação e ao engano não pode ser determinado, mas os fatos reais da necromancia, com o uso de encantamentos e ritos mágicos, são encarados pelos teólogos, depois de St. Tomás, II-II, xcv Q., aa. III, IV, como modos especiais de adivinhação, devido à intervenção demoníaca, e a adivinhação é em si uma forma de superstição”.

A explicação acima é bastante equilibrada e se ajusta melhor ao contexto global das Escrituras Sagradas, pois acomoda os conceitos em seus devidos lugares e não os mistura entre si, evitando as confusões de entendimento tão comuns à maneira aniquilacionista de pensar e, neste caso, a de alguns outros cristãos que insistem em “demonizar” o acontecimento registrado em 1 Samuel. Além disso, é bastante coerente com o contexto histórico dos antigos hebreus até à época dos primeiros cristãos, pois eles aceitavam a versão bíblica da narrativa de En-dor com muita naturalidade, conforme demonstram o livro de Eclesiástico e a Septuaginta grega, a “Bíblia oficial” dos antigos cristãos do mundo greco-romano.

 

SOBRE UMA CITAÇÃO TRUNCADA FEITA PELA TORRE DE VIGIA

Os escritores das “Testemunhas de Jeová” também citam uma parte do comentário de Keil e Delitzsch na enciclopédia bíblica “Estudo Perspicaz das Escrituras” (vol. 2, p. 29, sob o verbete “Espiritismo”), mencionando especificamente as opiniões de Lutero e Calvino sobre o relato de En-dor. Mas note como isto é feito, lendo os trechos conforme estão no “Estudo Perspicaz” e na obra que é citada, respectivamente:

OPINIÃO DE LUTERO

“Pois, quem acreditaria que as almas dos crentes, que estão na mão de Deus, . . . estavam sob o poder do diabo, e de simples homens?”. – Trecho citado no “Perspicaz”.

“Pois, quem acreditaria que as almas dos crentes, que estão na mão de Deus, Eclesiástico 3:1, e no seio de Abraão, Lucas 16:32, estavam sob o poder do diabo, e de simples homens?”. – Trecho na íntegra.

Como se vê, os autores esconderam naqueles três pontinhos a menção de um livro que consideram “apócrifo” (opinião que Lutero não tinha) e a referência ao Seio de Abraão, onde as almas dos justos estão, conforme acreditava Lutero e seus associados.

OPINIÃO DE CALVINO

“Também Calvino considera a aparição apenas como um espectro . . . : ‘Diz-se que as almas dos santos estão repousando . . . em Deus, aguardando a sua feliz ressurreição’.”. – Trecho citado no “Perspicaz”.

“Calvino também considera a aparição apenas como um espectro. . . : ‘É dito que as almas dos santos estão repousando e vivem em Deus, aguardando a sua feliz ressurreição’.”. – Trecho na íntegra.

Nota-se que a opinião de Calvino também foi mutilada para não contradizer o entendimento materialista das Testemunhas de Jeová de que a morte do corpo significa a morte da alma. Em outras palavras, a própria extinção da pessoa.

No início da citação que fazem de Keil e Delitzsch, os escritores do “Perspicaz” dizem o seguinte: “O Commentary apoia o conceito subentendido por estas palavras não inspiradas na Septuaginta [segundo as quais o profeta Samuel realmente apareceu para Saul], mas acrescenta: ...”. Daí passam a citar os trechos desfavoráveis que interessam a eles, que mencionam cristãos ao longo da história contrários ao que a Bíblia informa sobre o aparecimento do falecido Samuel.* Mas nada é dito sobre os cortes que fizeram nas palavras de Lutero e Calvino. – Colchetes acrescentados.

Assim são os aniquilacionistas. Ficam buscando referências em fontes “imortalistas”, adaptando-as ao objetivo desejado, além de empreenderem pesquisas deficientes que podem ser facilmente expostas como falhas por quem entende do assunto.

Qual é o nome que poderíamos dar para tais práticas recorrentes? Deixo a resposta para você, leitor.

* Ao mencionar “palavras não inspiradas na Septuaginta” o escritor da Torre de Vigia tenta desacreditar o que está em tal versão bíblica, ou seja, de que Samuel realmente apareceu para Saul. Mas fazer isso é algo totalmente irrelevante, pois o próprio texto de 1 Samuel 28:15-22, que é unanimemente acreditado como inspirado, afirma claramente que era Samuel. Por isso, os tradutores da Septuaginta não viram nenhum problema em informar tal fato (e pode ser até que o manuscrito hebraico utilizado por eles contivesse realmente o que está na Versão dos Setenta). No entanto, os autores da Bíblia oficial das Testemunhas de Jeová acrescentam aspas no nome do profeta para induzir o leitor a achar que não era realmente ele. Isto demonstra que se o texto massorético tivesse o nome “Samuel” em 1 Crônicas 10:13 os “eruditos” das Testemunhas de Jeová o deixariam também entre aspas e sem nenhuma dor na consciência. É assim o modus operandis de vários aniquilacionistas, conforme visto no capítulo 9 [do meu livro, cujo conteúdo está agora neste artigo].

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Fortaleza, 26 de fevereiro de 2020

Autor: Adelmo Medeiros

 

CRÉDITOS DAS IMAGENS

1. Aparecimento de Samuel para Saul

- Saul e a Bruxa de Endor (1820), de Washington Allston.

Crosswalk.com (link)

2. Ruínas da cidade de Tiro, Líbano

Panoramio.com (link)

 

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