SOBRE A "TÉCNICA" DE DISTORCER AUTORES PATRÍSTICOS
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- Salvo outra indicação, a versão da Bíblia utilizada é a Tradução do Novo Mundo de 1986.

- Os negritos e colchetes das citações feitas foram acrescentados.

Introdução

1. Os Pais da Igreja contra a imortalidade da alma?

2. A carta de Matetes a Diogneto

a) A data da carta

b) A identificação do autor e a tentativa de desqualificá-lo

c) Realidades bíblicas e não filosofia grega

d) A qualidade do texto de Matetes

3. A quintessência da “arte” de distorcer o que pensavam os cristãos antigos

Conclusão

APÊNDICES

A. A possível maior antiguidade da carta de Matetes

B. A sinonímia no uso das palavras “alma” e “espírito”

C. O aparente silêncio da Bíblia sobre a natureza espiritual do homem

D. Sobre o tormento eterno dos injustos na Geena

Bibliografia recomendada

 

Fortaleza, 17 de abril de 2020

Email do autor para contato: fadelmo@gmail.com

 

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Introdução

Uma conhecida revista religiosa noticiou o seguinte:

“ ‘Então, somos todos hereges?’ perguntou uma carta recente publicada no jornal Daily Telegraph de Londres. O escritor havia trazido à atenção um ‘enigma teológico’ criado pelas palavras dum antigo clérigo cristão, Justino, o Mártir: ‘Se vos tiverdes associado com alguns que se chamam cristãos . . . que dizem que suas almas, quando morrem, são levadas para o céu, NÃO IMAGINEIS QUE ELES SEJAM CRISTÃOS’.”. – A Sentinela, 15/01/82, p. 10.

Citando um teólogo chamado John Dunnett, do Newbold College, a revista prossegue:

“De modo que não apenas Justino, o Mártir, e Irineu, mas também Inácio Policarpo, Lactancio e outros dos primitivos Padres não podiam sustentar que as almas cristãs fossem levadas para o céu por ocasião da morte”.

Perceba que Dunnett não está afirmando que a alma desaparece por ocasião da morte ou fica “dormindo”. Expressa apenas a opinião de que antigos cristãos não acreditavam que ela vai imediatamente para o céu quando a pessoa morre. O que significa, nas entrelinhas, que esse teólogo afirmou que existe uma alma que sobrevive à morte do corpo. Provavelmente a opinião dele era a mesma expressa por muitos cristãos, ou seja, de que a alma do ser humano desce para o Hades (ou Seol) depois da morte, sendo tal lugar o mundo invisível dos mortos, que fica nas profundezas da Terra de acordo com a concepção judaico-cristã. Não é o mesmo que sepultura. Só existe um Hades, ao passo que existem muitas sepulturas.

Em seguida, o escritor da Sentinela pergunta:

“Então, como foi que este ensino não-bíblico se introduziu na Igreja?”

Novamente, a matéria se apropria das palavras do teólogo mencionado e responde:

“Foi sob a influência da filosofia platônica . . . que o conceito da imortalidade da alma veio na maior parte permear a Igreja Cristã e tornar aceitável a ideia de que as almas vão para o céu por ocasião da morte; mas esta continua a ser uma crença não bíblica”. – John Dunnett.

Por fim, a revista conclui:

“Portanto, pode-se dizer que a maioria dos chamados cristãos, hoje, são ‘hereges’.”.

Além do velho recurso de chamar a atenção à filosofia platônica, que supostamente teria influenciado a crença dos primeiros cristãos sobre a alma, a revista também citou aquela comparação que a Bíblia faz da morte com o sono.

Visto que a citação está truncada e sem as referências que permitiriam uma eventual consulta, não há como saber ao certo o contexto das palavras de John Dunnett. Mas visto que as “Testemunhas de Jeová” são muito boas em citar os outros fora de contexto*, é bem possível que Dunnett não concordaria com a maneira que foi citado.

* Por exemplo, veja o que disseram alguns eruditos que foram citados pela Sentinela em determinado artigo, consultando o apêndice D do folheto “Breve Análise da Série Quando a Jerusalém Antiga Foi Destruída?”, publicado no meu website.

De qualquer modo, o ponto mais importante é que Justino, o Mártir, foi citado de uma maneira que parece corroborar a opinião aniquilacionista. O mesmo Justino que mencionou em outra ocasião que o caso de Saul e a necromante atesta que a alma de quem morre permanece viva depois da morte do corpo, conforme será visto mais adiante.

“Técnica” semelhante é utilizada pelo autor adventista John Roller, como será depois considerado. Ou seja, lançar mão de uma declaração expressa por um cristão primitivo e misturá-la com outra ideia que não faz parte daquilo que motivou o comentário dele. No caso em apreço, (1) que a pessoa não vai diretamente para o céu quando morre, e (2) que a alma do falecido fica “dormindo” por tempo indeterminado. Mas este segundo ponto não foi mencionado por Justino, nem tampouco que a alma deixa de existir depois da morte. Como será posteriormente visto, nem de longe Justino acreditava na inexistência ou inconsciência de quem morreu.

É claro que sempre existe a possibilidade dessa misturada toda acontecer devido a uma pesquisa deficiente e incompleta. Se este foi o caso de quem escreveu a referida matéria da “Sentinela”* a desonestidade dá lugar ao descuido, o que também compromete a seriedade do que foi publicado. O mesmo se aplica aos adventistas que costumam cometer o mesmo tipo de erro. Em uma tabela comparativa no final de sua tese, John Roller chega a classificar Justino como sendo aniquilacionista! Também já fizeram isso com um personagem mais recente, o reformador Martinho Lutero.

* Não foi a única vez que as “Testemunhas de Jeová” citaram Justino em apoio ao que elas consideram “cristianismo verdadeiro”. Seus editores publicaram em outro artigo o seguinte: “O próprio Justino tinha certo conhecimento de uma ressurreição a ocorrer no Milênio. E quão fortalecedora da fé é a verdadeira esperança bíblica da ressurreição!.... Portanto, Justino procurou a verdade e rejeitou a filosofia grega”... – A Sentinela, 15/03/92, pp. 30, 31.

Para demonstrar com solidez o que há na literatura patrística, da qual Justino é um representante, se faz necessário um estudo abrangente que não tenha por objetivo somente buscar evidências que visem apoiar opiniões particulares. Se os aniquilacionistas já fazem isto com o livro que dizem ser seu “único” parâmetro de fé, a Bíblia, imagine o que podem fazer com os escritos com os quais eles não têm a menor intimidade! Caso você não esteja familiarizado com a literatura patrística, sugere-se a leitura do resumo indicado no link a seguir, disponível em www.adelmomedeiros.com:

O que ensinaram os escritores cristãos do segundo século?

Portanto, ao contrário do que a revista A Sentinela induz seu leitor a pensar, Justino acreditava sim na imortalidade da alma, da mesma maneira que todos os antigos cristãos, ela indo ou não imediatamente para o céu. O que significava tão somente acreditar que a alma permanece viva no Hades depois da morte do corpo. Não era crer no conceito grego, pois este envolve várias outras coisas, como será visto depois. – Mateus 10:28; Salmos 16:10, 71:20.

 

1. Os Pais da Igreja contra a imortalidade da alma?

Um então estudante de teologia chamado Lucas Banzoli publicou um livro intitulado “A Lenda da Imortalidade da Alma”, onde escreve a favor do aniquilacionismo. Ele diz ser evangélico e que nunca recebeu influência religiosa das “Testemunhas de Jeová” ou de Adventistas, embora tenha estudado quatro anos em um colégio adventista e ouvido “várias pregações deles”. Ele também é um daqueles que procuram nos escritos patrísticos provas de que os antigos cristãos eram aniquilacionistas e que a crença na imortalidade da alma teria se infiltrado na Igreja primitiva devido à conversão de homens proeminentes que vieram da escola filosófica de Platão.

Essa tese dos aniquilacionistas a que Banzoli se filiou, sobre a suposta influência grega, já pode ser de imediato descartada pelas razões explicadas no artigo abaixo, disponível no mesmo website anteriormente indicado:

A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?

Conforme demonstrado no artigo, a simples crença na sobrevivência consciente da alma após a morte do corpo não é o mesmo que aderir às concepções gregas da imortalidade da alma, sendo apenas um ponto em comum, o qual é extraído da Bíblia e não da filosofia grega.

Banzoli não somente diz que há na literatura patrística evidências que sustentam o que ele pensa, mas também afirma que elas são “esmagadoras”. No livro supramencionado ele já havia tratado desse assunto. Mas, sob a justificativa de que uma investigação mais completa era necessária, ele publicou depois outro livro chamado “Os Pais da Igreja contra a Imortalidade da Alma”.

Nesse segundo livro ele diz até que mudou certos pontos de vista depois da nova pesquisa que fez, que fora motivada por um debate que manteve com um apologista católico. Aparentemente, por ter encontrado “detalhes” que antes não tinha percebido, ele lançou mão de novas teorias para explicar a razão de haver entre os Pais da Igreja claras referências à crença em uma alma que está dentro do corpo do ser humano e que sobrevive à morte dele. Por exemplo, sobre Justino, Banzoli diz o seguinte:

“Em outras palavras, Justino era um ferrenho defensor da doutrina da imortalidade da alma antes de se converter, e é essa a razão pela qual ainda vemos alguns vestígios desta doutrina em seu primeiro trabalho como cristão (a 1ª Apologia), quando ele ainda não tinha toda a maturidade e conhecimento de todas as doutrinas cristãs, mas ainda conservava alguns dos seus conceitos platônicos que tinha antes... A 2ª Apologia e o Diálogo com Trifão, em especial, estão cheios de citações sobre a dissolução da alma entre a morte e a ressurreição, sobre a vida eterna ser apenas após a ressurreição e sobre o aniquilacionismo final dos ímpios, e é com estas obras que trabalharemos aqui”.

Outra vez Justino... É fácil testar essa teoria e ver se ela tem mesmo fundamento. Banzoli sustenta que a terceira obra mencionada, Diálogo com Trifão, é a que seria mais representativa do pensamento de Justino, pois foi escrita quando ele já tinha ‘alcançado a plena maturidade cristã’. Sendo assim, considere então o que Justino explicou nessa obra sobre o aparecimento do falecido profeta Samuel para uma necromante:

“Quando chegarmos ao fim da nossa vida [terrena], poderemos pedir o mesmo de Deus [que proteja nossas almas, conforme o Salmo 7:2], aquele que é apto para impedir que qualquer vergonhoso anjo do mal leve nossas almas. E que nossa alma sobrevive [à morte] eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou. E parece também que todas as almas de semelhantes homens justos e profetas estão [potencialmente] sujeitas ao domínio de tais poderes, conforme pode ser inferido de todos os fatos expostos no caso daquela bruxa. Então Deus também nos ensina através do Seu Filho, por causa destas coisas que parece que eram feitas, a sempre nos esforçar sinceramente, e na morte orar para que nossas almas não caiam nas mãos de tais poderes, pois quando Cristo entregou Seu espírito na cruz Ele disse: ‘Pai, em tuas mãos encomendo o meu espírito’.”. – Diálogo com Trifão, capítulo 105.

Como se nota, o que Justino disse é muito mais do que apenas “vestígios” da crença de que a alma permanece viva depois da morte do corpo. Ele acreditava piamente nisto e em nenhum momento suas obras revelam que ele mudou de opinião. O que Banzoli pensou que viu nos livros de Justino com potencial para “trabalhar” é, como sempre, resultado da mistura de conceitos que são independentes entre si, porém relacionados. Então, trata-se de mais um exemplo de alguém querendo mudar o que disseram antigos autores cristãos. E Banzoli foi muito mais afoito do que as “Testemunhas de Jeová” ao tentar fazer isso. O resultado é o que foi acima exemplificado, só para começar. Ainda tem mais!

Ao que parece Banzoli não leu a obra inteira de Justino antes de escrever seu livro, e talvez tenha se pautado majoritariamente no que outros aniquilacionistas disseram. É tanto que John Roller, o adventista mencionado anteriormente, é uma de suas referências. Isso foi um erro fatal. Para quem se propõe a reinterpretar tudo o que já foi escrito sobre a alma na literatura patrística é indispensável uma leitura completa e independente, e depois considerar minuciosamente o que os especialistas dizem sobre isso. Claramente Roller não é um deles. Obviamente, fazer uma investigação assim tão abrangente demanda alguns anos de estudo. Só assim seria uma pesquisa completa. Será que Banzoli fez isso?

Se um dia Banzoli cair em si e se convencer que tais obras não servem para o que ele deseja, talvez ele não tenha outra opção senão dizer que elas foram corrompidas pela Igreja e não são confiáveis para determinar o antigo pensamento cristão. Naturalmente, se ele fizer isso, será também outra teoria insustentável, porque se fosse verdadeira a Igreja teria aproveitado para retirar os trechos usados “a favor” do aniquilacionismo, que na realidade são declarações dos Pais da Igreja mal compreendidas pelos que defendem o aniquilacionismo materialista (mais detalhes no apêndice D).

Por isso, seria muito recomendável que ele retirasse do preâmbulo do seu segundo livro a menção às tais “evidências esmagadoras” dos pais da igreja contra a imortalidade da alma. Ele devia ser mais moderado e dizer apenas que encontrou alguns indícios a favor do que defende. Por não fazer isso, o resultado para Banzoli não será outro senão o vexame, à medida que aqueles que realmente entendem de Patrística virem o que ele escreveu...

 

2. A carta de Matetes a Diogneto

“Belíssima carta”, “gema de enorme brilho”, “jóia da literatura cristã primitiva”, “linda apologia”. Estes são alguns dos elogios costumeiramente feitos ao manuscrito conhecido por “carta a Diogneto”, considerado um dos documentos cristãos mais antigos atualmente disponíveis. Não se sabe ao certo quem a escreveu, pois o autor não se identificou. Os especialistas, porém, são quase unânimes em dizer que ela foi escrita no século II por um apologista proeminente que chamou a si mesmo apenas de “discípulo dos apóstolos”. Daí o nome “Matetes”, que significa “discípulo” em grego.

Lucas Banzoli escreveu uma “análise crítica” sobre a carta de Matetes e, conforme será visto adiante, chegou a uma conclusão bem diferente do que dizem as autoridades em Patrística. Mas pelo menos no que tange a um ponto da carta, Banzoli se saiu melhor do que John Roller, sobre o qual se falará depois, visto que percebeu o óbvio: que a carta apresenta de maneira cristalina a crença em uma alma imortal que vive provisoriamente no corpo físico. Por isso esse caso também é interessante para comparar o enfoque escolhido por dois aniquilacionistas que escolheram posições opostas ao avaliarem o mesmo trecho da obra, porém com o objetivo de sustentar a mesmíssima tese. Ambos se saíram muito mal em cada extremo escolhido, mas cada um à sua maneira.

Pois bem, a seguir está a transcrição da crítica que Banzoli apresenta sobre a referida carta. Para visualizar os “métodos” utilizados por ele, considere esta legenda:

|||||||||| - Frase de efeito com o intuito de impressionar o leitor.

|||||||||| - Suposição sem real evidência apresentada que a corrobore.

|||||||||| - Mistura de contextos diferentes que têm pouca ou nenhuma relação entre si.

Logo serão comentados os pontos mais relevantes do que Banzoli escreveu a seguir. Disse ele:

Outro escritor eclesiástico do final do segundo século citado pelos imortalistas é o autor da Carta a Diogneto, conhecido apenas como “Mathetes” (que significa “discípulo”), que sequer é nome próprio. Mais uma vez, estamos lidando aqui com um escritor desconhecido, que era tão pouco considerado na Igreja que sequer sabemos seu nome, o qual também não exercia aparentemente nenhum cargo eclesiástico, pois também não aparece na lista de bispos de igreja nenhuma.

Eusébio também não o cita nenhuma vez em sua ‘História Eclesiástica’, o que novamente demonstra que este autor tinha bem pouca importância na igreja primitiva. Embora alguns o coloquem descaradamente na lista de “Pais Apostólicos”, os estudiosos sérios afirmam que todas as evidências apontam que a obra não foi escrita senão no final do século II, ou seja, depois do próprio Atenágoras. O que se sabe é que o ‘Diogneto’ (destinatário da carta) foi procurador de Alexandria na virada do século II para o III, o que indica que a carta foi provavelmente escrita em fins do século II ou início do século III.

De qualquer forma, o que podemos ter certeza é que Mathetes não foi um ‘Pai Apostólico’, não chegou a ouvir a doutrina de um apóstolo e nem foi discipulado por um sucessor de um apóstolo, mas é um autor relativamente tardio do qual não sabemos praticamente nada, e pode ter sido mais um daqueles recém-convertidos do platonismo, que tentavam juntar ambas as doutrinas. Pelo menos, sabemos que tanto seu autor quanto seu destinatário eram gregos, o que não é de se surpreender. A “alma imortal” em um autor tão obscuro assim, do qual quase nada se sabe e de quem também não era famoso nem proeminente na Igreja, não é muita surpresa.

Em sua obra há uma citação bastante dualista, que parece ter sido tirada direto de um livro de Platão, e que em absolutamente nada condiz com a Bíblia ou com os autores cristãos primitivos:

“ ‘Em poucas palavras, assim como a alma está no corpo, assim os cristãos estão no mundo. A alma está espalhada por todas as partes do corpo, e os cristãos estão em todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, mas não procede do corpo; os cristãos habitam no mundo, mas não são do mundo. A alma invisível está contida num corpo visível; os cristãos são vistos no mundo, mas sua religião é invisível. A carne odeia e combate a alma, embora não tenha recebido nenhuma ofensa dela, porque esta a impede de gozar dos prazeres; embora não tenha recebido injustiça dos cristãos, o mundo os odeia, porque estes se opõem aos prazeres. A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está contida no corpo, mas é ela que sustenta o corpo; também os cristãos estão no mundo como numa prisão, mas são eles que sustentam o mundo. A alma imortal habita numa tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus. Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia mais se multiplicam’.

A quantidade de platonismo presente neste único capítulo supera a de todos os outros cristãos primitivos juntos, até mesmo incluindo Atenágoras! O tanto de asneiras tiradas da filosofia grega é realmente chocante, assustador. Além de dizer que a alma é um elemento invisível que está ‘espalhada por todas as partes do corpo’ (?), ainda há um flagrante absurdo do dualismo platônico entre o corpo e a alma, onde o corpo é ‘mau’, e a alma é ‘boa. Para Mathetes, ‘a carne combate a alma’ e ‘a odeia’. Este dualismo burlesco jamais foi aceito na Bíblia, onde o contraste nunca era entre corpo e alma, mas sim entre carne e espírito (ou seja, entre nossos desejos naturais e nossos desejos espirituais), e em nada tinha a ver com a filosofia pagã de Platão, na qual Mathetes estava mergulhado.

Mas a coisa piora ainda mais quando Mathetes chama explicitamente o corpo de prisão (!) da alma, conceito este tão flagrantemente pagão, platônico e antibíblico que nem os próprios imortalistas nos dias de hoje admitem isso! O corpo biblicamente não é nenhuma ‘prisão’, mas o santuário do Espírito Santo (1Co.6:19). E para acabar com tudo de uma vez, ele diz que a alma se torna melhor quando é maltratada em comidas e bebidas(!), que é mais um conceito pagão, comprado dos filósofos antigos que pensavam que podemos ‘zoar’ com o corpo o quanto quisermos (inclusive se envolvendo em bebedeiras e tudo mais que faz mal ao corpo), que a única coisa que importa é a ‘preservação da alma’. Paulo deu um hadouken* nessa filosofia decadente quando disse que os cristãos devem preservar incorruptível corpo, alma e espírito (1Ts. 5:23), e não apenas a alma e o espírito. O corpo, para Paulo, tinha a mesma importância da alma algo muito diferente do dualismo absurdo presente na Carta a Diogneto.

* Hadouken é um ataque especial utilizado por determinados personagens de um jogo eletrônico chamado Street Fighter [“lutador das ruas”] (www.significados.com.br/hadouken/). Pelo jeito Banzoli equipara opiniões contrárias a um combate entre inimigos, pois é comum ver em seus textos um linguajar pueril relacionado a ataques físicos de uma briga. Por exemplo, em referência a uma pessoa com quem debateu ele disse: “Depois de tanto apanhar, ele preferiu ir embora”. E sobre uma dissertação de faculdade que escreveu contra certo autor lamentou: “Pelo fato de ser um trabalho acadêmico, eu não pude bater tanto quanto gostaria, nem escrever tanto como gostaria”. Além disso, um método recorrente dele é já nas considerações iniciais denegrir os textos contra os quais escreve, antes mesmo de apresentar qualquer argumento que justifique uma avaliação desfavorável.

A única coisa que podemos concluir é que Mathetes estava muito longe de ser um legítimo ‘cristão ortodoxo’. Ele era descaradamente um filósofo platônico tentando introduzir no Cristianismo todo o dualismo grego sobre corpo e alma que foi severamente rejeitado até então. Seu platonismo era tão evidente e manifesto que nem os imortalistas atuais creem em todas as coisas que ele afirmava sobre a alma. Embora pudesse ser um cristão sincero, era claramente mais um amante da filosofia de Platão, buscando convergir a ‘filosofia cristã’ com a filosofia grega, em uma coisa só.

Ironicamente, em Mathetes encontramos também um verso que parece contradizer a doutrina do tormento eterno, que é quando ele diz que o tormento dos ímpios terá um ‘fim’:

‘Condenarás o engano e o erro do mundo, quando realmente conheceres a vida no céu, quando desprezares esta vida que aqui parece morte e temeres a morte verdadeira, reservada àqueles que estão condenados ao fogo eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem entregues’.

Ele não diz que o fogo do inferno atormentará os pecadores ‘para sempre’, mas sim ‘até o fim’. Se tem um fim, presume-se que não é infinito. Eu não me surpreenderia em nada se Mathetes fosse um imortalista típico (como os imortalistas atuais, só que mais ‘platônico’ ainda), mas mesmo assim parece que, conquanto fosse fortemente dualista (o que é absolutamente incontestável), ele não cria na imortalidade inerente ou incondicional da alma (senão ele creria no tormento eterno também). Isso mostra que até mesmo nos primeiros introdutores da heresia da imortalidade da alma não havia um consenso como há nos dias de hoje. Defender o dualismo e o estado intermediário não implicava em crer no ‘tormento eterno’, como ainda hoje há muitas pessoas que creem na sobrevivência da alma mas não no inferno eterno. O desvio foi gradual, mas certamente Mathetes foi responsável por parte disso.

Pelo visto Banzoli não tinha muito o que escrever sobre a carta a Diogneto e recheou sua crítica com todas as inconsistências acima destacadas. São tantas que esse foi o motivo de se ter optado por apresentar uma legenda de cores. Se tais argumentos triviais fossem retirados praticamente as únicas coisas relevantes que sobrariam do comentário dele seriam a transcrição de um trecho da carta e a conclusão a que chegou de que Matetes não acreditava que o tormento na Geena será eterno. 

Realmente não se sabe muito sobre a origem da carta de Matetes. Além disso, há duas interrupções abruptas* no encadeamento das ideias apresentadas nela.  Há quem enxergue nisso evidência de acréscimos posteriores, chamados de “homilias”. Porém o motivo mais provável é que a carta está incompleta, conforme demonstrou Paul Andriessen. Embora haja estudos especializados que tentam suprir tais lacunas, Banzoli teve o cuidado de não mencioná-los, se é que ele os leu, e trouxe para sua “análise” apenas aspectos negativos, reais ou imaginários.

* A primeira quebra no texto está depois do capítulo 5, pois o que é apresentado nos dois capítulos seguintes não parece ter relação com o que vinha sendo dito. A outra está depois do capítulo 10.

Quem quiser se inteirar mais sobre o assunto, consulte as informações dos links listados ao fim deste artigo para complementar os comentários a seguir.

a) A data da carta

A maioria das datas atribuídas à escrita de antigas obras cristãs são aproximadas, inclusive as do Novo Testamento. Elas se baseiam em evidências internas dos textos que às vezes recebem ajuda de fontes externas. No caso da carta a Diogneto há três datas consideradas as mais prováveis, a depender da linha de investigação adotada. São elas: 120-140 d.C., 150-160 d.C e 190-200 d.C.* Banzoli mencionou apenas a data mais tardia, e ainda afirmou que aqueles que acham que a carta foi escrita antes ‘não são estudiosos sérios’. Mas isto simplesmente não é verdade!

* Datas posteriores chegaram a ser sugeridas, mas não encontraram aceitação. O estilo da carta é característico de escritos cristãos do século II. Além disso, o cenário mencionado nela de perseguição e martírio dos cristãos desapareceu no início do século IV por ordem de Constantino. Esses dois fatores impossibilitam situar a carta numa época muito posterior ao século II.

Conforme demonstra a bibliografia indicada no final, a data 120 d.C. é bastante favorecida por uma linha de investigação tão séria quanto a preferida por Banzoli. Por esta razão, muitos livros apresentam tal data. E já houve até quem propusesse uma estimativa ainda mais antiga: 60-70 d.C. Nem mesmo esta seria um absurdo considerá-la factível, e os que a defenderam certamente tiveram suas razões. Na verdade, há indícios internos na própria carta a favor de tal possibilidade, como será depois comentado. Um deles é o que disse o próprio autor da carta:

“Eu não falo de coisas estranhas para mim, nem atinjo algo inconsistente sem a razão certa; mas tendo sido discípulo dos apóstolos, eu me tornei um mestre dos gentios”. – Carta de Matetes a Diogneto, Capítulo 11.

Se for dado um voto de confiança a Matetes*, as palavras dele são bastante claras em indicar o quão antiga é a carta.

* Há críticos que partem do pressuposto que os antigos autores cristãos não foram totalmente honestos, e que até mesmo os copistas contribuíram para isso, inclusive os do Novo Testamento. É tanto que já foi apresentada uma hipótese, hoje completamente rejeitada, que a carta de Matetes teria sido forjada por Estienne, tipógrafo e teólogo francês do século 16. Embora não devamos ser ingênuos ao estudar qualquer assunto, tal visão desfavorável não leva em consideração o que se espera dos cristãos em qualquer época, que é primar sempre pela verdade. Se os primeiros cristãos não tivessem sido honestos no que escreveram, o Cristianismo seria uma fraude. Alguns aderem a esse negativismo sobre a igreja primitiva depois que leem o que os céticos escrevem, sabotando assim a fé em Deus e pondo em risco o próprio futuro eterno. Felizmente, há muitas evidências favoráveis ao Novo Testamento e existe um fundamento seguro para os que têm fé.

Mesmo que a estimativa correta da carta de Matetes fosse 190-200 d.C. continuaria sendo um problema para os aniquilacionistas, pois ainda seria uma data suficientemente antiga para demonstrar que os cristãos primitivos acreditavam que o homem possui uma alma que sobrevive à morte do corpo. Banzoli tenta eliminar esse inconveniente com suposições não comprovadas.

b) A identificação do autor e a tentativa de desqualificá-lo

Além de usar expressões tais como “escritor desconhecido”, “pouco considerado na Igreja” e que “não era famoso”, Banzoli afirma que Matetes ‘com certeza não foi um pai apostólico, não ouviu a doutrina de um apóstolo e nem foi discipulado por um sucessor de um apóstolo’. Mas a realidade é que ele tem sido incluído entre os Pais Apostólicos por autoridades no assunto, a exemplo de Philip Schaff.

Há “certezas” em demasia nessas declarações de Banzoli. Se “Matetes” não assinou sua carta e não se sabe realmente quem ele era, como seria possível saber o nível de “fama” dele na igreja primitiva? Ao dizer que Matetes foi uma figura irrelevante no Cristianismo primitivo, Banzoli ignora o fato de que estudiosos sérios pensam exatamente o contrário e dizem que Matetes foi um cristão proeminente e hábil apologista, talvez o mais antigo que se tem notícia.

Matetes pode muito bem ter sido um daqueles antigos escritores cristãos que são hoje conhecidos. É tanto que quando seu manuscrito foi redescoberto ele estava no meio das obras de Justino, e este foi considerado inicialmente o autor da carta. Mas depois, devido à linguagem diferenciada dela, chegaram à conclusão que foi um erro de catalogação e ela não pertencia a Justino.* E assim começou o mistério. Desde então vários nomes já foram sugeridos: Apolo (o “concorrente” do apóstolo Paulo), Clemente de Roma, Melito de Sardes, Inácio de Antioquia, Irineu etc.

* Para comparar, considere o exemplo da carta de Hebreus. Ela não foi assinada e o estilo de escrita difere muito das cartas de Paulo. Mesmo assim considera-se que ele foi o autor, mas apenas com base na tradição cristã. É por isso que há críticos que acreditam fortemente que ele realmente não a escreveu, mas apenas recebeu o crédito. Se isto for verdade, o autor talvez tenha aprendido o assunto sobre o qual tratou diretamente do apóstolo Paulo. Mas se o autor foi realmente Paulo, baseando-se neste exemplo, pode ser até que Justino tenha sido mesmo o autor da carta a Diogneto. Neste caso, segundo os especialistas, ele precisaria ter se superado em qualidade e estilo.

Destaque-se, porém, que existem fortes evidências de que Matetes pode ter sido um bispo chamado Quadrato, que aproximadamente no ano 120 havia enviado uma carta-apologia para o arconte de Atenas, Adriano, que depois se tornou o imperador. Essa carta de Quadrato foi dada como perdida e o que se sabe sobre ela é apenas um fragmento citado por Eusébio, que se encaixa muito bem em uma das lacunas da carta a Diogneto, pois o estilo e o assunto tratado são semelhantes. Sobre isso, disse adicionalmente a seguinte obra de referência:

“Além de nome próprio, ‘Diogneto’ é, também, título honorífico dos príncipes e ficava muito bem aplicado a Adriano por seu caráter, seu estilo de vida, viajor, iniciado nos mistérios de Elêusis, elevado, portanto, à raça dos deuses (cf. Diogneto 10,5-6). O nome ocorria com freqüência em Atenas entre os arcontes: Adriano era ali arconte desde 112 d.C. Não só Quadrato, também Marco Aurélio titula Adriano de Diogneto a quem deveu sua formação (educatus est ia Adriani gremio), diz o biógrafo de M. Aurélio M. A. Capitolino em Vita M. Antonini, IV, 1. ‘A Diogneto (i. e., Adriano) devo a aversão pela vanglória, o não dar fé aos contos dos obreiros de prodígios e os charlatães sobre os encantos, sobre a evocação dos espíritos e outras superstições (...)’, diz M. Aurélio no livro I de seus Pensamentos. A carta/apologia faz freqüentes referências à iniciação mistérica de seu destinatário. Esta começava pela purificação. Na carta/apologia 2,1 se diz: ‘Comecemos. Purificado de todos os preconceitos que se amontoaram em tua mente; despojado do teu hábito enganador, e tornado, pela raiz, homem novo...’. As referências a um destinatário iniciado nos mistérios de Elêusis* se encontram também, nos caps. 4, 6; 5,3; 7,1,2; 8,9-10; 10,7. O ataque ao judaísmo, à circuncisão como mutilação da carne (4,4) pode ser compreendido recordando que Adriano proibiu a circuncisão precisamente por ser uma mutilação do corpo (Iudaei vetabuntur mutilare genitalia, Spartianus, Vita Hadriani, XIV). Portanto, podemos concluir que o destinatário da Carta /Apologia a Diogneto seja mesmo o imperador Adriano”. – Padres Apologistas (2014), Ed. Paulus, pp. 9, 10.

* Ritual grego relacionado à agricultura que fazia alusão à vida depois da morte.

Portanto, o conteúdo da carta de “Matetes” se ajusta muitíssimo ao que sabemos sobre Quadrato, pois (1) ele escrevia em estilo clássico, (2) é considerado o mais antigo dos apologistas cristãos, (3) discorria contra o Judaísmo e o paganismo, (3) era conhecido por ser um dos discípulos dos apóstolos e, como já dito, (4) escreveu uma carta apologética para Adriano, cujo perfil combina perfeitamente com as informações fornecidas por Matetes. Sendo assim, é muito provável que tal apologia perdida seja a carta a Diogneto e Quadrato o seu autor.

Outro nome promissor que poderia ser o autor da carta é o bispo Policarpo, de Esmirna. Além dele ter sido discípulo de um dos apóstolos, sabe-se que uma de suas obras se perdeu no século II.  Nos dias de Policarpo também havia um arconte na cidade de Esmirna, e, como visto acima, os arcontes eram tratados por “Diogneto”, título dirigido a pessoas de alta honra e que significa “herdeiro de Zeus”.

c) Realidades bíblicas e não filosofia grega

O que Banzoli chamou de ‘chocantes e assustadoras asneiras tiradas da filosofia grega’ na verdade são ensinos presentes na Bíblia. Considere a seguir. E depois disso há um rápido exame de todos os capítulos da carta, para saber se realmente o ensino de Matetes em “nada condiz com a Bíblia”...

O COMBATE ENTRE A CARNE E A ALMA

Sobre algumas afirmações de Matetes, Lucas Banzoli disse:

“Para Mathetes, ‘a carne combate a alma’ e ‘a odeia’. Este dualismo burlesco jamais foi aceito na Bíblia, onde o contraste nunca era entre corpo e alma, mas sim entre carne e espírito (ou seja, entre nossos desejos naturais e nossos desejos espirituais), e em nada tinha a ver com a filosofia pagã de Platão, na qual Mathetes estava mergulhado”.

Além das triviais frases de efeito de sempre, existem alguns problemas nessas afirmações de Banzoli. O primeiro mais evidente é que, ao contrário do que ele pensa, o combate da carne contra a alma é uma realidade claramente apresentada na Bíblia e não se trata de um “dualismo burlesco”. Sobre tal luta diária do cristão, o apóstolo Pedro disse:

“Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11.

Obviamente, os desejos carnais pertencem à carne, sendo esta o corpo físico, conforme se infere dos textos a seguir:

“Certamente [o Faraó] te pendurará num madeiro; e as aves hão de comer a tua carne de cima de ti”. – Gênesis 40:19.

“Os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e seus desejos”. – Gálatas 5:24, Bíblia de Jerusalém.

“Eu quero que vos deis conta de quão grande é a peleja que tenho a favor de vós e dos de Laodicéia, e de todos os que não viram o meu rosto na carne... Pois, embora eu esteja ausente na carne, assim mesmo estou convosco no espírito”. – Colossenses 2:1, 5.

“Eu, da minha parte, embora ausente em corpo, mas presente em espírito, certamente, como se estivesse presente, já tenho julgado o homem que agiu de tal modo”. – 1 Coríntios 5:3.

O apóstolo Paulo em sua carta aos romanos também menciona a mesma luta entre a carne e a alma:

“Pois eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não mora nada bom; porque a capacidade de querer está presente em mim, mas a capacidade de produzir o que é excelente não está presente. Pois o bem que quero, não faço, mas o mal que não quero, este é o que pratico. . . Eu realmente me deleito na lei de Deus segundo o homem que sou no íntimo, mas observo em meus membros outra lei guerreando contra a lei da minha mente e levando-me cativo à lei do pecado que está nos meus membros”. – Romanos 7:18, 19, 22, 23.

Paulo tinha consciência do homem que ele era no íntimo, ou seja, sua alma.* No entanto, por mais que ele quisesse fazer somente o que é bom, a carne, isto é, o seu corpo, o empurrava para fazer o que é mau. Assim é a luta diária do cristão. Um combate permanente entre o corpo e a alma.

* “A minha própria alma se desespera no meu íntimo”. – Salmo 42:6; veja também o 43:5.

O contraste bíblico a que Banzoli se referiu entre carne e espírito, sobre o qual concluiu erroneamente que seria o único presente na Bíblia, deve ser o que ela apresenta em textos a exemplo do versículo abaixo:

“Pois a carne, em seus desejos, opõe-se ao Espírito e o Espírito à carne; entre eles há antagonismo; por isso não fazeis o que quereis”. – Gálatas 5:17, TEB.

O entendimento vigente é que o Espírito mencionado acima não é o espírito que todo homem possui no íntimo, mas sim o Espírito Santo. Então esse versículo está mencionando outra situação, embora relacionada, pois o espírito do cristão deve se deixar guiar pelo Espírito de Deus, rejeitando assim aquilo de errado que a carne o força a fazer.

De qualquer maneira, mesmo que seja possível concluir que o “espírito” mencionado em alguns desses textos se refere ao espírito do homem, ainda haveria possibilidade de entender tal “espírito” como sendo a “alma”, pois antigamente estes dois termos às vezes eram usados como sinônimos, e a Bíblia reflete esse costume em alguns textos. Sobre isto considere o apêndice B.

AS MORADAS TEMPORÁRIAS DO CRISTÃO

Matetes comparou a alma que está no corpo à presença temporária dos cristãos no mundo, chamando-os de residentes forasteiros nas nações:

“A alma imortal vive em uma tenda mortal, e os cristãos vivem quais residentes forasteiros em [um mundo] corruptível, buscando alcançar uma morada incorruptível nos céus”. – Carta a Diogneto, capítulo 6.

Foi justamente isso o que Pedro também apresentou, ao mencionar a esperança da morada incorruptível nos céus: 

“Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11.

“Segundo a sua grande misericórdia, ele nos deu um novo nascimento para uma esperança viva por intermédio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos, para uma herança incorruptível, e imaculada, e imarcescível. Ela está reservada nos céus para vós”. – 1 Pedro 1:3, 4.

Quanto à questão do aprisionamento da alma no corpo, considerado por Banzoli uma comparação ‘flagrantemente pagã, platônica e antibíblica’, é preciso considerar alguns fatores. O mais notório é o contexto imediato da passagem mencionada. Quando se fala em cárcere ou prisão a primeira coisa que pode vir à mente é um lugar que nos priva da liberdade e que é bastante desagradável. No entanto, imediatamente antes do trecho criticado, Matetes disse:

“A alma ama a carne e os membros que a odeiam; também os cristãos amam aqueles que os odeiam”.

Como se percebe a alma encontra contentamento por estar no corpo e o ama (Eclesiastes 2:24; Atos 14:17). O contrário é que não acontece. Devido ao pecado, o corpo carnal tem características antagônicas em relação à alma, que é a parte imaterial do homem. Por isso, quando se diz que a alma está “presa” no corpo significa apenas que ela está encerrada nele e dele faz parte. Não é referência a um aprisionamento punitivo. De fato, se o texto grego de Matetes for examinado chega-se a essa mesmíssima conclusão. Para tanto, veja primeiramente a tradução de uma versão disponível na Internet:

“A alma está aprisionada no corpo, mesmo assim preserva todo o corpo; e os cristãos estão confinados no mundo como numa prisão, e mesmo assim eles preservam o mundo”. – New Advent.

O texto em grego da citação acima está assim:

Ἐγκέκλεισται μὲν ἡ ψυχὴ τῷ σώματι, συνέχει δὲ αὐτὴ τὸ σῶμα· καὶ Χριστιανοὶ κατέχονται μὲν ὡς ἐν φρουρᾷ τῷ κόσμῳ, αὐτοὶ δὲ συνέχουσι τὸν κόσμον.

A palavra grega que foi traduzida por “aprisionada” é ἐγκέκλεισται, e a que foi vertida por “prisão” é φρουρᾷ. Note agora como elas são utilizadas em duas obras gregas:

“Além disso, o Egito, que possui um dos solos mais escuros, eles dão o mesmo nome da parte escura do olho, khemían, e o comparam ao coração porque também é quente e úmido, e está cercado (ἐγκέκλεισται) pela porção [sul e sudoeste]* do mundo e adjacente a ela, tal como o coração do homem, que fica do lado esquerdo”. – De Iside et Osiride 364 c, de Plutarco.

* Foram incluídos esses colchetes porque ao se observar um mapa-múndi é possível visualizar essa comparação mencionada por Plutarco. O Egito fica do lado “esquerdo” no norte da África (e direito de quem vê o mapa), e os países que fazem fronteira com ele estão todos ao sul e a sudoeste. Ao norte encontra-se apenas o Mar Mediterrâneo e ao leste o Mar Vermelho.

 

“Estejam certos, caros cidadãos, que na democracia são as leis que protegem as pessoas e a constituição do estado, ao passo que o déspota e a oligarquia encontram sua proteção na suspeita e em guardas (φρουρά) armados”. – Discursos 1:5, de Esquines.

Conforme se nota, ἐγκέκλεισται é usado para descrever a localização geográfica do Egito em relação ao resto mundo, e φρουρά para se referir a guardas que ficam de prontidão, protegendo determinadas pessoas.

Sendo assim, baseando-se nos dois exemplos supracitados, percebe-se o sentido intencionado por Matetes ao comparar a presença da alma no corpo com a estada do cristão no mundo. É uma referência à constituição interdependente dos elementos mencionados, os quais estão unidos por sua própria natureza. O corpo dentro do qual a alma está precisa dela para sobreviver. Da mesma maneira o mundo no qual o cristão vive necessita dele para se manter.

Então o referido trecho de Matetes poderia ser traduzido das seguintes maneiras:

“A alma está cercada pelo corpo, e ainda o sustenta; também os cristãos estão sob custódia do mundo como que vigiados por ele, e mesmo assim mantêm o mundo”.

“A alma está contida no corpo, e ainda o sustenta; também os cristãos estão retidos do mundo sem conseguirem sair, e mesmo assim mantêm o mundo”.

“A alma está limitada no corpo, e ainda o sustenta; também os cristãos estão restritos do mundo e sem liberdade, mas mesmo assim mantêm o mundo”.

AS LIÇÕES DO SOFRIMENTO INVOLUNTÁRIO

“Maltratada em comidas e bebidas, a alma torna-se melhor; também os cristãos, maltratados, a cada dia mais se multiplicam”. – tradução citada por Banzoli.

Outro ponto que Banzoli entendeu erroneamente foi o que Matetes disse sobre o aperfeiçoamento da alma devido à questão alimentar, pois o “mal tratar” mencionado não se refere ao excesso de comida e bebida, mas sim à sua carência!* É o que Paulo já havia mencionado em suas cartas:

“Até a hora atual, continuamos a ter fome e também sede, e a estar precariamente vestidos, e a ser surrados, e a estar ao desabrigo, e a labutar, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando injuriados, abençoamos; quando perseguidos, suportamos isso; quando difamados, suplicamos; temo-nos tornado como o refugo do mundo, a escória de todas as coisas, até agora”. – 1 Coríntios 4:11-13.

“[Estive] em labor e labuta, muitas vezes em noites sem dormir, em fome e sede, muitas vezes em abstinência de comida, em frio e nudez”. – 2 Coríntios 11:27.

“Sei viver modestamente, e sei também como haver-me na abundância; estou acostumado com toda e qualquer situação: viver saciado e passar fome; ter abundância e sofrer necessidade. Tudo posso naquele que me fortalece”. – Efésios 4:12, 13.

* Sendo assim, certamente haverá quem conclua das palavras de Matetes que ele estava se referindo à carência forçada dos jejuns, típicos do ascetismo religioso que existiu nos tempos antigos e que ainda se vê hoje em dia. Porém o contexto da carta não permite tal conclusão, pois, na comparação feita, é claro que nenhum cristão se apresentou voluntariamente com o intuito de ser punido por alguma autoridade do mundo. Então, ninguém também passaria fome de propósito em base regular, de maneira masoquista.

É bem verdade que a tradução utilizada por Banzoli não ajudou muito para que ele compreendesse o que estava lendo. Mas se ele tivesse verificado melhor o assunto teria percebido o real sentido do que Matetes escreveu. A seguir três versões melhores:

“Provada pela fome e pela sede, a alma vai-se melhorando; também os cristãos, fustigados dia-a-dia, mais se vão multiplicando”. – A Diogneto, Edição Bilíngue (2001), ed. Alcalá.

A alma até quando mal provida com comida e bebida, se torna melhor; da mesma maneira, os cristãos quando submetidos a punições no dia a dia, crescem mais em número”. – New Advent.

“Tendo sido privada de comidas e bebidas a alma melhora; e os cristãos sendo punidos diariamente estão crescendo mais”. – Epistle to Diognetus, Interlinear English, de G.T. Emery.

A palavra traduzida por “mal provida com” é κακουργουμένη, que também poderia ser vertida por “mal suprida com”, “mal conservada com” ou “mortificada com”. “Adoece” ou “se prejudica” também são traduções possíveis, mas neste caso é preciso deixar subentendido que é pela carência de comida e não pelo seu excesso:

“A alma até quando adoece por (falta de) comida e bebida, se torna melhor”.

E novamente o próprio contexto também esclarece esse ponto. Matetes deixou claro que os nobres objetivos da alma são sempre interpelados pela carne pecadora, ou seja, os desejos físicos errados. Então, como é que ele, um cristão conhecedor da Palavra de Deus, de repente passaria a dizer para seus interlocutores que se empanturrar de comida e bebida seria algo bom para a alma? É claro que ele não recomendaria isso, pois tal comportamento faz parte das obras da carne:

“As obras da carne são [dentre outras:]. . . invejas, bebedeiras, festanças e coisas semelhantes a estas. Quanto a tais coisas, aviso-vos de antemão, do mesmo modo como já vos avisei de antemão, de que os que praticam tais coisas não herdarão o reino de Deus”. – Gálatas 5:19, 21.

O que está de acordo com outro texto:

“Não venhas a ficar entre os beberrões de vinho, entre os que são comilões de carne. Porque o beberrão e o glutão ficarão pobres, e a sonolência vestirá a pessoa de meros trapos”. – Provérbios 23:20, 21.

Portanto, Matetes não iria incentivar algo que contradiz frontalmente a essência do vinha dizendo na carta e que também não está de acordo com o comportamento cristão delineado no Novo Testamento.

SOBRE O SUPOSTO DUALISMO PLATÔNICO DE MATETES

A discussão em torno da dualidade alma-corpo se assemelha ao uso que se faz da expressão “imortalidade da alma”. Embora os cristãos desde muito tempo tenham se apropriado dessa linguagem, ela é apenas isto, uma linguagem. Se for feita uma análise do Platonismo, ainda que superficial, perceberemos diferenças significativas em relação ao que foi dito por Matetes em sua carta.

Para os platônicos a imortalidade da alma não era exatamente o que os cristãos concebiam sobre a imortalidade. O único ponto seguramente em comum é que ambos entendiam que a morte não significa a aniquilação da pessoa, pois a alma intangível e invisível no cenário terrestre continua existindo em outra realidade (espiritual). Mas na visão platônica a imortalidade da alma tem algumas características que não encontram respaldo na primitiva crença cristã, a exemplo das listadas a seguir:

1) A alma humana é eterna e existiu antes da vida física.

A Bíblia não ensina a pré-existência da alma, embora alguns enxerguem nela traços desse conceito, como foi o caso de Orígenes, embora ele não achasse que ela nunca teve início. A alma tem um início e a pessoa só passa a existir depois do nascimento. – Jeremias 1:4, 5; Eclesiastes 4:1-3.

2) Devido à sua natureza eterna, a alma jamais será destruída.

Jesus informou que, embora não desapareça com a morte do corpo físico, a alma pode ser destruída no futuro ao ser lançada na Geena.* – Mateus 10:28.

* Mais detalhes no apêndice D.

3) Depois da morte a alma retorna ao seu estado pré-existente de felicidade, se não tiver que reencarnar visando seu aperfeiçoamento.

Ao contrário do ponto anterior, não existe nenhum traço de tal ensinamento na Bíblia. A vida eterna de contentamento está inteiramente condicionada à concessão de Deus, sendo uma retribuição pela fé da pessoa em Cristo. Tal vida não vem automaticamente com a morte da pessoa. – João 3:16.

4) No Além, a alma é incorpórea e disforme, esvoaçando feito uma borboleta (houve também quem propusesse que a alma tem a forma de uma esfera).

Concepção igualmente antibíblica. A alma não possui corpo físico, porém tem um corpo imaterial apropriado para estar no lugar para onde for, possibilitando assim a interação com outras pessoas espirituais e as sensações que caracterizam sua existência. Em termos visuais, provavelmente ela tem a mesma aparência que a pessoa tinha antes de morrer (1 Samuel 28:14; Mateus 17:3, 4; Lucas 16:22, 23). Por isso que um cristão do final do século II escreveu o seguinte:

“Portanto, qualquer que seja a quantidade de punição ou refrigério que a alma tenha no Hades... no fogo ou no seio de Abraão, ela dá prova de sua própria corporalidade. Pois uma coisa incorpórea não sofre nada... por esse processo de densificação foi fixada a corporeidade da alma; e pela impressão de sua figura foi formada e moldada. Este é o homem interior... Ele também tem olhos e ouvidos próprios, pelos quais Paulo deve ter ouvido e visto o Senhor [quando foi arrebatado ao terceiro céu, 2 Coríntios 12:2-4]. Além disso, possui todos os outros membros do corpo... É por isso que o homem rico no inferno tem uma língua e o pobre (Lázaro) um dedo [Lucas 16:23-24]... Por essas características também são distinguidas e conhecidas as almas dos mártires embaixo do altar. De fato, a alma que no começo estava associada ao corpo de Adão, que cresceu com o seu crescimento e foi moldada após a sua forma, provou ser o germe de toda a substância da alma humana e dessa parte da criação”. – Tratado sobre a alma, cap. 7, de Tertuliano, c. 200 d.C.

Existem também dois conceitos no dualismo platônico que não são cristãos:

1) O corpo é intrinsecamente mau e não apresenta nada de bom.

Pela ação do Espírito Santo o corpo é melhorado a cada dia, sendo também um meio de externar adoração a Deus. Foi feito por Ele e dá contentamento à existência do homem. – 1 Coríntios 6:15-20; Eclesiastes 2:24; Atos 14:17.

2) O corpo é uma prisão que a alma odeia e dela deseja libertar-se.

A Bíblia não apresenta tal cenário, por conta do que foi dito no item anterior. E, como visto antes, para Matetes a realidade é o contrário da visão platônica: o corpo é que odeia a alma. Esta, por sua vez, ama o corpo e o sustenta, o que demonstra que o cristão gosta de estar nele, enquanto não vai para a morada dos céus. E, de qualquer modo, na ressurreição geral dos mortos a alma do cristão terá o corpo físico que perdeu de volta, porém melhorado e glorioso. Já os incrédulos receberão um corpo tal qual possuíam.

Para mais detalhes sobre o contraste entre a crença cristã na sobrevivência da alma e o conceito platônico da imortalidade dela, leia o artigo abaixo já recomendado anteriormente:

A filosofia grega influenciou mesmo o conceito do Cristianismo sobre imortalidade?

Embora seja verdade que cristãos ao longo dos séculos tenham se aproximado do Platonismo mais do que talvez deveriam, e existam graus de aderência diferenciados de acordo com a denominação religiosa, é mais ou menos consenso que a sistematização da teologia cristã que levou em consideração a obra de Platão só começou a acontecer entre os séculos IV e V, e mesmo assim com reservas. Desde o início da Igreja houve um esforço para deixar claro que a crença na imortalidade não depende de Platão. Não ser aniquilacionista jamais significou aceitação do Platonismo.

Por exemplo, Platão passou longe dos antigos hebreus e mesmo assim eles não foram aniquilacionistas, pois acreditavam que as almas dos mortos, chamadas por eles de “sombras”, desciam para o Seol (ou Hades), cuja localização era concebida nas profundezas da Terra, da mesma forma que os gregos também acreditavam. E nesse lugar distante as almas continuavam existindo, porém de maneira triste e sombria. Os hebreus ainda não conheciam o que foi revelado posteriormente no Novo Testamento, a exemplo da parábola do rico e Lázaro, que mostra que as almas dos justos têm um destino diferente, pois vão para um lugar melhor antes mesmo da ressurreição dos mortos. – Lucas 16:19-31.

Obviamente, por a Bíblia mostrar que o homem não é apenas um ser material, mas que ele possui uma alma invisível, essa realidade poderia ser descrita como um tipo de “dualismo”. É por esta razão que foi bastante natural que antigos cristãos proeminentes decidiram adentrar nessa seara e discutir o assunto nesses termos.* No entanto, é preciso lembrar que o “dualismo” cristão não nasceu com Platão. Houve um contexto bíblico prévio que justificou tais sistematizações teológicas. O escopo presente no dualismo platônico vai muito além do que se vê na Bíblia, e trata de conceitos que estão somente no campo da Filosofia, a exemplo das conceituações sobre o mundo sensível e o mundo inteligível.

* Os que criticam ferozmente a incursão de antigos cristãos na Filosofia parece que não perceberam que essa foi uma das razões que possibilitaram a disseminação do Cristianismo, e contribuiu para a preservação dos escritos cristãos e, por consequência, o fácil acesso que temos hoje aos livros do Novo Testamento. Não fosse a presença de espírito daqueles homens antigos em buscar um diálogo com a cultura greco-romana, talvez não estivéssemos hoje discutindo esses assuntos.

Não é objetivo aqui tratar dessa questão do dualismo de Platão. Mas os comentários feitos até agora são suficientes para demonstrar que Banzoli traz para dentro de sua crítica à carta de Matetes referências ao Platonismo de maneira descontextualizada e arbitrária. A consequência disso é uma conclusão diametralmente oposta ao que está na carta a Diogneto. Na realidade, o que Matetes escreveu pode ser entendido como uma negação do dualismo platônico, conforme descrito no artigo abaixo:

“O texto [do capítulo 6 de Matetes] reflete uma real unidade entre o corpo e a alma. Quebra-se, ou, ao menos, dilui-se uma concepção dualista do homem em que a alma, realidade transcendente, se oporia ao corpo”. – Revista Eletrônica Espaço Teológico, vol. 5, nº 7, jan/jun, 2011, pp. 8-14.

Isto se percebe quando se lê aquele trecho sobre o aprimoramento da alma quando o corpo passa fome e sede:

“A alma até quando adoece por (falta de) comida e bebida, se torna melhor”.

Perceba que, embora o alimento seja algo destinado ao corpo, tal situação se reflete na alma, o que demonstra sua integração com o corpo. O que faz lembrar certa ilustração de Jesus, que apresentou a situação oposta, de fartura:

“De modo que ele disse: ‘Farei o seguinte: Derrubarei os meus celeiros e construirei maiores, e ali ajuntarei todos os meus cereais e todas as minhas coisas boas; e direi à minha alma*: “Alma, tens muitas coisas boas acumuladas para muitos anos; folga, come, bebe, regala-te”. ’. Mas Deus disse-lhe: ‘Desarrazoado, esta noite te reclamarão a tua alma. Quem terá então as coisas que armazenaste?’ Assim é com o homem que acumula para si tesouro, mas não é rico para com Deus”. – Lucas 12:18-21.

* Há tradutores que não vertem literalmente essa parte e traduzem: “direi a mim mesmo”.

Muito provavelmente se as palavras acima estivessem em alguma obra patrística, e não no Novo Testamento, apareceria algum aniquilacionista dizendo que o autor do texto, ao usar essa linguagem dicotômica, foi influenciado pelo dualismo platônico, muito embora essa maneira de falar já viesse desde muito tempo antes de Jesus, como se nota no livro de Jó:

“E agora se derramou a minha alma dentro de mim; apoderam-se de mim dias de tribulação”. – Jó 30:16.

O que os aniquilacionistas entendem por “alma vivente” é o “mim” do versículo acima, ou seja, a pessoa de corpo físico que articulou com sua língua tais palavras. Então, partindo desse pressuposto, conclui-se que dentro da “alma vivente” existe outra alma, que é justamente aquela mencionada por Jesus no texto a seguir:

“E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:28.

No entanto, a alma não é indiferente ao corpo e nem fica contando os dias para se libertar dele, como pensavam os platônicos. Corpo e alma vivem em uma permanente cumplicidade, que é própria da unidade que usufruem. São duas coisas, e ao mesmo tempo uma só. Assim é a natureza do ser humano.

“Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?”. – Mateus 6:25.

Sendo assim, não surpreende que alma e pessoa humana (corpo físico vivo) se confundissem na linguagem dos antigos:

“A alma que pecar — ela é que morrerá”. – Ezequiel 18:4.

“Minha alma está profundamente contristada, até à morte”. – Marcos 14:34.

“Este inesperado fato que se deu comigo destruiu-me a alma. Vou-me e da vida deixo ir a graça e quero morrer, amigas”. – Medeia 225, de Eurípedes.

“Nenhuma alma generosa quererá depois de si um nome vil, por ter vivido vida indígena, manchando a boa fama apenas para não morrer”. – Electra 785, de Sófocles.

Para evitar a mistura de entendimentos vista no texto de Banzoli, é recomendável se inteirar primeiro do que Platão realmente ensinava.  Há muitas fontes na Internet que podem ser consultadas, de preferência as especializadas no assunto. Para quem quiser se aprofundar nesse tema, sugiro o trabalho abaixo indicado:

O dualismo platônico frente à ontologia dos phisiólogos”, de José Soares das Chagas.

d) A qualidade do texto de Matetes

Ao longo dos 12 “capítulos” de sua carta, Matetes fez várias declarações cujo teor pode ser encontrado em diversos textos bíblicos. Considere algumas delas a partir de agora. Para diferenciar dos versículos da Bíblia os trechos da carta estão em itálico e negrito.

A tradução da carta a Diogneto utilizada a seguir foi a de Luiz Fernando Karps Pasquotto.

Devido à brevidade de cada uma das seções, ao invés de capítulos a designação mais apropriada é que a carta está subdividida em parágrafos.

PARÁGRAFO 1 - Introdução

Excelentíssimo Diogneto,

Vejo que te interessas em aprender a religião dos cristãos. . . [e] que tipo de amor é esse que eles têm uns para com os outros.

“Por meio disso saberão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor entre vós”. – João 13:35

“A ninguém fiqueis devendo coisa alguma, exceto que vos ameis uns aos outros”. – Romanos 13:8.

“Santificai o Cristo como Senhor nos vossos corações, sempre prontos para fazer uma defesa perante todo aquele que reclamar de vós uma razão para a esperança que há em vós”. – 1 Pedro 3:15.

“Amados, se é assim que Deus nos amou, então nós mesmos temos a obrigação de nos amarmos uns aos outros. . . Se continuarmos a amar uns aos outros, Deus permanece em nós e o seu amor é aperfeiçoado em nós”. – 1 João 4:11.

PARÁGRAFO 2 – A Idolatria das Nações

E, ao contrário, esses que adorais, não poderiam transformar-se, por mãos de homens, em utensílios semelhantes aos demais? Essas coisas todas não são surdas, cegas, inanimadas, insensíveis, imóveis?... essas coisas chamais de deuses, as servis, as adorais, e terminais sendo semelhante a elas. Depois, odiais os cristãos, porque estes não os consideram deuses.

“Visto, pois, que somos progênie de Deus, não devemos imaginar que o Ser Divino seja semelhante a ouro, ou prata, ou pedra, semelhante a algo esculpido pela arte e inventividade do homem. É verdade que Deus não tem tomado em conta os tempos de tal ignorância, no entanto, agora ele está dizendo à humanidade que todos, em toda a parte, se arrependam”. – Atos 17:29, 30.

“Embora asseverassem ser sábios, tornaram-se tolos e transformaram a glória do Deus incorruptível em algo semelhante à imagem do homem corruptível”. – Romanos 1:22.

Conforme o Salmo 115:4-8, que diz:

“Os ídolos deles são prata e ouro, trabalho das mãos do homem terreno. Têm boca, mas não podem falar, têm olhos, mas não podem ver. . . Iguais a eles se tornarão os que os fazem, todos os que neles confiam”.

PARÁGRAFO 3 – O Culto Judaico

Os judeus têm razão quando rejeitam a idolatria, de que falamos antes, e prestam culto a um só Deus, considerando-o Senhor do universo. Contudo, erram quando lhe prestam um culto semelhante ao dos pagãos. . . Aqueles que crêem oferecer-lhe sacrifícios com sangue, gordura e holocaustos, e que o enaltecem com esses atos, não me parecem diferentes daqueles que tributam reverência a ídolos surdos, que não podem participar do culto. Os outros imaginam estar dando algo a quem de nada precisa.

“ ‘Não quiseste nem aprovaste sacrifícios, e ofertas, e holocaustos, e ofertas pelo pecado’ — sacrifícios que se oferecem segundo a Lei”. – Hebreus 10:8.

“A Lei tem uma sombra das boas coisas vindouras, mas não a própria substância das coisas, os homens nunca podem, com os mesmos sacrifícios que oferecem continuamente, de ano em ano, aperfeiçoar os que se aproximam”. – Hebreus 10:1

PARÁGRAFO 4 – O Ritualismo Judaico

Não creio que tenhas necessidade de que eu te informe sobre o escrúpulo deles a respeito de certos alimentos, a sua superstição sobre os sábados. . . Não é digno de zombaria orgulhar-se da mutilação do corpo como sinal de eleição, acreditando com isso ser particularmente amados por Deus? E o fato de estar em perpétua vigilância diante dos astros e da lua, para calcular os meses e os dias. . . os cristãos estão certos em se abster da vaidade e do engano, assim como das complicadas observâncias e das vanglórias dos judeus.

“Portanto, nenhum homem vos julgue pelo comer ou pelo beber, ou com respeito a uma festividade ou à observância da lua nova ou dum sábado; pois estas coisas são sombra das coisas vindouras, mas a realidade pertence ao Cristo”. – Colossenses 2:16, 17.

“Acautelai-vos dos cães, acautelai-vos dos obreiros do dano, acautelai-vos dos que mutilam a carne. Pois nós somos os que temos a verdadeira circuncisão, os que prestamos serviço sagrado pelo espírito de Deus e temos a nossa jactância em Cristo Jesus, e não temos a nossa confiança na carne”. – Filipenses 3:2, 3.

“Acolhei o homem que tem fraquezas na sua fé, mas não para fazer decisões sobre questões subjetivas. Um homem tem fé para comer de tudo, mas o homem que é fraco come hortaliças”. – Romanos 14:1, 2.

PARÁGRAFO 5 – O Comportamento dos Cristãos

[Os cristãos] vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles, a cada pátria é estrangeira.

“Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos residentes temporários espalhados por Ponto, Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia, aos escolhidos segundo a presciência de Deus, o Pai, com santificação pelo espírito, com o objetivo de que sejam obedientes e sejam aspergidos com o sangue de Jesus Cristo”. – 1 Pedro 1:1, 2.

“Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11.

“Todos estes morreram em fé, embora não recebessem o cumprimento das promessas, mas viram-nas de longe e acolheram-nas, e declararam publicamente que eram estranhos e residentes temporários no país. Pois, os que dizem tais coisas dão evidência de que buscam seriamente um lugar para si próprios”. – Hebreus 11:13, 14.

[Os cristãos] estão na carne, mas não vivem segundo a carne.

“Pois, embora andemos na carne, não travamos combate segundo o que somos na carne”. – 2 Coríntios 10:3.

“Os que estão de acordo com a carne fixam as suas mentes nas coisas da carne, mas os que estão de acordo com o espírito, nas coisas do espírito”. – Romanos 8:5.

[Os cristãos] moram na terra, mas têm sua cidadania no céu.

“Quanto a nós, a nossa cidadania existe nos céus”. – Filipenses 3:20.

[Os cristãos] obedecem as leis estabelecidas.

“Pagai de volta a César as coisas de César, mas a Deus as coisas de Deus”. – Mateus 22:21.

“Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores, pois não há autoridade exceto por Deus; as autoridades existentes acham-se colocadas por Deus nas suas posições relativas”. – Romanos 13:1.

“Pela causa do Senhor, sujeitai-vos a toda criação humana: quer a um rei, como sendo superior, quer a governadores, como enviados por ele para infligir punição a malfeitores, mas para louvar os que fazem o bem”. – 1 Pedro 2:13, 14.

[Os cristãos] amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e tem abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida.

“Ainda que o homem que somos por fora se definhe, certamente o homem que somos por dentro está sendo renovado de dia em dia. Pois, embora a tribulação seja momentânea e leve, produz para nós uma glória de peso que ultrapassa mais e mais, e que é eterna, ao passo que fixamos os olhos, não nas coisas vistas, mas nas coisas não vistas. Porque as coisas vistas são temporárias, mas as coisas não vistas são eternas”. – 2 Coríntios 4:16-18.

“Recomendamo-nos de todo modo como ministros de Deus, na perseverança em muito, em tribulações, em necessidades, em dificuldades. . . por intermédio de glória e de desonra, através de relatos maus e de relatos bons; como enganadores, e ainda assim verazes, como desconhecidos, e ainda assim reconhecidos, como morrendo, e ainda assim, eis que vivemos, como disciplinados, e ainda assim não entregues à morte, como pesarosos, mas sempre alegres, como pobres, mas enriquecendo a muitos, como não tendo nada, e ainda assim possuindo todas as coisas”. – 2 Coríntios 6:4, 8-10.

PARÁGRAFO 6 – A Alma do Corpo

A carne odeia e combate a alma.

“Amados, exorto-vos, como a estrangeiros e viajantes neste mundo, a que vos abstenhais dos desejos carnais que promovem guerra contra a alma”. – 1 Pedro 2:11, Bíblia de Jerusalém.

“Pois eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não mora nada bom. . . Pois o bem que quero, não faço, mas o mal que não quero, este é o que pratico. . . observo em meus membros outra lei guerreando contra a lei da minha mente e levando-me cativo à lei do pecado que está nos meus membros”. – Romanos 7:18-23.

A alma está contida no corpo... A alma imortal habita em uma tenda mortal; também os cristãos habitam como estrangeiros em moradas que se corrompem, esperando a incorruptibilidade nos céus

“Pois, nós sabemos que, se a nossa casa terrestre, esta tenda, se dissolver, havemos de ter um edifício da parte de Deus, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus”. – 2 Coríntios 5:1.

“Entendo que é justo despertar-vos com as minhas admoestações enquanto estou nesta tenda terrena*, sabendo que em breve hei de despojar-me dela. . .  Assim farei tudo para que, depois da minha partida, vos lembreis sempre delas”. – 2 Pedro 1:13-15, Bíblia de Jerusalém.

“E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma”. – Mateus 10:28.

* A Tradução do Novo Mundo de 1986 havia trocado a palavra “tenda” por “habitação”, porém a edição de 2015 seguiu o original grego e agora diz “tenda”, além de dar o seguinte esclarecimento em uma nota de rodapé: “Ou: ‘neste tabernáculo’, isto é, o corpo terrestre dele”.

PARÁGRAFO 7 – A Origem Divina do Cristianismo

Ao contrario, aquele que é verdadeiramente senhor e criador de tudo, o Deus invisível, ele próprio fez descer do céu, para o meio dos homens, a verdade, a palavra santa e incompreensível, e a colocou em seus corações.

“Porque desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou”. – João 6:38.

“O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam, é nosso tema: a Palavra da vida. A vida se manifestou: nós a vimos, damos testemunho e vos anunciamos a Vida que estava junto do Pai e se manifestou a nós”. – 1 João 1:1, 2, Bíblia do Peregrino.

[Deus enviou] o próprio artífice e criador do universo; aquele por meio do qual ele criou os céus e através do qual encerrou o mar em seus limites.

“Mas, com referência ao Filho [ele diz]:. . . ‘Tu, ó Senhor, lançaste no princípio os alicerces da própria terra, e os céus são obras das tuas mãos’.”. – Hebreus 1:8, 10.

“Ele é a imagem do Deus invisível, primogênito de toda criação, pois tudo foi por ele criado, no céu e na terra: o visível e o invisível, majestades, dominações, autoridades e potestades. Tudo foi criado por ele e para ele, ele é anterior a tudo, e nele tudo tem a própria consistência”. – Colossenses 1:15-17, Bíblia do Peregrino.

Talvez, como alguém poderia pensar, será que o enviou para que existisse uma tirania ou para infundir-nos medo e prostração? De modo algum. Ao contrário, enviou-o com clemência e mansidão, como um rei que envia seu filho. Deus o enviou, e o enviou como homem para os homens; enviou-o para nos salvar, para persuadir.

“Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, pois sou de temperamento brando e humilde de coração, e achareis revigoramento para as vossas almas. Pois o meu jugo é benévolo e minha carga é leve”. – Mateus 11:29, 30.

“Jesus, porém, chamando-os a si, disse: ‘Sabeis que os governantes das nações dominam sobre elas e que os grandes homens exercem autoridade sobre elas. Não é assim entre vós; mas, quem quiser tornar-se grande entre vós tem de ser o vosso ministro, e quem quiser ser o primeiro entre vós tem de ser o vosso escravo. Assim como o Filho do homem não veio para que se lhe ministrasse, mas para ministrar e dar a sua alma como resgate em troca de muitos”. – Mateus 20:25-28.

Conforme Isaías 53:11, que diz:

“Por causa da desgraça da sua alma, ele verá, ficará satisfeito. Por meio do seu conhecimento, o justo, meu servo, trará uma posição justa a muita gente; e ele mesmo levará os erros deles”.

Enviou-o para chamar, e não para castigar; enviou-o, finalmente, para amar, e não para julgar. Ele o enviará para julgar, e quem poderá suportar sua presença?

“Porque Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, a fim de que todo aquele que nele exercer fé não seja destruído, mas tenha vida eterna. Pois, Deus enviou seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por intermédio dele”. – João 3:16, 17.

“Mas, se alguém ouvir as minhas declarações e não as guardar, eu não o julgo; pois não vim julgar o mundo, mas salvar o mundo”. – João 12:47.

“Por meio disso é que se manifestou o amor de Deus em nosso caso, porque Deus enviou o seu Filho unigênito ao mundo, para que ganhássemos a vida por intermédio dele. O amor é neste sentido, não que nós tenhamos amado a Deus, mas que ele nos amou e enviou seu Filho como sacrifício propiciatório pelos nossos pecados”. – 1 João 4:9, 10.

“Portanto, mantende-vos despertos, fazendo todo o tempo súplica para que sejais bem sucedidos em escapar de todas estas coisas que estão destinadas a ocorrer, e em ficar em pé diante do Filho do homem”. – Lucas 21:36.

O que lembra aquilo dito em Malaquias:

“Mas quem aguentará o dia da sua vinda e quem se manterá de pé quando ele aparecer? Pois ele será como o fogo do refinador e como a barrela dos lavadeiros”. – Malaquias 3:2.

Não vês como os cristãos são jogados às feras, para que reneguem o Senhor, e não se deixam vencer? Não vês como quanto mais são castigados com a morte, tanto mais outros se multiplicam? Isso não parece obra humana. Isso pertence ao poder de Deus e prova a sua presença.

“ ‘E assim, na atual situação, digo-vos: Não vos metais com estes homens, mas deixai-os em paz; (porque, se este desígnio ou esta obra for de homens, será derrubada; mas, se for de Deus, não podereis derrubá-los;) senão podereis talvez ser realmente achados como lutadores contra Deus.’ Em vista disso, atenderam-no e mandaram chamar os apóstolos, chibatearam-nos e ordenaram-lhes que parassem de falar à base do nome de Jesus, e soltaram-nos”. – Atos 5:38-40.

“Eu enfrento a morte diariamente. Isto afirmo pela exultação sobre vós, irmãos, a qual tenho em Cristo Jesus, nosso Senhor. Se eu, igual aos homens, tenho lutado com feras em Éfeso, que me aproveita isso?”. – 1 Coríntios 15:31, 32.

PARÁGRAFO 8 – o Deus que se fez carne

Quem de todos os homens sabia o que é Deus, antes que ele próprio viesse?. . . Nenhum homem viu, nem conheceu a Deus, mas ele próprio se revelou a nós.

“Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido”. – João 1:18, NVI.

“[Jesus disse-lhe:] Quem me vê, vê o Pai”. – João 14:9, Bíblia de Jerusalém.

Conforme Malaquias 3:1, que diz:

“Eis que envio o meu mensageiro e ele terá de desobstruir o caminho diante de mim. E repentinamente virá ao Seu templo o verdadeiro Senhor, a quem procurais, e o mensageiro do pacto, em quem vos agradais”.

Somente ele é bom. Tendo concebido grande e inefável projeto, ele o comunicou somente ao Filho. Enquanto o mantinha no mistério e guardava sua sábia vontade, parecia que não cuidava de nós, não pensava em nós.

“Ele lhe disse: ‘Por que me perguntas sobre o que é bom? Há um que é bom. Se queres, porém, entrar na vida, observa continuamente os mandamentos’.”. – Mateus 19:17.

Jesus disse-lhe: “Por que me chamas de bom? Ninguém é bom, exceto um só, Deus”. – Marcos 10:18.

Todas as coisas me foram entregues por meu Pai, e quem o Filho é, ninguém sabe, exceto o Pai; e quem o Pai é, ninguém sabe exceto o Filho, e aquele a quem o Filho estiver disposto a revelá-lo”. – Lucas 10:22.

“Esta ele fez abundar para conosco em toda a sabedoria e bom senso, por nos fazer saber o segredo sagrado de sua vontade. É segundo o seu beneplácito, que ele se propôs em si mesmo, para uma administração no pleno limite dos tempos designados, a saber, ajuntar novamente todas as coisas no Cristo, as coisas nos céus e as coisas na terra”. – Efésios 1:8-10.

PARÁGRAFO 9 – O Propósito Divino

No tempo passado, ele permitiu que nós, conforme a nossa vontade, nos deixássemos arrastar por nossos impulsos desordenados, levados por prazeres e concupiscências. . . Éramos indignos da vida, e agora, só pela bondade de Deus, somos dignos dela. Também para que ficasse claro que por nossas forças era impossível entrar no Reino de Deus.

“[Deus] decretou os tempos designados e os limites fixos da morada dos homens, para buscarem a Deus, se tateassem por ele e realmente o achassem, embora, de fato, não esteja longe de cada um de nós. . . É verdade que Deus não tem tomado em conta os tempos de tal ignorância, no entanto, agora ele está dizendo à humanidade que todos, em toda a parte, se arrependam”. – Atos 17:26, 27, 30.

“Mas, quando chegou o pleno limite do tempo, Deus enviou o seu Filho, que veio a proceder duma mulher e que veio a estar debaixo de lei, para livrar por meio duma compra os debaixo de lei, para que nós, da nossa parte, recebêssemos a adoção como filhos”. – Gálatas 4:4, 5.

“Portanto, visto que Cristo sofreu na carne, armai-vos também da mesma disposição mental; porque aquele que tem sofrido na carne tem desistido dos pecados, com o fim de viver o resto do seu tempo na carne, não mais para os desejos dos homens, mas para a vontade de Deus. Porque já basta o tempo decorrido para terdes feito a vontade das nações, quando procedestes em ações de conduta desenfreada, em concupiscências, em excessos com vinho, em festanças, em competições no beber e em idolatrias ilegais”. – 1 Pedro 4:-3.

Com, misericórdia tomou para si os nossos pecados e enviou o seu Filho para nos resgatar: o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus, o justo pelos injustos, o incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais.

“Assim como o Filho do homem não veio para que se lhe ministrasse, mas para ministrar e dar a sua alma como resgate em troca de muitos”. – Mateus 20:28.

“Cristo, enquanto ainda éramos fracos, morreu por homens ímpios, no tempo designado”. – Romanos 5:6.

“Ora, até mesmo Cristo morreu uma vez para sempre quanto aos pecados, um justo pelos injustos, a fim de conduzir-vos a Deus, sendo morto na carne, mas vivificado no espírito”. – 1 Pedro 3:18.

A injustiça de muitos é reparada por um só justo, e a justiça de um só torna justos muitos outros.

“Assim, pois, como por intermédio de uma só falha resultou a condenação para homens de toda sorte, do mesmo modo também por um só ato de justificação resulta para homens de toda sorte serem declarados justos para a vida”. – Romanos 5:18.

“Observamos a Jesus, que havia sido feito um pouco menor que os anjos, coroado de glória e de honra por ter sofrido a morte, para que, pela benignidade imerecida de Deus, provasse a morte por todo homem”. – Hebreus 2:9.

Ele quis que confiássemos na sua bondade. . . sem preocupações com a roupa e o alimento.

“Por esta razão eu vos digo: Parai de estar ansiosos pelas vossas almas, quanto a que haveis de comer ou quanto a que haveis de beber, ou pelos vossos corpos, quanto a que haveis de vestir. Não significa a alma mais do que o alimento e o corpo mais do que o vestuário?”. – Mateus 6:25.

“Não estejais ansiosos de coisa alguma, mas em tudo, por oração e súplica, junto com agradecimento, fazei conhecer as vossas petições a Deus”. – Filipenses 4:6.

PARÁGRAFO 10 – A Essência do Cristianismo

Não te maravilhes de que um homem possa se tornar imitador de Deus.

“Portanto, tornai-vos imitadores de Deus, como filhos amados, e prossegui andando em amor, assim como também o Cristo vos amou e se entregou por vós como oferta e sacrifício a Deus para ser cheiro fragrante”. – Efésios 5:1, 2.

A felicidade não está em oprimir o próximo, ou em querer estar pro cima dos mais fracos, ou enriquecer-se e praticar violência contra os inferiores.

“Sede vigilantes, porém, para que esta autoridade vossa não se torne de algum modo uma pedra de tropeço para os que são fracos”. – 1 Coríntios 8:9.

“Sede pacíficos uns com os outros. Por outro lado, exortamo-vos, irmãos: admoestai os desordeiros, falai consoladoramente às almas deprimidas, amparai os fracos, sede longânimes para com todos. Vede que ninguém pague a outro dano por dano, mas, empenhai-vos sempre pelo que é bom de uns para com os outros e para com todos os demais”. – 1 Tessalonincenses 5:13-15.

“Pastoreai o rebanho de Deus, que está aos vossos cuidados, não sob compulsão, mas espontaneamente; nem por amor de ganho desonesto, mas com anelo; nem como que dominando sobre os que são a herança de Deus, mas tornando-vos exemplos para o rebanho”. – 1 Pedro 5:2, 3.

PARÁGRAFO 11 – O Cristo de Deus

[Cristo foi] desprezado pelo povo, foi anunciado pelos apóstolos e acreditado pelos pagãos.

“Deveras, o segredo sagrado desta devoção piedosa é admitidamente grande: Ele foi manifestado em carne, foi declarado justo em espírito, apareceu a anjos, foi pregado entre nações, foi crido no mundo, foi recebido acima em glória”. – 1 Timóteo 3:16.

PARÁGRAFO 12 – O Mais Importante

O Apóstolo [Paulo] diz: “A ciência incha; o amor, porém, edifica”.

“A ciência incha, mas o amor edifica”. – 1 Coríntios 8:1, Almeida Fiel.

Ou como diz a Tradução do Novo Mundo, edição de 2015:

“O conhecimento enche a pessoa de orgulho, mas o amor edifica”.

Nota-se que Matetes fez uma citação direta de uma carta do apóstolo Paulo.

Já houve quem sugerisse que Matetes foi discípulo do próprio Paulo, o “apóstolo das nações”. No capítulo 11 Matetes diz que também ‘se tornou um mestre entre as nações’ depois de ter sido “discípulo dos apóstolos”. Neste caso, se ele realmente foi instruído por Paulo, o aluno seguiu o exemplo do mestre ao empreender um ministério junto aos gentios pagãos.

 

3. A quintessência da “arte” de distorcer o que pensavam os cristãos antigos

Que os cristãos do primeiro século acreditavam que a morte não tem nada a ver com a inexistência ou com o sono da alma, mas sim com a continuidade da vida, está bastante claro no Novo Testamento e confirmado em obras patrísticas. No entanto, conforme visto até agora, os aniquilacionistas usam de vários artifícios com intuito de ressignificar o que há nos textos bíblicos e nas obras escritas pelos sucessores dos apóstolos. Nesta seção será visto mais um exemplo de quem faz isso, para concluir.

Considere o que um cristão chamado Policarpo de Esmirna disse no ano 109 d.C., ao escrever para os cristãos filipenses:

“Inácio, e Zózimo, e Rufo, ... e … o próprio Paulo, e o resto dos apóstolos… estão [agora] na presença do Senhor…”. – Filipenses (de Policarpo) 9:1, 2.

Policarpo nasceu em 69 d.C. e foi discípulo do apóstolo João. Como se nota, ele reproduz um argumento semelhante ao que Paulo mencionou justamente aos filipenses. (Filipenses 1:21-23). O texto acima está citado em uma tese de um adventista chamado John Roller, disponibilizada no site Mentes Bereanas (MB). A maneira que ele lida com a afirmação de Policarpo ilustra muito bem até onde pode chegar a releitura dos aniquilacionistas dos textos que apontam na direção que eles não querem aceitar.

Veja o que o John Roller disse a respeito do que escreveu Policarpo:

“Este trecho não diz absolutamente nada sobre o destino dos incrédulos, que é a questão em litígio entre condicionalistas [ou aniquilacionistas] e naturalistas [ou ‘imortalistas’]”.

Claro que nada é dito, pois Policarpo não estava falando de tal litígio. Na verdade, nem havia essa disputa naquele tempo. Ademais, isso não deveria ser considerado a principal questão entre essas duas correntes de pensamento. O cerne do problema está em saber se existe uma alma invisível que continua viva após a morte do corpo físico. O que acontecerá com ela na eternidade, depois da segunda vinda de Jesus, é outra questão.

Em seguida, Roller passa a lançar mão de determinados argumentos para redirecionar a escrita de Policarpo para outra ideia não presente na carta:

“Além disso, note-se que a palavra ‘agora’ está grafada entre colchetes, indicando que o tradutor [o Dr. Cleveland Coxe] a inseriu com base na teoria de que ela está ‘implícita’ no texto grego, embora na verdade não esteja incluída nele”.

Como se vê, ele tenta desqualificar a tradução do texto só porque foi inserido nele o advérbio “agora”, como se isso fizesse alguma diferença. Leia o texto sem os colchetes do tradutor: “Inácio, e Zózimo, e Rufo, ... e … o próprio Paulo, e o resto dos apóstolos… estão na presença do Senhor…”. Se os apóstolos já tinham morrido e Policarpo usa o verbo no presente, é óbvio que não há nenhum problema em enxergar um “agora” ou um “atualmente” nas palavras do escritor. Não há motivo para chamar isso de “teoria”. Não é de admirar então que os aniquilacionistas não compreendam o texto abaixo atribuído ao apóstolo Paulo:

“Mas agora [os patriarcas hebreus] desejam uma pátria melhor, isto é, a celestial. Por isso, Deus não se envergonha de ser chamado seu Deus; pois ele lhes preparou uma cidade”. – Hebreus 11:16, Versão de Lutero, colchetes acrescentados.

E note que o “agora” desse versículo não é um acréscimo de tradução, pois o autor da epístola realmente usou tal advérbio para se referir a pessoas que já tinham morrido há muito tempo, utilizando também o verbo no presente. De fato, a visão de que os patriarcas hebreus e outros continuam vivos está subentendida em outras partes da carta paulina. A leitura do livro indicado no link abaixo é recomendada para um aprofundamento desse ponto:

A vida atual dos patriarcas e a tradução correta de Hebreus 11:16

Por fim, John Roller conclui seu raciocínio:

“Finalmente, note-se que Policarpo diz que estes apóstolos falecidos ‘estão [agora] no lugar que lhes corresponde na presença do Senhor...’ – não que eles estão ‘no céu’ (considerando-se que o Senhor é conhecido por ser onipresente, isso realmente não diz muita coisa)”.

Onde é a habitação natural de Jesus? No céu, é claro! Nos textos de Paulo quando ele menciona a partida do cristão pela morte o foco sempre é morar com o Senhor depois que o cristão (ou sua alma) sai do corpo físico. Para Roller isso pode não ‘dizer muita coisa’, porém é a própria essência do que Paulo e Policarpo disseram.

“Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9.

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém.

O estar na presença do Senhor não é uma linguagem figurada resultante da onipresença de Deus. Não é isto o que Policarpo disse, tampouco o apóstolo Paulo. O argumento de Roller é tão inconsistente que é falho em si mesmo. Se fosse como ele pensa não seria necessário morrer para ficar na “presença de Cristo”. Agora mesmo, todas as pessoas e qualquer coisa que existe já estão na “presença” dele, caso se apele para o conceito da onipresença de Deus. – 1 Reis 8:28.

Esse é o mesmo argumento das “Testemunhas de Jeová”* para afirmar que a grande multidão mencionada em Apocalipse não está realmente no céu:

“Depois destas coisas eu vi, e, eis uma grande multidão, que nenhum homem podia contar, de todas as nações, e tribos, e povos, e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, trajados de compridas vestes brancas; e havia palmas nas suas mãos. E gritavam com voz alta, dizendo: ‘Devemos a salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro’.”. – Apocalipse 7:9, 10; compare com Apocalipse 19:1, 2.

* Vide o livro Revelação - Seu Grandioso Clímax Está Próximo, Capítulo 20, p. 123, §§ 12-14, publicado pela Torre de Vigia.

Nota-se que não há limites na disposição dos aniquilacionistas em distorcer textos do Novo Testamento e de cristãos dos primeiros séculos para tentar fazê-los dizer o contrário do que eles disseram!

Então, o que importa se a Bíblia não contém a expressão “imortalidade da alma”, conforme alguns aniquilacionistas gostam de lembrar? Não importa nada, absolutamente nada. Se ela se referisse à existência da alma após a morte nesses termos, os aniquilacionistas certamente dariam um jeito de entender de outra maneira. Existe um mecanismo na mente deles preparado para fazer isso, de maneira automática. Veja se não é assim lendo outra aplicação dessa “técnica” adotada por John Roller, ao citar a carta do cristão Matetes a Diogneto, que já foi comentada anteriormente:

“Diogneto 6:8 contém a mais antiga referência conhecida ao termo ‘alma imortal’ num escrito cristão: ‘A alma imortal habita num tabernáculo mortal.’ Todavia, não está claro que Matetes acreditava na imortalidade natural! Diversas outras referências levam-me a pensar de outro modo. Por exemplo: Diogneto 4:6 faz referência a qualquer ser humano, em geral, como ‘mortal’.” – A Doutrina da Imortalidade na Igreja Primitiva, p. 30.

Note que Matetes faz a mesma comparação que Pedro fez, ao chamar o corpo onde o cristão vive de tenda (“tabernáculo”), o que denota uma morada provisória que se encerra por ocasião da morte. Ao afirmar que a alma que há na “tenda” é imortal, Matetes quis dizer apenas que quando a “tenda” desaparece a alma permanece. Incrivelmente, num quadro no final de seu trabalho, Roller classifica Matetes como sendo um cristão que não acreditava na imortalidade da alma! – 2 Pedro 1:12-15.

A brevíssima citação que Roller faz de Matetes deixa a impressão que a referência que Matetes fez à “alma imortal” não passa de uma expressão incidental sem grande repercussão na suposta crença aniquilacionista que ele teria.  Mas note o que revela o contexto da citação:

Assim como a alma está no corpo, os cristãos estão no mundo. A alma está dispersa através de todos os membros do corpo, e os cristãos estão espalhados por todas as cidades do mundo. A alma habita no corpo, mesmo assim não é do corpo; e os cristãos moram no mundo, mesmo assim não são do mundo. A alma invisível é guardada pelo corpo visível, e os cristãos são conhecidos por realmente estarem no mundo... A carne odeia a alma, e guerreia contra ela [conforme 1 Pedro 2:11*]... A alma ama a carne que a odeia, e [ama também] os membros; da mesma maneira os cristãos amam aqueles que os odeiam. A alma está aprisionada no corpo, mesmo assim preserva o corpo inteiro, e os cristãos estão confinados no mundo como que numa prisão, e mesmo assim eles preservam o mundo. A alma imortal vive em uma tenda mortal, e os cristãos vivem quais residentes forasteiros em [um mundo] corruptível**, buscando alcançar uma morada incorruptível nos céus. A alma, até quando mal suprida com comida e bebida, se torna melhor; da mesma maneira, os cristãos mesmo sujeitos dia após dia a sofrimentos, crescem em número.”. – Matetes a Diogneto, capítulo 6.

* Diz o texto de Pedro: “Amados, exorto-vos como a forasteiros e residentes temporários a que vos abstenhais dos desejos carnais, que são os que travam um combate contra a alma”. – 1 Pedro 2:11.

** Os que mantêm o website “New Advent”, de onde se extraiu esse trecho de Matetes, entenderam que a palavra “corruptível” seria uma referência ao corpo do cristão, porém não me parece ter sido essa a intenção do escritor, mas sim uma referência ao mundo onde o cristão vive. Isto mantém a lógica da comparação feita: alma x tenda (corpo) em contraste com cristãos x mundo. Para comparar, embora em 1 Coríntios 15:42 o apóstolo Paulo associe corrupção ao corpo carnal morto, no capítulo 9 verso 25 do mesmo livro ele chama o prêmio que um corredor grego recebia de “coroa corruptível”, ou seja, um objeto externo, em contraste com a coroa incorruptível da vida eterna.

Nota-se perfeitamente que Matetes acreditava que o homem possui uma invisível alma imortal dentro do corpo e não tinha a opinião padronizada dos aniquilacionistas atuais, de que alma é simplesmente o ser humano com seu corpo carnal, chamado em algumas partes da Bíblia de “alma vivente”. Sendo assim, o que John Roller concluiu sobre esse cristão antigo não corresponde em absolutamente nada à realidade.

De maneira consciente ou não, Roller também mistura dois conceitos totalmente distintos, porém relacionados. Todos os seres humanos são indubitavelmente mortais. Seus corpos físicos deixam de funcionar, porém suas almas continuam subsistindo no Hades. Não morrem juntamente com os corpos (Mateus 10:28). Quando o Antigo Testamento se refere a uma “alma morta”, significa apenas um ser humano morto. E, conforme visto, a imortalidade da alma não é absoluta, pois Deus poderia destruí-la se quisesse. Por isso é preciso discernimento ao ler os antigos escritos cristãos. Quando falam de mortalidade eles normalmente estão se referindo à realidade humana, e não necessariamente à alma presente no ser humano. – Compare com 1 Pedro 4:5, 6.

 

Conclusão

Não importa quanta evidência seja apresentada, os aniquilacionistas sempre se negarão a aceitar aquilo que claramente a igreja primitiva acreditava em relação à morte e encontrarão uma maneira de fazer alguns trechos da literatura patrística do século II dizerem o que realmente eles não dizem. O que John Roller apresenta em seu trabalho é um perfeito exemplo disso, prática replicada por outros, a exemplo de Lucas Banzoli e do autor do site Mentes Bereanas. O que conduz à inevitável conclusão que a principal utilidade da tese que Roller escreveu foi proporcionar-lhe o título de “doutor”. De resto, ela tem pouca serventia para quem quer empreender um estudo sério e isento sobre os Pais da Igreja, que foram os sucessores dos apóstolos.

No que diz respeito à “pesquisa” de Banzoli, nota-se que ela foi incompleta, pois ele claramente não entendeu aquilo que viu nos escritos patrísticos. O tratamento que ele dispensou à carta de Matetes foi parcial e preconceituoso exatamente por causa disso. Não há nada que leve à conclusão que Matetes tenha sido promotor de ‘asneiras chocantes e assustadoras’. E o mais importante é que o texto dele está consoante à Bíblia, especialmente no Novo Testamento.

Em suma, tanto Banzoli quanto o “bereano” têm se esforçado muitíssimo para contradizer o que a ortodoxia cristã sempre ensinou sobre a alma e a morte. Ao que parece, nem os autores da Torre de Vigia se aventuraram a publicar tantas coisas (erradas) sobre a Patrística como eles têm feito, baseados em autores aniquilacionistas a exemplo de John Roller. O que foi aqui apresentado é apenas uma pequena amostra de tudo o que eles fazem, mas que representa bem o teor dos métodos utilizados.

 

APÊNDICES

A. A possível maior antiguidade da carta de Matetes

Embora o período 120-140 d.C. pareça ser a datação preferida da maioria dos especialistas em Patrística, particularmente eu acredito que há evidências internas que apontam para uma antiguidade ainda maior da carta a Diogneto, conforme alguns já defenderam no passado. A principal dificuldade para essa hipótese é saber quem seria o “diogneto” a quem a carta foi remetida. Quais seriam tais indícios?

É aquilo que está no comentário da seção 2 sobre a carta. Ela está repleta de referências bíblicas diretas ou indiretas, em especial as cartas apostólicas. Embora seja coerente concluir que a razão disso é que Matetes aprendeu parte do que sabia na leitura que fez dos manuscritos cristãos que vieram a compor o Novo Testamento, quem garante que o verdadeiro motivo não foi ele ter sido mesmo contemporâneo dos apóstolos, conforme ele parece afirmar na carta?

Visto que os escritos mais recentes do Novo Testamento são datados em 90-100 d.C., poderíamos pensar que a carta de Matetes obrigatoriamente tem de ser posterior a essa data. No entanto, é preciso lembrar que muitas informações que há nos Evangelhos e nas cartas dos apóstolos já deviam ser conhecidas da comunidade cristã antes de serem assentadas por escrito. Por exemplo, estima-se que a declaração de Jesus sobre o amor que identificaria os cristãos foi registrada por João em 98 d.C., aproximadamente. Mas é óbvio que os cristãos não vieram a aprender isso somente nessa data. É tanto que décadas antes Paulo já tinha mencionado tal obrigação cristã. – João 13:35; Romanos 13:8.

Portanto, o que Matetes mencionou que remete a declarações do apóstolo João, escritas na última década do século I, pode ter sido resultado do conhecimento que era comum à maioria dos cristãos daquele tempo, e não necessariamente porque leu nos escritos de João. E se bem notarmos, existem apenas algumas declarações semelhantes entre Matetes e João. Não são transcrições literais, a exemplo daquela que Matetes fez no último capítulo da carta a Diogneto, ao citar 1 Coríntios 8:1. Se houvesse uma citação direta de Apocalipse*, digamos, aí sim não restaria dúvida que a carta de Matetes deveria ser datada no século II. (Detalhe: ainda há quem ache que Apocalipse foi escrito antes de 70 d.C.).

* O livro The Ante-Nicene Fathers, Translations of the Writings of the Fathers down to A.D. 325 sugere que a expressão “a Páscoa do Senhor se adianta”, que está no capítulo 12 de Matetes, pode ser uma referência a Apocalipse 5:9, que menciona o Cordeiro que foi morto e com o seu sangue compra pessoas para Deus. Porém, isso é uma conjectura. Como foi visto anteriormente, as alusões de Matetes a determinadas passagens da Bíblia são bem mais explícitas do que isso. Além do mais, antes da escrita de Apocalipse a ideia do sacríficio de Jesus qual cordeiro pascoal já estava presente em outros livros do Novo Testamento. – 1 Coríntios 5:7; 1 Pedro 1:19.

Naturalmente, se a carta for datada entre 60 e 70 d.c. surgem alguns problemas igualmente sem solução conclusiva. Por exemplo, a quem ela se destinaria? E como lidar com as evidências que apontam para o século II? Uma possibilidade seria a carta ter sido escrita no século I e depois adaptada por algum cristão posterior para ser enviada ao destinatário eminente (arconte). Isto explicaria em parte as lacunas vistas na carta, bem como sua linguagem clássica, típica de escritos cristãos do século II em diante. Infelizmente, não há informações suficientes que poderiam dirimir todas as questões que surgiriam.

Há também um detalhe que parece reforçar a hipótese acima. Embora de início a carta claramente seja direcionada a Diogneto, quando chega perto do final a linguagem dela muda e parece se dirigir a uma coletividade, e não somente a uma pessoa:

“Celebra-se então o temor da lei, reconhecesse a graça dos profetas, conserva-se a fé dos evangelhos, guarda-se a tradição dos apóstolos e a graça da Igreja exulta. Não contristando essa graça, saberás o que o Verbo diz por meio dos que ele quer e quando quer. Com efeito, quantas coisas fomos levados a vos explicar com zelo pela vontade do Verbo que no-las inspira! Nós vos comunicamos por amor essas mesmas coisas que nos foram reveladas”. – Carta a Diogneto, capítulo 11.

Embora essas palavras possam ser compreendidas como sendo apenas uma linguagem respeitosa típica das apologias, e que considera a importância do destinatário, é estranho elas serem dirigidas a quem não conhecia os escritos bíblicos e estava precisando ser esclarecido sobre o culto cristão. A conclusão do texto parece mais uma carta apostólica direcionada à comunidade cristã, onde as pessoas já tinham algum conhecimento dos assuntos mencionados. E a conclusão da carta é ainda mais característica nesse respeito:

“Atendendo e ouvindo com cuidado, conhecereis que coisas Deus prepara para os que o amam com lealdade. . . A salvação é mostrada, os apóstolos são compreendidos, a Páscoa do Senhor se adianta, os círios se reúnem, harmoniza-se com o mundo e, instruindo os santos, o Verbo se alegra, pelo qual o Pai é glorificado. A ele, a glória pelos séculos. Amém”. – Carta a Diogneto, capítulo 12.

Portanto, essa peculiaridade da carta de Matetes pode ser uma evidência de que ela é uma adaptação de uma obra mais antiga, escrita na era apostólica. É tanto que já houve quem defendesse a opinião de que ela pode ter sido escrita por um dos apóstolos, como foi o caso de Tillemont, no século 17. O que seria algo perfeitamente possível, não fosse a afirmação de Matetes de que ele fora apenas discípulo dos apóstolos e não um deles.

B. A sinonímia no uso das palavras “alma” e “espírito”

Conforme foi mencionado na segunda seção, na época em que o Cristianismo surgiu a palavra “espírito” era usada com o sentido de “alma”, e vice-versa (até hoje em dia isso acontece). A própria Bíblia apresenta essa peculiaridade:

“Almejei-te com a minha alma durante a noite; sim, com o meu espírito dentro de mim estou à procura de ti”. – Isaías 26:9.

“Somente comportai-vos da maneira digna das boas novas acerca do Cristo, a fim de que, quer eu vá e vos veja, quer esteja ausente, eu ouça falar das coisas que se referem a vós, de que vos mantendes firmes em um só espírito, com uma só alma esforçando-vos lado a lado pela fé das boas novas”. – Filipenses 1:27.

É por isso que vemos em Apocalipse almas retratadas como estando no céu, embora a Bíblia informe que após morte do corpo a alma desce para o Seol e o espírito é que sobe para Deus:

“Quando abriu o quinto selo, vi sob o altar as almas dos que haviam sido assassinados por causa da palavra de Deus e do testemunho que haviam dado”. – Apocalipse 6:9, Bíblia do Peregrino.

Uma nota da tradução acima diz: “As ‘almas’ não são as almas separadas da dicotomia grega, mas o que nossa linguagem popular chama de ‘espíritos’. Em lugar de encontrar-se no Xeol, Deus lhes deu asilo no seu templo”.

Mas quando o apóstolo Paulo se referiu a determinados justos no céu, ele usou a linguagem que era de se esperar:

“Vós, ao contrário, vos aproximastes. . . dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição”. – Hebreus 12:22, 23, Bíblia do Peregrino.

De modo que ao ler, por exemplo, Mateus 26:41, não haveria nenhum problema em enxergar “alma” no lugar de “espírito”:

“O espírito, naturalmente, está ansioso, mas a carne é fraca”.

“A alma, naturalmente, está ansiosa, mas a carne é fraca”.*

Ideia semelhante perpassa os textos abaixo, quando comparados:

“Por que está triste o teu espírito e não comes pão?”. – 1 Reis 21:5.

“Minha alma está triste até a morte”. – Mateus 26:38, Bíblia de Jerusalém.

“Meu espírito estava aflito dentro de mim por causa disso”. – Daniel 7:15.

“Minha alma está aflita agora, e que hei de dizer?”. – João 12:28.

* Isso faz lembrar aquilo que o apóstolo Pedro e Matetes disseram sobre a luta da carne contra a alma.

Há ou não consenso entre os “imortalistas”?

Apenas para relembrar, Lucas Banzoli afirmou o seguinte:

“Ele [Matetes] não cria na imortalidade inerente ou incondicional da alma (senão ele creria no tormento eterno também). Isso mostra que até mesmo nos primeiros introdutores da heresia da imortalidade da alma não havia um consenso como há nos dias de hoje. Defender o dualismo e o estado intermediário não implicava em crer no ‘tormento eterno’, como ainda hoje há muitas pessoas que creem na sobrevivência da alma mas não no inferno eterno. O desvio foi gradual, mas certamente Mathetes foi responsável por parte disso”.

Ao que parece Banzoli se atrapalhou na argumentação acima. Ele diz que hoje há um consenso entre os “hereges imortalistas”, mas na época de Matetes não era assim, pois aqueles cristãos não foram unânimes sobre se as almas dos maus seriam destruídas ou sofreriam para sempre no inferno de fogo, após o Julgamento Final. Só que em seguida Banzoli menciona que mesmo hoje não há consenso entre os “imortalistas”, pois há os que creem na imortalidade da alma (pois ela não morre junto com o corpo), mas não no tormento eterno.

C. O aparente silêncio da Bíblia sobre a natureza espiritual do homem

Lucas Banzoli também consultou alguns apócrifos e pseudo-epígrafes da época dos primeiros cristãos. Levando em consideração o que ele escreveu sobre Patrística, não deve ter sido também uma leitura completa, mas já é um começo. Talvez a maioria dos escritores aniquilacionistas despreze essa linha de investigação. Pelo menos este é o caso do autor do Mentes Bereanas. Mas Banzoli errou ao propor outra teoria depois que viu o que está nessa literatura religiosa.

Ele informa, citando várias obras judaicas e cristãs, que as pessoas daquele tempo acreditavam em tudo o que hoje os aniquilacionistas combatem, e tais escritos eram muito explícitos ao mencionarem a crença numa alma que sobrevive à morte, além de outros temas relacionados. Porém a conclusão a que Banzoli chega diante de toda essa evidência é onde reside o seu maior erro nesse ponto de partida inicial do seu livro “Os Pais da Igreja contra a Imortalidade da Alma”.

Ele diz que o suposto silêncio dos escritores do Novo Testamento (NT) sobre tais assuntos é uma evidência de que a Igreja Primitiva não acreditava nessas coisas. Mas é justamente o contrário! Não terem os escritores do NT se detido nessa temática é um forte indicativo de que eles mantiveram a crença predominante de que a morte não significa a extinção imediata da pessoa (“sono” da alma), pois quem abandona um ensino no qual acreditava sempre divulga a nova crença com entusiasmo, e geralmente combate o entendimento que foi desprezado. Os escritores do Novo Testamento não fizeram isso.

Mesmo o principal escritor do Novo Testamento tendo sido fariseu (o apóstolo Paulo), ele nunca combateu o que antes acreditava sobre a alma, nem se retratou. Pelo contrário, há indícios em suas cartas que ele jamais aderiu ao aniquilacionismo, nem mesmo à maneira dos saduceus. Por exemplo, quando ele disse que tinha sido arrebatado ao terceiro céu, mencionou que não sabia se essa experiência tinha sido no corpo ou fora do corpo (2 Coríntios 12:1-5). Nenhum aniquilacionista faz uso dessa linguagem, mas apenas os que acreditam na possibilidade de sair do corpo e voltar. Fenômeno que, obviamente, não implica na morte do corpo, pois o espírito se ausenta temporariamente sem perder a “conexão” com ele.*

* Uma situação físico-biológica que pode ajudar a entender isso é quando uma equipe médica atesta a morte cerebral de um paciente, cujo corpo continua vivo e funcionando, porém sem a “alma”. Mas há uma limitação nessa analogia, pois estudos mostram que pessoas que afirmam ter experiências fora do corpo apresentam uma atividade cerebral incomum no momento do fenômeno. Ou seja, o cérebro não fica sem funcionar. E os espiritualistas dizem que o espírito que sai do corpo permanece conectado a ele mediante o que chamam de “cordão de prata”, geralmente representado como saindo da testa do corpo e terminando na nuca do espírito.

O objetivo do Novo Testamento não foi doutrinar seus leitores na crença de que uma alma espiritual sobrevive à morte do corpo físico. Não havia necessidade disso, pois todos naquela época já estavam familiarizados com esse conceito, o qual já vinha desde a época dos primeiros hebreus, ainda que de forma bem embrionária, conforme mencionado na seção 2. Por isso não existe uma grande quantidade de versículos bíblicos abordando esse tema, embora haja uma abundância de textos com as palavras “espírito” e “alma”. No entanto, quando passagens bíblicas tocam nesse assunto elas SEMPRE estão de acordo com o entendimento vigente da época. Veja alguns exemplos:

“E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28.

“A tua filha já está morta, não incomodes o Mestre. Jesus, porém, ouvindo-o, respondeu-lhe, dizendo: Não temas; crê somente, e será salva. . . pondo-os todos fora, e pegando-lhe na mão, clamou, dizendo: Levanta-te, menina. E o seu espírito voltou, e ela logo se levantou; e Jesus mandou que lhe dessem de comer”. – Lucas 9:49, 50, 54, 55, Almeida Fiel.

“Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9.

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém.

“Porque a palavra de Deus é viva e exerce poder, e é mais afiada do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão da alma e do espírito, e das juntas e da sua medula”. – Hebreus 4:12.

“O próprio Deus de paz vos santifique completamente. Que em todo respeito sejam preservados sãos o espírito, e a alma, e o corpo de vós, dum modo inculpe, na presença de nosso Senhor Jesus Cristo”. – 1 Tessalonicenses 5:23.

“Além do que, tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos, para vivermos?. . . Mas chegastes ao monte Sião, e à cidade do Deus vivo, à Jerusalém celestial, e aos muitos milhares de anjos; a universal assembleia e igreja dos primogênitos, que estão inscritos nos céus, e a Deus, o juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados”. – Hebreus 12:9, 22-24, Almeida Fiel.

“Estas pessoas prestarão contas àquele que está pronto para julgar os viventes e os mortos. Com este objetivo se declararam as boas novas também aos mortos, para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:5, 6.

“Entregueis tal homem a Satanás, para a destruição da carne, a fim de que o espírito seja salvo no dia do Senhor”. – 1 Coríntios 5:5.

“Disse-me então: Estas palavras são certas e verídicas; o Senhor, o Deus dos espíritos dos profetas, enviou seu anjo, para mostrar a seus servos o que deve acontecer em breve”. – Apocalipse 22:6, TEB.

“E quando abriu o quinto selo, vi por baixo do altar as almas dos que tinham sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa da obra de testemunho que costumavam ter”. – Apocalipse 6:9.

“E eu vi tronos, e havia os que se assentavam neles, e foi-lhes dado poder para julgar. Sim, vi as almas dos executados com o machado, pelo testemunho que deram de Jesus e por terem falado a respeito de Deus, e os que não tinham adorado nem a fera nem a imagem dela, e que não tinham recebido a marca na sua testa e na sua mão. E passaram a viver e reinaram com o Cristo por mil anos”. – Apocalipse 20:4.

Como se percebe, os escritores cristãos do primeiro século não ficaram em absoluto silêncio. Mas do que adianta o Novo Testamento possuir todos esses textos se os aniquilacionistas sempre darão um sentido diferente daquele intencionado por seus escritores? A Torre de Vigia, por exemplo, diz em uma nota da nova Tradução do Novo Mundo que a menção de almas naqueles versículos de Apocalipse “pelo visto se refere ao sangue sustentador de vida derramado junto ao altar”...

É, pelo visto, o que menos importa para os aniquilacionistas é a leitura natural desses textos. O importante mesmo é sempre acomodá-los ao que eles querem que a Bíblia diga. Rompendo com a concepção que se tinha na Antiguidade, almas não são mais almas e Hades não é mais Hades, dentre outras coisas. Tudo isso seriam apenas representações simbólicas de realidades meramente materiais. Ou seja, meras figuras de linguagem. Lucas Banzoli, em seu livro “A Lenda da Imortalidade da Alma”, também adere à tese do simbolismo para explicar as duas passagens supracitadas da Revelação dada a João, bem como o autor do MB, ao fazer uso de seus “consultores” adventistas.

D. Sobre o tormento eterno dos injustos na Geena

Pessoalmente, eu não vejo problema no conceito de aniquilação futura dos ímpios, após o Julgamento Final. Creio que faria mais sentido Deus erradicar da existência quem não quer viver de acordo com Sua vontade do que fazer o pecador sofrer eternamente. Também acho razoável a outra opinião de que Deus, no final das contas, dará um jeito de todos os pecadores se corrigirem a fim de alcançarem a salvação, pois ele “não deseja que alguém seja destruído”. – 2 Pedro 3:9.

No entanto, o que importa não é o que supomos ser o mais adequado, mas sim o que Deus realmente decidiu. E de acordo com o ensino da igreja primitiva, registrado tanto no Novo Testamento quanto na literatura patrística, desde o início os cristãos acreditam que os maus sofrerão eternamente no fogo da Geena ardente, depois que forem ressuscitados e receberem seus corpos físicos de volta. Abaixo alguns exemplos que apontam nessa direção:

“‘E há de acontecer que de lua nova a lua nova e de sábado a sábado chegará a mim toda a carne para se curvar diante de mim’, disse Jeová. ‘E realmente sairão e olharão para os cadáveres dos homens que transgrediram contra mim; pois os próprios vermes sobre eles não morrerão e o próprio fogo deles não se apagará, e terão de tornar-se algo repulsivo para toda a carne’.”. – Isaías 66:23, 24.

“Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos... E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna”. – Mateus 25:41, 46.

“E, se o teu olho te fizer tropeçar, lança-o fora; melhor te é entrares com um olho no reino de Deus, do que seres com os dois olhos lançado na Geena, onde o seu gusano não morre e o fogo não se extingue”. – Marcos 9:47, 48.

“E o Diabo que os desencaminhava foi lançado no lago de fogo e enxofre, onde já estavam tanto a fera como o falso profeta; e serão atormentados dia e noite, para todo o sempre”. – Apocalipse 20:10.

“Não errem, meus irmãos. Aqueles que corrompem famílias não herdarão o reino de Deus. Se, então, aqueles que fazem isso em relação à carne sofreram a morte, quanto mais será este o caso de alguém que corrompe pela má doutrina a fé de Deus, pela qual Jesus Cristo foi crucificado! O que se tornar contaminado desta maneira, irá para o fogo eterno, assim como todo aquele que o ouvir”. – Carta aos Efésios, Inácio de Antioquia, cap. 16, c. 98 d.C.

“Condenarás o erro e o engano do mundo, quando realmente conheceres a vida no céu, quando desprezares esta vida que aqui parece morte, e temeres a morte verdadeira, reservada àqueles que estão condenados ao fogo eterno, que atormentará até o fim aqueles que lhe forem entregues. Se conheceres este fogo, ficarás admirado, e chamarás de felizes aqueles que, com justiça, suportaram o fogo passageiro [desta vida]”. – Carta de Matetes a Diogneto, cap. 10, c. 120 d.C.

“Mas o caminho das trevas é tortuoso e cheio de maldição. Por isso é o caminho da morte eterna com punição, no qual estão as coisas que destroem a alma”. – Epístola de Barnabé, cap. 20, c. 130 d.C.

Inácio foi discípulo direto dos apóstolos, e conheceu o apóstolo João pessoalmente. Credenciais que Matetes também apresentou em sua epístola, conforme foi visto na seção 2.

Logo, como fica claro nos textos supracitados, havia mesmo a crença de que os maus terão uma punição eterna que não se resume apenas à sua inexistência permanente. Para os que acham que essa é uma punição muito severa, precisam se lembrar que foi esse o ensino da igreja primitiva. Será que existe possibilidade de Deus ter apenas permitido a disseminação dessa crença, sendo a realidade espiritual dessa punição diferente do que os primitivos cristãos pensavam? Pois só a mera possibilidade do inferno seria um estímulo para que as pessoas “andassem na linha”. Afinal, quem gostaria de ser queimado para sempre em um lugar pior do que um filme de terror? O problema é que esta não seria uma motivação das mais nobres, pois é o amor a Deus e o desejo de agradá-lo que deveriam desestimular a prática de pecados. De qualquer modo, o simples temor do fogo eterno não deixaria de ter tal efetividade.

E, de fato, uma leitura mais literal das palavras a seguir de Jesus leva o leitor a pensar que os maus vão simplesmente sumirem da existência, ainda que isto resulte em uma contradição com outros textos, a menos que eles fossem simbólicos:

“E não fiqueis temerosos dos que matam o corpo, mas não podem matar a alma; antes, temei aquele que pode destruir na Geena tanto a alma como o corpo”. – Mateus 10:28.

Sim, o homem não pode matar a alma de outro homem, pois ela vai para o Seol/Hades com a morte do corpo ou é levada para o céu se Deus determinar. – Isaías 38:10; Mateus 11:23; Atos 2:27*; Apocalipse 20:4.

* Esse texto de Atos é sobre a morte de Jesus e diz o seguinte: “Porque não deixarás a minha alma no Hades, nem permitirás que aquele que te é leal veja a corrupção”. Isso demonstra que “alma” não se refere apenas ao ser humano, como pensam os aniquilacionistas, razão pela qual eles acham que quando o homem morre a alma também deixa de existir. Se fosse assim, como seria possível uma alma (alguém vivo) ser deixada no Hades? Ainda mais levando em consideração que eles acham que o Hades não existe de fato, sendo apenas a representação simbólica da morte, ou então que nada mais é do que a sepultura. Você já viu alguém vivo dentro de uma cova para defunto? Os únicos seres vivos que se encontram nas sepulturas são os vermes e decompositores.

Deus não só tem o poder de matar um ser humano, como também pode destruir sua alma para sempre (mas somente depois do Juízo Final). Conforme a tradução de Mateus 10:28 supracitada, está muito evidente que é exatamente isso o que o texto diz. É por esse motivo que tal concepção foi defendida por alguns autores patrísticos, a exemplo de Taciano e Arnóbio:

“A alma em si mesma não é imortal, ó gregos, mas é mortal. No entanto, é possível que ela não morra. Deveras, se ela não souber a verdade, morrerá, e será dissolvida junto com o corpo”. – Diálogo com os gregos, de Taciano, citado em A Sentinela, 15/05/03, p. 29.

“Mas qual homem não percebe que aquilo que é imortal, o que é [algo] simples [de notar], não pode ser objeto de nenhuma dor? Que o que sofre dor, ao contrário, não pode ser imortal?... Porque eles são banidos, e sendo aniquilados, falecem inutilmente em uma destruição eterna... Pois aquilo que é visto pelos olhos é somente a separação da alma do corpo, não a aniquilação final: esta, eu digo, é a verdadeira morte do homem...”. – Contra os Pagãos, de Arnóbio, Livro II, parágrafo 14.

O que está acima descrito é o aniquilacionismo que havia nos tempos antigos, segundo o qual todas as almas permanecem vivas depois da morte, entretanto uma parte delas será erradicada da existência no futuro. No caso, os maus que forem julgados desfavoravelmente por Deus. Mas a igreja primitiva não recepcionou esse entendimento, razão pela qual foi condenado por ela. Note que é um tipo de aniquilacionismo diferente daquele defendido pelas “Testemunhas de Jeová”, pois elas acham que a alma deixa de existir automaticamente depois da morte, e se for a alma de alguém mau que Deus não vai ressuscitar, a pessoa que morreu simplesmente vai continuar no estado de inexistência em que já se encontra. Ou seja, se baseiam apenas numa visão material da existência humana. Por isso eu costumo chamar essa crença do jeovismo de aniquilacionismo materialista, para diferenciar do aniquilacionismo clássico.

O detalhe, porém, é que o verbo grego “destruir” usado para registrar a fala de Jesus em Mateus 10:28 não significa aniquilação, mas sim inutilização. Por isso que o Novo Testamento usa a mesma palavra para se referir a vasos que foram quebrados:

“Tampouco se põe vinho novo em odres velhos; mas, caso o façam, então os odres rebentarão e o vinho se derramará, e os odres ficarão arruinados”. – Mateus 9:17.

O verbo foi traduzido por “arruinar”, mas é o mesmo utilizado para se referir ao poder que Deus tem de destruir a alma de alguém. Então, por essa analogia, é possível concluir que a destruição mencionada em Mateus 10:28 não significa destruição no sentido de aniquilação, mas sim no de inutilização, pois os cacos do vaso que foi quebrado não desaparecem, continuam existindo. Sendo assim, a aparente contradição do versículo com outros textos que falam do tormento desaparece, uma vez que alguém passar a eternidade sofrendo não estaria cumprindo aquilo para o qual foi criado, que é viver para sempre em felicidade. É um “vaso” arruinado.

Um argumento contra isso seria dizer que depois que um vaso quebra, e fica inutilizado, o vaso em si deixa de existir. Sobram apenas pedaços do que antes foi um vaso. Será então que a função de vaso é o que poderíamos comparar à “alma”? Neste caso, a conclusão possível é que depois das almas dos pecadores impenitentes serem destruídas restariam apenas sobras energéticas delas, as quais poderiam, quem sabe, ser aproveitadas por Deus para manter as chamas eternas da Geena.

O problema dessa interpretação, além do fato da antiga igreja não ter ensinado assim, é que voltaríamos novamente à contradição com outros versículos que falam do tormento do fogo eterno. E, conforme já dito, a única maneira de dirimir essa dificuldade seria considerá-los como simbólicos. Com um pouco de esforço é possível enxergar neles indícios desse simbolismo. Por exemplo:

“Então, a morte e o Hades foram precipitados no lago de fogo. . . e o mar já não existe”. – Apocalipse 20:14, 21:1, Tradução Ecumênica da Bíblia.

A morte não é alguém que possa ser lançado em algum lugar, e Isaías 57:20 diz que “os ímpios são como um mar agitado que não pode acalmar-se” (Bíblia de Jerusalém). De modo que dizer que o Hades será lançado no lago de fogo pode significar apenas que ele deixará de existir, da mesma maneira que o desaparecimento do mar poderia ser apenas uma maneira figurativa de dizer que os maus não mais existirão. Portanto, eles não sofreriam eternamente. O fogo dessa punição é que seria eterno e existiria de fato, a exemplo do que lemos em Miquéias:

“Quem é Deus como tu, perdoando o erro e passando por alto a transgressão do restante da sua herança? Certamente não se aferrará à sua ira para todo o sempre, pois se agrada na benevolência. Ele novamente mostrará misericórdia para conosco; subjugará os nossos erros. E a todos os seus pecados lançarás nas profundezas do mar”. – Miquéias 7:18, 19.

O pecado não é algo material que possa ser atirado nas águas, porém o mar existe realmente. Então, a linguagem aqui é claramente um simbolismo.

Mas isso já não ocorre com os diversos textos bíblicos e conceitos relacionados à alma, ao Hades e à Geena, que são claramente literais. Toda a historiografia judaico-cristã atesta que realmente os judeus e cristãos primitivos em geral acreditavam não só na sobrevivência consciente das almas depois da morte, mas também que uma parte delas já começava a cumprir penas imediatamente, no fogo do Hades, conforme ilustrado na parábola do rico e Lázaro, e que foi também descrito pelo historiador judeu Flávio Josefo. – Lucas 16:19-31.

 

Bibliografia recomendada

The Epistle to Diognetus, with the fragment of Quadratus (2013), Oxford Apostolic Fathers, de Clayton N. Jefford, pp. 15-29.

The Ante-Nicene Fathers, Translations of the Writings of the Fathers down to A.D. 325 (1903), vol. 1, pp. 23-30.

The Apostolic Fathers with Justin Martyr and Irenaeus (1885), de Philip Schaff, p. 43 (p. 83 do PDF)

A Synopsis of the Development of Trinitarian Thought from the First Century Church Fathers to the Second Century Apologists (2003), de Mark Carpenter, p. 7 (p. 9 do PDF).

Os Gêneros dos Escritos Apologéticos Cristãos Antigos (2011), de Alessandro Arzani e Renata L. B. Venturini, p. 13.

Helenização e recriação de sentidos: A Filosofia na Época da Expansão do Cristianismo – séculos II, III e IV (2002), de Miguel Spinelli, EDIPUCRS, p. 50 (sobre a imortalidade absoluta).

 

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