LUTERO ERA ANIQUILACIONISTA?
(PDF, 178 Kb)

SUMÁRIO

1. Os supostos apoiadores do “condicionalismo”

2. Definindo conceitos e estabelecendo critérios

a) O que é o aniquilacionismo

b) A imortalidade da alma e o “sono” dos mortos

c) A condenação dos maus no inferno

d) Fatores que permitem uma análise adequada

3. Em que Lutero realmente acreditava

4. Sobre os demais “defensores” listados com Lutero

a) Pietro Pomponazzi

b) Franz Delitzsch

c) Frederick Fyvie Bruce

d) John Robert Walmsley Stott

e) Oscar Cullmann

Bibliografia de referência

Crédito da imagem utilizada

 

Fortaleza, 22 de abril de 2020

Email do autor para contato: fadelmo@gmail.com

 

voltar para página principal

 

1. Os supostos apoiadores do “condicionalismo”

É muito comum as pessoas que defendem o aniquilacionismo mencionarem eruditos de várias religiões que desde o início da Idade Moderna (1453) supostamente escreveram contra o conceito da imortalidade da alma para favorecer a ideia do “sono da alma” depois da morte. Listas são feitas com um extenso rol desses escritores, a exemplo da que está indicada no link abaixo. Normalmente elas se baseiam em obras adventistas como o livro The Conditionalist Faith of Our Fathers (vol. 2), de Le Roy Edwin Froom.

Champions of conditional immortality (“Campeões da imortalidade condicional”)

Encabeçam essa lista o filósofo católico Pietro Pomponazzi e o reformador protestante Martinho Lutero, sobre quem um determinado aniquilacionista escreveu:

“O próprio Martinho Lutero chegou a rechaçar a doutrina da imortalidade da alma com estas palavras: ‘Contudo, eu permito ao papa estabelecer artigos de fé para si mesmo e para seus próprios fiéis – tais como: que o pão e o vinho são transubstanciados no sacramento; que a essência de Deus não gera nem é gerada; que a alma é a forma substancial do corpo humano; que ele [o papa] é o imperador do mundo e rei dos céus, e deus terreno; que a alma é imortal; e todas estas monstruosidades sem fim no monte de estrume dos decretos romanos – para que tal qual sua fé é, tal seja seu evangelho, e tal a sua igreja, e que os lábios tenham alface apropriada e a tampa possa ser digna da panela’.”. – Lucas Banzoli.

As “Testemunhas de Jeová” e outros aniquilacionistas devem ficar contentes quando leem declarações como essas. Lendo apenas o que aí está poderão chegar à conclusão que Lutero era a favor do ponto de vista que defendem. Mas será que Lutero realmente acreditava nisso? Ele pode mesmo ser invocado em apoio aos que combatem o ensino da imortalidade da alma?


Lutero afixa suas 95 teses na capela de
Wittenberg

 

2. Definindo conceitos e estabelecendo critérios

Antes de responder às perguntas anteriores é necessário primeiro esclarecer alguns pontos.

a) O que é o aniquilacionismo

Conforme já explicado em outros artigos sobre o aniquilacionismo moderno, este conceito significa basicamente o seguinte: o ser humano não possui uma alma espiritual (“espírito”) que permanece viva quando ele morre. As concepções de “alma” e “espírito” são aspectos meramente figurativos relacionados ao corpo quando está vivo. Neste caso, também possui sentido figurado toda linguagem utilizada na Bíblia sobre a alma ou o espírito saírem do corpo depois da morte e irem para algum lugar, bem como a expressão “sono da alma” cunhada pelos aniquilacionistas.

Na prática, o significado de tudo isso é que a pessoa deixa de existir completamente quando morre. Então como se dará a vida eterna prometida aos fiéis? Deus os recriará numa data incerta do futuro, processo que consistirá basicamente em Ele produzir novos corpos e implantar em seus cérebros vazios as lembranças de quem morreu. Isto seria a ressurreição. Outras nomenclaturas são dadas a essa crença, as quais são usadas no lugar de “aniquilacionismo”. As mais comuns são “condicionalismo” e “imortalidade condicional”.

E os que Deus decidir não “ressuscitar” dessa forma? Ficarão no estado em que já se encontram, de completa inexistência, contradizendo assim o ensino bíblico de que haverá uma ressurreição tanto de justos quanto de injustos*, segundo o qual os primeiros receberão no céu o prêmio por sua fidelidade e os segundos serão condenados aos suplícios da Geena ardente, chamada hoje de “inferno”.** Enquanto isso não acontece, os justos que morreram (ou suas almas) aguardam em um bom lugar, ao passo que os injustos padecem no Hades. Esse era o ensino apostólico da igreja primitiva. – João 5:28, 29; Atos 24:15; Mateus 8:11, 12; 25:31-46; Marcos 9:47, 48; Lucas 16:19-31; Apocalipse 20:10.

* As “Testemunhas de Jeová” encontraram uma explicação para superar essa dificuldade. Segundo elas, os injustos são pessoas que não tiveram oportunidade de conhecerem a Deus, e por isso ressuscitarão no paraíso terrestre durante o reino milenar de Cristo. Os que desperdiçarem a oportunidade e forem infiéis serão executados e voltarão à inexistência. No entanto, Jesus foi claro ao dizer que a ressurreição dos injustos se dá com base no que fizeram antes da primeira morte. É tanto que um dos critérios de julgamento é se eles ajudaram os irmãos de Cristo quando estes passaram por dificuldades. Obviamente, tais pessoas não passariam por isso no milênio, para que os injustos pudessem ajudá-las. De qualquer maneira, essa releitura apresenta o mesmo problema, pois as TJs também dizem que há injustos que não serão ressuscitados, a exemplo de Judas Iscariotes. Mas Jesus não disse que só uma parte do contingente de injustos é que seria ressuscitada. Falou que todos os mortos seriam ressuscitados (João 5:28, 29). Para contornar essa dificuldade, as TJs usam outro artifício. Dizem que só os que foram para os túmulos que estão na memória de Deus (“túmulos memoriais”) é que serão levantados. Os demais ficarão “dormindo”.

** Ou seja, a imortalidade realmente está condicionada ao comportamento prévio de cada pessoa, porém não se trata do “condicionalismo” ensinado pelos aniquilacionistas, pois de acordo com o condicionalismo cristão todas as almas continuam vivas após a morte do corpo (Mateus 10:28), porém há dois destinos diferentes para elas após o julgamento final, de acordo com a maneira que cada uma viveu quando estava na Terra qual ser humano, antes da primeira morte.

b) A imortalidade da alma e o “sono” dos mortos

Pois bem, com tais conceitos em mente, veja agora o que disseram dois cristãos antigos do segundo século, os quais sucederam aos discípulos diretos dos apóstolos:

O homem velho: ‘Elas [as almas] não são, então, imortais?’ Justino:Não, desde que o mundo apareceu a nós para sermos gerados... Será que tal coisa escapou à observação de Platão e Pitágoras, aqueles sábios, que foram como uma muralha e fortaleza da filosofia para nós?’.”. – Diálogo com Trifão, Justino de Roma, cap. 5, c. 155 d.C.

“Pois, embora o relaxamento dos sentidos e das forças físicas, que ocorrem naturalmente no sono, pareçam interromper a vida sensorial quando os homens dormem em intervalos iguais de tempo e, por assim dizer, voltam à vida [quando acordam], [eles] não se recusam a chamá-lo [o sono] de vida. E por esta razão, eu suponho, alguns chamam de sono o irmão da morte... porque aqueles que estão mortos e aqueles que dormem estão sujeitos a estados semelhantes, no que diz respeito pelo menos a quietude e a ausência de todo o senso do presente ou do passado, ou melhor, da própria existência e da própria vida. Se, portanto, não nos recusamos a chamar pelo nome de vida a vida de homens cheios de tal desigualdade desde o nascimento até a dissolução, e interrompidos por todas aquelas coisas que já mencionamos, nem devemos desanimar da vida que sucede à dissolução [do corpo depois da morte], conforme envolve a ressurreição, embora por um tempo seja interrompida pela separação da alma do corpo”. – Sobre a ressurreição dos mortos, Atenágoras de Atenas, cap. 16.

Como se nota, de acordo com esses dois cristãos da igreja primitiva a alma não é imortal e a morte pode ser comparada ao sono. Aparentemente isso está de acordo com o que dizem os “condicionalistas” modernos. Mas será mesmo? Leia agora o que esses mesmos autores supracitados também escreveram:

“Quando chegarmos ao fim da nossa vida terrena, poderemos pedir o mesmo de Deus (que proteja nossas almas)... E que nossa alma sobrevive à morte eu já mostrei a você pelo fato de que a alma de Samuel foi chamada pela bruxa, conforme Saul solicitou. E parece também que todas as almas de semelhantes homens justos e profetas estão potencialmente sujeitas ao domínio de tais poderes... por causa destas coisas que parece que eram feitas... na morte [devemos] orar para que nossas almas não caiam nas mãos de tais poderes”. – Diálogo com Trifão, Justino de Roma, capítulo 105.

“Mas como sabemos que Deus é testemunha do que pensamos... estamos convencidos de que quando formos removidos da vida atual viveremos outra vida melhor do que a presente, e celestial... livres de toda mudança ou sofrimento na alma, não como carne... mas como espíritos celestiais... porque Deus não nos fez como ovelhas ou animais de carga... para que sejamos perecíveis e aniquilados”. – Um apelo em favor dos cristãos, Atenágoras de Atenas, cap. 31.

Certamente os aniquilacionistas não concordarão com o que aí está, embora provavelmente concordariam com o que foi dito antes pelas mesmíssimas pessoas. Nota-se que dessa vez Justino e Atenágoras afirmam categoricamente que a alma permanece viva e consciente depois da morte do corpo, e que os fiéis vão para o céu imediatamente, conforme os próprios apóstolos ensinaram. Esse aparente conflito de entendimentos é o ponto crucial para entender o que será visto na seção específica sobre Lutero.

Para os representantes da fase inicial da igreja cristã, existe uma grande diferença entre a crença da alma continuar viva depois da morte do corpo e o conceito grego sobre a imortalidade da alma (Mateus 10:28). Este sempre foi combatido pelos cristãos primitivos, sem prejuízo à esperança cristã de sobrevivência imediata e consciente da alma. Dentre outras coisas, os filósofos gregos da escola de Platão diziam que a origem da alma é celestial e ela almeja se livrar do corpo, que é algo mau e indesejado, a fim de voltar para o local de onde veio. Por isso a alma seria divina e imortal por natureza, o que para os gregos significava que ela nunca teve princípio e nunca terá fim. E um dia todas as almas se integrariam à alma do universo (veja mais detalhes neste link). Arnóbio de Sica, que será comentado mais adiante, escreveu um livro endereçado aos pagãos onde combateu tais ensinos.

E com respeito ao “sono da morte”, visto que um corpo morto lembra alguém que está dormindo, foi tão somente natural que nos tempos antigos a morte fosse comparada ao sono físico. Os mesmos cristãos que ensinaram a sobrevivência consciente e imediata da alma depois da morte fizeram uso dessa linguagem figurativa, porém sem jamais acreditarem que isso significa a inexistência ou inatividade de quem morre, conforme explicou outro cristão do século II:

“Todas as almas, portanto, estão trancadas no Hades... além disso, existem lá experiências de punição e de consolação, como se infere do homem pobre e o rico [da parábola de Jesus, em Lucas 16:19-31]... Por que, então, você não pode supor que a alma sofra punição e consolo no Hades no intervalo [entre a morte e a ressurreição], enquanto aguarda sua alternativa de julgamento, em uma certa antecipação, tanto de melancolia quanto de glória?... porque a alma deve ser coberta primeiro por sua vestimenta da carne restaurada, que, como parceira de suas ações, também deve ser um participante da recompensa. O que, então, deve ocorrer nesse intervalo? Vamos dormir? Mas as almas não dormem, mesmo quando os homens estão vivos: pois são os corpos que devem dormir, aos quais também pertence a própria morte, que nada mais é que seu espelho e o falso sono”. – Tratado sobre a alma, Tertuliano, cap. 58, c. 197 d.C.

Algum tempo depois de sua conversão, Tertuliano se afastou da igreja primitiva e se filiou à seita do montanismo. Como se nota, ele achava que nenhum cristão vai imediatamente para o céu depois da morte, mas aguarda no seio de Abraão o dia em que o corpo carnal será ressuscitado. Dizia-se entre os judeus que esse “seio” era um setor à parte do Hades, onde havia refrigério ao invés de calor, alegria no lugar de sofrimento. Mas a igreja não recepcionou essa opinião de Tertuliano, que também dizia que os mártires não passariam por essa espera e que seriam recebidos imediatamente no mais alto dos céus.

De todo modo, é óbvio que mesmo com essa peculiaridade em sua teologia, Tertuliano seguiu a igreja primitiva no entendimento de que as almas permanecem vivas, sofrendo penas ou recompensas, mesmo que a morte seja ocasionalmente comparada ao sono. Ora, de acordo com a Bíblia, o próprio profeta Samuel quando voltou do Hades (ou seja, do subterrâneo profundo da Terra) disse o seguinte naquele episódio lembrado por Justino:

Por que perturbaste o meu descanso, para que eu fosse trazido (para cima)?”. – 1 Samuel 28:15, Douay-Rheims, American Edition.

Sendo assim, comparar a morte com o descanso do sono, no qual quem “descansa” pode ser “incomodado”, não era novidade no linguajar do antigo povo de Deus, e foi utilizado até por alguém que já tinha morrido fisicamente! Isso indica que a Bíblia jamais apoiou o aniquilacionismo, embora o Antigo Testamento não ensinasse que os justos vão para o céu, mas sim que todos vão para o Seol (Hades), local invisível que os hebreus diziam estar localizado no coração da Terra. – Mateus 12:40.

c) A condenação dos maus no inferno

Por fim, há uma última situação que será útil na presente análise, que é o tormento eterno dos ímpios que foi ensinado na igreja primitiva. Não demorou muito para que esse ensino fosse negado por algumas pessoas.* O primeiro autor cristão a questionar o “inferno de fogo” para os maus foi Arnóbio de Sica, que no início do século IV disse:

“Mas qual homem não percebe que aquilo que é imortal, o que é algo simples de notar, não pode ser objeto de nenhuma dor? Que o que sofre dor, ao contrário, não pode ser imortal?... Porque eles são banidos, e sendo aniquilados, falecem inutilmente em uma destruição eterna... Pois aquilo que é visto pelos olhos [quando alguém morre] é somente a separação da alma do corpo, não a aniquilação final: esta, eu digo, é a verdadeira morte do homem... Visto que essas coisas são assim, e fomos ensinados pelo maior mestre que as almas são colocadas não muito longe das mandíbulas da morte, entretanto elas podem ter suas vidas prolongadas pelo favor e bondade do Governante Supremo, contanto que tentem estudá-lo e conhecê-lo”. – Contra os Pagãos, de Arnóbio, Livro II, parágrafos 14 e 32.

* Talvez porque é difícil entender a razão de um Deus que é amor preferir o sofrimento sem fim dos maus ao invés de erradicá-los da existência. Aliás, este é um argumento muito utilizado hoje em dia. Por exemplo, veja na última seção o que F. F. Bruce disse sobre isso. (Mas Deus não é o Legislador que decide?). Ou então porque Deus não faz tudo o que é possível para que todos se arrependam e ninguém pereça. (Mas isso não feriria o princípio do livre arbítrio?).

Dizer que ‘a alma não fica muito longe das mandíbulas da morte’ significa, logicamente, que algo diferente acontece com a alma, uma experiência que o corpo não experimenta, ainda que seja uma situação próxima à da morte do corpo (Mateus 10:28). Certamente isso tem conexão com aquilo ensinado pelos antigos hebreus, de que o Seol é um lugar indesejado onde as “sombras” (almas) dos mortos continuam existindo de maneira triste, mas Deus pode resgatar os justos dessa circunstância aflitiva, trazendo-os um pouco mais para cima. O que faz lembrar os seguintes textos:

“A seca, bem como o calor, arrebatam as águas da neve; assim faz também o Seol com os que pecaram”. – Jó 24:19.

“Porque a tua benevolência é grande para comigo e livraste a minha alma do Seol, do seu lugar mais baixo”. – Salmo 86:13.

É justamente esse cenário descrito poeticamente pelo salmista que se vê na parábola do rico e Lázaro, na qual o rico é retratado na parte mais baixa do Hades e olha para “cima” a fim de manter contato com Abraão, que está em um local mais alto onde há refrigério, juntamente com o ex-mendigo Lázaro.

Diante do exposto, fica claro que Arnóbio manteve o mesmo conceito ensinado pela igreja de que na morte a alma se separa do corpo e vai para o Hades, onde continua existindo de uma maneira indesejada, porém se forem as almas dos justos terão um destino diferente ao chegarem lá. E o que acontecerá com os maus? Ao invés de serem condenados ao tormento eterno após o julgamento final, eles serão aniquilados. Erradicados da existência. Isto sim é a verdadeira morte, de acordo com Arnóbio. Mas enquanto isso não acontece, as almas continuam vivas e conscientes. Não por causa de uma imortalidade inerente e divina conforme os gregos pensavam, mas simplesmente porque Deus determinou que fosse assim, pois ele que é a verdadeira fonte da vida. Ninguém possui esse atributo de maneira independente do Criador.

d) Fatores que permitem uma análise adequada

Levando em consideração tudo o que foi analisado até aqui, chega-se às seguintes conclusões:

1) A imortalidade da alma que o cristianismo antigo sempre defendeu se resume apenas à sobrevivência imediata dela depois da morte do corpo. O que acontecerá com ela depois do Juízo Final é outra questão.

2) Mesmo com tal crença de que a alma continua existindo de maneira consciente, os cristãos às vezes se referiam à morte como sendo um “descanso” ou um “sono”, como era comum entre os antigos.

3) Os que não acreditavam no tormento eterno dos perversos, mas diziam que eles seriam apenas destruídos, mantiveram a crença de que a alma continua viva depois da morte.

4) O que a filosofia grega ensinou sobre a imortalidade da alma foi combatido pelos autores da igreja primitiva, pois contradizia o que os cristãos entendiam por imortalidade da alma.

Sendo assim, um autor qualquer (vivo ou morto) pode perfeitamente ter mencionado os que “dormem” na morte, ter sido contra o conceito grego da imortalidade da alma e ter rejeitado o ensino do inferno de fogo, mas mesmo assim ter continuado a acreditar que a alma é imortal no sentido de que ela permanece viva e consciente quando o corpo morre.

Ressalte-se também que desde a época em que os aniquilacionistas iniciaram esse debate, no início da Idade Moderna (disputa que não aconteceu na Antiguidade), houve uma tendência crescente dos teólogos rejeitaram o diálogo da igreja com a filosofia grega que se desenvolveu a partir do século IV, que levou ao ponto da teologia cristã se apropriar da linguagem do platonismo para descrever o conceito cristão de imortalidade da alma, que quase nada tem a ver com o grego.

Ou seja, essa intertextualidade passou a ser motivo de controvérsia entre teólogos contemporâneos, que passaram a se envergonhar daquilo que a igreja primitiva sempre ensinou sem constrangimento e que depois foi sistematizado na linguagem de Platão. No entanto, a maioria desses teólogos não passou realmente para o lado dos aniquilacionistas, apesar de os mais “progressistas” ficarem “em cima do muro”, como se diz na linguagem popular. Mesmo assim, esses escritores são regularmente citados (de maneira inadequada) por pessoas que acham que eles estão apoiando o aniquilacionismo. Abaixo um desses autores que já foi citado dessa forma errônea:

“A palavra de Deus fala de homens glorificados... mas nunca de almas glorificadas... os preconceitos e os ensinamentos humanos tomaram o lugar da palavra de Deus, e o poder e a expectativa da ressurreição deixaram de ser a condição habitual da igreja... Esta doutrina da ressurreição era reconhecida como a doutrina pregada publicamente pelos apóstolos; não era que a alma na morte ia para o céu... a ideia da imortalidade da alma, embora reconhecida em Lucas 12:5 e 20:38, não é, em geral, um tema do evangelho... isso vem, ao contrário, dos platonistas... a doutrina da imortalidade da alma veio a substituir a da ressurreição. Isto foi por volta do tempo de Orígenes”. – The Hopes of the Church of God – In Connection with the Destiny of the Jews and the Nations. As Revealed in Prophecy – Eleven Lectures Delivered in Geneva (1840), de John Nelson Darby, pp. 39-54.

Não obstante o lampejo dos versículos de Lucas, essas palavras de Darby dão a nítida impressão de que ele está contra o ensino de que a alma permanece viva e consciente depois da morte. Mas não é isso o que ele realmente estava pensando. As ressalvas que fez se referiam à imortalidade da alma como era ensinada pelo platonismo. É tanto que em outras ocasiões ele disse o seguinte:

“Já vimos, em um artigo anterior, que a alma não deixa de existir com o corpo. E que a parábola do homem rico certamente ensina que os ímpios existem na miséria”. – Eternal Punishment, Scriptural Enquiry As To The Doctrine Of Eternal Punishment Contained In J. P. Ham's Theological Tracts, de Nelson H. Darby.

“O trabalho foi realizado na cruz, o qual poderia transportar uma alma para o paraíso [Lucas 23:43]... E AGORA o ladrão arrependido é uma brilhante testemunha da graça perfeita e salvação eterna através do Seu sangue”. – Notes on the Gospel of Luke, 1869, de John Nelson Darby, pp. 233-235.

“... esta doutrina [do aniquilacionismo] é uma heresia mortal e desmoralizante... a morte nunca significa deixar de existir... Assim, na parábola do homem rico e Lázaro, eles subsistem após a morte... ‘Porque todos vivem para ele’ - homens mortos, mas sempre vivos para Deus... A segunda morte é mesmo serem lançados no lago de fogo, onde são atormentados. Ou seja, não deixam de existir... esse materialismo quanto à alma é totalmente contrário às Escrituras... Além do que citei dos Evangelhos... [que] prova demonstrativamente que subsistimos depois da morte. A morte dissolve o nosso estado atual de existência, mas essa existência não cessa de maneira absoluta”. – The Doctrine of Annihilation; Eternal Punishment, de John Nelson Darby, extraído de Notes, Letters & Other Darby Writings, carta 1.

Então, como está claro, Darby não apoiava o “condicionalismo” materialista. E o que dizer de Lutero? De que lado da disputa ele estava de fato?

 

3. Em que Lutero realmente acreditava

Se Lutero realmente foi aniquilacionista ou “condicionalista”, por que a Igreja Luterana não advoga esse ensinamento? Isto por si só já é um indício de que é necessário investigar melhor o assunto. É o que será feito a partir de agora seguindo os critérios definidos na seção anterior.

Para começar, considere as seguintes afirmações de Lutero:

“Os filósofos de fato disputaram sobre a imortalidade da alma, mas tão friamente que eles parecem estar estabelecendo meras fábulas. Aristóteles acima de tudo argumentava sobre a alma de tal maneira que ele diligentemente e astutamente evita discutir sua imortalidade em qualquer lugar; não queria nem expressar o que ele pensou sobre isso. Platão relacionou o que ele tinha ouvido ao invés de sua própria opinião. Nem pode sua imortalidade ser provada por qualquer razão humana, pois não é algo ‘debaixo do sol’ acreditar que a alma é imortal. No mundo nem é visto nem entendido como certo que as almas são imortais”. – Luther Works [LW] 15:59.

Como pode ser visto, para Lutero a convicção na imortalidade da alma não advém da razão humana. Ao contrário, pela razão o homem é levado a crer que a imortalidade não existe, afinal, “debaixo do sol”, conforme disse Salomão, “não há nenhuma superioridade do homem sobre o animal”. A crença na permanência da alma após a morte do corpo depende da fé e não de aspectos biológicos visíveis.  Além do mais, nota-se perfeitamente que a crítica de Lutero é sobre a filosofia grega e não o ensino cristão a respeito da imortalidade. – Eclesiastes 3:20, 21; Compare com Hebreus 11:1.

Prosseguindo, ao falar sobre o que acontece à alma depois da morte, Lutero disse o seguinte numa carta enviada a Nicholas von Amsdorf:

“Concernente às suas ‘almas’, eu não tenho suficiente [conhecimento do problema] para responder. Estou inclinado a concordar com sua opinião que as almas dos justos apenas dormem e que não sabem onde estão até o Dia do Julgamento. Sou levado a esta opinião pela palavra da Escritura. ‘Eles dormem com seus pais’ [Ex.: 2 Reis 8:24]. Os mortos que foram levantados por Cristo e pelos apóstolos testificam este fato, visto que estavam como se tivessem acabado de acordar e não sabiam onde estiveram. A isto podem ser acrescentadas as eufóricas experiências de muitos santos. Eu não tenho nada com o qual eu poderia derrubar esta opinião. Mas eu não me atrevo a afirmar que isto é verdade para todas as almas em geral, por causa do êxtase de Paulo e a ascensão de Elias e de Moisés (que certamente não apareceram como fantasmas no monte Tabor)”.

O êxtase mencionado por Lutero foi uma experiência sobrenatural pela qual o apóstolo Paulo passou, que o arrebatou ao terceiro céu, o paraíso de Deus, onde testemunhou alguma coisa da rotina celeste. Paulo disse que não sabia se o que viu tinha sido no corpo ou fora do corpo. Tal relato é um claro indicativo que os cristãos do século I acreditavam numa existência fora do corpo físico da mesma maneira que os cristãos dos séculos seguintes (2 Coríntios 12:1-5). Lutero também não vê problema em acreditar no que a Bíblia menciona sobre o aparecimento de Moisés e Elias para Jesus, durante a transfiguração:

“E, enquanto [Jesus] orava, a aparência do seu rosto tornou-se diferente e a sua vestimenta tornou-se resplendentemente branca. Também, eis que dois homens conversavam com ele, sendo eles Moisés e Elias. Estes apareceram com glória e começaram a falar sobre a sua partida, que ele estava destinado a cumprir em Jerusalém”. – Lucas 9:29-31.

Os aniquilacionistas costumam afirmar enfaticamente que “se baseiam apenas na Bíblia” e que acreditam somente nela. Mas tal convicção fenece abruptamente quando se deparam com a passagem acima. Vão em busca de interpretações alternativas para “provar” que ali não eram efetivamente Moisés e Elias conversando com Jesus sobre sua morte iminente, mesmo a Bíblia afirmando que foram eles mesmos. Um dos argumentos é que por tratar-se de uma visão o acontecimento não pode ter sido real. Mas esta é uma conclusão insustentável, conforme demonstram diversos textos bíblicos. Uma visão não significa necessariamente que o objeto visionado não existe, ainda mais nos casos em que ela apresenta um diálogo entre pessoas em tempo real. Por exemplo, sobre os anjos que apareceram defronte o túmulo de Jesus e que avisaram certas mulheres que ele fora ressuscitado, um discípulo disse:

“Além disso, certas mulheres dentre nós também nos assombraram, porque tinham ido cedo ao túmulo memorial, mas, não achando seu corpo, voltaram dizendo que tiveram também uma visão sobrenatural de anjos, que disseram que ele estava vivo”. – Lucas 24:22, 23; veja mais exemplos no capítulo 15.

As “Testemunhas de Jeová”, por sua vez, dizem que na transfiguração Jesus estava falando sozinho, e que o evento foi uma encenação para reforçar “poderosamente o testemunho dele a respeito do Reino e do seu futuro reinado”. Há quem diga também que eram anjos representando Moisés e Elias. – A Sentinela, 01/04/00, p.13.

Pois bem, Lutero continua:

“Quem sabe como Deus lida com as almas que partiram? Não poderia [Deus] da mesma maneira fazê-las dormir e acordar (ou enquanto ele deseja [que elas durmam]), assim como ele submete ao sono aqueles que vivem na carne? E novamente, aquela passagem de Lucas 16[:23 em diante], concernente a Abraão e Lázaro, mesmo que não force o conceito de uma universal [capacidade de sentir, da parte de quem se foi], ainda assim atribui uma capacidade de sentir a Abraão e Lázaro, e é difícil deturpar esta passagem para que ela se refira ao Dia do Julgamento”.

Perceba que para Lutero o “partir da alma” não é simplesmente a vida que cessa no corpo biológico, mas sim uma viagem literal da alma para outro lugar. Além disso, mais uma vez, o nível de congruência com as Escrituras que Lutero demonstra no assunto em análise é maior do que o geralmente visto em pessoas que atualmente combatem o ensino da existência consciente da alma após a morte.

O “sono da alma” em que Lutero acreditava pouco tem a ver com o ponto de vista dos aniquilacionistas. Ao contrário destes, Lutero não vê necessidade de distorcer o relato do rico e Lázaro em busca de uma explicação alternativa. Simplesmente aceita o relato inspirado do jeito que ele é. O motivo dessa atitude é simples: Lutero realmente acreditava na imortalidade da alma, nos moldes ensinados pelo Cristianismo e não pelo platonismo, muito embora achasse possível que a espera “padrão” da alma fosse ficar dormindo, mas que também poderia ficar acordada em determinadas situações, da mesma maneira que acontece com os seres humanos, que hora estão acordados, ora estão dormindo. Mais adiante há citações sobre este ponto.

Então Lutero conclui:

“Eu penso o mesmo sobre as almas condenadas; algumas podem sentir as punições imediatamente após a morte, mas outras podem ser poupadas das [punições] até aquele Dia [do Julgamento]. Pois o farrista [o rico da parábola] confessa que está sendo torturado; e o Salmo diz: ‘O mal irá se encontrar com o homem injusto quando ele perece’ [Salmo 37:35-42]. Você talvez também atribua isto ou ao Dia do Julgamento ou à angústia passageira da morte física. Então, minha opinião seria que isto é incerto. É mais provável, entretanto, que, com algumas exceções, todas [as almas que partiram] dormem sem possuir qualquer capacidade de sentir. Considere agora quem eram os ‘espíritos em prisão’ a quem Cristo pregou, como Pedro escreve: Não poderiam eles também dormir até o Dia [do Julgamento]? E ainda quando Judas diz a respeito dos sodomitas que eles sofrem a dor do fogo eterno ele está falando de um fogo presente”. – LW 48:360-361.*

* Ao dizer “fogo presente”, Lutero está mencionando Judas 7, que apresenta o verbo “sofrer” no presente contínuo em referência aos habitantes de Sodoma e Gomorra, cujas cidades foram castigadas por Deus: “Assim, Sodoma, Gomorra e as cidades circunvizinhas, que se corromperam da mesma maneira e se entregaram ao vício, são apontadas como exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno”. (Missionários Capuchinhos) A Bíblia do Peregrino verte o final assim: “E agora sofrem a pena de um fogo eterno para exemplo de outros”.

Nota-se que Lutero não só acreditava que a alma do homem continua existindo depois da morte, como também considerava a antiga crença da punição dos ímpios no “fogo eterno” da Geena.

Veja a seguir mais afirmações de Lutero:

“Mas agora surge outra questão. Visto que é certo que as almas estão vivas e estão em paz, que tipo de vida ou descanso é este? Bem, esta é uma questão muito elevada e muito difícil para sermos capazes de defini-la, pois Deus não quis que nós soubéssemos sobre isto nesta vida. Assim é suficiente para nós sabermos que as almas [dos justos] não saem de seus corpos para o perigo de torturas e punições do inferno, mas que foi preparado para elas um quarto onde elas podem dormir em paz.

“No entanto, há uma diferença entre o sono ou descanso desta vida e aqueles da vida futura. Pois durante a noite uma pessoa que ficou exausta pelo seu dia de trabalho nesta vida entra em seu quarto em paz, como se fosse, para dormir lá; e durante esta noite ele desfruta do descanso e não tem conhecimento sobre qualquer mal causado ou por fogo ou por assassinato. Mas a alma não dorme da mesma maneira. Ela está desperta. Ela experimenta visões e os discursos dos anjos de Deus. Então o sono na vida futura é mais profundo do que nesta vida. Todavia, a alma vive perante Deus. Com esta analogia, que eu tenho do sono de uma pessoa viva, eu estou satisfeito; pois nele há paz e quietude. Ele acha que dormiu somente uma ou duas horas, e ainda assim ele vê que a alma dorme de tal maneira que também está desperta”. – LW 4:313.

“… Quando o ímpio morre, se eles partiram há muito tempo, antes da vinda de Cristo, ou hoje, depois que Cristo foi revelado, eles simplesmente vão para a perdição. Mas nós não sabemos se sua perdição começa imediatamente depois da morte; pois está escrito (Rom. 14:10) que todos deverão ficar diante do tribunal, e João 5:29 declara: ‘Aqueles que fizeram o bem irão para a ressurreição da vida, e aqueles que fizeram o mal, para a ressurreição de julgamento’.”.

“Concordemente, devemos nos lembrar que depois de Cristo o seio de Abraão veio a um fim e que todas as promessas sobre a vinda da Semente se cumpriram. Nós temos outras e mais gloriosas promessas que nos foram dadas pelo Filho de Deus, que se encarnou, sofreu e foi levantado de novo. Se não acreditarmos nestas, nós estamos condenados para sempre. Mas eu sou incapaz de dizer positivamente em que estado aqueles que foram condenados no Novo Testamento estão. Não tenho opinião formada sobre isto”.  – LW 4:316.

E comentando sobre o falecido Urbanus Rhegius, Lutero disse:

“Nós devemos saber que ele é abençoado e que ele tem vida eterna e alegria eterna e participação com Cristo na igreja Celestial. Porque agora ele aprendeu, viu com seus próprios olhos, e ouviu aquelas coisas que ele aqui na igreja na terra explicou de acordo com a palavra de Deus”. – WA 53:400; Paul Althaus, The Theology of Martin Luther (Philadelphia: Fortress Press, 1963), p. 415.

“É verdade que as almas ouvem, percebem e veem depois da morte; mas como isto acontece, não entendemos... Se nos empenharmos em dar uma explicação de tais coisas segundo as características desta vida, então somos tolos. Cristo nos deu uma boa resposta; pois seus discípulos estavam, sem dúvida, bem curiosos. ‘Aquele que acredita em mim, ainda que morra, viverá’ (João 11:25); de maneira semelhante: ‘Se vivemos ou se morremos, nós somos do Senhor’ (Rom. 14:8)… ‘A alma de Abraão vive com Deus, seu corpo jaz aqui morto’ seria uma distinção que para minha mente é mera podridão! Eu a disputarei. Alguém pode dizer: ‘O Abraão inteiro, o homem completo, vive!’. ”. – Conversas com Lutero, págs. 122 f.; Compend of Luther’s Theology, de Hugh Kerr (Philadelphia: The Westminster Press, 1943), p. 241.

A esta altura já deve ter ficado evidente que quando Lutero incluiu em suas teses a “imortalidade da alma” ele não estava se referindo ao que hoje os aniquilacionistas combatem. O cerne da questão exposto nas teses era a autoridade da Igreja e a maneira que ela estava tratando o assunto. Para Lutero não havia necessidade de um decreto para os cristãos acreditarem na imortalidade da alma, pois isto já estava bem estabelecido nas Escrituras para os que têm fé. Disse ele:

“Quando o último concílio Laterano estava para ser concluído em Roma sob o Papa Leão, dentre outros artigos foi decretado que se devia acreditar que a alma é imortal. Disto se percebe que eles fazem da vida eterna um objeto de brincadeira fútil e desprezo. Desta maneira eles confessam que é uma crença comum dentre eles que não há vida eterna, mas que eles agora desejam proclamar isto por meio de uma bula”. – LW 47:37.

Ou seja, para Lutero, um decreto que visasse impor a crença na imortalidade da alma equivaleria a dizer que o público-alvo não acreditava na vida eterna. Logo, não se trata daquilo que o aniquilacionista Lucas Banzoli concluiu ao citar as palavras de Lutero, transcritas no início deste artigo.

Na verdade, o que Lutero estava questionando não era a imortalidade da alma, mas outros assuntos. Por exemplo, as mal afamadas indulgências, que alegadamente seriam um “atalho” para as almas saírem do purgatório e chegarem mais facilmente ao céu. Lutero não acreditava que a Igreja tivesse autoridade em tal processo de purificação, porém cria na existência consciente dessas almas.

Portanto, a questão está esclarecida. Lutero jamais endossou as conclusões dos aniquilacionistas. Pelo contrário, a investigação feita aqui demonstrou que, na ânsia de achar referências importantes em apoio a uma crença não bíblica, os aniquilacionistas caíram na armadilha de citar uma pessoa do passado completamente fora do contexto.

 

4. Sobre os demais “defensores” listados com Lutero

E o que dizer dos demais nomes mencionados na lista de ‘campeões do aniquilacionismo’? Será que todos apoiaram realmente o “condicionalismo” materialista? Dificilmente, embora uma grande parte deles parece que realmente fez isso. Seria preciso analisar nome por nome seguindo os critérios enumerados na segunda seção para se chegar a um veredicto, porém este não é o objetivo aqui. Mas é razoável concluir que, como aconteceu nos primeiros séculos do Cristianismo, provavelmente houve alguns casos em que os comentaristas citados não estavam questionando o conceito cristão da imortalidade da alma, conforme aceito atualmente, mas estavam escrevendo contra as ideias gregas sobre a alma, que são diferentes em vários aspectos. Ou então estavam negando apenas o tormento eterno, e assim por diante.

De qualquer forma, uma simples passada de vista na lista permite desconfiar de alguns dos supostos apoiadores. Para começar, nota-se que foram mencionadas algumas autoridades eclesiásticas. É difícil crer que algum arcebispo católico, por exemplo, chancelaria a visão aniquilacionista, apesar de que na época atual o “progressismo” tem feito alguns nomes da teologia capitularem diante do ceticismo relacionado às realidades espirituais. Além disso, há na lista alguns nomes famosos sobre os quais não se tem notícia de que eram aniquilacionistas materialistas, a exemplo de F.F. Bruce e Franz Delitzsch.

Outro fator muito provável é que alguns nomes da lista tiveram influência religiosa de outros antes de “mudarem de opinião” e abandonarem a ortodoxia cristã sobre o assunto. Isso os que mudaram, pois uma parte deles certamente foi doutrinada desde a tenra infância. Ou seja, há os que sempre acreditaram no aniquilacionismo. Isto se deduz de alguns nomes adventistas que aparecem na lista. Logo, muitos deles não se isolaram do mundo para ler a Bíblia e chegaram a tais conclusões aniquilacionistas sozinhos.

Mas enfim, é interessante concluir este artigo com uma rápida consideração sobre alguns desses nomes, começando pelo primeiro da lista de “campeões”, que veio antes de Lutero. Em seguida o tempo será avançado até os séculos 19 e 20. Essa amostra dará uma ideia se o mesmo “padrão de qualidade” que usaram com Lutero foi também aplicado em outros casos...

a) Pietro Pomponazzi (1462-1525)

O nome de Pomponazzi está vinculado a um importante concílio católico que deliberou o seguinte:

“PROMULGADA EM 19 DE DEZEMBRO 1513, na Oitava Sessão do Quinto Concílio de Latrão (1512-17), a bula papal Apostolici reginiinis destaca-se como uma das poucas decisões doutrinárias desse conselho predominantemente político e de reforma... este decreto é geralmente entendido como representando a declaração dogmática formal da Igreja Católica sobre a imortalidade individual da alma”. – A Reinterpretation of the Fifth Lateran Council Decree Apostolicd regiminis (1513), de Eric A. Constant, Michigan State University, publicado no Sixteenth Century Journal, XXXIII/2 (2002), p. 354 (1 do PDF).

A bula foi uma resposta da Igreja a determinadas discussões de cunho aniquilacionista que ocorriam em alguns círculos filosóficos ligados à escola de Aristóteles, como também pontuou a obra acima:

“Esta passagem da seção doutrinária fornece um forte apoio à interpretação padrão de que, com o Apostolici reginiiinis, a igreja declarou dogmaticamente a doutrina da imortalidade individual contra os ensinamentos de certos filósofos sobre a alma. Está claro nesta passagem que os padres do conselho certamente consideravam a imortalidade individual da alma como dogma. Embora determinar o que especificamente constitua o dogma possa ser um pouco complicado, em seu nível mais básico significa um ensinamento oficial da igreja sobre a fé ou a moral, entendido como representando a verdade revelada e proclamada solenemente de uma maneira que claramente se destina a vincular toda a comunidade de fiéis e expresso de uma maneira tão clara que negá-lo é uma heresia. Assim, quando Apostolici reginittis declara, ‘hoc sacro approbante concilio damnamus et reprobamus omnes asserentes animam intellectivam mortalem esse, aut unicam in cunctis hominibus et haec in dubium vertentes’ (app., 377, n. 3), está claramente indicando que a doutrina da imortalidade individual é considerada um dogma”. – p. 360 (8 do PDF).

Mas na contramão da determinação católica, o filósofo aristotélico Pietro Pomponazzi publicou um trabalho que exaltava precisamente o que a bula combatia, conforme observa a enciclopédia abaixo:

“A obra defende uma leitura materialista de Aristóteles, na qual a alma humana depende e perece com o corpo. O tratado foi publicado três anos depois que o Quinto Concílio de Latrão emitiu a bula Apostolici regiminis. A bula exigia que os filósofos se abstivessem de ensinar que a alma é uma em número, é mortal e que o universo é eterno. Exigia também que os filósofos defendessem a doutrina cristã da melhor maneira possível. Como muitos ensinamentos de Pomponazzi pareciam estar contra a bula, ele foi atacado, mas também defendido por vários estudiosos e autoridades eclesiásticas. Embora tenha sido acusado de heresia, ele não foi julgado, estando sob a proteção do poderoso cardeal veneziano Pietro Bembo (ver Pine 1986: 124–28)”. – Stanford Encyclopedia of Philosophy (2017), versão on line.

No entanto, algum depois foi exigido que Pomponazzi se retratasse do que havia escrito:

“Pietro Pomponazzi (1462-1525) foi um filósofo neo-aristotélico associado às universidades de Pádua, Ferra e Bolonha. Seus principais trabalhos relacionados à imortalidade são De immortalitate animae (1516), Apologia (1518) e Defensiorium (1519). Sua teoria baseada na epistemologia e psicologia aristotélicas de que a alma morre juntamente com a morte do corpo, foi balanceada, mediante um sutil recurso escolástico, com a fé que de qualquer maneira nos garante a imortalidade da alma. Em De immortalitate animae [1516] e De Incantationibus (1556)*, um tratado sobre os milagres, Pomponazzi sugeriu que os milagres poderiam ser explicados como produzidos pelas Inteligências que movem os corpos celestes. De immortalitate animae provocou filósofos e teólogos e iniciou a controvérsia sobre a imortalidade, que foi um dos debates mais importantes anteriores à Reforma. A controvérsia alcançou proporções tão grandes que o Papa Leão X exigiu uma retratação de Pomponazzi em 1518, e seu trabalho final, o Defensorium, só foi publicado depois de incluída uma lista de conclusões ortodoxas que apoiam a imortalidade da alma (Dictionary of Scientific Biography, XI: 71-74)”. – Henry More. The Immortality of the Soul: Edited with an Introduction and Notes (2012), Nijhoff Publishers, editado por A. Jacob, pp. 331, 332.

* O De Incantationibus foi escrito em 1520, porém a edição impressa só saiu em 1556.

b) Franz Delitzsch (1813-1890)

Segundo a lista dos adventistas, esse erudito disse o seguinte:

“Não há nada na Bíblia que implique uma imortalidade natural... Do ponto de vista bíblico, a alma pode ser morta”. – A New Commentary on Genesis, Franz Delitzsch.

Delitzsch foi um hebraísta que fez uma das melhores traduções do Novo Testamento para o hebraico. Além disso, publicou um comentário bíblico em parceria com Carl Friedrich Keil no qual foi dito que é verdadeira a história do aparecimento do falecido profeta Samuel para a necromante. Como então Delitzsch poderia ser aniquilacionista? Embora Keil tenha sido o autor dessa parte da enciclopédia bíblica que escreveram, na explicação Keil remete a determinadas informações de Delitzsch. De qualquer maneira, se os dois assinaram a obra respondiam igualmente pelo conteúdo geral dela.

O que Delitzsch disse sobre a morte da alma, transcrito na lista dos “campeões”, deve ser uma referência ao costume bíblico de chamar o ser vivo que tem sangue de “alma vivente”. Esta alma sem dúvida morre, mas dentro dela há outra alma (invisível) que continua viva (Ezequiel 18:4; Mateus 10:28). Além disso, de acordo com a visão hebraica, na morte o corpo vai para a sepultura ao passo que a alma imaterial vai para o Seol, onde experimenta uma existência triste e vazia. Mas mesmo assim consciente, junto com outros “fantasmas” de gente falecida. Isso é o que significava a morte para um hebreu antigo. Ou seja, não era aniquilação. Tal concepção foi melhor esclarecida no Novo Testamento. – Lucas 16:19-31.

c) Frederick Fyvie Bruce (1910-1990)

Bruce foi um especialista em grego da Universidade de Edinburgh e publicou diversos manuais bíblicos. Conforme se nota na citação feita na “lista de campeões”, o problema aventado por ele tinha a ver com um daqueles quatro critérios. No caso, o tormento dos maus. Veja:

“... aniquilação é certamente uma interpretação aceitável das passagens relevantes do Novo Testamento... Por mim, eu continuo agnóstico. O tormento consciente eterno é incompatível com o caráter revelado de Deus”. – F. F. Bruce em uma carta para John Stott em 1989; John Stott: A Global Ministry, p.354.

No entanto, isso não significa necessariamente que Bruce não acreditava na sobrevivência imediata da alma depois da morte, pois, ao comentar o texto de Filipenses 1:23, em que Paulo disse que queria partir (na morte) para estar com Cristo, F. F. Bruce escreveu o seguinte:

Estar com Cristo, imediatamente após morrer, é a implicação de Paulo. Contra este pensamento O. Cullman nega que o NT apoie a ‘ideia de que os mortos estejam vivendo antes da época da volta e, assim, gozando já o fruto do cumprimento final das coisas’ (The Early Church p. 165). É possível que esses crentes que, quando morreram, estavam com Cristo, estejam esperando a ressurreição, como Paulo enfatiza (cf 3:21); entretanto esse autor não faz justiça suficiente a Paulo. O apóstolo encurta o hiato entre a morte e a ressurreição em 2 Coríntios 5:1-10. Veja A. Schweitzer, The Mysticism of Paul the Apostle, pp. 90-100,109-13; L. S. Thomton, Christ and the Church, pp. 137-40; F. F. Bruce, Paul: Apostle of the Free Spirit, pp. 309-13”. – Novo Comentário Bíblico Contemporâneo - Filipenses (1992), Editora Vida, F. F. Bruce, pp.63, 64.

Mais adiante há um comentário sobre Oscar Cullman, o teólogo aniquilacionista (?) citado por Bruce.

d) John Robert Walmsley Stott (1921-    )

Este é o último da referida lista. Stott é um teólogo anglicano. A ele são atribuídas correspondências particulares, não publicadas, em que ele teria se manifestado publicamente a favor do conceito de aniquilação dos maus e contra o tormento eterno. Basicamente a mesma linha de argumentação de F. F. Bruce. Não admira os dois terem trocado correspondências, devido a essa opinião em comum.

Entretanto, Stott escreveu um livro no qual se mostrou um convicto defensor da tradução ortodoxa de Lucas 23:43, segundo a qual Jesus prometera o paraíso ao malfeitor para o mesmo dia, e não para uma data futura. Disse Stott:

“Prometeu-lhe não somente a entrada no paraíso, que envolvia a alegria da presença de Cristo, como também uma entrada imediata, naquele mesmo dia. Ele lhe assegurou essas coisas dizendo: ‘Eu lhe garanto’ — a última vez em que usou essa expressão familiar. Imagino que, durante as longas horas de dor que se seguiram, o ladrão perdoado aconchegou o coração e a mente na promessa segura e salvadora de Jesus”. – A Bíblia Toda, o Ano Todo (2007), Editora Ultimato, John Stott. p. 257.

Diante disto, também fica inviável concluir que Stott aderiu ao aniquilacionismo materialista.

e) Oscar Cullmann (1902-1999)

Este é um teólogo bastante lembrado pelos aniquilacionistas.* É tido como um legítimo defensor do aniquilacionismo, não obstante sua formação luterana. Mesmo assim, em determinadas declarações ele não pareceu tão convicto disso, como será visto mais adiante. Um dos textos de Cullmann que os “condicionalistas” mais gostam de citar é o artigo intitulado “Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?”, mesmo sendo um texto pouco expressivo quando comparado a outros que foram escritos por ele.

* Curiosidade: Oscar Cullman defendeu o Ecumenismo, pois achava que é importante um entendimento mínimo entre as diversas denominações cristãs. Devido a isso, foi recebido por papas e convidado para ser ouvinte no II Concílio do Vaticano.

Devido ao seu currículo, é de se esperar que Cullmann soubesse que os antigos hebreus não eram materialistas. Se Cullmann e uns poucos acadêmicos realmente resolveram aderir à crença do aniquilacionismo (ou algo próximo disto), naturalmente eles não poderiam se valer das explicações simplistas e descontextualizadas de pessoas sem formação teológica, pois o público leitor deles é mais exigente. Qual foi então a estratégia que tais eruditos adotaram? A obra de referência a seguir explica:

“Defensores desta visão não tradicional [, que é o aniquilacionismo,] oferecem frequentemente uma mistura de conceitos bíblicos, teológicos e filosóficos, especialmente Cullmann em 1964 e Pinnock em 1994. Kvanvig em 1993 difere dos outros dois por ser mais estritamente filosófico, e incluir não uma defesa de um tipo de visão aniquilacionista, mas uma completa discussão do espaço lógico concernente às dificuldades apresentadas pela doutrina do inferno e as opções disponíveis para responder, juntamente com críticas extensivas de outros pontos de vista sobre o inferno”. – Heaven and Hell: Oxford Bibliographies Online Research Guide, Oxford University Press, p. 10, colchetes acrescentados.

Cullmann seguiu precisamente esse caminho: misturar conceitos bíblicos com argumentos puramente filosóficos e especulativos. Ao se voltar contra o conceito cristão da imortalidade da alma (significando aqui apenas a sobrevivência imediata dela), Cullmann percebeu que problemas conceituais ocorreriam caso adotasse uma compreensão materialista, pois isso entraria em conflito com determinadas passagens bíblicas, a exemplo dessas duas:

“Mas, temos boa coragem e bem nos agradamos antes de ficar ausentes do corpo e de fazer o nosso lar com o Senhor”. – 2 Coríntios 5:8, 9.

“Sinto-me num dilema: meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa”. – Filipenses 1:21-23, Bíblia de Jerusalém.

Por isso, ele elaborou uma explicação bem criativa para essas passagens.* Ele propôs um sistema chamado “tempo linear” que explicaria a linguagem não aniquilacionista do Novo Testamento, tais como as declarações acima de Paulo sobre se ausentar do corpo para ir morar com Cristo. Cullmann faz uma comparação com as expressões “dia V” e “dia D”, sendo esta última uma referência ao ataque decisivo dos Aliados na Normandia, durante a Segunda Guerra Mundial, que pôde ser considerado o motivo da vitória (“dia V”), embora a guerra tenha perdurado por mais algum tempo. Da mesma maneira aconteceria com o cristão, pois imediatamente depois da morte ele é considerado como estando vivo na presença do Senhor, isto porque o “dia D” já aconteceu com a morte de Jesus.

* E esta não é a única hipótese sui generis formulada por teólogos “progressistas”. Por exemplo, inventaram outra explicação que foi chamada de kairosfera segundo a qual todos os justos já estão vivos no céu, pois lá não existe o tempo terrestre (cronos) e o que vigora é o tempo de Deus (kairos). Ou seja, tanto os que estão vivos na Terra quanto os que morreram já estão todos vivos no céu. Assim, o conceito de sobrevivência imediata foi mantido, sem necessidade de crer na imortalidade da alma.

Além de tais especulações, Oscar Cullmann também não acreditava na infalibilidade total da Bíblia. Achava que algumas passagens bíblicas eram meros reflexos das opiniões pessoais dos escritores, de acordo com o contexto histórico em que viviam. Tudo isso junto fez com que ele escrevesse o seguinte:

“Então, um homem que não tem o corpo carnal está ainda mais próximo de Cristo do que antes, se ele tem o Espírito Santo. É a carne, ligada ao nosso corpo terreno, que ao longo da nossa vida dificulta o pleno desenvolvimento do Espírito Santo. A morte nos liberta desde obstáculo, embora seja um estado imperfeito na medida em que fica faltando o corpo da ressurreição. Nem neste trecho [de Filipenses 1:23], nem em parte alguma se encontra qualquer informação mais detalhada sobre este estado intermediário no qual o homem interior, despojado realmente de seu corpo carnal, mas ainda privado do corpo espiritual, existe com o Espírito Santo. O apóstolo se limita a garantir-nos que esta condição, a qual antecipa o destino que é nosso já que recebemos o Espírito Santo, aproxima-se da ressurreição final.

“Encontramos aqui o medo de uma condição imaterial associado com a firme confiança de que, mesmo nessa condição intermediária e transitória não ocorre qualquer separação de Cristo (entre os poderes que não podem nos separar do amor de Deus em Cristo está a morte – Romanos 8:38). Este medo e esta confiança estão lado a lado em 2 Coríntios 5, e isso confirma o fato de que até mesmo os mortos compartilham da tensão do momento presente. Porém, a confiança predomina, pois a ação foi realmente tomada. A morte está subjugada. O homem interior, despojado do corpo, não está mais sozinho, ele não leva a existência sombria que os judeus esperavam e que não pode ser descrita como vida. O homem interior, despojado do corpo, já foi transformado pelo Espírito Santo em seu período de vida, já está soerguido pela ressurreição (Romanos 6:3 em diante; João 3:3 em diante), se como pessoa viva, ele já tinha sido renovado pelo Espírito Santo. Embora ele ainda ‘durma’ e ainda aguarde a ressurreição do corpo, a qual, por si só, dará a ele a vida plena, o cristão falecido tem o Espírito Santo. Assim, mesmo nesta condição, a morte perdeu o seu horror, embora ela ainda exista. E é dessa maneira que os que morrem no Senhor podem realmente ser abençoados ‘desde agora’, conforme diz o autor do Apocalipse (Apocalipse 14:13). O que se diz em 1 Coríntios 15:54, 55 aplica-se também aos mortos: ‘A morte foi destruída pela vitória. Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão?’ Assim, o apóstolo escreve em Romanos 14: ‘Assim, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor.’ (versículo 8) Por esta razão Cristo morreu e voltou a viver, ‘para ser Senhor de vivos e de mortos.’ (versículo 9).” – Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?, pp. 33, 34.

O texto de Apocalipse mencionado por Cullmann diz o seguinte:

Felizes os mortos que morrem em união com o Senhor, deste tempo em diante. Sim, diz o espírito, descansem eles dos seus labores, porque as coisas que fizeram os acompanham”. – Apocalipse 14:13.

Como se percebe, Cullmann sabia perfeitamente que o conceito dos hebreus era que a morte não implicava na aniquilação da pessoa, mas sim numa existência sombria e consciente, mas que não poderia ser apropriadamente chamada de vida, conforme o cenário apresentado na Bíblia Hebraica sobre as “sombras” dos mortos. Do mesmo modo percebeu que os escritos cristãos não advogam a inexistência depois da morte. Mas ignorou tudo isso em favor de sua teoria. Na prática, o resultado foi a mesma coisa que os aniquilacionistas em geral costumam fazer: dar um sentido simbólico a determinados trechos bíblicos “inconvenientes”. O único diferencial é que Cullmann apresentou essa incongruência de uma maneira mais elegante, típica de sua formação erudita, chegando ao ponto de dizer que o corpo é um “obstáculo” para o cristão estar misticamente com Jesus no céu. O que faz lembrar o argumento dos neoplatonistas.

Embora Cullmann tenha feito um bom nome em sua trajetória acadêmica, certamente lastreada em trabalhos sérios, o que ele escreveu sobre o “condicionalismo” pode ser considerado uma mancha no conjunto de sua obra, pois as explicações que ele deu sobre a expectativa dos primeiros cristãos sobre o que acontece depois da morte estão claramente erradas. Elas são inerentemente confusas e parecem ter surgido de um conflito interior sobre o que realmente acreditar.

Note que no trecho supracitado ele diz que “os mortos compartilham a tensão do momento presente”, que “o cristão falecido tem o Espírito Santo”, que a morte é um “estado intermediário” no ‘qual o homem interior continua existindo’, e que aqueles que estão nessa situação já são “abençoados ‘desde agora’ ”. E ainda diz que o homem sem corpo carnal está mais próximo de Cristo! Tais afirmações contradizem frontalmente a visão aniquilacionista sobre a morte, segundo a qual tais coisas se aplicam apenas aos que estão vivos neste mundo. Na visão materialista, quando o corpo carnal morre e desaparece o homem deixa de existir completamente. Ele não vai para lugar algum, mesmo que tenha sido uma pessoa fiel.

O que Oscar Cullmann fez com tais colocações foi flertar conceitualmente com o que a Bíblia informa sobre a continuidade da existência, com o possível intuito de evitar que a ideia apresentada fosse enquadrada na categoria do aniquilacionismo materialista, que prega a inexistência daquele que morre. Talvez tenha sido a forma que Cullmann encontrou de aplacar sua consciência ao optar por um entendimento notoriamente contrário ao pensamento judaico-cristão apresentado nas Escrituras Sagradas. A única “válvula de escape” que mencionou para amenizar o problema gerado por sua teoria foi dizer que o Novo Testamento não dá detalhes de tal suposto “estado intermediário”... (Note que aqui ele se valeu de uma expressão comumente usada por cristãos “imortalistas”: estado intermediário).

Cullmann tinha aversão ao conceito platônico da imortalidade da alma e o achava incompatível com a Bíblia. Ao que parece este foi o principal motivo que o fez se enveredar pelo arriscado caminho acima resumido. Mas isso era totalmente desnecessário, pois é possível sim rejeitar o conceito grego de alma sem aderir ao aniquilacionismo. O erudito Stewart Dingwall Fordyce Salmond (1838–1905) é um exemplo que confirma isso. Ele foi um teólogo de alto nível que rejeitou o Platonismo, mas sem abrir mão do conceito bíblico da existência contínua da pessoa depois da morte. O que Salmond escreveu sobre o assunto é muito mais coerente do que aquilo proposto por Cullmann, pois não rejeita a essência dos textos bíblicos que foram citados ao longo deste artigo.

 

Bibliografia de referência

1) “O Lutero Adventista do Sétimo Dia: Sono da Alma e a Imortalidade da alma”:

Parte 1- Parte 2 - Parte 3

2) Lista completa das obras de Lutero

3) Obras de Martinho Lutero disponíveis para venda

4) “A fé condicionalista de nossos pais”, em dois volumes, de Le Roy Edwin Froom (1965/1966):

Vol. 1 - Vol. 2.

 

Crédito da imagem utilizada

The Gospel Coalition

 

voltar para página principal